Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Assinalamos esta semana, o Centenário do nascimento de Eduardo Lourenço (1923-2020), homenageando o amigo de longa data do Centro Nacional de Cultura e nosso sócio honorário.
LIBERDADE, HISTÓRIA E CIÊNCIA Leitor atento, Eduardo Lourenço conhecia bem a conferência de Karl Jaspers, nos primeiros Encontros Internacionais de Genebra, em 13 de outubro de 1946, quando em resposta à pergunta – o que é a Europa, invocou três palavras: liberdade, como vitória sobre o arbitrário e compreensão da intranquilidade e da inquietação; história, enquanto encontro e diálogo e procura da liberdade política; e ciência, como apelo à verdade, uma vez que “a liberdade exige a ciência, não só a ciência como passatempo dos nossos ócios, não só como técnica subordinada a fins práticos, não só como jogo de pensamento lógico, mas como vontade absoluta universal de conhecer o conhecível”. Todo o percurso do autor de Heterodoxia foi feito de um apego claro relativamente à tripla invocação feita em Genebra. De facto, a heterodoxia que cultivou assentava nas ideias de autonomia e emancipação, pelo que quem firmemente acreditasse que possuía a liberdade, já a teria perdido de modo irreversível. O culto do paradoxo pelo ensaísta significou, assim, a compreensão da incompletude humana e de uma inelutável imperfeição. Daí o apego ao método do ensaio, com demarcação permanente relativamente a um “pensamento fechado e completo”. Assim, o que lhe surgia como problema ou questão de “identidade”, para a pessoa, o grupo ou a nacionalidade, não diria respeito à identidade propriamente dita, mas á sua manifestação ou à sua expressão, enquanto “perturbação”. E deste modo a liberdade individual tornava-se um fator de visão crítica. Como disse em Nós e a Europa ou as duasrazões, numa conferência proferida nos Estados Unidos (em Durhan), em 1984, podia “concluir-se que, em sentido rigoroso, não há nunca questão alguma de identidade. Seria uma conclusão apressada. Mais exato é afirmar que para o indivíduo, o grupo, a nação, a questão da identidade é permanente e se confunde com a da mera existência, a qual não é nunca um puro dado adquirido de uma vez por todas, mas o ato de querer e poder permanecer conforme ao ser ou ao projeto de ser aquilo que se é”.
PENSAMENTO E AÇÃO Tal como encontrara na conferência de Jaspers e nas suas considerações proféticas, o pensador ocupou-se da reflexão sobre a identidade num mundo global – onde coexistem fatores contraditórios, inerentes à própria complexidade. Nenhum facto, nenhuma consequência tem apenas uma razão ou explicação. E a situação atual do mundo demonstra, a cada passo, essa exigência de entendimento da importância do “ato de querer e poder”, que deve permanecer “conforme ao ser”, enquanto situação e projeto. Desde a queda do muro de Berlim, quando se esperava uma convergência de sistemas e de paz, assistimos à fragmentação política; e quando prevíamos a emergência de um regionalismo supranacional, deparámo-nos com um perigoso tribalismo, que agrava os riscos do nacionalismo. E sobre os escombros da guerra fria ocorreram perigosas polaridades difusas – desde o terror de 11 de setembro aos novos imperialismos larvares que redundam na emergência de guerras incontroláveis. Daí a coexistência de esperança e de desencantamento, que são, no fundo, faces da mesma moeda. E o ensaísta, na linha essencial de Montaigne, partiu da experiência pessoal para a realidade que nos cerca. Daí que a compreensão do Portugal moderno devesse fazer-se em ligação estrita com a noção de “Europa como Cultura”, como encontramos no texto com este título escrito em “Finisterra” no ano emblemático de 1989, e que hoje renasce com uma imprevista atualidade.
A EUROPA EM CONSTRUÇÃO Que Europa se vai construindo? Há sinais preocupantes. “É provável que, dentro em pouco, a Europa constitua um supermercado florescente, um espaço dourado por excelência de uma sociedade hiper-consumista, ao mesmo tempo que num lugar de diversão sem rival no planeta. Esta perspetiva não só é plausível, como, de certo modo, fatal”. Contudo não é uma cultura europeia que se constrói, mas um “invólucro vazio, uma realidade sem alma nem memória. Uma Europa cortada da relação com os valores culturais que criou, indiferente à sua herança E à sua riqueza cultural, será apenas uma Disneylândia para a nossa pseudo-infância de europeus”. Se todas as culturas, todas as civilizações fizeram de si mesmas e do mundo à sua volta uma história global, numa relação privilegiada com a Verdade, através de ídolos, deuses e do próprio Deus, em nome da sabedoria e da certeza, a consciência europeia criou uma cultura de inquietação, de angústia e de desafio aos deuses. E assim, nós europeus, tornámo-nos os únicos humanos que não temos identidade. “A essência da cultura ocidental cifra-se na vontade de nos dar um nome”. E como “continente metafísico” a Europa confronta-se com a divergência, o conflito e com a inquietude. “Em boa verdade, o passado europeu com os seus intermináveis conflitos, os recentes horrores do nosso século não abonam muito a esta tentativa – ou tentação – de amalgamar a história europeia à da luta pela liberdade, como de formas diversas o puderem fazer Michelet, Hegel ou ainda Croce”. Afinal, a Democracia europeia resulta de um longo conflito, insiste Eduardo Lourenço, o que “não é um dado, um dom caído do Céu, mas uma conquista, sempre inacabada, sempre ameaçada e a reformular em temos cada vez mais complexos e, em última análise, imprevisíveis. O seu cimento foi a audácia, o sacrifício, o sangue, mas acima de tudo, uma exigência de justeza nas ideias e de justiça nos atos”.
