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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 30 de agosto a 5 de setembro de 2021

 

“A Intimidade de Um Intelectual Indomável” é o subtítulo da Fotobiografia de António José Saraiva, da autoria de António Manuel P. Saraiva, José António Saraiva e Pedro António P. Saraiva (Gradiva, 2021).

 

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A MARCA DO INCONFORMISMO

O percurso de um dos intelectuais mais importantes da segunda metade do século XX português constitui excelente oportunidade para conhecermos um pensamento complexo, cuja coerência significa uma permanente busca de razões de ser para a história portuguesa, com recusa de conclusões adquiridas. O inconformismo é uma marca indelével que, longe de significar hesitação, representa a clara compreensão de que os factos históricos não têm explicações unívocas, resultando sempre de uma confluência de fatores contraditórios e heterogéneos. Deste modo, percebemos que o caminho de António José Saraiva é de permanente exigência, com aproximações e distanciamentos relativamente a autores e explicações, em resultado de um sentido crítico apurado, essência do fenómeno cultural e da sua compreensão. Ser “intelectual indomável” significa, assim, colocar o pensamento como bussola para uma caminhada capaz de conciliar a liberdade de espírito e o rigor na análise dos acontecimentos. E o irmão, José Hermano Saraiva, revela-nos uma explicação: “a ideia que ele escreveu na minha fita de formatura: quando tiveres encontrado enfim uma verdade, rasga-a e procura outra verdade melhor”. Ao seguirmos a obra de António José Saraiva, encontramos na dissertação de licenciatura o tema da poesia de Bernardim Ribeiro (1938) e no doutoramento em Filologia Românica a referência a Gil Vicente e ao fim do teatro medieval (1942) e em ambos encontramos a originalidade e a relevância das considerações do jovem investigador, em temas cruciais na afirmação da cultura portuguesa. No Liceu Gil Vicente fora aluno de Fidelino de Figueiredo e em 1940 travara conhecimento com Óscar Lopes, seu companheiro na empresa referencial da “História da Literatura Portuguesa”, a partir de 1949 – “vademécum” de muitas gerações na compreensão da nossa identidade literária. Quando hoje lemos textos de 1946 como “As Ideias de Eça de Queirós” ou “Para a História da Cultura Portugal” notamos já uma evidente maturidade, que prossegue não só em “A Escola, Problema Central da Nação”, mas igualmente em “A Evolução do Teatro de Garrett”, em “A Obra de Júlio Dinis e a sua Época” e sobretudo no fundamental “Herculano e o Liberalismo em Portugal – Os Problemas morais e culturais da instauração do regime”. Seguir a produção intelectual do jovem professor é, desta forma, extremamente atraente, uma vez que, apesar das referências ideológicas, nunca perdemos o extremo rigor no lidar com os acontecimentos e a consideração de uma rica dialética crítica, que recusa as explicações unívocas ou simplificadoras. Aliás, a perenidade da obra fica a dever-se a esse permanente viés crítico que tantas vezes corrige as naturais tentações simplificadoras. Dir-se-ia que a fidelidade ao mestre Herculano constitui uma marca que dá atualidade e coerência ao historiador e ao pensador. Quando lemos “O Caprichismo Polémico do Senhor António Sérgio” notamos, é certo, o espírito do tempo e a circunstância política, mas o tempo veio a corrigir a influência ideológica, de que Saraiva ao longo do tempo se soube libertar, como confessará no final da vida. É muito rica a lista dos temas que ocupam o cientista social e o pedagogo, cujo percurso é afetado pelas opções políticas – militância partidária na oposição, apoio à candidatura de Norton de Matos, proibição de ensinar no ensino oficial e prisão por motivos políticos.

 

TEMAS APAIXONANTES

Os temas estudados não são neutros. A Idade Média portuguesa até à crise social do século XIV, a importância de Fernão Lopes, a Inquisição em Portugal, Fernão Mendes Pinto ou a Sátira Picaresca da Ideologia Senhorial, Luís de Camões, a Ressaca do Renascimento, o “Dicionário Crítico da Algumas Ideias e Palavras Correntes” constituem reflexões ricas, nas quais se nota a preocupação pela prevalência de uma opção de independência e liberdade, nem sempre corretamente compreendidas. Impedido de ensinar em Portugal, exila-se em França no final dos anos cinquenta, integrando a equipa de Marcel Bataillon, e chega a preparar a ida para o Brasil, o que se torna impossível em virtude da ocorrência do golpe militar de 1964. Em 1966 retoma o estatuto de investigador em Paris, no CNRS, por proposta de Fernand Braudel, assistindo aos acontecimentos de maio de 1968, que merecem a sua análise, em muitos pontos se revelará premonitória. Quando obtém um lugar na Universidade de Amesterdão (1970) publica “Maio e a Crise da Civilização Burguesa”, que suscita acesa polémica. Regressado a Portugal em 1975, assume funções na Universidade Nova de Lisboa e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, prosseguindo uma muito ativa intervenção literária: “Épica Medieval” (1979), “O Discurso Engenhoso – Estudos sobre Vieira e Outros Autores Barrocos”, “Filhos de Saturno – Escritos sobre o Tempo que Passa” (1980), “A Cultura em Portugal” (2 volumes) e “O Crepúsculo da Idade Média” (1988).

