Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Ao longo dos séculos, foram-se sucedendo, numa lista quase interminável, as tentativas de resposta: animal que fala, animal político (Aristóteles); animal racional (os estóicos e a Escolástica); realidade sagrada (Séneca); um ser que pensa (Descartes); uma cana pensante (Pascal); um ser que trabalha (Marx); um animal capaz de prometer (Nietzsche); um ser que cria (Bergson); um animal que ri, um animal que chora, um animal que sepulta os mortos... Saído da gigantesca aventura cósmica com uns 14.000 milhões de anos, o Homem tem, segundo Edgar Morin, “a singularidade de ser cerebralmente sapiens-demens” (sapiente-demente), ter, portanto, com ele “ao mesmo tempo a racionalidade, o delírio, a hybris (a desmesura), a destrutividade”.
Também o filósofo André Comte-Sponville apresentou a sua “definição”, que julga suficiente: “É um ser humano qualquer ser nascido de dois seres humanos.” Mas será mesmo suficiente? O que dizer em relação aos primeiros seres humanos que, na história da evolução, não nasceram de outros humanos? Esta é uma questão assombrosa: sim, quem foram os primeiros e como é que foram tomando consciência de si? Nunca se saberá quem foi o primeiro que disse “eu”. E se amanhã se der a clonagem e a partenogénese?
Os grandes espíritos - Diderot, por exemplo - deram-se conta de que o que somos não pode ser encerrado numa definição. O Homem é o ser que leva consigo a questão do ser e do seu ser e que originária e constitutivamente pergunta: o que é o Homem? O que, antes de mais, une a Humanidade toda é precisamente esta pergunta: o que é o Homem, o que é ser ser humano?
Se o chimpanzé, por exemplo, também sente, recorda, procura, espera, joga, comunica, aprende e inventa, o que é que nos distingue?Parece estender-se cada vez mais a tentação de pensar que o Homem é um animal entre outros. Se diferença houvesse, não seria essencial e qualitativa, mas apenas de grau. Mas quem anda atento reconhecerá com certeza que a diferença entre o Homem e os outros animais não é apenas de grau, mas essencial e qualitativa. Pelo menos, é preciso manter a pergunta.
Também o Homem é corpo, mas um corpo que fala e que diz eu. Ora, um corpo que produz sons duplamente articulados, portanto, transportando sentido, é um corpo que transcende a animalidade.
O Homem é capaz de renunciar à satisfação imediata dos seus impulsos: é “o asceta da vida”, escreveu Max Scheler. Por isso, é capaz de jejuar e ergueu, por exemplo, um edifício jurídico-penal, para evitar a vingança cega, dirimir diferendos, não fazer justiça pelas próprias mãos.
Quando vemos um animal sentado, de olhos fechados, com a cabeça entre as mãos, estamos em presença de um Homem que pensa e medita. Está ensimesmado, entrou dentro de si próprio, desceu à sua intimidade, submerso na sua subjectividade pessoal.
Afinal, há muito de idêntico em nós e no chimpanzé, “no mono e no Papa”, disse ironicamente o filósofo confessadamente ateu Michel Onfray. O professor de filosofia e o chimpanzé têm necessidades naturais comuns: comer, beber, dormir. A etologia mostra que há comportamentos naturais comuns aos animais e aos humanos. Veja-se, por exemplo, as relações de violência e de agressão e compare-se inclusivamente os rituais de cortejamento sexual. Mas é interessante constatar que já na resposta às necessidades naturais há uma diferença: os homens inventaram a cozinha e a gastronomia e também o erotismo.
M. Onfray acrescenta: “O Homem e o animal separam-se radicalmente quando se trata de necessidades espirituais, as únicas que são próprias dos homens e das quais não se encontra nenhum vestígio – mínimo que seja – nos animais.” Há nos humanos uma série de actividades especificamente intelectuais, que os distinguem radicalmente dos monos: nestes, não encontramos filosofia nem religião nem arte...
A tentativa de compreendê-lo no quadro de um materialismo mecanicista ou do biologismo não dá conta do Homem. De facto, o animal é conduzido, em última análise, pelo instinto. Por isso, esfomeado, não se conterá perante a comida apropriada que lhe apareça. Face à fêmea no período do cio, não resistirá. O Homem, pelo contrário, é capaz de transcender a dinâmica biológica. Por motivos de ascese ou religiosos ou até pura e simplesmente para mostrar a si próprio que se não deixa arrastar pelo impulso, é capaz de conter-se, resistir, dizer não. Foi neste sentido que, repito, Max Scheler, um dos fundadores da Antropologia Filosófica, escreveu que o Homem é “o asceta da vida”, o único animal capaz de dizer não aos impulsos instintivos.
Esta é a base biológica da conduta moral, uma característica essencialmente específica humana. Uma vez que o Homem é capaz de ponderar, renunciar, abster-se, optar, dizer sim, dizer não aos impulsos, é livre e, por conseguinte, animal moral.
O Homem é corpo, mas um corpo que fala. Porque fala, é capaz de debater questões como a da diferença com os outros animais, defender pontos de vista, distinguir o bem e o mal, tomar posições sobre valores morais, políticos, religiosos, estéticos, filosóficos.
Então, o enigma é este: provimos da natureza, mas contrapomo-nos a ela, somos simultaneamente da natureza, na natureza e fora dela. Monos e humanos têm a mesma origem, mas os humanos têm originalidades únicas e irredutíveis.
O Homem é o ser da pergunta e a pergunta por si mesmo caracteriza-o: O que é o Homem? O que sou? Quem sou?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 17 de agosto de 2024
Há mais de dois mil anos, havia uns estudantes de filosofia, da escola aristotélica, que se chamavam peripatéticos. Receberam este nome porque filosofavam enquanto caminhavam, dado Aristóteles ensinar ao ar livre, enquanto lia e dava lições. Caminhavam, deambulavam, passeavam, refletiam e meditavam no exterior, lá fora. Andavam e pensavam com tempo, paciência e lentidão. Sem preocupações desportivas. Nem pensando sentados em bibliotecas.
Caminhar, na sua essência, é mais um exercício espiritual, um ato ecológico em que aprendemos a respirar o corpo e a paisagem, a ser parte integrante da natureza, e não uma corrida, o acelerar e o andar muito, muito depressa, por uma classificação ou pontuação.
É uma satisfação física, frugal, espiritual e tranquila, que nos permite obter os contentamentos mais profundos com poucos meios.
Ao caminhar trabalhamos e pensamos com a mente, sentimos e vivemos o corpo, humanizamos a vida interagindo com a paisagem, dialogamos com o espaço e o tempo, sem demora, pois o mal da pressa apressa tudo.
Há filósofos, escritores e caminhantes que têm o caminhar como a origem e a raiz do seu pensamento.
Para Nietzsche, caminhar ao ar livre era condição do seu raciocínio filosófico, um elemento da sua obra e o acompanhamento da sua escrita.
Rousseau fazia caminhadas no campo, tendo-o como o seu gabinete, vindo-lhe as ideias no decurso de longos passeios.
Kierkegaard sentia a necessidade de caminhar para pensar, compor e dissertar, e também andava, pensava e escrevia em cada recanto da sua casa, à noite, em Copenhaga, onde havia uma escrivaninha, papel e tinta.