A Europa foi construída pelas ameaças dos persas, turcos, mongóis, árabes, que forjaram a nossa identidade. “No fim de contas, o único inimigo que os portugueses sempre tiveram foram eles mesmos. O que era já visível para Erasmo não deixou de o ser em vésperas da sua conversão em ‘Comunidade Europeia’…” A guerra civil perpétua europeia foi atenuada pela razão, mas há um esquecimento cíclico que nos assalta e que nos leva a contentar-nos erradamente com os resultados comerciais ou económicos de curto prazo. Para Eduardo Lourenço, somos, porém, demasiado indiferentes aos conceitos e ideais que preocupavam Jaspers em 1946, quando este pensava numa regeneração: Verdade, Valor, Liberdade, elementos que durante séculos constituíram a referência imperiosa do pensamento, da ética, da arte e da ação europeias. “Se não houver Europa como cultura, e enquanto a não houver, todos os outros sucessos europeus repousarão sobre a areia”. Mitificação do cultural? Apenas a simples lembrança de que “Europa foi sempre, não apenas uma cultura entre outras, mas uma exigência do sentido que engloba a crítica da própria cultura”. Contudo, o pensador não falava de um museu mais ativo do que uma mera referência turística, nem de um mero espaço de deslumbramento alargado, de comunicação de tesouros ou uma rede de gabinetes de curiosidades, mas da tomada de consciência das raízes comuns. “A Europa como cultura é outra coisa que essa fluidez nas trocas culturais relativas ao passado e ao presente, qualquer coisa que tem pouco que ver com o espetáculo televisual dos jogos inter-fronteiras”. Importaria demarcar-nos de uma ideia pobre de mínimo cultural, emerso no puro universo do espetáculo e da distração, da internet e dos robôs, em lugar de encarar a cultura e arte como valores … Como quis Coudenhove-Kalergie, podemos acrescentar, ser necessário entender Ulisses como o protótipo do europeu, enquanto o herói do primeiro romance de aventuras do Ocidente, cujo caráter tem várias dimensões. Não foi apenas bravo e magnânimo, mas dispôs de ardil e astúcia, com uma paixão temperada pela medida, não procurando a aventura, mas dominando-a, sem procurar a luta, mas ganhando-a.
Para Eduardo Lourenço, Camões, Antero de Quental ou Fernando Pessoa – ao lado da grande plêiade de europeus como Ésquilo, Dante, Erasmo, Goethe ou Rilke, Tolstoi ou Dostoievski – definiram, através das suas obras, um espaço exigente, enigmático, inventivo e grandioso da cultura concebida como cultura das diferenças, vivendo da busca do que T.S. Elliot considerava ser o muito da sabedoria que se perdia na informação e no conhecimento. Em suma, dependemos “da invenção de um caminho e de uma saída que ninguém nos deu nem pode descobrir em vez de nós”. E a nossa relação com o ensaísta tem a ver com essa inalienável necessidade de termos presente esse poderoso desafio que nos liga à humanidade e à cultura como vida.
Com as biotecnologias, um dos novos continentes científicos é o cérebro, e a pergunta é se, com os avanços neste domínio, o enigma do ser humano será finalmente superado ou se, pelo contrário, ele permanecerá. Grandes debates se travam entre as neurociências e a filosofia, precisamente por causa de temas candentes e incendiários, como a subjectividade, a autodeterminação, a vontade livre.
Sobre estas questões, o filósofo e professor da Universidade de Tubinga Manfred Frank deu há algum tempo uma longa entrevista ao alemão “Die Zeit”. O que aí fica reflecte esse debate.
A questão da subjectividade pertence ao núcleo da reflexão humana. Embora algumas correntes filosóficas falem da sua dissolução, penso que o sujeito é ineliminável. Argumento, mostrando que a condição de possibilidade de objectivar — no caso do Homem, de objectivar-se — é o sujeito, de tal modo que, por mais que objective de si mesmo, nunca se objectivará completamente, já que continuará a ser o sujeito que (se) objectiva.
Frank também afirma que nunca será possível reduzir a consciência e o espírito a processos neuronais, e isso "por razões de princípio". Há uma questão de princípio: como explicam as neurociências a passagem de processos físicos inconscientes a processos mentais conscientes? "Não é possível substituir o saber sobre nós mesmos por um saber objectivo sobre o mundo." A subjectividade não pertence ao mundo dos objectos.
O "eu" do autoconhecimento não é redutível àquilo a que nos referimos com nomes ou caracterizações. "A autoconsciência é um conhecimento único, reflexivo, no qual uma pessoa se refere conscientemente a si mesma, mas a si mesma em posição objectiva. Como poderia ela, porém, captar este eu-objecto como ela mesma enquanto sujeito, se, antes desta apresentação objectiva, não tivesse tido uma consciência inobjectiva de si?" Esta consciência inobjectiva quer dizer vivida, pré-reflexiva.
Permanece uma questão: "Quando identifico espírito com matéria, não identifico matéria com matéria." Trata-se como que dos dois lados de uma moeda, mas as condições de verdade do neuronal não se identificam com as do espírito: as primeiras encontram-se num tratado de fisiologia enquanto as dos estados mentais são verificadas introspectivamente, como viu Descartes. Isso é experienciado também ao nível do vocabulário, que é diferente para descrever o psíquico e o estado físico correspondente: não teria sentido exprimir a inclinação amorosa por alguém, descrevendo os processos electromagnéticos no cérebro.
A tese de neurocientistas que afirmam não haver, por detrás do alegado livre arbítrio, senão processos neuronais, que determinam a vontade, contradiz não só a compreensão jurídica de responsabilidade mas também a nossa própria autocompreensão: queremos ser autores racionais de mudanças no mundo — tentamos "tomar decisões racionais".
Para lá dos sistemas jurídico-penais, que pressupõem a liberdade, um exemplo. Suponhamos que alguém tropeça, sem querer, e, ao cair sobre outra pessoa, esta é apanhada por um carro e morre. Distinguimos muito bem esta situação daquela em que alguém empurra intencionalmente outra pessoa. E há esta virtude admirável: resistir moralmente à maioria. Os opositores ao Terceiro Reich "merecem o nosso sumo respeito", precisamente porque foram poucos e capazes de enfrentar a morte. Aí, "os neurocientistas têm muito para justificar, no sentido de dar conta do correcto normativamente dessas decisões a partir de processos neuronais".
Tudo o que é essencial, quando pensamos na humanidade, "vinculamo-lo ao pensamento da subjectividade e não à nossa representação do cérebro. São sempre pessoas, sujeitos, que consideramos como criadores de literatura, cultura ou religião". Afinal, "temos cérebros e somos eus". Daí poder formular-se o imperativo categórico de Kant nestes termos: "Nunca trates os seres humanos como coisas, mas sempre como sujeitos e pessoas." Se o mundo consistisse só em objectos, não haveria ninguém a quem dirigir o preceito: "Porta-te decentemente com os outros sujeitos."
Neste mesmo sentido se pronunciam outros autores mais recentemente. Por exemplo, o médico e teólogo Alfred Sonnenfeld em El arte de la felicidad. Mente, cerebro y genes: “Apesar do interminável e espectacular dinamismo cerebral, permanece a pergunta pelo nosso eu, a nossa identidade. O “eu” que se vai formando não é a mesma coisa que o cérebro. Há quem opina que o eu é gerado pelo cérebro, o eu seria produto do cérebro e, por conseguinte, não seria livre. Mas esta afirmação carece de justificação. Na nossa análise sobre a formação do autoconsciente estaríamos equivocados se pensássemos que cada um é o seu cérebro. Sem dúvida, sem a posse de um cérebro mais ou menos são, não poderíamos pensar, estar despertos, ser conscientes. Mas disso não se pode concluir que somos idênticos ao nosso cérebro. O ser humano é muito mais do que o seu cérebro.”