 

PENSAMENTO INDOMÁVEL

Fiel ao pensamento indomável, conheci pessoalmente António José Saraiva, quando escreveu e publicou “A Tertúlia Ocidental” (1990), obra de maturidade, de quem tão bem conhecia os homens de 1870, a ponto de poder escrever sobre eles um genial romance. E um dia disse-me que, sem demonstração histórica, era mais cinematográfico que tenha sido José Fontana a apresentar Oliveira Martins a Antero. Por outro lado, a chave da “Ilustre Casa” não era o colonialismo, mas a atração pelo desconhecido. E recordava «As Minas de Salomão», onde Gonçalo foi buscar motivo de inspiração. Ao contrário de Fradique, a geração coimbrã de Antero e dos seus acreditava numa outra relação entre a liberdade e a igualdade, diferente da romântica. A. J. Saraiva considerara em “As Ideias de E.Q.”, o fradiquismo como «uma desistência de agir sobre o meio e as condições sociais». Eça deparar-se-ia com a dificuldade de combater a mediocridade e a plutocracia. E ter-se-ia desinteressado. O próprio «esforçado Oliveira Martins» acabaria a cultivar a «flor da arte» ou outras flores. Seria uma evasão… Os anos passaram, o ensaísta continuou a estudar e a pensar, como inesgotável crítico. E em «A Tertúlia» recusou «uma súmula de clichés então reinantes» sobre a geração de 1870. O certo é que importaria dar uma especial atenção à afirmação de Eça no prefácio a «Azulejos» de Bernardo Pindela: «A arte é tudo, e tudo o mais é nada». O perigo da ilusão perturbava quem ainda acreditava na ação e na política. É certo que Eça dissera a Luís de Magalhães: «Não se deixe levar pelas teorias abomináveis do amigo Oliveira Martins sobre a sinceridade da emoção». Não poderia esquecer-se a fórmula «sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia». O paradoxo tinha como polos não apenas a ação e a indiferença, mas também a vontade e a arte. E Saraiva concluía: «Hoje as ideias de Eça de Queiroz (que não são exatamente as que lhe atribuímos em 1945) aparecem-nos principalmente como temas de arte, tal como na “Correspondência de Fradique Mendes” são pretextos para cartas».

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

A VIDA DOS LIVROS

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   De 16 a 22 de novembro de 2020

 

“Gonçalo Ribeiro Telles - A Fotobiografia”, de Fernando Santos Pessoa (Argumentum, 2011) - é um repositório rigoroso que nos apresenta a personalidade fascinante de alguém a quem muito Portugal deve, como defensor determinado da natureza e do meio ambiente e como cidadão empenhado na salvaguarda da cultura portuguesa.

 

CNC _Gonçalo Ribeiro Telles – A Fotobiografia.j

 

MODELAR A PAISAGEM

“O homem desempenha na modelação da paisagem um papel muito importante; pode ser considerado, neste aspeto, como um autêntico criador de beleza”. (Cidade Nova, 1956, IV série, 4). Esta citação pioneira é emblemática de um percurso riquíssimo e exigente – que nos deixa uma herança que temos de respeitar e prosseguir. Gonçalo Ribeiro Telles é uma referência da sociedade portuguesa pela ligação que sempre soube estabelecer entre a cidadania e o exercício apaixonado da sua profissão de arquiteto paisagista, discípulo de Francisco Caldeira Cabral - com quem escreveu o fundamental “A Árvore em Portugal”, defesa intransigente das culturas tradicionais. Nunca o vimos indiferente em relação a qualquer tema relevante que pudesse ser discutido em qualquer momento. Por isso, Eduardo Lourenço chamou-lhe “Jardineiro de Deus”. Quando a defesa do meio ambiente e da qualidade de vida era ainda algo muito distante e quase exótico relativamente às preocupações imediatas, por muito que o tema começasse a ser discutido no inicio dos anos setenta com crescente projeção comunicacional, a verdade é que desde sempre, a partir das origens do Centro Nacional de Cultura, nos anos quarenta e cinquenta, e da revista “Cidade Nova”, Gonçalo Ribeiro Telles pôs a tónica na dignidade da pessoa humana inserida numa natureza respeitada e equilibrada. Daí que não seja estranho que o encontremos, e a muitos dos seus amigos mais chegados, como Henrique Barrilaro Ruas, João Camossa Saldanha, Luís Coimbra ou Augusto Ferreira do Amaral em movimentos alargados na defesa da liberdade e da democracia. Dir-se-ia que é natural essa ligação e esse caminho de abertura e de inconformismo. Liberdade e tradição estão intimamente ligados ao magistério deste homem singular para quem o amor à terra e à História era algo tão natural como o ato de respirar. No entanto, para Gonçalo Ribeiro Telles a tradição não se confundia com o que se repete ou com qualquer inércia que se impõe contra o dever de completar e enriquecer pelo valor humano a herança recebida das gerações que nos antecederam. Tradição é traditio, isto é, a capacidade de transmitir generosamente e em movimento o que cada geração herda e cria. Mas a traditio é, por essência, dinâmica – daí o movimento de dar e receber, enquanto a revolutio é o regresso ao mesmo ponto de partida, num movimento circular. O seu empenhamento monárquico deve-se a esta conceção genuína baseada na tradição. A pessoa e a comunidade são elementos cruciais – como o património cultural, material, imaterial, natural, paisagístico, até às tecnologias novas e à criação contemporânea. Patres e múnus, o dever de preservar a herança dos nossos pais, eis o que tem de ser lembrado. Assim, Gonçalo Ribeiro Telles sempre se manifestou como um espírito livre para quem o mais importante são as pessoas e não os regimes formais. Daí o seu comunalismo de base – e a sua capacidade para debater e refletir com todos.