Wordsworth, poeta romântico inglês, é tido como o inventor da caminhada como ato poético, um poeta-caminhante. Nas suas caminhadas descobriu a inspiração de muitos poemas, ajudando a sua poesia em verso e a escansão, atraindo turistas e viajantes aos lugares que o haviam inspirado.
Kant caminhava para escapar ao pensamento. Fazia-o todos os dias, em Konigsberg, na Prússia, onde habitava, de modo monótono, regular e inevitável, como uma obrigação higiénica, sempre à mesma hora, de tal feição que, consta, os vizinhos acertavam o relógio pelos horários rígidos das suas andanças a pé. “Passeio do filósofo”, eis o nome que foi dado, após a sua morte, ao caminho onde caminhava diariamente.
Caminhar, para Rimbaud, era uma fuga. Caminhou toda a vida, em busca do transcendente e de um contacto puro com os grandes elementos da natureza: o sol, as estrelas, o vento, a chuva, o deserto, as montanhas.
E se para Nerval caminhar transmite melancolia, uma melancolia ativa numa errância melancólica, para Thoreau é a energia do corpo em movimento, em que a última força de energia são as paisagens, que apoiam e questionam o caminhante.
Sem esquecer os líderes políticos e morais, como Gandhi e Luther King, que fizeram do caminhar, em marcha, do seu misticismo e desobediência pacífica, uma maneira de viver e de mudar o mundo.
Há quem defenda que as caminhadas a pé devem ser feitas sem companhia, porque a liberdade é essencial, caminhando ao nosso ritmo e velocidade, embora seja impossível estarmos sós, tantas as coisas disponíveis à nossa contemplação.
E há o diálogo entre o material e o imaterial, apropriando-nos da paisagem, fazendo dela parte da nossa existência, num caminhar ecológico de presença, serenidade e calma, esquecendo-nos dos pormenores técnicos mundanos.
É um caminhar, um meditar, uma fuga idílica aos problemas diários, associado ao silêncio, uma oração silenciosa numa peregrinação como peregrino. Preferível de manhã, bem cedo, em dias solares, vendo o sol nascer, em hora não abrasiva e sem sofrimento na caminhada.
A solidão (ou o silêncio?), a sentir-se, é cada vez mais quebrada pela companhia crescente de animais de estimação, em percursos adequados, numa simbiose entre o humano, os animais e a natureza.
Esta filosofia e arte, está distanciada das caminhadas modernas que não dispensam roupa, calçado e acessórios especializados, incluindo câmaras telefónicas e o sempre presente telemóvel para acelerar, pontuar e aconselhar, numa busca permanente de uma melhor performance, onde a técnica se alia à rapidez e à competição, ao desporto, alterando o sentido mais genuíno e autêntico de caminhar.
Na opinião de Fréderic Gross: “Para avançar lentamente, não se encontrou nada melhor que a caminhada. Para caminhar, há que ter duas pernas saudáveis. O resto é inútil. Quer ir mais depressa? Então, não caminhe, faça outra coisa: vá de carro, patine, voe. Não caminhe. Além disso, ao caminhar, um só desempenho conta: a intensidade do céu, a magnificências das paisagens. Caminhar não é um desporto” (em Caminhar uma filosofia).
Finaliza: “A magia da caminhada consiste em descobrir, na repetição improdutiva dos passos, a razão sem razão para continuar (…) Quando estiver esfalfado, saciado de sol e de vento, pararei. Entretanto não penso, limito-me a caminhar, e a vida avança” (idem).
Seja qual for a opção - caminhar para pensar ou não pensar, contemplar e meditar em silêncio, acompanhado ou fazendo jus aos padrões da modernidade - bom caminhar e boas caminhadas!
Neste tempo dominado por maquinarias de estupidificação, quando o que mais falta é, por isso mesmo, pensar criticamente, não podia deixar passar o terceiro centenário do seu nascimento sem uma brevíssima referência. Refiro-me a Immanuel Kant, que nasceu no dia 22 de Abril de 1724 em Königsberg, antiga Prússia, actualmente Kaliningrado, um enclave russo entre a Polónia e a Lituânia, e que morreu nessa mesma cidade no dia 12 de Fevereiro de 1804. É lá, na catedral de Kaliningrado, que se encontra uma lápide com a sua frase célebre : “Duas coisas enchem a mente de uma admiração e um respeito sempre novos e crescentes quanto mais frequentemente e com maior persistência delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim”.
Kant, um dos maiores filósofos de sempre, deixou um legado essencial: uma atitude de pensamento crítico que vá ao essencial. “Sapere aude!” Ousa saber, ousa pensar, atreve-te a saber, atreve-te a pensar! “Que é Iluminismo? O Iluminismo é a libertação do ser humano da sua incapacidade culpada. A incapacidade significa a impossibilidade de servir-se da sua inteligência sem a guia de outro. Esta incapacidade é culpada porque a sua causa não reside na falta de inteligência mas na falta de decisão e coragem para servir-se por si mesmo dela sem a tutela de outro. Sapere aude! Tem a coragem de servir-te da tua própria razão!”
Em síntese, a obra de Kant vai ao encontro destas três perguntas essenciais: “Que posso saber?”, “Que devo fazer?”, “O que é que me é permitido esperar?”
Na sequência do sua “revolução copernicana” quanto ao conhecimento, concluiu que, escapando à experiência, Deus e a imortalidade não podem ser conhecidos. Não são demonstráveis.
Como agir bem, moralmente? Há para isso um critério seguro? Este critério não está em seguir os desejos ou inclinações pessoais, os hábitos de acção dos grupos ou países. Esse critério também não se encontra na busca da felicidade. Para Kant, esse critério consiste num “imperativo categórico”. Em que consiste? Se queremos saber se uma acção é moral, deve-se sujeitar a máxima ou regra pela qual nos guiamos a um teste de universalização. Assim, numa das suas formulações: “Age como se a máxima da tua acção devesse ser erigida pela tua vontade em lei universal de natureza”. Quando agimos, se queremos saber se estamos a agir moralmente, perguntemos: o que aconteceria se todos aplicassem a regra ou máxima. Um exemplo: a mentira. É moral mentir? Para sabê-lo, perguntemos: é universalizável? O que sucederia se todos mentissem? É evidente que a própria mentira se tornaria absurda, pois mentir só vale, isto é, só tem eficácia, no pressuposto de que as pessoas confiam no que alguém lhes diz. Portanto, mentir é imoral. Outro exemplo, este pela positiva: aliviar o sofrimento dos desgraçados. Neste caso, os sofrimentos próprios da condição humana encontrariam sempre um alívio. Aí está, pois, uma acção moral. Kant segue, portanto, na sua apreciação moral, um critério racional em autonomia. Mas, uma vez que nem sempre é fácil este critério da universalização, Kant propõe outra formulação do mesmo imperativo categórico: “Age de tal modo que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros sempre como um fim, nunca como um simples meio”. Cá está, pois: as coisas têm um preço, porque são meios, o Homem não tem preço, mas dignidade, porque é fim.
Do dever moral enquanto imperativo categórico, seguem-se os chamados postulados da razão prática.