Reflectindo sobre o eu irredutível (absolutamente irredutível também ao eu do pai e da mãe, também eles irredutíveis), expressão do milagre da pessoa, que é fim em si mesma e não simples meio, e sobre a liberdade que, numa situação-limite (por exemplo, numa guerra, um soldado é obrigado a matar um inocente sob pena de, se não o fizer, ele próprio ser morto, e não o faz), dá a vida para salvaguardar a dignidade, é inevitável não ser confrontado com a questão de Deus criador e salvador.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 29 de abril de 2023
1. Nestes tempos do imediatismo, do ruído ensurdecedor causado pelas centrais da estupidificação, é urgente voltar ao essencial. E o que há de mais fundamental, essencial, do que a questão de Deus? Há Filosofia sem a pergunta por Deus? Se não quisermos permanecer na superfície ou nas simples convenções, se quisermos apresentar seriamente o fundamento da dignidade humana, dos direitos humanos, não é aí que vamos desembocar? Como diz Kant, o ser humano é fim e não simples meio. Ora, o que é que é fim em si mesmo senão o Infinito? E o que tem o ser humano de infinito senão a pergunta ao infinito pelo Infinito? O ser humano tem dignidade porque de pergunta em pergunta acabará por desembocar na pergunta pelo Fundamento último e o Sentido último, por outras palavras, na pergunta por Deus, independentemente da resposta que lhe dê: uns decidir-se-ão pela fé, outros pelo agnosticismo, outros pelo ateísmo.
Aprofundando, voltamos sempre à questão de Deus. Na sua obra Der Gott der Philosophen (O Deus dos filósofos), Wilhelm Weishedel mostrou que a questão de Deus constitui precisamente “a problemática central da Filosofia”, de Tales e Anaximandro a Nietzsche e Heidegger. “Mesmo onde a teologia filosófica está em decadência, continua a ter uma importância decisiva, pelo menos como algo que há que superar antes de qualquer outra coisa. Por isso, com razão o discurso sobre Deus é considerado como o problema essencial da Filosofia.”
2. Nesta quadra pascal, regresso, mais uma vez, a esse sublime e abissal texto, pavoroso, um dos grandes da grande literatura alemã, que Jean Paul, pseudónimo de Johann Paul Friedrich Richter, escreveu em 1796: "Rede des toten Christus vom Weltgebäude herab, dass kein Gott sei" (Discurso do Cristo morto, a partir do cume do mundo, sobre a não existência de Deus).
Nele, o célebre escritor descreve um sonho-pesadelo. Pela meia-noite e em pleno cemitério, numa visão apavorante, o olhar estende-se até aos confins da noite cósmica esvaziada, os túmulos estão abertos, e, num universo que se abala, as sombras voláteis dos mortos estremecem, aguardando, aparentemente, a ressurreição. É então que, a partir do alto, surge Cristo, uma figura eminentemente nobre e arrasada por uma dor sem nome. E, com um terrível pressentimento, "os mortos todos gritam-lhe: "Cristo, não há Deus?" Ele respondeu: "Não, não há Deus." Então, a sombra de cada morto estremeceu, e umas a seguir às outras desconjuntaram-se. E Cristo continuou, anunciando o que aconteceu no instante da sua própria morte: "Atravessei os mundos, subi até aos sóis, voei com as galáxias através dos desertos do céu; e não há Deus. Desci até onde o ser estende as suas sombras, e olhei para o abismo, gritando: "Pai, onde estás?" Mas apenas ouvi a tormenta eterna, que ninguém governa." Quando, no espaço incomensurável, procurou o olhar divino, não o encontrou; apenas o cosmos infindo o fixou petrificado com uma órbita ocular vazia e sem fundo, "e a eternidade jazia sobre o caos e roía-o e ruminava-se". O coração rebentou de dor, quando as crianças sepultadas no cemitério se lançaram para Cristo, perguntando: "Jesus, não temos Pai?" E ele, debulhado em lágrimas, respondeu: "Somos todos órfãos, eu e vós, não temos Pai." "Nada imóvel, petrificado e mudo! Necessidade fria e eterna! Acaso louco e absurdo! Como estamos todos tão sós na tumba ilimitada do universo! Eu estou apenas junto de mim. Ó Pai, ó Pai! Onde está o teu peito infinito, para descansar nele? Ah! Se cada eu é o seu próprio criador e pai, porque é que não há-de poder ser também o seu próprio exterminador?"
Para Jean Paul, a morte de Deus não era ainda um destino espiritual inevitável. Apenas a tentação de uma possibilidade ameaçadora. E ele queria estar prevenido: que, quando a tentação o visitasse, soubesse de antemão o abismo sem fim, pavoroso, a que a morte de Deus conduz. Quando acordou do pesadelo ateu, a sua alma "chorava de alegria, por poder de novo adorar a Deus - e a alegria e o choro e a fé nele era a oração".
Um século depois (1882), o louco de Nietzsche proclamou a morte de Deus: "Quem o matou fomos todos nós, vós mesmos e eu!" "Nunca existiu acto mais grandioso." Ao mesmo tempo, Nietzsche tem consciência aguda do que se segue: "Para onde vamos nós, agora? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para os lados, para a frente, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima de um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?"
O filósofo Gilles Lipovetsky escreveu, em A Era do Vazio: "Deus morreu, as grandes finalidades extinguem-se, mas toda a gente se está a lixar para isso. O vazio do sentido, a derrocada dos ideais não levaram, como se poderia esperar, a mais angústia, a mais absurdo, a mais pessimismo." Mas mais recentemente, no seu livro A Sociedade da Decepção, reconhecendo "a reafirmação do religioso", vem dizer que, "privados de sistemas de sentido englobante, numerosos indivíduos encontram uma tábua de salvação no reinvestimento de antigas e novas espiritualidades capaz de oferecer a unidade, um sentido, referências, uma integração comunitária: é o que o Homem necessita para combater a angústia do caos, a incerteza e o vazio".
3. Aqui chegados e tomando consciência de escândalos que clamam aos céus, impõe-se que a Igreja se pergunte pela sua responsabilidade no aumento do ateísmo.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 15 de abril de 2023
Se filosofar é uma formulação de porquês geradora de outros porquês, um refletir sobre nós, a vida e a morte, questionar as coisas, escrutinando em permanência o que temos por adquirido e se a filosofia, em paralelo, interpela a incerteza, o desconhecimento, o amor pelo saber experimentado pelo ser humano consciente da sua ignorância, não surpreende que esta realidade seja tida por estimulante, para uns (democracias), e perigosa, para outros (ditaduras e totalitarismos).
