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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

Reposição de texto publicado a 22.06.23, agora em singela homenagem ao Prémio nobel da Paz 2023 atribuído a   

 

 

 

 

 

 

 

Les hirondelles de Kaboul


PORQUE É HUMANO TENTAR QUANDO A RAZÃO PARECE PERDIDA

As andorinhas de Cabul, o filme do futuro, do futuro de hoje.

As cores das aquarelas instam a placidez do deserto face ao desastre perpétuo que se tem passado no Afeganistão, quando um sentido para a vida é procurado por dois homens e duas mulheres que mal sobrevivem ao martírio que o país perpassa, sob a loucura entregue às mãos da tirania talibã.

Todavia, nem sob o jugo do fanatismo religioso, esse mesmo que se alenta e gargalha quando as bolas de pano, pontapeadas pelas crianças, atravessam as argolas de corda preparadas para os enforcamentos; nem mesmo quando de pedrada a pedrada as mulheres sob a burca rolam de dores espraiando sangue até à morte, perante uma ovação furiosa; nem mesmo assim, o amor cede, nem mesmo assim a esperança parte dali.

E nada é milagre, mas antes desobediência. Desobediência no pequeno gesto que faz futuro apesar da miséria e da extrema violência que a obriga.

Porque há esperança e futuro quando há desejo de ensinar, na clandestinidade, as futuras gerações que têm de saber que a falta de liberdade acarreta a falsa estabilidade, num silêncio tão fundo que até os pensamentos, mata, e há que transmitir esta verdade, porque há gestos de andorinhas.

Porque há esperança e futuro quando nada parecendo acontecer que mude a dimensão trágica da vida, as andorinhas insistem no seu piar, no seu voo livre, desafiando os termos dos homens.

Porque há esperança e futuro quando o amor faz explodir as grilhetas que punem a humana tentação, o humano desejar.

O silêncio mata mais do que as armas, é certo, e os personagens centrais sabem-no, e tentam subverter as regras aguardando ou não que a misericórdia derradeira lhes seja concedida, já que apenas tentam.

O final deste filme portentoso?

Um murro explosivo no estômago. Uma centelha estrondosa de barulho no coração.

 

Teresa Bracinha Vieira


Obs: Estreou mundialmente este filme, no Festival de Cannes em 2019. Baseado no livro de Yasmina Khadra, pseudónimo de Mohammed Moulessehout, escritor argelino.

Filme realizado por Zabou Breitman e a ilustradora Élea Gobé Mévellec.

CRÓNICA DA CULTURA

Les hirondelles de Kaboul


PORQUE É HUMANO TENTAR QUANDO A RAZÃO PARECE PERDIDA

As andorinhas de Cabul, o filme do futuro, do futuro de hoje.

As cores das aquarelas instam a placidez do deserto face ao desastre perpétuo que se tem passado no Afeganistão, quando um sentido para a vida é procurado por dois homens e duas mulheres que mal sobrevivem ao martírio que o país perpassa, sob a loucura entregue às mãos da tirania talibã.

Todavia, nem sob o jugo do fanatismo religioso, esse mesmo que se alenta e gargalha quando as bolas de pano, pontapeadas pelas crianças, atravessam as argolas de corda preparadas para os enforcamentos; nem mesmo quando de pedrada a pedrada as mulheres sob a burca rolam de dores espraiando sangue até à morte, perante uma ovação furiosa; nem mesmo assim, o amor cede, nem mesmo assim a esperança parte dali.

E nada é milagre, mas antes desobediência. Desobediência no pequeno gesto que faz futuro apesar da miséria e da extrema violência que a obriga.

Porque há esperança e futuro quando há desejo de ensinar, na clandestinidade, as futuras gerações que têm de saber que a falta de liberdade acarreta a falsa estabilidade, num silêncio tão fundo que até os pensamentos, mata, e há que transmitir esta verdade, porque há gestos de andorinhas.

Porque há esperança e futuro quando nada parecendo acontecer que mude a dimensão trágica da vida, as andorinhas insistem no seu piar, no seu voo livre, desafiando os termos dos homens.