Em primeiro lugar, a liberdade. Diz Kant: “Podes, porque deves”. Se deves, podes; é pela lei moral que sabemos que somos livres; agir moralmente é afirmar a liberdade, que não é arbítrio, e, por isso, educar tem de ser educar para a liberdade. Neste sentido, há um célebre exercício mental na sua Crítica da razão prática, que obriga a pensar. Suponhamos que alguém, sob pena de morte imediata, se vê confrontado com a ordem de levantar um falso testemunho contra uma pessoa que sabe ser inocente. Nessas circunstâncias e por muito grande que seja o seu amor à vida, pensará que é possível resistir. “Talvez não se atreva a assegurar que assim faria, no caso de isso realmente acontecer; mas não terá outro remédio senão aceitar sem hesitações que tem essa possibilidade.” Existem as duas possibilidades: resistir ou não. “Julga, portanto, que é capaz de fazer algo, pois é consciente de que deve moralmente fazê-lo e, desse modo, descobre em si a liberdade que, sem a lei moral, lhe teria passado despercebida.”
A esperança da felicidade, imortalidade e Deus. Não é critério da moralidade a busca da felicidade. Mas quem cumpre o seu dever moral incondicional torna-se digno de ser feliz. Este merecer ser feliz mostra-se no exemplo acabado de apresentar. Suponhamos que a pessoa preferiu de facto ser morta a levantar um falso testemunho contra o inocente. Casos destes acontecem, há muitos exemplos históricos. Ora, a ligação entre o dever cumprido e a felicidade não se dá neste mundo, pelo contrário, o cumprimento do dever implicou dar a vida. Por isso, postula-se a imortalidade e exige-se moralmente que Deus exista.
Embora nunca tenha saído da sua cidade natal, tinha ideias cosmopolitas e é dele a expressão Völkerbund (Liga de Povos) como organização internacional em ordem à paz mundial, concretizada no século XX na Sociedade das Nações e na ONU.
PS. Estimados leitores e leitoras, até Agosto!
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 29 de junho de 2024
«Filosofia Medieval – Uma Introdução Histórica e Filosófica» de John Marenbon (Gulbenkian, 2024) é a mais recente publicação da reconhecida Coleção dos Clássicos, permitindo um conhecimento de um dos períodos mais ricos e complexos da história europeia.
Filosofia Medieval de John Marenbon (Gulbenkian, 2024) oferece um relato sintético e abrangente sobre a história da filosofia na Idade Média, referindo os principais escritores e ideias daquele período histórico, envolvendo os contextos sociais e intelectuais e os principais conceitos a considerar. O Professor John Alexander Marenbon (1955) é um prestigiado filósofo britânico, Fellow do Trinity College da Universidade de Cambridge e membro da British Academy. Exerceu a docência ou realizou conferências na Sorbonne, na Universidade de Toronto, no Vaticano e em Beijing. Tem vasta obra publicada, avultando a conferência “De quando foi a Filosofia Medieval” (2011) e “Pagans and Philosophers. The problem of paganism from Augustine to Leibniz”, Princeton University Press 2015. Esta introdução fornece um relato cronológico que trata das quatro principais tradições da filosofia que derivam da herança grega da Antiguidade tardia (filosofia cristã grega, filosofia latina, filosofia árabe e filosofia judaica); inclui secções de «estudo» focadas nos argumentos e «interlúdios» mais curtos que apontam para questões mais amplas do contexto intelectual; combina a análise filosófica com antecedentes históricos; incluindo um guia detalhado e útil para leitura adicional e uma extensa bibliografia, atualizada para esta edição. A tradução foi coordenada por José Meirinhos.
Foi Boécio, filósofo do século VI, quem definiu pessoa humana como “substância individual de natureza racional”. A citação do pensador romano na declaração sobre a dignidade humana permite-nos fazer a ligação, numa inserção plural, da obra agora publicada à declaração “Dignitas Infinita” sobre a Dignidade Humana, elaborada durante cinco anos e publicada em março de 2024 pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, pondo a tónica na dimensão universal, filosófica e antropológica, do respeito pela pessoa humana enquanto fator de salvaguarda dos direitos humanos, do primado da justiça e do reconhecimento de que todos os seres humanos como livres e iguais em dignidade e direitos. De facto, importa enfatizar «o caráter único da pessoa humana, incomensurável em relação aos outros seres do universo» (DI, 14). Assim se pode compreender o modo como é usado o termo dignidade na Declaração Universal das Nações Unidas de 10 de dezembro de 1948, onde se fala «da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos, iguais e inalienáveis». Apenas esse caráter inalienável da dignidade humana permite que se fale de direitos da pessoa humana na sua plenitude. Contudo, para melhor esclarecer o conceito de dignidade, deve tornar-se claro que esta não é concedida à pessoa humana por outros seres humanos, a partir de seus talentos e qualidades, por isso não pode ser perdida ou retirada por decisão aleatória. A dignidade é, pois, intrínseca à pessoa. «Em consequência, todos os seres humanos possuem a mesma dignidade, independentemente de serem ou não capazes de exprimi-la adequadamente» (DI, 15). Assim, o Concílio Vaticano II refere a «eminente dignidade da pessoa humana, superior a todas as coisas e cujos direitos e deveres são universais e invioláveis». E para a Declaração conciliar Dignitatis humanae, «os seres humanos tornam-se sempre mais conscientes da própria dignidade, crescendo o número daqueles que exigem poder agir por iniciativa própria, com a sua liberdade responsável, movidos pela consciência do dever e não obrigados por medidas coercivas». Assim, a liberdade de pensamento e de consciência, individual ou comunitária, é baseada no reconhecimento da dignidade humana «como foi dada a conhecer pela Palavra de Deus revelada e pela própria razão».
Infelizmente, há numerosos mal-entendidos sobre o conceito de dignidade, que distorcem o seu significado. Longe de uma abstração devemos insistir no facto de se tratar da dignidade de cada pessoa humana, “para além das circunstâncias”, reconhecendo-se ao ser humano uma dignidade que não se perde mais, sendo possível garantir a tal qualidade um inviolável e seguro fundamento, que não oscila à mercê de diferentes e arbitrárias avaliações, pois «os direitos da pessoa são direitos do ser humano». Assim, a dignidade não se identifica com uma liberdade isolada e individualista. A defesa da dignidade do ser humano é fundada em exigências constitutivas da natureza humana, que não dependem nem do arbítrio individual, nem do reconhecimento social. Os deveres que resultam do reconhecimento da dignidade do outro e os correspondentes direitos que daí derivam têm, pois, um conteúdo concreto e objetivo, fundado sobre a natureza humana assumida em comum. Desse modo, a dignidade do ser humano compreende a capacidade ínsita na mesma natureza humana, de assumir obrigações em relação aos outros.
Segundo nos lembra o Papa Francisco, «devido à sua dignidade única e por ser dotado de inteligência, o ser humano é chamado a respeitar a criação com as suas leis internas. [...] Por isso o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar um uso desordenado das coisas». E assim, a vida humana torna-se incompreensível e insustentável sem as outras criaturas. Pertence, por isso, à dignidade humana o cuidado com o ambiente, considerando em particular a ecologia humana que lhe preserva o próprio existir. Importa ainda salientar que um dos fenómenos que contribui consideravelmente para negar a dignidade de tantos seres humanos é a pobreza extrema, ligada à desigual distribuição da riqueza. De facto, «continua “o escândalo de desigualdades clamorosas”, em que a dignidade dos pobres é duplamente negada, seja pela falta de recursos à disposição para satisfazer as suas necessidades primárias, seja pela indiferença com que são tratados por aqueles que vivem a seu lado» (DI, 36).
Outra tragédia que atinge a dignidade humana é o prolongamento da guerra, hoje como em todos os tempos. E o Papa Francisco sublinha, que «não podemos mais pensar na guerra como solução. Diante desta realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais maturados em outros séculos para falar de uma possível “guerra justa”. «Aqueles que invocam o nome de Deus para justificar o terrorismo, a violência e a guerra não seguem o caminho de Deus: a guerra em nome da religião é uma guerra contra a própria religião. Também os migrantes estão entre as primeiras vítimas das múltiplas formas de pobreza. E é urgente recordar que «cada migrante é uma pessoa humana que, enquanto tal, possui direitos fundamentais inalienáveis que devem ser respeitados por todos em todas as situações». O seu acolhimento é um modo importante e significativo de defender «a inalienável dignidade de toda pessoa humana para além da origem, da cor ou da religião». O tráfico de pessoas, os abusos sexuais, a violência contra as mulheres, o recurso ao aborto, a maternidade de aluguer, a eutanásia e o suicídio assistido, o desrespeito pelas pessoas com deficiência, a violência digital e tecnológica são violações graves da dignidade humana. E urge ainda reafirmar que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, evitando “toda marca de injusta discriminação” e particularmente toda forma de agressão e violência.
É nesse espírito que, com referida Declaração, a Igreja Católica exorta a colocar o respeito pela dignidade da pessoa humana, para além de toda circunstância, no centro dos esforços pelo bem comum e de todo o ordenamento jurídico. “O respeito pela dignidade de cada um e de todos é, de facto, a base imprescindível para a existência mesma de cada sociedade que se pretende fundada sobre o justo direito e não na força do poder. Sobre a base do reconhecimento da dignidade humana se sustentam os direitos humanos fundamentais, que precedem e fundam toda convivência civil” (DI, 64). E Pedro Mexia tem razão ao afirmar que, “a dignidade vale mais do que a identidade” (Expresso, 10.5.2024). Não que esta não seja importante, mas é a dignidade da pessoa humana que se torna pedra angular de qualquer entendimento identificador, até pela importância da compreensão de que urge distinguir para unir… “É importante que um entendimento acerca do humano seja tão ambicioso quanto judicioso. E que esteja atento às formas de desumanização, as novas e as antigas”.
A publicação da obra de Jürgen Habermas Uma Outra História da Filosofia – I – A Constelação Ocidental da Fé e do Saber, com tradução de José Lamego (Gulbenkian, 2024), constitui um acontecimento assinalável.
A publicação na coleção dos clássicos da Fundação Calouste Gulbenkian da obra de Jürgen Habermas Uma Outra História da Filosofia – I – A Constelação Ocidental da Fé e do Saber, com tradução de José Lamego, constitui, de facto, um acontecimento assinalável, incompatível com uma apreciação superficial de algo profundamente pensado pelo seu autor, que é hoje “indubitavelmente o filósofo alemão com maior projeção e o modelo, por excelência, do ‘intelectual público’ intervindo regularmente na imprensa”, com participação marcante nos principais debates sociais e políticos. Ao pôr mãos à obra na História da Filosofia, começa por se perguntar que sentido têm hoje as bem conhecidas perguntas de Kant: “Que posso saber?”, “Que devo fazer?”, “Que me é permitido esperar?” e “O que é o homem?”. E confessa não estar seguro sobre se a filosofia, tal como a conhecemos, ainda tem futuro. “Tal como todas as disciplinas, a filosofia segue a tendência de um acréscimo contínuo de especialização”. Nuns casos presta serviços analíticos e conceptuais para as ciências cognitivas, noutros há uma fragmentação perante a crescente necessidade de aconselhamento nos campos da economia, da bioética e da ética ambiental. Ora, se para as ciências em geral a especialização corresponde a um progresso, para a filosofia não pode perder-se a visão de conjunto. Ora, ao dirigir-se ao todo, a filosofia não pode aspirar a uma visão metafísica nem a uma perspetiva científica. “A questão que me move (diz Habermas) é a de saber o que restaria da filosofia se ela (…) não procurasse contribuir para o esclarecimento racional da compreensão que temos quer de nós próprios, quer do mundo – esta disjunção sublinha precisamente a temática que, com o avanço da especialização, ameaça acabar por se desvanecer”. E assim o acréscimo do conhecimento do mundo exige a referência ao todo, evitando tentar saber mais sobre cada vez menos.
A FILOSOFIA COMO COMPREENSÃO A filosofia não pode resignar-se perante a crescente complexidade da nossa sociedade e do nosso conhecimento, devendo encorajar os nossos contemporâneos a fazerem o uso autónomo da razão para terem um papel positivo no moldar da sua existência social. Como usar a nossa liberdade racional? Para Habermas, a filosofia apenas pode assegurar a independência do seu julgamento mediante uma autorreferência de natureza histórica – assumindo uma configuração pós-metafísica, segundo a qual a emancipação com vista ao uso da liberdade racional significa ao mesmo tempo, libertação e vinculação normativa. “O afastamento pós-metafísico da crença numa justiça redentora ou ‘salvífica’ permite ter em conta a disponibilidade para a cooperação que os sujeitos socializados em termos comunicacionais devem esperar com vista a fazerem o uso da sua liberdade racional”. Eis a preocupação que ocupa o filósofo nesta sua reflexão panorâmica sobre a fé e o saber, na procura de um fio condutor para encontrar a genealogia de um pensamento pós-metafísico, que mostre como a filosofia se apropriou de conteúdos essenciais das tradições religiosas e se transformou num saber suscetível de fundamentação. Importa, assim, assumir uma atitude de abertura e de diálogo, envolvendo a fé e o saber, com disponibilidade para uma aceitação recíproca de pontos de vista. Daí a demarcação de uma atitude secularista esclerosada, urgindo um diálogo como o que o filósofo entabulou com Johann B. Metz, com evidentes frutos positivos. E essa perspetiva genealógica obriga não apenas a evidenciar as circunstâncias contingentes, a que conduziram os processos de aprendizagem, mas também a insistir nos argumentos a favor de um conceito compreensivo da razão.
UM PENSAMENTO PONDERADO Este volume de uma obra longamente ponderada pelo autor, começa por equacionar a questão da genealogia do pensamento pós-metafísico, formulando os cenários de crise e do declínio das grandes teorias filosóficas do século XX, até à pretensão de universalidade do pensamento pós-metafísico, continuando na análise das raízes sacrais das tradições do “período axial” de Karl Jaspers – ou seja, o eixo em torno do qual a rotação da história universal como que se acelerou, cerca de 500 a.C., com inerente transformação da consciência religiosa. Daí a necessidade de uma comparação provisória das imagens do mundo nesse período axial, prosseguindo na análise da simbiose da Fé e do Saber no Platonismo cristão e do surgimento da Igreja Católica Romana e da diferenciação progressiva entre Sacerdotium e Regnum, com os desafios colocados por Aristóteles à teologia do século XIII, com as respostas de Tomás de Aquino e a ontologização da ética aristotélica, com consequente transformação da filosofia prática. E o presente volume culmina com as reorientações filosóficas conducentes à modernidade científica, religiosa e político-social. Duns Escoto introduz a mudança de paradigma e Guilherme de Ockam opera a “revolução nominalista”, aproximando-nos da teoria funcionalista do poder estadual, representada por Nicolau Maquiavel, preocupado com a unificação italiana e por Francisco de Vitória com a necessidade de aperfeiçoar a legitimação. Para Maquiavel, com base no exemplo da República Romana, importaria considerar a convergência entre a estabilidade do poder e as qualidades do Estado, da sociedade e da população suscetíveis de legitimar o regime republicano. Este, para ser virtuoso, não depende da liberdade, da moralidade, da razão política dos cidadãos, mas da estabilização das instituições. Deste modo, os problemas da legitimação são subalternizados em relação aos problemas de estabilização do poder. Maquiavel negligencia, porém, a relação entre o poder político e o direito. Mas dois acontecimentos vão obrigar a reequacionar o pensamento jusnaturalista cristão: a chamada guerra dos camponeses e a inclusão colonial de povos pagãos.