Não reunindo um conjunto de verdades absolutas e pondo em causa o que sabemos, todos podem filosofar, mas nem todos querem fazê-lo, pois é mal visto, por muitos, o ato de pensar e de refletir sobre as coisas.
Quem somos? De onde viemos? Que queremos? Que é o ser humano e quem o rodeia? Para onde vamos? Questões permanentes que permanecem desde sempre.
Os estudantes peripatéticos, da escola aristotélica, há mais de dois milénios, filosofavam e refletiam enquanto caminhavam, valorizavam o valor do tempo lento, silencioso e do saber, o que hoje, em geral, é tido como mais inútil que útil, um interessante percurso sem saídas.
Há quem entenda que a filosofia e o filosofar é uma maneira de ensinar as pessoas a desaprender a aptidão natural das coisas e da vida, uma especulação sobre aquilo que a natureza nos dirá que fazer no momento adequado e à revelia do nosso pensar, desempenhando-o ela por nós, não tendo que nos preocupar nem refletir.
Nesta perspetiva, não nos preocuparmos nem refletirmos sobre a morte é um ato de libertação que nos permite simplesmente viver sobrevivendo, mesmo que se tenha como mais difícil.
Para Cícero e Montaigne, por sua vez, filosofar é aprender a morrer:
“Cícero diz que filosofar nada mais é do que aprender a morrer. Isto porque o estudo e a contemplação puxam até certo ponto a nossa alma para fora de nós e mantêm-na ocupada à margem do corpo, o que constitui uma espécie de aprendizagem e de semelhança com a morte; ou antes, porque toda a sabedoria e todos os pensamentos do mundo culminam neste ponto: ensinar-nos a não ter medo de morrer” (Montaige, Ensaios).
Pode-se filosofar sendo hedonista ou moralista, mas há que ter sempre presente que temos que antecipadamente nos convencer que não podemos alcançar ou ter tudo, e que privarmo-nos de alguma coisa faz parte da vida, assim como filosofar é pôr tudo em questão, e mesmo ter dúvidas sobre o universal “só sei que nada sei”, tal como em relação à morte.
Tive o privilégio, em Tubinga, de conversar longamente com Ernst Bloch, um dos filósofos maiores do século XX (morreu em 1977). Quando era professor na Universidade de Leipzig, na antiga República Democrática Alemã, Ernst Bloch, filósofo ateu, mas paradoxalmente, ateu religioso, na última aula antes das férias de Natal, desejava Boas Festas aos estudantes, falando-lhes do significado do Natal, e terminava assim: “É sempre Advento”.
Com esta expressão — é sempre Advento, ainda é Advento —, Ernst Bloch queria apelar para a esperança. O mundo e a humanidade continuam grávidos de ânsia e possibilidades, e a esperança está viva e há razões objectivas para esperar.
Quando se pensa nas raízes da Europa, é claro que, para quem está atento e não tem preconceitos, um dos fundamentos determinantes da Europa é o cristianismo. É necessário confessar os erros e crimes do cristianismo histórico, mas é indubitável que da compreensão dos direitos humanos e da democracia, da tomada de consciência da dignidade inviolável do ser humano, da própria ideia de pessoa, da história e do progresso, da separação da Igreja e do Estado, de tal maneira que crentes e ateus têm os mesmos direitos, faz parte inalienável a mensagem originária do cristianismo.
Ernst Bloch, embora se confessasse marxista e ateu, acabou por ter de deixar a Universidade de Leipzig e a República Democrática Alemã: as autoridades comunistas da altura acusaram-no de misticismo religioso. Ele defendia-se, sublinhando o carácter único, na história das religiões, do judeo-cristianismo e do seu livro, a Bíblia. Para ele, "a Bíblia é o livro mais significativo da literatura mundial", pois responde à pergunta decisiva do homem, que é a questão do fim, do sentido e finalidade últimos do mundo e da existência. Ir ao encontro da Bíblia "não pode prejudicar" nenhum ser humano que queira bem à humanidade e a si próprio. Concretamente, não é possível compreender o homem europeu e as suas obras literárias e artísticas, sem um conhecimento aprofundado da Bíblia. Os nazis, por exemplo, ao rejeitar a Bíblia como algo estranho, que não devia ser estudado, não só não puderam compreender a cultura alemã como cairam na barbárie.
Sem a mitologia grega, não podemos entender a Antiguidade clássica. Assim também, sem o conhecimento da Bíblia, não podemos compreender as catedrais, o gótico, a Idade Média, Dante, Rembrandt, Haendel, Bach, Beethoven, os Requiem, "absolutamente nada", escrevia Ernst Bloch. Impõe-se pôr termo ao desconhecimento da Bíblia, porque este desconhecimento constitui uma "situação insustentável", pois produz bárbaros, que, por exemplo, perante a Paixão segundo São Mateus, de Bach, ficam como bois a olhar para palácios.
O Natal, mesmo que alguns já se não lembrem disso, é o aniversário natalício de Jesus Cristo. Sobre ele deixou escrito Ernst Bloch: Jesus agiu como um homem "pura e simplesmente bom, algo que ainda não tinha acontecido". Anunciou um Deus próximo, de amor, um Deus amoroso e amável, e o seu Reino: o Reino de Deus, reino da liberdade, da justiça, do amor, da fraternidade, da paz, da igualdade de todos diante de Deus e diante dos homens, o Reino da realização plena de toda a esperança.
Também por isso, nos dias à volta do Natal, apesar de todos os horrores que nos abalam até à raiz de nós, sentimo-nos mais humanos, mais solidários, o amor é mais vasto, a esperança é maior. E lá está Bloch: “onde há esperança há religião”.
O Advento continua. Ainda é Advento, pois ainda não chegou plenamente o que esperamos. É preciso relembrar que, na bela expressão de Helena Buescu, “somos herdeiros e futurantes”. Advento é uma palavra que vem do latim e significa vinda, chegada: em sentido religioso, é a chegada, a vinda de Deus: Ele veio e mostrou-se em Jesus, Ele vem, Ele virá. Somos herdeiros, pois estamos enraizados no passado e vivemos no presente, sempre futurantes enquanto esperamos, alicerçados numa esperança sem limites, pela realização de todos os nossos sonhos, “sonhos acordados”, sublinhava Bloch.
Face ao fim, nestes tempos de niilismo, com “subprodução de transcendência”, como se queixava Bloch, só resta uma alternativa:
Claude Lévi-Strauss conclui assim o seu L’homme nu: “Ao homem incumbe viver e lutar, pensar e crer, sobretudo conservar a coragem, sem que nunca o abandone a certeza adversa de que outrora não estava presente e que não estará sempre presente sobre a Terra e que, com o seu desaparecimento inelutável da superfície de um planeta também ele votado à morte, os seus trabalhos, os seus sofrimentos, as suas alegrias, as suas esperanças e as suas obras se tornarão como se não tivessem existido, não havendo já nenhuma consciência para preservar ao menos a lembrança desses movimentos efémeros, excepto, através de alguns traços rapidamente apagados de um mundo de rosto impassível, a constatação anulada de que existiram, isto é, nada.”
A Bíblia, no seu último livro, Apocalipse, que quer dizer revelação, conclui assim: “Vi então um novo céu e uma nova terra. E vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém. E ouvi uma voz potente que vinha do trono: ‘Esta é a morada de Deus entre os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo e o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. Ele enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor. Porque as primeiras coisas passaram.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 17 de dezembro de 2022
Lá está Ludwig Wittgenstein: a linguagem não serve apenas para descrever a realidade, usamo-la também para pedir um favor, para agradecer, para amaldiçoar, para saudar, para rezar...
E é preciso atender ao contexto, à situação, ao uso. «Chove» pode dizer a constatação de um facto: está realmente a chover. Mas suponhamos que a mãe, pela manhã, quando o filho se prepara para ir para escola, lhe diz: «Chove», ele sabe ao mesmo tempo que deve levar o guarda-chuva. Se, numa família de agricultores, após uma seca prolongada, como agora, a mulher abre a janela e diz ao marido: «Chove», é o contentamento que é dito. Mas, se estavam na expectativa de um passeio agradável e diz: «Chove», é a desilusão.
A linguagem tem três funções principais: a expressiva, a apelativa e a representativa. Essas funções têm que ver com as relações estabelecidas entre o emissor, o receptor e os objectos: há alguém (emissor) que se dirige a alguém (receptor) para lhe comunicar algo, tornando presente a realidade.
Há também a função fática, que tem apenas a missão de manter o contacto: «sim, sim...», «pois...», «claro...». Quando alguém fala de mais, vai-se tentando dizer que ainda se está lá a ouvir. Sabe Deus!...
Noutro sentido, é essencial a dimensão pragmática da linguagem. Segundo alguns filósofos, deveria tender-se para uma linguagem artificial, lógico-unívoca, interessando apenas as dimensões sintáctica (a relação dos signos entre si) e semântica (relação dos signos com a realidade) da linguagem e o princípio verificacionista das asserções. Mas, deste modo, esquecia-se a dimensão pragmática: falando, produz-se um efeito. Pense-se, por exemplo, na promessa de casamento: «Prometo e juro amar-te e ser-te fiel por toda a nossa vida» produz o efeito que é o próprio casamento. Esta dimensão foi sublinhada na Bíblia: Deus criou pela palavra, palavra eficaz. “Faça-se a luz”, e a luz apareceu.
Com a linguagem, pode-se arrastar multidões, levá-las à revolução, acalmá-las, exaltá-las, virá-las num sentido ou noutro.
A palavra cura. Uma vez, apareceu-me um homem com imensos problemas e apenas me pediu que o ouvisse, sem interrupção. Falou mais de hora e meia e, no fim, agradeceu-me muito, pois não imaginava quanto o tinha ajudado, que nunca me esqueceria. Com algumas palavras, podemos abrir futuro a uma pessoa. Com algumas palavras, podemos destruí-la para sempre: «És um burro, nunca farás nada na vida!»
Pela palavra, abrimo-nos ao mundo e o mundo abre-se a nós. Falando, damos razão disto ou daquilo, argumentamos, comprometemo-nos, formamos comunidade. Sendo a razão humana linguisticizada, só nos podemos compreender a nós próprios em corpo, com outros e na história. O Homem, pelo facto de ser zôon lógon échon, animal que tem linguagem, é também zôon politikón, animal social, político, diferentemente do animal, que é gregário, e a razão disso é a palavra, como bem viu Aristóteles na Política: «A razão de o Homem ser um ser social, mais do que qualquer abelha e qualquer outro animal gregário, é clara. Só o Homem, entre os animais, possui a palavra.» E continua: «A voz é uma indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente, bem como o justo e o injusto. E isto é o próprio dos humanos face aos outros animais: possuir, de modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto e das demais apreciações. A participação comunitária nestas funda a casa familiar e a cidade.» E é pelo diálogo (diá-lógon) que os conflitos se devem resolver.
A linguagem humana não se reduz à linguagem emotiva do prazer e do desprazer. É capaz de fazer juízos morais, de distinguir o bem e o mal, o justo e o injusto, partilhar e debater publicamente estas apreciações. Deste modo, como sintetizou Gabriel Amengual, «por esta dupla função, a linguagem funda a ética e funda eticamente a pólis».
Como faz falta voltar aos clássicos! Para acabar com a mentira e ir além da sofística...
Todos somos animais políticos e, consequentemente, responsáveis pela condução da pólis. Estou de acordo com o Papa Francisco, com a observação de que, embora ele se refira só aos cristãos, o aviso é para todos: "Envolver-se na política é uma obrigação para o cristão. Enquanto cristãos não podemos lavar as mãos como Pilatos. Temos de nos meter na política, porque a política é uma das formas mais altas da caridade, pois procura o bem comum. Os leigos cristãos devem trabalhar na política. A política está muito suja, mas eu pergunto: ‘Está suja porquê?’ Porque os cristãos não se meteram nela com espírito evangélico? É uma pergunta que eu faço. É fácil dizer que a culpa é dos outros... Mas eu o que é que faço? Isto é um dever! Trabalhar para o bem comum é um dever para um cristão."
Escrevi aqui muitas vezes que considero a política uma actividade nobre, das mais nobres. Quando isso acontece no quadro do trabalho para o bem comum, antepondo o interesse comum aos interesses próprios e dos partidos. Mas, sendo a política uma missão tão dura e exigente, quando observo a corrida tão interessada de tantos a cargos políticos, tenho de confessar, sinceramente, que não acredito que a maior parte o faça por amor à causa pública, ao serviço do bem comum. Que interesses, que vantagens, que cumplicidades, que incompetências, que privilégios, que compadrios, que subvenções, que benesses, que vaidades os movem?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 26 de novembro de 2022
Quando lemos atentamente a obra de Friedrich Nietzsche e nos debruçamos com simpatia sobre a sua vida, não podemos deixar de ficar afectados pelo drama até à loucura que a questão de Deus constituiu para ele, filho de pastor protestante. Aquele que fora uma criança piedosa e estudara teologia havia de proclamar publicamente em 1882, através de um louco, em A Gaia Ciência, a morte de Deus: "Deus morreu! Deus está morto! E fomos nós que o matámos!" "Conta-se ainda - continua - que o louco entrou nesse mesmo dia em várias igrejas e aí cantou o seu requiem aeternam deo. Expulso dos templos, ripostou sempre apenas isto: 'Que são agora ainda estas igrejas senão os túmulos e os monumentos funerários de Deus?'.”
Mas, ao mesmo tempo, o júbilo perante o "acto mais grandioso da História", que foi a morte de Deus, é atravessado por estas perguntas terríveis: "Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? Que fizemos nós, quando soltámos a corrente que ligava esta terra ao sol? Para onde se dirige ela agora? Para onde vamos nós? Para longe de todos os sóis? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para os lados, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima de um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estaremos a sentir o sopro do espaço vazio? Não estará agora a fazer mais frio? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?".
Pergunto: Não tem Nietzsche razão? Não é isto que se passa hoje: desorientação, falta de sentido, a consumação do niilismo?
Deus tinha de morrer, porque o Deus anunciado pelo cristianismo oficial era o inimigo da vida. No seu O Anticristo, Nietzsche condena o cristianismo como "a única grande maldição, a única máxima corrupção interior, o único grande instinto de vingança, (...), a única imortal mancha desonrosa da humanidade...". Porquê? Porque Deus foi "degradado a contradição da vida, em vez de ser a sua glorificação e sim eterno! Em Deus declara-se a hostilidade à vida, à natureza, à vontade de viver! (...) Em Deus diviniza-se o nada, canoniza-se a vontade do não-ser...!"
Isso, porém, aconteceu, porque Jesus, o "ditoso mensageiro" que "morreu como viveu, como ensinou", "para mostrar como se deve viver", foi, segundo Nietzsche, pervertido por São Paulo e pela Igreja. Como pode ler-se nos escritos póstumos, "a Igreja é exactamente aquilo contra o que Jesus pregou e contra o que ensinou os seus discípulos a lutar." "No fundo, houve apenas um cristão, e morreu na cruz. O 'Evangelho' morreu na cruz". O que se seguiu foi uma "má nova", uma "notícia infausta", um "Disangelho." No entanto, "o cristianismo autêntico, originário, será possível em todos os tempos..." Jesus tinha acabado com o próprio conceito de "culpa", tinha "negado todo o abismo entre Deus e o homem, ele vivia essa unidade de Deus e do homem como a sua 'boa nova'". Foi São Paulo que avançou com a doutrina absurda do Deus que entregou o Filho como vítima - "que paganismo horrendo!", exclama Nietzsche. "Paulo foi o maior dos apóstolos da vingança...", e os sacerdotes enquanto senhores dominaram as consciências escravizadas através da moral do ressentimento.
Mais uma vez, não tem Nietzsche razão? Como foi possível pregar um Deus que enviou o Filho para ser crucificado e assim pagar a dívida infinita da Humanidade e Deus poder reconciliar-se com ela? Não foi a mensagem de Jesus a melhor notícia que a Humanidade alguma vez ouviu e viu: Deus é bom, Ele é Pai/Mãe de todos e só quer a alegria, a realização plena de todos? Como foi possível fazer do Evangelho (notícia boa e felicitante) um Disangelho?
Afinal, que Deus foi esse que morreu? Não tinha mesmo de ser morto? É assim que Nietzsche vai passar a vida atenazado entre a vontade prometeica do superhomem sem Deus e a constante nostalgia do Deus desconhecido. Foi ao Deus desconhecido que o jovem Nietzsche dirigiu esta oração impressionante, comovente:
"Antes de prossseguir no meu caminho e lançar o meu olhar para a frente uma vez mais, elevo, só, as minhas mãos para ti, em direcção a ti. A ti, das profundezas do meu coração, tenho dedicado altares festivos para que, em cada momento, a tua voz me pudesse chamar. Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas palavras: 'Ao Deus desconhecido'. Teu, sou eu, embora até ao presente me tenha associado aos sacrílegos. Teu, sou eu, não obstante os laços que me puxam para o abismo. Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servir-te. Eu quero conhecer-te, desconhecido. Tu, que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a minha vida. Tu, o incompreensível, mas meu semelhante, quero-te conhecer, só a ti quero servir". O mesmo Nietzsche confessou a Ida, a mulher do seu grande amigo F. Overbeck: "Tu nunca abandones a ideia de Deus. De certeza, tu tem-la, sem te dares conta disso. Eu abandonei-a; quero criar algo de novo, e não posso nem quero voltar atrás. Acabarei por sucumbir a esta paixão que me esfalfa constantemente. Vou-me desmoronando, mas isso não me importa."
Concluo, com aquela diatribe dura e melancólica de Nietzsche contra os padres, prevenindo contra a infelicidade, que traz consigo sempre mais infelicidade. “Até entre eles há heróis. Muitos deles sofreram demasiado: por isso, querem fazer sofrer os outros.” Também deixou escrito: “Eu só acreditaria num Deus que soubesse dançar.” Jesus não dançou em Caná?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 6 de agosto de 2022
Edgar Morin, o pensador da complexidade, que fez 100 anos em Julho de 2021, continua a ser um dos filósofos e sociólogos mais atentos e merecedores de atenção. Acabou de publicar um novo livro, reflectindo sobre o mundo actual - Réveillons-nous (Despertemos). Sobre ele deu uma entrevista a Jules de Kiss, publicada em Março deste ano em “Franceinfo”. As reflexões que se seguem acompanham a entrevista.
A primeira é um apelo à urgência de pensar séria e profundamente sobre o que está a contecer. Com Réveillons-nous, Edgar Morin não quer simplesmente fazer eco, doze anos depois, ao livro de Stéphane Hessel, Indignez-vous (Indignai-vos): “Hessel dizia: Indignai-vos. Ele dirigia-se a pessoas já despertas. Eu, eu tenho a impressão de que vivenciamos os acontecimentos um pouco como sonâmbulos. Aliás, o que eu vivi, na minha juventude, nos dez anos que precederam a Guerra. Eu peço que se tente ver e compreender o que se passa. Caso contrário, sofreremos os acontecimentos como, infelizmente, sofremos a última Guerra mundial.” (Pessoalmente, chamo permanentemente a atenção para a necessidade de pensar. Pensar vem do latim, pensare, que sgnifica pesar razões; daí vem também o penso sanitário, pois pensar cura.
