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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR


Os filmes a carvão de William Kentridge são um campo privilegiado para captar a transformação da consciência.


“He saw that the water continually flowed and flowed and yet it was always there; it was always the same and yet every moment it was new.”, Herman Hesse In Siddhartha


Os filmes a carvão de William Kentridge (1955) são um campo privilegiado para captar a transformação da consciência. Através do carvão, Kentridge consegue esculpir as várias imagens que se vão formando no pensamento à medida que um desenho se inicia. E é o carvão que permite que o imprevisto aconteça. Os desenhos que sobrevêm uns atrás dos outros não obedecem a nenhum plano prévio. Por isso, as sequências fotografadas tomam rumos inesperados e são o puro espelho de uma multitude de reflexões, ideias, emoções, ações, impressōes e memórias que se vão dando num determinado momento.


O desenho aparece aqui como um rio que não pára de correr. É como uma força em forma de sintonia com o tempo e o espaço, sempre presente e constante, mas sempre em permanente mudança. O desenho que se transforma, é uma interação mas também ao mesmo tempo uma reflexão acerca do mundo interior e exterior.


Kentridge explica que existem uma ou duas imagens chave no início de cada sequência e é sobre essas que a imagem em movimento se vai desenhando e descobrindo. No total, talvez 20 ou 30 desenhos sejam feitos para cada filme, mas cada desenho é sucessivamente apagado e redesenhado vezes sem conta. No final há um papel sujo e borrado, mas que contém o rastro de tudo o que aconteceu no desenho enquanto ele está sendo filmado. Cada desenho é uma acumulação do tempo, do espaço, das ações, das ideias e das narrativas que estão congeladas dentro da câmara.


O papel sobre o qual se desenha está pendurado numa parede do estúdio. Na parede oposta encontra-se a câmara. Kentridge nunca vê o que está a ser fotografado. Kentridge só consegue ter acesso ao momento presente, aquilo que está a ser desenhado, num espaço pequeníssimo de tempo. E é entre o desenho e a câmara que novas ideias surgem e se desenvolvem. Por isso, a câmara grava não só a transformação de um desenho mas também é a testemunha do processo físico e do ato de fazer. O ritmo do desenho é, pois, determinado pela distância e pelos passos que separam o papel da câmara (Kentridge descreve os seus passos no estúdio como sendo equivalentes às ideias que circulam na sua cabeça). A mesma mão que risca e apaga com o carvão, tem de recuar para apertar com a maior desejada frequência o botão da máquina fotográfica. Deste modo, Kentridge permite que o movimento do corpo faça emergir o fluir do pensamento e que este se fixe para sempre. 


Os filmes de Kentridge têm a capacidade de perpetuar e conter todos os pensamentos nublados, entrelaçados, emaranhados, entretecidos e misturados que o carvão vai moldando no papel. Quanto mais Kentridge fotografa mais detalhe gravará o filme e mais compreensível será essa simultaneidade. O processo incessante e imparável da transformação de um desenho ficará assim, para sempre, a pertencer a uma unidade. 


“He had often heard all this before, all this numerous voices in the river, but today they sounded different. He could no longer distinguish the different voices - the merry voice from the weeping voice, the childish voice from the manly voice. They all belonged to each other: the lament of those who yearn, the laughter of the wise, the cry of indignation and groan of the dying. They were all interwoven, interlocked, entwined in a thousand ways. And all the voices, all the goals, all the yearnings, all the sorrows, all the pleasures, all the good and evil, all of them together what is the world. All of them together was the stream of events, the music of life.”, Herman Hesse In Siddhartha


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Os subúrbios nos filmes de Eric Rohmer são centrais e não marginais.


“His female characters are fulfilled not in the alienating city centre, where they feel absolutely alone (in exile…), but in the interstices - at the beach (Le Rayon Vert) or in the suburbs (L’Ami de mon Amie).” (Handyside 2009, 217)


No texto “The Margins Don’t Have to Be Marginal: The banlieue in the Films of Éric Rohmer.”, Fiona Handyside explica que, na série Comédias e Provérbios de Eric Rohmer, a periferia pode ser lida como sendo a representação máxima da fluidez da modernidade, da auto-referência, da transição constante e do movimento que não pára. 


Segundo Handyside, Blanche no filme L’Ami de mon Amie nunca encontrará permanência nem solidez em Cergy-Pontoise, porque esta cidade satélite foi pensada, precisamente, para estar ao serviço de uma sociedade que depende constantemente da rapidez, da mudança e do derivar contínuo. Para Handyside, Cergy simboliza, não a cidade utópica ou ideal, mas a cidade real e periférica concebida para uma sociedade pronta a deslocar-se para onde for, sempre que é preciso. 


Porém, Cergy-Pontoise, no filme de Rohmer, é também metáfora para ser lugar de liberdade, de relações temporárias, de emancipação e de tempos livres. Em L’Ami de mon Amie, aparece como sendo um lugar de veraneio para pessoas reais. Rohmer documenta neste filme, as classes trabalhadoras parisienses, a aproveitar as oportunidades de lazer oferecidas por este subúrbio. Handyside explica que a maioria das imagens mediáticas dos subúrbios descrevem lugares horríveis e tristes, por isso não é de estranhar que Blanche se surpreenda ao encontrar famílias inteiras à beira do rio, tal qual como numa pintura de Seurat, a aproveitar o sol e o exterior. 


Para Handyside, aos olhos de Rohmer, Cergy-Pontoise é a verdadeira reunião da cidade e do campo: “Cergy-Pontoise is posited by Rohmer not as a place of absolute difference from the city or the country, but as somewhere that has absorbed and incorporated elements of both.” (Handyside 2009, 218)


Nos filmes de Rohmer a margem é central e a vida no centro pode significar o exílio. Na opinião de Handyside, em vez de ser um grande fracasso social, os subúrbios em Rohmer, são centrais e não marginais ao funcionamento da sociedade, porque são entendidos como uma resposta dos cidadãos ao mundo da modernidade tardia - fragmentado e cheio de identidades e culturas concorrentes e contrastantes. As personagens dos filmes de Rohmer, têm personalidades ambíguas, reflexivas e múltiplas e escolhem viver nos subúrbios (ou melhor fora do centro de Paris) não por necessidade mas por vontade: “Cergy-Pontoise provides its citizens with bright, clean apartments, a variety of leisure activities, well-paid and interesting work, the opportunities to meet people and make friends…” (Handyside 2009, 219)


Deste modo, esta imagem de privilégio paradoxal da margem, representado no cinema de Rohmer, tem uma repercussão e um efeito revigorante nas diferentes experiências e ideias que se tem do espaço urbano e tem, acima de tudo, o poder de deslocar a noção de que apenas no centro da cidade se pode encontrar a felicidade.


Ana Ruepp