UMA EVOLUÇÃO RICA A guerra dos camponeses representa para o Império, para os territórios dos príncipes locais e para os domínios eclesiásticos o prelúdio da dissolução do poder temporal da Igreja, com passagem do domínio fundiário senhorial para as relações jurídicas modernas e para o direito à propriedade privada. Já Francisco Vitória afirma em De Indis que os “bárbaros”, se antes da chegada dos espanhóis tinham o dominium sui et rerum, não lhes poderia ser negado o direito de disporem livremente de si e das suas propriedades, devendo ser considerados pessoas jurídicas autónomas, não havendo o direito de os subjugar, devendo a fé cristã ser livremente assumida com base na convicção. Antecipa-se, deste modo, o conceito moderno de autonomia individual. Por isso, haveria que favorecer compromissos devidamente esclarecidos. No entanto, haveria que justificar a legitimidade do poder colonial, pelo que, forçando a nota, a guerra e a submissão colonial acabariam por se justificar pela resistência à incorporação dessas comunidades no sistema de domínio colonial… Habermas dá-nos, assim, nesta obra fundamental, uma visão compreensiva da evolução da filosofia contemporânea como fator de autonomia e de responsabilidade.
160. A AVENTURA DA FILOSOFIA, DA CULTURA E DA DEMOCRACIA
Na filosofia, na cultura e na democracia deve imperar o incerto, o imperfeito, o impermanente, a descoberta, a diversidade, a dúvida, o que nos interpela, o que promove o diálogo, o estudo, a investigação, o que nos estimula e atrai a criar, a continuar, a inovar.
Se a filosofia é uma formulação de porquês geradores de outros porquês, se a cultura, na sua pluralidade, é uma interpelação permanente da realidade que nos liberta e transcende, se a democracia se funda na heterodoxia da liberdade de expressão, de pensamento, de informação, o que as deve entusiasmar é o que queremos saber e não sabemos, o que nos deve incentivar a uma disponibilidade constante para a aventura, desbravando e mapeando novas realidades, conhecimentos e saberes.
São a continuação da curiosidade, um formular de perguntas com poucas ou nenhumas respostas, do querer descobrir ou saber, um processo infinito e intemporal de um diálogo intergeracional que envolve ouvir, colaborar, participar, conflituar e negociar, rumo a um ideal de referências tidas como comuns e sem absolutização de valores pré-fixados.
Prevalecendo nelas o ir mais além do além, a sua evolução é gradual e por fraturas, qual matéria viva e incandescente, que pulsa, respira e demanda o desconhecido.
E se o nosso mundo é feito pela variedade de pequenos mundos, o relativismo será um dos seus fundamentos, aceitando, reconhecendo e valorando a ideia de que a capacidade de nos aproximarmos da verdade intrínseca e estrutural da filosofia, cultura e democracia deriva, no essencial, do escrutínio, do sentido crítico, do pleno exercício do contraditório, da complexidade e multiplicidade de ideias que proporciona, aceitando o compromisso como um fim inevitável a alcançar, com adequação, proporcionalidade e razoabilidade.
Questionando o que sabemos e não reunindo um conjunto de verdades absolutas, todos podemos filosofar, ser mensageiros culturais e defensores da democracia, mas nem todos querem fazê-lo, desde logo porque mal visto, por muitos, o querer pensar sobre nós, o que nos rodeia e ultrapassa, não admirando que tal atitude seja estimulante para uns (democratas) e perigosa para outros (autocracias, ditaduras e totalitarismos).
É nos domínios em que é maior a nossa ignorância que a aventura filosófica, cultural e democrática é mais importante, onde a noção de liberdade é mais urgente, não se adaptando a organizações hierárquicas anárquicas, ditatoriais ou totalitárias.
O seu cerne é a liberdade, mesmo em tempos de escuridão, como escreveu o poeta: “Uma pequenina luz bruxuleante/ … brilhando no extremo da estrada/ aqui no meio de nós/ … Mas brilha/ … Brilha” (Jorge de Sena, “Uma pequenina luz”).
Olhamos e perguntamos: “Que anda esta gente toda a fazer?" A resposta é simples, sempre a mesma: "A viver.” É isso: a viver.
O problema é este: são tantas as vezes em que se não dá por isso: o milagre que é viver! Assim, numa sociedade na qual o perigo maior é a alienação - viver no fora de si -, quando a política se tornou um espectáculo tantas vezes indecoroso, quando a mentira e a corrupção imperam, quando Deus foi substituído pelo Dinheiro e o mundo se tornou globalmente perigoso, com a Terceira Guerra Mundial em curso, embora ainda só “aos pedaços”, como diz Francisco, é essencial parar, fazer uma pausa. Porquê e para quê? Como disse Juan Ramón Jiménez: “Devagar, não tenhas pressa, porque aonde tens de ir é a ti mesmo.”
E lembrei-me do meu querido amigo jesuíta Juan Masiá, professor de Filosofia em Tóquio, e de um dos seus livros, precisamente com o título: Vivir. Espiritualidad en pequeñas dosis. "Deixo-me acariciar pela brisa, saboreio a experiência de estar vivo, sentir palpitar a minha vida. E penso: viver, que maravilha e que enigma! Paro em silêncio a saborear esta vivência. Estou vivo, mas a minha vida supera-me: não é só minha nem a controlo. Viver é ser vivificado pela Vida que nos faz viver." A Vida vive-te, vive na Vida!
E aí estão as tarefas para a espiritualidade: dar-se conta do viver; agradecer por a Vida nos fazer viver, nos vivificar: vivemos graças à Fonte da Vida; darmos vida uns aos outros, na compaixão e na ajuda mútua para nos libertarmos. “O que é o mar? O que permite o peixe nadar. O que é o ar? O que permite o pássaro voar. O que é o Nada e o Vazio? A Vida que te faz viver. Vejo a ervita entre as gretas do pavimento. Donde lhe virá a força para abrir passagem entre o asfalto? Palpo aqui uma Presença latente. Não sei quem é. Mas brotam lágrimas de agradecimento.” Então, morrer não é senão sair para dentro da Vida verdadeira, definitiva e eterna: “vida no seio da Vida da vida.”
No meio do rebuliço estonteante, é decisiva a pausa e o silêncio. Chama-se cultura da pausa à tradição oriental de dar importância aos silêncios numa conversa, aos intervalos entre as palavras, aos vazios nas letras, aos espaços livres na arquitectura, ao não dito na mensagem, à receptividade na contemplação. Parar para ouvir o silêncio e contemplar: em vez de olhares para ti e olhar para mim, deixemo-nos olhar ambos pela "Realidade-Assim-Sempre-Presente, cuja aura comum nos envolve". Deixa o eu superficial, transcende, descendo até ao eu profundo e ao "Assim-Sempre-Presente", que se manifesta. Sem pausas de silêncio, como poderíamos ouvir uma mensagem ou uma sinfonia? Sem intervalos, margens e vazios nas letras e entre as frases, como poderíamos ler e entender? E verdadeiramente viver?
O que é a liberdade? "Agir de acordo com o melhor de si mesmo." Mas eu não sou eu sozinho. Perguntou ao jesuíta o monge budista: "Em que é que a sua religião e a nossa se parecem?" E respondeu: "Vós falais do amor de Deus e nós da compaixão do Buda. Mas nem vós nem nós praticamos. É nisso que mais nos parecemos."
E como se reza? "Crer, viver e conviver" era o lema de um encontro de meditação e espiritualidade inter-religiosa, sendo um terço dos participantes budistas, a maioria sem ligação religiosa e uma minoria católicos. E ali se elaborou, com todos de acordo, colocando em duas colunas o "Pai Nosso" cristão e uma paráfrase do partilhar a espiritualidade inter-religiosa, a "Oração à Vida, a partir da vida": "Fonte da Vida, que estás na vida, que estás na minha vida, que estás em toda a parte, vivificando tudo. Que nos demos conta de que o Reinado da Vida vem e o construamos, vivificando-nos, dando vida uns aos outros e em tudo dando um sim à Vida. Que recebamos força de viver, fortaleza de corpo e espírito com pão de vida e esperança. Que nos capacitemos para conviver em reconciliação, recebendo e dando perdão, e para conviver com as pessoas mais desfavorecidas, com quem é diferente e com quem nos mostra inimizade. Que sejamos libertos de todo o mal: do mal no nosso interior e do mal que vulnera as relações humanas. Que dê fruto o trabalho pela libertação do mal social." Jesus ensinou: "Quando rezardes, dizei: Obrigado, Abbá, Pai e Mãe nossa. Dá-nos o pão do futuro no presente. Reconcilia-nos e livra-nos do mal."
E também me lembrei da oração de Fernando Pessoa:
"Senhor,
Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.
Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.
Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.
Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a Lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.
Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim."
Ah! E não vou esquecer o Nobel da Literatura Juan Ramón Jiménez: “Devagar, não tenhas pressa, porque aonde tens de ir é a ti mesmo.” E lá no fundo de ti é o Mistério, o mistério da Vida.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 20 de janeiro de 2024
Assinalamos esta semana, o Centenário do nascimento de Eduardo Lourenço (1923-2020), homenageando o amigo de longa data do Centro Nacional de Cultura e nosso sócio honorário.
LIBERDADE, HISTÓRIA E CIÊNCIA Leitor atento, Eduardo Lourenço conhecia bem a conferência de Karl Jaspers, nos primeiros Encontros Internacionais de Genebra, em 13 de outubro de 1946, quando em resposta à pergunta – o que é a Europa, invocou três palavras: liberdade, como vitória sobre o arbitrário e compreensão da intranquilidade e da inquietação; história, enquanto encontro e diálogo e procura da liberdade política; e ciência, como apelo à verdade, uma vez que “a liberdade exige a ciência, não só a ciência como passatempo dos nossos ócios, não só como técnica subordinada a fins práticos, não só como jogo de pensamento lógico, mas como vontade absoluta universal de conhecer o conhecível”. Todo o percurso do autor de Heterodoxia foi feito de um apego claro relativamente à tripla invocação feita em Genebra. De facto, a heterodoxia que cultivou assentava nas ideias de autonomia e emancipação, pelo que quem firmemente acreditasse que possuía a liberdade, já a teria perdido de modo irreversível. O culto do paradoxo pelo ensaísta significou, assim, a compreensão da incompletude humana e de uma inelutável imperfeição. Daí o apego ao método do ensaio, com demarcação permanente relativamente a um “pensamento fechado e completo”. Assim, o que lhe surgia como problema ou questão de “identidade”, para a pessoa, o grupo ou a nacionalidade, não diria respeito à identidade propriamente dita, mas á sua manifestação ou à sua expressão, enquanto “perturbação”. E deste modo a liberdade individual tornava-se um fator de visão crítica. Como disse em Nós e a Europa ou as duasrazões, numa conferência proferida nos Estados Unidos (em Durhan), em 1984, podia “concluir-se que, em sentido rigoroso, não há nunca questão alguma de identidade. Seria uma conclusão apressada. Mais exato é afirmar que para o indivíduo, o grupo, a nação, a questão da identidade é permanente e se confunde com a da mera existência, a qual não é nunca um puro dado adquirido de uma vez por todas, mas o ato de querer e poder permanecer conforme ao ser ou ao projeto de ser aquilo que se é”.
PENSAMENTO E AÇÃO Tal como encontrara na conferência de Jaspers e nas suas considerações proféticas, o pensador ocupou-se da reflexão sobre a identidade num mundo global – onde coexistem fatores contraditórios, inerentes à própria complexidade. Nenhum facto, nenhuma consequência tem apenas uma razão ou explicação. E a situação atual do mundo demonstra, a cada passo, essa exigência de entendimento da importância do “ato de querer e poder”, que deve permanecer “conforme ao ser”, enquanto situação e projeto. Desde a queda do muro de Berlim, quando se esperava uma convergência de sistemas e de paz, assistimos à fragmentação política; e quando prevíamos a emergência de um regionalismo supranacional, deparámo-nos com um perigoso tribalismo, que agrava os riscos do nacionalismo. E sobre os escombros da guerra fria ocorreram perigosas polaridades difusas – desde o terror de 11 de setembro aos novos imperialismos larvares que redundam na emergência de guerras incontroláveis. Daí a coexistência de esperança e de desencantamento, que são, no fundo, faces da mesma moeda. E o ensaísta, na linha essencial de Montaigne, partiu da experiência pessoal para a realidade que nos cerca. Daí que a compreensão do Portugal moderno devesse fazer-se em ligação estrita com a noção de “Europa como Cultura”, como encontramos no texto com este título escrito em “Finisterra” no ano emblemático de 1989, e que hoje renasce com uma imprevista atualidade.
A EUROPA EM CONSTRUÇÃO Que Europa se vai construindo? Há sinais preocupantes. “É provável que, dentro em pouco, a Europa constitua um supermercado florescente, um espaço dourado por excelência de uma sociedade hiper-consumista, ao mesmo tempo que num lugar de diversão sem rival no planeta. Esta perspetiva não só é plausível, como, de certo modo, fatal”. Contudo não é uma cultura europeia que se constrói, mas um “invólucro vazio, uma realidade sem alma nem memória. Uma Europa cortada da relação com os valores culturais que criou, indiferente à sua herança E à sua riqueza cultural, será apenas uma Disneylândia para a nossa pseudo-infância de europeus”. Se todas as culturas, todas as civilizações fizeram de si mesmas e do mundo à sua volta uma história global, numa relação privilegiada com a Verdade, através de ídolos, deuses e do próprio Deus, em nome da sabedoria e da certeza, a consciência europeia criou uma cultura de inquietação, de angústia e de desafio aos deuses. E assim, nós europeus, tornámo-nos os únicos humanos que não temos identidade. “A essência da cultura ocidental cifra-se na vontade de nos dar um nome”. E como “continente metafísico” a Europa confronta-se com a divergência, o conflito e com a inquietude. “Em boa verdade, o passado europeu com os seus intermináveis conflitos, os recentes horrores do nosso século não abonam muito a esta tentativa – ou tentação – de amalgamar a história europeia à da luta pela liberdade, como de formas diversas o puderem fazer Michelet, Hegel ou ainda Croce”. Afinal, a Democracia europeia resulta de um longo conflito, insiste Eduardo Lourenço, o que “não é um dado, um dom caído do Céu, mas uma conquista, sempre inacabada, sempre ameaçada e a reformular em temos cada vez mais complexos e, em última análise, imprevisíveis. O seu cimento foi a audácia, o sacrifício, o sangue, mas acima de tudo, uma exigência de justeza nas ideias e de justiça nos atos”.
A Europa foi construída pelas ameaças dos persas, turcos, mongóis, árabes, que forjaram a nossa identidade. “No fim de contas, o único inimigo que os portugueses sempre tiveram foram eles mesmos. O que era já visível para Erasmo não deixou de o ser em vésperas da sua conversão em ‘Comunidade Europeia’…” A guerra civil perpétua europeia foi atenuada pela razão, mas há um esquecimento cíclico que nos assalta e que nos leva a contentar-nos erradamente com os resultados comerciais ou económicos de curto prazo. Para Eduardo Lourenço, somos, porém, demasiado indiferentes aos conceitos e ideais que preocupavam Jaspers em 1946, quando este pensava numa regeneração: Verdade, Valor, Liberdade, elementos que durante séculos constituíram a referência imperiosa do pensamento, da ética, da arte e da ação europeias. “Se não houver Europa como cultura, e enquanto a não houver, todos os outros sucessos europeus repousarão sobre a areia”. Mitificação do cultural? Apenas a simples lembrança de que “Europa foi sempre, não apenas uma cultura entre outras, mas uma exigência do sentido que engloba a crítica da própria cultura”. Contudo, o pensador não falava de um museu mais ativo do que uma mera referência turística, nem de um mero espaço de deslumbramento alargado, de comunicação de tesouros ou uma rede de gabinetes de curiosidades, mas da tomada de consciência das raízes comuns. “A Europa como cultura é outra coisa que essa fluidez nas trocas culturais relativas ao passado e ao presente, qualquer coisa que tem pouco que ver com o espetáculo televisual dos jogos inter-fronteiras”. Importaria demarcar-nos de uma ideia pobre de mínimo cultural, emerso no puro universo do espetáculo e da distração, da internet e dos robôs, em lugar de encarar a cultura e arte como valores … Como quis Coudenhove-Kalergie, podemos acrescentar, ser necessário entender Ulisses como o protótipo do europeu, enquanto o herói do primeiro romance de aventuras do Ocidente, cujo caráter tem várias dimensões. Não foi apenas bravo e magnânimo, mas dispôs de ardil e astúcia, com uma paixão temperada pela medida, não procurando a aventura, mas dominando-a, sem procurar a luta, mas ganhando-a.
Para Eduardo Lourenço, Camões, Antero de Quental ou Fernando Pessoa – ao lado da grande plêiade de europeus como Ésquilo, Dante, Erasmo, Goethe ou Rilke, Tolstoi ou Dostoievski – definiram, através das suas obras, um espaço exigente, enigmático, inventivo e grandioso da cultura concebida como cultura das diferenças, vivendo da busca do que T.S. Elliot considerava ser o muito da sabedoria que se perdia na informação e no conhecimento. Em suma, dependemos “da invenção de um caminho e de uma saída que ninguém nos deu nem pode descobrir em vez de nós”. E a nossa relação com o ensaísta tem a ver com essa inalienável necessidade de termos presente esse poderoso desafio que nos liga à humanidade e à cultura como vida.
Com as biotecnologias, um dos novos continentes científicos é o cérebro, e a pergunta é se, com os avanços neste domínio, o enigma do ser humano será finalmente superado ou se, pelo contrário, ele permanecerá. Grandes debates se travam entre as neurociências e a filosofia, precisamente por causa de temas candentes e incendiários, como a subjectividade, a autodeterminação, a vontade livre.
Sobre estas questões, o filósofo e professor da Universidade de Tubinga Manfred Frank deu há algum tempo uma longa entrevista ao alemão “Die Zeit”. O que aí fica reflecte esse debate.
A questão da subjectividade pertence ao núcleo da reflexão humana. Embora algumas correntes filosóficas falem da sua dissolução, penso que o sujeito é ineliminável. Argumento, mostrando que a condição de possibilidade de objectivar — no caso do Homem, de objectivar-se — é o sujeito, de tal modo que, por mais que objective de si mesmo, nunca se objectivará completamente, já que continuará a ser o sujeito que (se) objectiva.
Frank também afirma que nunca será possível reduzir a consciência e o espírito a processos neuronais, e isso "por razões de princípio". Há uma questão de princípio: como explicam as neurociências a passagem de processos físicos inconscientes a processos mentais conscientes? "Não é possível substituir o saber sobre nós mesmos por um saber objectivo sobre o mundo." A subjectividade não pertence ao mundo dos objectos.
O "eu" do autoconhecimento não é redutível àquilo a que nos referimos com nomes ou caracterizações. "A autoconsciência é um conhecimento único, reflexivo, no qual uma pessoa se refere conscientemente a si mesma, mas a si mesma em posição objectiva. Como poderia ela, porém, captar este eu-objecto como ela mesma enquanto sujeito, se, antes desta apresentação objectiva, não tivesse tido uma consciência inobjectiva de si?" Esta consciência inobjectiva quer dizer vivida, pré-reflexiva.
Permanece uma questão: "Quando identifico espírito com matéria, não identifico matéria com matéria." Trata-se como que dos dois lados de uma moeda, mas as condições de verdade do neuronal não se identificam com as do espírito: as primeiras encontram-se num tratado de fisiologia enquanto as dos estados mentais são verificadas introspectivamente, como viu Descartes. Isso é experienciado também ao nível do vocabulário, que é diferente para descrever o psíquico e o estado físico correspondente: não teria sentido exprimir a inclinação amorosa por alguém, descrevendo os processos electromagnéticos no cérebro.
A tese de neurocientistas que afirmam não haver, por detrás do alegado livre arbítrio, senão processos neuronais, que determinam a vontade, contradiz não só a compreensão jurídica de responsabilidade mas também a nossa própria autocompreensão: queremos ser autores racionais de mudanças no mundo — tentamos "tomar decisões racionais".
Para lá dos sistemas jurídico-penais, que pressupõem a liberdade, um exemplo. Suponhamos que alguém tropeça, sem querer, e, ao cair sobre outra pessoa, esta é apanhada por um carro e morre. Distinguimos muito bem esta situação daquela em que alguém empurra intencionalmente outra pessoa. E há esta virtude admirável: resistir moralmente à maioria. Os opositores ao Terceiro Reich "merecem o nosso sumo respeito", precisamente porque foram poucos e capazes de enfrentar a morte. Aí, "os neurocientistas têm muito para justificar, no sentido de dar conta do correcto normativamente dessas decisões a partir de processos neuronais".