Como vê esta nova guerra na Europa, com a invasão da Ucrânia? Certamente, há “uma surpresa, mas não total”. De facto, num artigo no Le Monde em 2014, por ocasião da crise ucraniana, concretamente na Crimeia, escreveu: “Atenção, é um foco de infecção com o risco de ter consequências desastrosas. Durante anos, fechou-se os olhos a esta infecção…” O problema agora é que há “um desequilíbrio”: “estamos numa espécie de contradição, porque, por um lado, pensamos que a resistência ucraniana é justa — é uma guerra patriótica —, mas ao mesmo tempo pensamos que, se entrarmos no conflito, corremos o risco do que Dominique de Villepin chamava um ‘tsunami mundial’: passo a passo, chegar à explosão.” Não nos podemos enredar na lógica da guerra e “interveir militarmente. Por isso, sinto esta contradição que vivemos todos e que é preciso assumir”. “Por um lado, queremos apoiar um país que resiste e, por outro, não podemos fazê-lo de modo integral, isto é, entrar na guerra. Estamos no meio: fornecemos armas e reabastecimento”.
Os seus três escritores russos preferidos são: Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov. “Eles ajudam-no a compreender a guerra hoje?” “Não, eles ajudam-me sobretudo porque transportam com eles um humanismo russo que, diferentemente do humanismo occidental, que é sobretudo abstracto, é concreto. Está cheio de compaixão pelo sofrimento e a miséria humana. E o que estes autores me ensinaram de modo profundo foi este humanismo da compaixão pelo sofrimento.” Aqui, pessoalemnte, pensei no meu íntimo: Nem Putin nem Kirill leram Dostoiévski, Tolstói, Tchekov, ou não entenderam… ou não querem entender.
E voltamos à necessidade urgente de pensar. Estamos mergulhados em crises gravíssimas, que podem colocar a Humanidade perante a possibilidade do seu fim. “Em todo o mundo há crise das democracias, uma crise do progresso. Acreditámos durante muito tempo que o progresso era certo, uma lei da História; ora, hoje percebemos que o futuro é cada vez mais incerto e inquietante. Há a crise do futuro, a angústia, as crises que aconteceram: a económica em 2008, depois a pandemia. As angústias que isso gera provocam um retraimento, um fechar-se sobre si mesmo.” E nota-se uma espécie de derrota dos intelectuais e políticos, que não conseguem fazer-se ouvir. Há uma questão que é “muito impotante hoje. Porque estamos num mundo de experts (peritos) e especialistas em que cada um vê apenas uma pequena parte dos problemas, isolados uns dos outros. Existe hoje de facto essa deficiência.”
De novo o jornalista: “Conversámos sobre a guerra na Ucrânia, tendo como pano de fundo a ameaça nuclear. Também dedica um dos quatro capítulos do seu livro ao aquecimento global. Mestas condições, é possível pensar o futruo com serenidade?” Resposta: “Não podemos ficar serenos perante perspectivas tão preocupantes. O que eu quereria mostrar, mesmo antes da guerra na Ucrânia, é que, desde Hiroshima, uma espada de Dâmacles paira sobre a cabeça de todos, e ela agravou-se com a crise ecológica, que mostra que realmente a bioesfera, o mundo vivo e as nossas sociedades estão ameaçados. Não é só o clima. O clima é um elemento dessa crise geral e a pandemia também contribuiu para o carácter global da crise. Penso que entrámos num novo período. Pela primeira vez na História, a Humanidade corre o risco de aniquilação, talvez não total — haverá alguns sobreviventes —, mas uma espécie de ‘reinício’ a partir do zero em condições sanitárias sem dúvida terríveis. É esse perigo, que eu já tinha diagnosticado como potencial, que, de repente, se torna actual com esta história de guerra russa.”
Claro que “só podemos pensar o futuro, se estivermos conscientes do passado e do que se passa no presente. Não se pode pensar o futuro isolado. E hoje o futuro depende dessas grandes correntes que atravessam a Humanidade e que são ameaçadoras e regressivas. Portanto, eu penso que é urgente pensar o futuro. Porquê? Até agora pensava-se que o futuro era uma espécie de linha recta que ia continuar. Ora, é preciso imaginar os diferentes cenários. É preciso estar vigilante. É preciso esperar o inesperado para saber navegar na incerteza. Há toda uma série de reformas, o modo de pensar, de se comportar, que são hoje necessários.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 23 de abril de 2022
1. O filósofo Henri Bergson, na obra famosa As Duas Fontes da Moral e da Religião, mostrou a distinção entre dois tipos de religiosidade. A primeira - a religiosidade estática - tem a sua base na angústia da morte e no sentimento de abandono perante uma Natureza tantas vezes cruel, e, a partir do instinto de sobrevivência, procura protecção divina para a pequenez humana. A outra - a religiosidade dinâmica - assenta na intuição do Mistério Último experienciado como amor. Esta exprime a grandeza do ser humano e apoia-se na experiência de pessoas excepcionais - os místicos. Mas a mística autêntica e completa é acção, pois o místico verdadeiro, "através de Deus, por Deus, ama a Humanidade inteira com um amor divino".
Não há corte radical entre as duas formas, mas é necessário reconhecer que há vivências mais e menos perfeitas da religião e uma consciência de nível mais alto neste domínio. Quando o núcleo da religião é vivido no amor, não só termina a intolerância como se impõe a compreeensão entre as pessoas, independentemente da sua confissão religiosa. Foi assim que, por exemplo, no sufismo, corrente mística do islão, houve a visão clara de que, insistindo no aspecto amoroso da religião, se dava a aproximação com Jesus, sem necessidade de abandonar a profissão islâmica. Kamil Hussein escreveu: "Se sentes no profundo de ti mesmo / que isso que te incita ao bem é o teu amor por Deus / e o teu amor pelos homens que Deus ama; / se pensas que o mal consiste em afastar-se dos homens / porque Deus os ama, como te ama a ti, / e que perdes o teu amor a Deus se causas dano àqueles que Ele ama, / isto é, a todos os homens, / tu és discípulo de Jesus, seja qual for a religião que professes".
Há um tremendo equívoco na afirmação corrente "católico não praticante", referida só à prática dos rituais religiosos. De facto, como escreveu Nietzsche, "só uma vida como a dAquele que morreu na cruz é cristã". No Juízo Final, não se pergunta se se foi à Missa ou a Fátima, mas se se foi ao encontro dos mais necessitados: deste-me de comer, de beber, de vestir, foste ver-me ao hospital, na cadeia... Os primeiros cristãos tiveram de defender-se da acusação de ateísmo: de facto, não só recusaram o culto oficial romano como não tinham aqueles sinais que aparentemente fazem parte da essência da religião: templos, altares para o sacrifício... Mas amavam Deus e Jesus e o seu sinal distintivo era o amor: “Vede como eles se amam”, diziam os pagãos. E celebravam com alegria o memorial que Jesus deixara na Última Ceia, a Eucaristia.
Na perspectiva cristã pode-se e deve-se perguntar: para quê o culto oficial, em ordem a aplacar a divindade e propiciar a sua benevolência, se Deus se revelou definitivamente como amor? Só quando for vivida adequadamente no “templo” do mundo a religião verdadeira da justiça e do amor, terá sentido pleno celebrar nos templos a alegria gozosa da vida e da fraternidade em Deus. Por isso, enquanto "a prática cristã" a que se referia Nietzsche for anémica, poder-se-á dizer com razão que no sentido corrente de ritos e cerimónias até há religião a mais.
2. Nestes tempos conturbados, é urgente insistir na questão da religião e da dignidade. De facto, tantos homens e mulheres e crianças que foram escravizados, humilhados, torturados, física e espiritualmente, com base na religião! Pense-se na Inquisição, na tragédia dos abusos de menores ... E ainda se degola gente da forma mais bárbara, argumentando com o Alcorão...
Houve, e há ainda, homens e mulheres para quem teria sido preferível nunca ter ouvido falar em Deus, melhor: não ter tido contacto com certas formas de religião. De facto, a religião foi muitas vezes para muitos causa de desgraça, de infelicidade, de tortura física e interior: pense-se nas guerras de base religiosa, na queima das bruxas, nos escrúpulos, nos traumas sexuais...
Mas, depois desta constatação, é preciso também proclamar bem alto: o Deus em nome do qual se humilhou, se torturou, se escravizou, não é Deus. É apenas um ídolo que os seres humanos criam para satisfazer as suas loucuras, afugentar os seus medos e legitimar a sua ânsia de dominação. Uma religião que conduz à menoridade mental, que escraviza, que faz andar de rastos, das duas uma: ou é uma religião falsa ou os crentes interpretam-na mal. A razão é simples: Deus tem de ser, repito constantemente, pelo menos, melhor do que nós. Ora, um ser humano sadio não pode querer a menoridade de ninguém, não pode tolerar a humilhação, a injustiça, a escravatura, a indignidade...
Por isso, é preferível não acreditar em Deus a acreditar num Deus que humilha o Homem, o escraviza, o torna menor... Se o crente, pelo facto de o ser, não se sente mais humano, mais livre, mais digno, com uma obrigação acrescentada de lutar por mais dignidade, por mais liberdade, por mais fraternidade, por mais alegria, só tem uma coisa a fazer: deixar de acreditar.
Nisto, os ateus, não os ateus vulgares, mas os que sabem o que isso quer dizer, vêem por vezes mais claro que os próprios crentes. Ernst Bloch, por exemplo, viu bem, quando, aliás na linha de Hegel, escreveu que na religião autêntica se exprime a infinita dignidade de ser Homem. Foi ele também que disse que até ele se inclinaria perante um cardeal ou bispo que dissesse e praticasse aquela palavra de Jesus, referente ao Juízo Final: “Aquilo que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos foi a mim que o fizestes”.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 27 de novembro de 2021
Manhã linda, de claro sol e azul celeste! Quedei-me à janela, esquecido de mim, na ronda das andorinhas... Trouxeram-me à lembrança o nosso Alberto, em domingo de graça e paz, cantando, no terraço aberto sobre o jardim, um fado de Coimbra:
Porque os meus olhos se apartam dos teus, não lhes queiras mal: as andorinhas que partem voltam ao mesmo beiral! E hei-de voltar um dia, eu sou como as andorinhas, se as tuas saudades forem bater à porta das minhas!
Este lirismo tão português tem, para um nórdico como eu, algo essencialmente religioso, como uma conversão, movimento perpétuo. A saudade, como a vida, é um regresso, rota astral da fidelidade. O coração dos homens pode ser infinito, talvez por isso Deus o escolha para habitação. Estive a reler, durante a noite, passos de Das Wesen des Christentums de Ludwig von Feuerbach. E ao pensarsentir, nesta manhã serena, forte e clara, o íntimo movimento do mundo (e repetindo,como canta Alfredo à Traviata: vissi d´ignoto amor, di quell´amor ch´è palpito dell´universo intero...), ocorreu-me esse trecho tão profundo de A Essência do Cristianismo:«A essência secreta da religião é a identidade da essência divina e da essência humana - mas a forma da religião, ou a sua essência manifesta e consciente é a diferença. Deus é a essência humana, mas é sabido como uma essência diferente. O amor é o que revela o fundamento, a essência oculta da religião, mas a fé o que constitui a sua forma consciente. O amor identifica o homem com Deus, Deus com o homem e, por isso, o homem com o homem; a fé separa Deus do homem e, por isso, o homem do homem; Deus não é senão o místico conceito genérico da Humanidade, por isso a separação entre Deus e o homem é a separação entre o homem e o homem, a dissolução do vínculo comunitário. Pela fé, a religião entra em contradição com a eticidade, com a razão, com o sentido simples e humano da verdade; mas, pelo amor, ela volta a opor-se a esta contradição. A fé isola Deus, faz dele um ser particular diferente, o amor universaliza, faz de Deus um ser comum, cujo amor coincide com o amor pelo homem... ...O amor tem Deus em si, a fé fora de si...». Assim encontro, num pensador germânico que também disse que o mesmo amor é ateu por negar um Deus que seja propriedade particular e oposto ao homem, um eco poderoso de S. Paulo, quando este afirma que, das três virtudes teologais só o amor é eterno. (Aliás, essas virtudes, para Feuerbach são só duas: a fé e o amor, posto que a esperança é a fé que se refere ao futuro. A fé e o amor opõem-se, segundo ele, até nos seus sinais exteriores: os sacramentos do batismo, que vincula a um Deus particular, e o da eucaristia, ceia ou comunhão, que é a partilha do pão, do amor). Fosse Ludwig Ritter von Feuerbach ateu (e Engels o apregoou e dele assim se serviu), encontro nele, repito, uma poderosa e profunda intuição da nossa religião a Deus. Apenas direi que a minha fé habita essa contemplação do amor presente no infinito mistério do mundo. Dou-te uma mão cheia de estrelas que as andorinhas trouxeram. De onde?
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira
N.B. Desta vez, não traduzi do alemão passos da carta do marquês de Sarolea. As citações de Feuerbach estão traduzidas pela Prof. Doutora Adriana Veríssimo Serrão em A Essência do Cristianismo, na edição da Fundação Gulbenkian.
Obs: Reposição de texto publicado em 20.06.2014 neste blogue.