Porque há esperança e futuro quando o amor faz explodir as grilhetas que punem a humana tentação, o humano desejar.

O silêncio mata mais do que as armas, é certo, e os personagens centrais sabem-no, e tentam subverter as regras aguardando ou não que a misericórdia derradeira lhes seja concedida, já que apenas tentam.

O final deste filme portentoso?

Um murro explosivo no estômago. Uma centelha estrondosa de barulho no coração.

 

Teresa Bracinha Vieira


Obs: Estreou mundialmente este filme, no Festival de Cannes em 2019. Baseado no livro de Yasmina Khadra, pseudónimo de Mohammed Moulessehout, escritor argelino.

Filme realizado por Zabou Breitman e a ilustradora Élea Gobé Mévellec.

 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

O Raio Verde _ ana ruepp.jpg

 

O Raio Verde’ e o encontro com a luz efémera

 

‘The sun / the gilt and green / bodies / sand, stone / the immensity sea-mountain / nature animal-vegetable / ecology-vegetarian, nonviolent / asceticism-detachment / solitude-the crowd / the meeting / luck-chance / cards-horoscopes / vacations-work.’, Eric Rohmer, rascunho manuscrito dos diálogos de ‘O Raio Verde’.

 

No filme ‘O Raio Verde’ (1986) de Eric Rohmer, da série ‘Comédias e Provérbios’, apercebemo-nos que os espaços criam em nós ressonâncias. O nosso corpo não é imune ao mundo físico que nos rodeia. E os filmes de Eric Rohmer sublinham a importância das ligações entre espaços e que, em grande medida, muito contribuem para as ligações entre as pessoas: ‘I love the streets, the squares, the shops. Many of my films are based on meetings, and in a city like Paris, there are so many people that they are always somewhat exceptional.’, Eric Rohmer

 

As ligações estabelecidas dentro da cidade, entre transportes e entre cidades, nos filmes de Rohemr, representam redes de movimento, de entendimento, de conhecimento e de encontro - mas também podem representar mal entendidos e desencontros. Na série das ‘Comédias e Provérbios’, as personagens possuem um desejo imenso e intríseco de se relacionar. Desejam viver um acontecimento extraordinário, querem que algo lhes chegue com grande força - não há medo em colocar em causa uma determinada ordem. E essas mudanças tão desejadas chegam através do espaço do mundo físico exterior. Em ‘O Raio Verde’ Delphine deseja, através da sua intuição e imaginação, ultrapassar a sua solidão durante as suas férias de verão.

 

Segundo Guy Debord, os espaços tem o poder de modificar o ser humano - porque as reacções físicas e emocionais revelam o seu estado mental, a sua psicogeografia (em 1957, Debord criou um mapa ‘The Naked City’ que divide Paris em dezanove secções, aleatoriamente dispersas, e os utilizadores deste mapa são livres de escolher a sua própria direcção de acordo com um contexto emocional que desejam atribuí-lo). No espaço, certos ângulos e certas perspectivas que se aproximam ou que se afastam, permitem vislumbrar, confirmar ou fragmentar emoções ou comportamentos. A vida vai-se tecendo através dos sitios por onde passamos, através dos espaços onde vivemos, através das pessoas que cruzamos. Somos a membrana que separa o interior único que respira e o exterior físico que nos rodeia.

 

Quem tiver a sorte de avistar o raio verde (esse raro fenómeno de refracção óptica que acontece num pôr do sol de horizonte plano, limpo e claro), segundo conta Júlio Verne, será capaz de ler todos os seus próprios sentimentos e também os sentimentos dos demais. Na história do filme, Rohmer utiliza um fenómeno físico / geográfico, exterior e não controlável para mudar a vida da sua personagem.

 

‘É muito difícil separar a força das coisas exteriores e a liberdade que é dada ao indivíduo como destino. Na teologia Deus é considerado sempre um ser completamente livre e eu pergunto mas é completamente livre ou a fatalidade dele é ser livre? (...) As coisas estão intricadas de tal maneira que estamos a separar liberdade, de destino, e talvez não valha a pena - quem quiser pode dizer o meu destino é a minha liberdade. (...) Aquilo que lhe apetece fazer é capaz de ser o correcto.’, Agostinho da Silva em conversa com Isabel Barreno, 1990.

 

As alterações que acontecem nas nossas vidas não dependem totalmente de nós - há fenómenos inexplicáveis e inalcançáveis que estão fora do nosso controlo. E talvez a ordem/forma do mundo tenha um destino específico para cada um de nós.

 

O filme de Rohmer explora as deslocações de Delphine, através do acaso, mas sobretudo em busca de uma revelação, em direcção à luz - desde a cidade até ao mar, onde se descobre, ainda que fugazmente, o sentido de tudo. Delphine é de carácter evanescente, efémero, aéreo e infinitésimal. E está empenhada a mudar o seu destino através do movimento da natureza - mas esta pode ser esmagadora e opressora. Delphine confia mais no destino ou na força das coisas exteriores, que na sua própria e individual liberdade e a aparição do raio verde funciona como uma recompensa à sua constância e persistência, por saber esperar pelo momento certo. O momento exacto e efémero do raio clarifica, por instantes as acções e impulsos de Delphine - que finalmente parecem acertadas, justificadas e com sentido. Esse fenómeno geográfico raro permite uma saída, um escape ao impasse onde Delphine se encontra. Delphine procura claridade e lucidez fora de si mesma e por isso a qualquer momento está exposta a voltar a perder-se.

 

E sendo assim, o filme divide-se entre o vermelho e o verde e é uma osmose perfeita entre a natureza (o mundo físico exterior) e o interior de Delphine. Eric Rohmer, em ‘O Raio Verde’ faz com que o espaço físico funcione como uma força exterior (destino) que muda a vida e a vontade das suas personagens.

 

Ana Ruepp

CRÓNICA DA CULTURA


Título original: Sorry we missed you, de Ken Loach

 

De olhos vazos e exaustos Rick e a mulher enfrentam dias cruéis sabendo que vivem uma vida a caminho do fuzilamento definitivo seu, e da sua família.

 

Após a crise financeira de 2008 o incêndio da não vida permanece-lhes no dia-a-dia como uma mandíbula que os morde sobretudo quando já só as lágrimas e o desespero lhes resta.

 

A consciência do que o mundo lhes dá para lutarem, parece-lhes agora mais perfurante da alma, da justiça e do amor que afinal acreditaram um dia poderem vir a viver serenamente, mesmo que à custa de se encontrarem permanentemente numa luta à beira do inferno.

 

A excelência deste filme de Ken Loach deixa-nos numa combustão interior por aquilo que afinal nunca deixámos florescer, nem antes nem depois da crise de 2008: o direito à vida digna.

 

Qualquer tipo de violência tornou-se culto desenjaulado sob os nossos olhos, os da dita compaixão possível, mas afinal da indiferença e da distância face ao sofrimento.

 

José Mário Branco tão corajosamente cantava que veio de longe de muito longe e muito passou para aqui chegar, e afinal sabia que nunca encontraria o que sonhara para o aqui e pelo qual tanto lutara. Tal como todos os elementos do programa “Governo Sombra”, a minha gratidão ao José Mário Branco é imensa por todo o prumo com que viveu a vida, não obstante, nunca me ter sentido ideologicamente par, mas sim, comoventemente, sua admiradora.

 

A verdade é que este filme me fez recordar o quanto a luta de Mário Branco foi também para que se habitasse um dia um mundo que fosse início de uma harmonia. Ricky e a mulher, descrentes afinal desta esperança de harmonia, amavam-se e amavam os filhos, e, na qualidade de cuidadora a mulher de Ricky, ainda conseguia encontrar no sofrimento alheio, a possibilidade desse sofrimento a compreender e a mimar, enquanto ele lhe penteava os cabelos e as lágrimas lhe permitiam descansar os minutos horríveis dos dias de trabalho que suportava. Ficava ela grata ao trabalho desesperante que fazia, não apenas pela possibilidade de o desempenhar bem, mas porque esse trabalho a compensava do pior que nela era a ebulição de suportar raiva e ternura, tentando sempre que esta última fosse a vencedora.

 

A cada dia restavam as cinzas do dia anterior e arrancar a partir daí para outra e mais outra cratera de dor era o injustíssimo destino a aceitar.

 

E tudo é verdade neste filme. A proposta das sociedades de hoje é para que cada um se despeça de uma parte de si e a mecanize irrecuperavelmente até que perder o seu todo seja o desígnio único.

 

As políticas oxidadas candidatam-se ao voto na fúria do poder, e, enquanto este, e a privação, ditam quem é quem, uma teia de sangue oculto acossa e esquece que até os corações se tornaram temíveis, e íntegro, mas desfeito, Ricky, a mulher e os filhos já só cartilagem e não osso, podem perder ainda o telhado tenebroso que os cobre.

 

É então esta a última morada que se oferece. 

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Conto de Primavera - imensidão, vazio e inconclusão.

 

'A sensação de voar que se liberta em mim ajuda-me a ajustar melhor a mão quando conduzo o trajecto das minhas tesouras. É muito difícil de explicar. Diria que é uma espécie de equivalência linear, gráfica, à sensação de voar. Há também a questão do espaço vibrante.', Matisse

 

'O Periquito e a Sereia' (Matisse, 1952), oferece ao 'Conto de Primavera' (Eric Rohmer, 1990) o enquadramento estrutural e formal. O guache recortado de Matisse introduz ao filme a imensidão do espaço limitado, a dispersão das folhas, dos frutos e dos corpos, a abertura do fundo branco sobre o qual tudo gravita, a variação subtil mas imutável de todas as formas bem delimitadas e a intensidade das cores contrastantes. O elemento humano está diminuído e funde-se com todos os outros elementos. 

 

O filme passa-se na primavera, e tal como no guache recortado o elemento floral é dominante e vigoroso, uma alegria de viver (mesmo que tudo seja flutuante, transitório, sem efeito, mesmo que tudo seja uma dança interminável e sem razão de ser). 

 

Neste filme a primavera está associada a um novo começo, a um nascer de novo, a um crescimento iminente. Tal como Natacha, Jeanne está dividida entre dois apartamentos, e entre dois estádios diversos das suas vidas. 

 

'I wanted something really light, almost empty. The story begins very slowly, it almost does not begin my exposition scenes have often been long, here the film almost stays as an exposition seen until the end. At the moment when we think that something is going to happen, it doesn't happen: that is my aim in Conte de Printemps', Eric Rohmer.

 

O mistério do pensamento nunca é totalmente revelado. Nunca é conclusivo. Jeanne gosta de pensar sobre o seu próprio pensamento. É através do pensamento que Jeanne se distancia das próprias sensações e mesmo da sua existência. Existe em toda história, uma vontade imensa em encontrar uma ordem, uma razão, um sentido e uma reposta. Jeanne consegue contribuir para a clarificação do mistério do colar. E sente-se extremamente seduzida pela liberdade fabuladora da sua amiga Natacha. Mas termina presa a uma suposição irreal, que a permitia escapar ao seu ordenado universo.

 

'I always thought, if you asked me what was happening in this film, I could answer 'nothing', because in my other films there is always an outcome. Here things happen but there is no outcome. The only thing that happens is the frivolous one of finding this necklace. But the only thing that the story of the necklace implies is that all this is never finished. That's what I was interested in, that's what I wanted to show. It is this hole, this absence that got me interested in this subject.', Eric Rohmer

 

Apesar de mais compacto, os contos das quatro estações de Rohmer, apresentam a ainda a estrutura aberta e livre das Comédias e Provérbios. 

 

As personagens gravitam e nunca se confrontam de verdade. Jeanne e Natacha nunca se revelam na totalidade.

 

O filme termina no mesmo sítio onde começa - no apartamento desordenado do namorado de Jeanne. Nada mudou, está tudo no mesmo lugar, talvez somente o modo de ver/pensar se alterou. A firmeza inicial é afinal vulnerável, o desejo de ordem e de controlo é afinal ausência e vazio.

 

Ana Ruepp