Tudo o que é essencial, quando pensamos na humanidade, "vinculamo-lo ao pensamento da subjectividade e não à nossa representação do cérebro. São sempre pessoas, sujeitos, que consideramos como criadores de literatura, cultura ou religião". Afinal, "temos cérebros e somos eus". Daí poder formular-se o imperativo categórico de Kant nestes termos: "Nunca trates os seres humanos como coisas, mas sempre como sujeitos e pessoas." Se o mundo consistisse só em objectos, não haveria ninguém a quem dirigir o preceito: "Porta-te decentemente com os outros sujeitos."
Neste mesmo sentido se pronunciam outros autores mais recentemente. Por exemplo, o médico e teólogo Alfred Sonnenfeld em El arte de la felicidad. Mente, cerebro y genes: “Apesar do interminável e espectacular dinamismo cerebral, permanece a pergunta pelo nosso eu, a nossa identidade. O “eu” que se vai formando não é a mesma coisa que o cérebro. Há quem opina que o eu é gerado pelo cérebro, o eu seria produto do cérebro e, por conseguinte, não seria livre. Mas esta afirmação carece de justificação. Na nossa análise sobre a formação do autoconsciente estaríamos equivocados se pensássemos que cada um é o seu cérebro. Sem dúvida, sem a posse de um cérebro mais ou menos são, não poderíamos pensar, estar despertos, ser conscientes. Mas disso não se pode concluir que somos idênticos ao nosso cérebro. O ser humano é muito mais do que o seu cérebro.”
Reflectindo sobre o eu irredutível (absolutamente irredutível também ao eu do pai e da mãe, também eles irredutíveis), expressão do milagre da pessoa, que é fim em si mesma e não simples meio, e sobre a liberdade que, numa situação-limite (por exemplo, numa guerra, um soldado é obrigado a matar um inocente sob pena de, se não o fizer, ele próprio ser morto, e não o faz), dá a vida para salvaguardar a dignidade, é inevitável não ser confrontado com a questão de Deus criador e salvador.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 29 de abril de 2023
1. Nestes tempos do imediatismo, do ruído ensurdecedor causado pelas centrais da estupidificação, é urgente voltar ao essencial. E o que há de mais fundamental, essencial, do que a questão de Deus? Há Filosofia sem a pergunta por Deus? Se não quisermos permanecer na superfície ou nas simples convenções, se quisermos apresentar seriamente o fundamento da dignidade humana, dos direitos humanos, não é aí que vamos desembocar? Como diz Kant, o ser humano é fim e não simples meio. Ora, o que é que é fim em si mesmo senão o Infinito? E o que tem o ser humano de infinito senão a pergunta ao infinito pelo Infinito? O ser humano tem dignidade porque de pergunta em pergunta acabará por desembocar na pergunta pelo Fundamento último e o Sentido último, por outras palavras, na pergunta por Deus, independentemente da resposta que lhe dê: uns decidir-se-ão pela fé, outros pelo agnosticismo, outros pelo ateísmo.
Aprofundando, voltamos sempre à questão de Deus. Na sua obra Der Gott der Philosophen (O Deus dos filósofos), Wilhelm Weishedel mostrou que a questão de Deus constitui precisamente “a problemática central da Filosofia”, de Tales e Anaximandro a Nietzsche e Heidegger. “Mesmo onde a teologia filosófica está em decadência, continua a ter uma importância decisiva, pelo menos como algo que há que superar antes de qualquer outra coisa. Por isso, com razão o discurso sobre Deus é considerado como o problema essencial da Filosofia.”
2. Nesta quadra pascal, regresso, mais uma vez, a esse sublime e abissal texto, pavoroso, um dos grandes da grande literatura alemã, que Jean Paul, pseudónimo de Johann Paul Friedrich Richter, escreveu em 1796: "Rede des toten Christus vom Weltgebäude herab, dass kein Gott sei" (Discurso do Cristo morto, a partir do cume do mundo, sobre a não existência de Deus).
Nele, o célebre escritor descreve um sonho-pesadelo. Pela meia-noite e em pleno cemitério, numa visão apavorante, o olhar estende-se até aos confins da noite cósmica esvaziada, os túmulos estão abertos, e, num universo que se abala, as sombras voláteis dos mortos estremecem, aguardando, aparentemente, a ressurreição. É então que, a partir do alto, surge Cristo, uma figura eminentemente nobre e arrasada por uma dor sem nome. E, com um terrível pressentimento, "os mortos todos gritam-lhe: "Cristo, não há Deus?" Ele respondeu: "Não, não há Deus." Então, a sombra de cada morto estremeceu, e umas a seguir às outras desconjuntaram-se. E Cristo continuou, anunciando o que aconteceu no instante da sua própria morte: "Atravessei os mundos, subi até aos sóis, voei com as galáxias através dos desertos do céu; e não há Deus. Desci até onde o ser estende as suas sombras, e olhei para o abismo, gritando: "Pai, onde estás?" Mas apenas ouvi a tormenta eterna, que ninguém governa." Quando, no espaço incomensurável, procurou o olhar divino, não o encontrou; apenas o cosmos infindo o fixou petrificado com uma órbita ocular vazia e sem fundo, "e a eternidade jazia sobre o caos e roía-o e ruminava-se". O coração rebentou de dor, quando as crianças sepultadas no cemitério se lançaram para Cristo, perguntando: "Jesus, não temos Pai?" E ele, debulhado em lágrimas, respondeu: "Somos todos órfãos, eu e vós, não temos Pai." "Nada imóvel, petrificado e mudo! Necessidade fria e eterna! Acaso louco e absurdo! Como estamos todos tão sós na tumba ilimitada do universo! Eu estou apenas junto de mim. Ó Pai, ó Pai! Onde está o teu peito infinito, para descansar nele? Ah! Se cada eu é o seu próprio criador e pai, porque é que não há-de poder ser também o seu próprio exterminador?"
Para Jean Paul, a morte de Deus não era ainda um destino espiritual inevitável. Apenas a tentação de uma possibilidade ameaçadora. E ele queria estar prevenido: que, quando a tentação o visitasse, soubesse de antemão o abismo sem fim, pavoroso, a que a morte de Deus conduz. Quando acordou do pesadelo ateu, a sua alma "chorava de alegria, por poder de novo adorar a Deus - e a alegria e o choro e a fé nele era a oração".
Um século depois (1882), o louco de Nietzsche proclamou a morte de Deus: "Quem o matou fomos todos nós, vós mesmos e eu!" "Nunca existiu acto mais grandioso." Ao mesmo tempo, Nietzsche tem consciência aguda do que se segue: "Para onde vamos nós, agora? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para os lados, para a frente, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima de um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?"
O filósofo Gilles Lipovetsky escreveu, em A Era do Vazio: "Deus morreu, as grandes finalidades extinguem-se, mas toda a gente se está a lixar para isso. O vazio do sentido, a derrocada dos ideais não levaram, como se poderia esperar, a mais angústia, a mais absurdo, a mais pessimismo." Mas mais recentemente, no seu livro A Sociedade da Decepção, reconhecendo "a reafirmação do religioso", vem dizer que, "privados de sistemas de sentido englobante, numerosos indivíduos encontram uma tábua de salvação no reinvestimento de antigas e novas espiritualidades capaz de oferecer a unidade, um sentido, referências, uma integração comunitária: é o que o Homem necessita para combater a angústia do caos, a incerteza e o vazio".
3. Aqui chegados e tomando consciência de escândalos que clamam aos céus, impõe-se que a Igreja se pergunte pela sua responsabilidade no aumento do ateísmo.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 15 de abril de 2023