 

ECONOMIA PARA AS PESSOAS

A economia existe para as pessoas. As culturas tradicionais devem ser preservadas e protegidas - uma vez que correspondem àquilo que o tempo testou através do exemplo e da experiência. Veja-se como a preservação do património tem de seguir os métodos e os materiais tradicionais. A sociedade constrói-se pela confluência fecunda entre a singularidade das pessoas e o bem comum. A obra da autoria do Arquiteto Fernando Santos Pessoa dá-nos o percurso humano do homem, cidadão atento, disponível, generoso, capaz de fazer do diálogo entre as pessoas e a natureza algo de vivo e perene. Nada lhe era indiferente, e com que entusiasmo o víamos abraçar as causas que realmente valem a pena. Na cidade bateu-se pelos corredores verdes, pelas hortas urbanas, por um urbanismo que pusesse as pessoas em primeiro lugar. No campo, compreendendo Portugal como um rico continente em miniatura, como Orlando Ribeiro ensinou, pugnou sempre pelo respeito do que nos foi legado desde tempos imemoriais. E invoco especialmente o muito que o Centro Nacional de Cultura lhe deve. Gonçalo Ribeiro Telles é o elo que liga à primeira geração do Centro, fundado por António José Seabra, Afonso Botelho e Gastão da Cunha Ferreira, num tempo em que Almada Negreiros e Fernando Amado ligaram cultura e teatro, conferências e debates, convívio e reflexão. Depois, foi o momento de Sophia de Mello Breyner, de Francisco de Sousa Tavares, de António Alçada Baptista - até à presença luminosa de Helena Vaz da Silva... Gonçalo foi uma presença permanente e ativa no CNC, nunca deixando que a cultura fosse de mera circunstância. E foi assim que a cultura no CNC se tornou ciente de que a criatividade e a ecologia andam a par, como uma ética pública de liberdade e responsabilidade, de cidadania e de respeito da dignidade humana.

 

UM PERCURSO POLÍTICO

Com António Viana Barreto foi o autor do projeto dos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, galardoado pelo Prémio Valmor de 1975. Um dia, disse, aliás, que a sua ambição para Portugal era que se tornasse uma espécie de Gulbenkian. Não por acaso, foi o Coro da Gulbenkian que acompanhou as cerimónias religiosas de despedida de Ribeiro Telles no Mosteiro dos Jerónimos. Em 2013 foi galardoado com o Prémio Geoffrey Jellicoe, o “Nobel” da Arquitetura Paisagística. Consciente da importância da cidadania ativa, teve uma participação política corajosa que determinou a consideração como persona non grata do antigo regime, com consequências gravosas. Apoiou Humberto Delgado, com Luís Almeida Braga, Rolão Preto e Vieira de Almeida, também monárquicos; subscreveu em 1959 e 1965 três importantes documentos de católicos em denúncia da ausência de liberdade, da censura, e da repressão; participou ao lado de Mário Soares, Sophia e Francisco de Sousa Tavares em 1969 na CEUD; interveio no Congresso da Oposição Democrática; fundou o PPM e foi membro dos governos provisórios da democracia, foi um dos líderes da Aliança Democrática com Francisco Sá Carneiro e Diogo Freitas do Amaral, foi vereador independente nas listas do Partido Socialista no Município de Lisboa e fundou o Movimento Partido da Terra (1993). O corredor verde de Lisboa, a ele se deve, e o novo Parque da Praça de Espanha terá o seu nome; Lisboa Capital Verde da Europa tem-no como inspirador. Muito devemos a Gonçalo Ribeiro Telles – por isso é com legítimo orgulho que o lembramos como mestre da liberdade, da dignidade e do humanismo.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença