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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim,

                                              

Queridos Amigos:

 

                                           Nuvem neste instante

                                              feita nossa

                                           libertação

                                              do exílio

 

   Quadra não sei, recolhi-a de Enfin le royaume - quatrains (Gallimard, 2018), de François Cheng. Presumindo que o poeta chinês da Académie Française a tenha escrito em francês, dessa versão a traduzi. O original reza assim:

 

                                           Nuage un instant

                                              apprivoisé,

                                           Tu nous délivres

                                              de notre exil.

 

   A coletânea de poemas (quadras chinesas, poderá dizer-se?) que este livro encerra é um insistente, melodioso e exigente, apelo a sair de nós. Como aquela definição que Plotino (270 a.C.) dá da inteligência, como movimento do nosso pensamento que o ergue das coisas inferiores para nos levantar a alma até ao que é superior. Mas tal movimento, mesmo nesse instante da nossa busca em que cativamos a passageira nuvem que nos livra deste exílio, ou nos liberta como verdade encontrada, só pode existir e ter sentido na nossa consciência. Ou seja, citando São Tomás de Aquino (Summa Theologiae, Ia IIae q. 19a.5): Se a tua razão se revoltar contra a afirmação de que Cristo é Filho de Deus, seria ofensa a Deus acreditares na divindade de Cristo. Eis, Princesa de mim, o que muitos convictos ateus e devotos crentes nem sempre entendem: qualquer de nós só verdadeiramente pensassente a verdade, em liberdade... Veritas liberabit vos, isto é, a verdade vos libertará - não significa que um achado científico, nem qualquer dogma ortodoxo, por si só, ou por muita pregação, seja definitivo e triunfador. Antes nos alerta para que, tal como o conhecimento científico é contínua descoberta, a Boa Nova é incessante anúncio da libertação do nosso exílio. Chama-nos a ser vigilantes, atentos à chegada de cada instante em que se manifesta como vocação à conversão. Tal como a ciência, a fé, o amor ou a paz, nunca estão perfeitos: são vocações, sempre a pedir resposta, um passo mais de ação renovadora. E a precisar de cultura, de um espírito que se lavre para se abrir à sementeira. Dessas vocações se pode dizer que são graça, um dom. Repetindo Raïssa Maritain, só o dom opera a salvação.

 

   Ora, nem todos recebemos o dom da fé, ou não o descobrimos a chamar por nós. E se não nos tocou nem toca, mantem-se estranho, porque não há força nem lógica que imponha a fé. Quem a tem, ou julga ter, dela apenas pode dar testemunho. Para o cristão, o testemunho da fé dá-se pelo amor e pela paz. Eu não posso dar a fé seja a quem for, posso procurar dar o meu amor e a minha paz a toda a gente.

 

   Em tempos de tantas incertezas, interrogações, expectativas e desilusões, a fé cada vez menos se anuncia como dogma, e cada vez mais se testemunha pelo amor e pela paz que soubermos irradiar, para comunhão de todos na esperança que a todos nos deve animar. E é dando esse testemunho, com empenho na defesa da terra e na construção de uma casa comum, que se anuncia, no dia a dia, a Boa Nova. Que 2019 seja ano mais despido de preconceitos, desconfianças e negações, para que nos nossos dons de amor e de paz se manifeste a Graça.

 

Camilo Maria  

                                         
Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Após poucos dias de canícula, saboreio um agosto mestiço, com janelas semiabertas, para que cá por casa corra também uma refrescante aragem a pedir-nos recosto e leitura amena... Já vai meridiana a manhã, nem dei pelos marcadores do tempo, apenas agora vejo que vão sendo horas de me pôr a cozinhar, serviço doméstico que assumo desde que vim para o campo a tempo inteiro. Mas antes de arregaçar mangas e pôr avental (que não é azul...) quero deixar-te um curioso poema de Du Fu, um dos vates maiores, com o seu tão diferente amigo Li Bai, da poesia da dinastia Tang, como te contava na última carta. Dá-se até o caso de ser essa oitava intitulada Em Dia de Primavera, Pensando em Li Bai... Reza assim, na minha versão portuguesa:

 

               É sem rival a poesia de Li Bai

               Nada se compara à sua elevação!

               É natural e criativo como Yu Xin,

               Majestoso e aéreo como Bao Zhao...

               Árvore primaveril, a norte da Wei,

               nuvem crepuscular a leste do rio,

               quando virá o dia de juntarmos poesia,

               Com um jarro de vinho por companhia? 

 

   Explica-nos Florence Hu-Sterk, tradutora (chinês-francês) e anotadora deste poema para a edição da Bibliothèque de la Pléiade (Anthologie de la Poésie Chinoise, Gallimard, 2015), que Du Fu presta homenagem a Li Bai comparando-o a dois grandes poetas da era das Seis Dinastias, Yu Xin (513-581) e Bao Zhao (414-466), sendo que o estilo imaginativo deste último muito influenciou Li Bai (que o cita 114 vezes nas suas obras). Diz-nos também que, em 746, Du Fu, árvore primaveril, estaria enraizado em Chang´an, a norte da Wei, e Li Bai a leste do rio azul, errante como nuvem crepuscular...

 

   Mas, ainda que distantes no modo de poetar, quiçá no pensarsentir a vida e a ordem do dever, como diversos foram os seus fados, Li Bai e Du Fu comungam no mesmo gosto da contemplação como intuição de tudo, e na partilha desta pela amizade. Pois que contemplar o ser e a sua circunstância não é modo de fuga, antes é ir mais ao fundo do risco que a surpresa traz. Como neste poema de Du Fu, que traduzo duma versão francesa de François Cheng, ilustrada por caligrafia de Fabienne Verdier (Albin Michel, Paris, 2000):

 

               Sozinho me delicio

               com o desabrochar das flores

               à beira rio

 

               À beira rio,

               o infinito

               milagre das flores.

 

               E se a outrem me confiasse

               para não dar em louco?

 

               Vou a casa do vizinho

               meu companheiro de vinho:

               mas saiu para ir beber,

               faz já dez dias.

               Deixou cama por fazer...

  

               Não é que eu ame as flores

               para morrer por elas...

 

               Eis o meu receio:

               beleza que se apaga,

               velhice que se achega!

 

               Ramos carregados:

               queda de flores aos cachos!

 

               Tenros rebentos se concertam

               para suavemente se abrirem...

 

   Livre e desapegado, até boémio, como era e sempre escolhia ser, Li Bai, por muitos admiradores, protetores e amigos que granjeasse, não escapou a momentos difíceis de ultrapassar, a perseguições e exílios, já que os poderes não apreciam independências do s espíritos... Em dois poemas, quais cartas ditadas por sonho amigo, Du Fu recorda Li Bai, inquieta-se e pergunta por ele, deseja-lhe a glória para além da morte: Meng Li Bai er shou, ou, em português, Sonhando com Li Bai.

 

               Separados pela morte, soluços engolidos;

               separados pela vida, tormento infinito.

               Do sul do Rio, roído pela febre,

               sem qualquer notícia do viajante banido,

               esse velho amigo me aparece em sonhos,

               sabendo quanto e quanto penso nele.

               Assim, agora preso numa rede,

               como conseguiste libertar as asas?

               É longa a estrada, incomensurável.

               Possa a tua alma ser a de quem vive,

               a vir por bosques de bordos glaucos,

               atravessando portagens de fronteiras negras.

               Cai a lua e inunda as traves do teto,

               e logo imagino o teu rosto iluminado.

               Águas profundas, vagas poderosas,

               possam poupar-te os dragões marinhos!

 

               Leves se seguem as nuvens pelo ar,

               mas não trazem de volta o viajante.

               Por três noites seguidas sonhei contigo,

               sinal da tua profunda amizade.

               Cada partida parecia perturbar-te,

               e lamentavas as durezas da viagem.

               Estavam tão bravios os lagos e os rios...

               Receavas perder o rumo ao barco.

               Ao chegar, coçaste a cabeça encanecida,

               quiçá desiludido pela ambição de uma vida.

               A capital foi invadida por dignitários,

               só tu te vergavas ao peso de cismas.

               Quem te disse que a justiça divina é clemente?

               Afinal, já velho, cobriram-te de vexames.

               Fama que dure mil, dez mil outonos,

               Só depois de morto a ganharás!

 

   A intemporalidade universal da amizade e do teor destes poemas ocorreu-me esta manhã, ao sair da cama, quando reli esta frase de uma carta de Hannah Arendt à sua amiga Mary McCarthy, com data de 10 de março de 1975, na página que tinha deixado aberta à cabeceira: Sempre acreditei que somos o que vivemos...

 

Camilo Maria    

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Enviei a amigos a minha tradução, a partir da versão francesa publicada pela Bibliothèque de la Pléiade, do belo poema do dao original que canta a água e que, extraído do Huainan zi, inseri na minha-tua última carta. Apreciado por muitos, despertou especial curiosidade entre alguns, como o João Paiva Boléo. Vou então desvendar parte do meu esforço suplementar de aproximação ao original chinês, apesar de só ser capaz de traduzir a partir de versões em línguas europeias, dada a minha ignorância da língua sínica. Faço-o com simpatia pelo interesse manifestado - e pela diferença que as minhas versões de textos originalmente chineses têm relativamente às que ouso fazer do japonês (de que já te descrevi o processo, com recurso ao dicionário universal de japonês-português do meu velho amigo padre Jaime Cepeda Coelho (jesuíta transmontano, atrevido cidadão luso-nipónico) e a compêndios de transcrição fonética e caligrafia sino-japónica, além das transcrições em romaji (caracteres latinos), iniciada pelos jesuítas portugueses no século XVI). Da língua chinesa, nem sequer conheço os sons de leitura dos caracteres (apesar dos muitos kanji que posso ler e entender por via nipónica), o que me obriga a, quando possível, recorrer ao precioso auxílio do meu mestre (nunca o vi em pessoa, mas li-o muito) François Cheng, como mostro no exemplo exercitado abaixo. Antes, porém, e para te ajudar a melhor me compreenderes, do mesmo Cheng te deixo um pequeno trecho do seu L´écriture poétique chinoise (Seuil, Paris, 1996):

 

   Independente do som e invariável, formando em si uma unidade, cada signo fica com a oportunidade de permanecer soberano e, como tal, durar. Eis, desde a origem, uma escrita que se recusa a ser simples suporte da língua falada: o seu desenvolvimento é uma longa luta pela autonomia, e pela liberdade de combinação. (Em cartas passadas, Princesa, também procurei explicar-te estes "achados"]. Revela-se desde a origem esta relação contraditória, dialética, entre os sons representados e a presença física a tender para o movimento gestual, entre a exigência da linearidade e o desejo de uma evasão espacial. Poder-se-á falar de "insensato desafio" por parte dos chineses em manter tal "contradição", isto durante quase quarenta séculos? Trata-se, em qualquer caso, de espantosíssima aventura: pode dizer-se que, pela sua escrita, os chineses ganharam uma aposta singular, de que os maiores beneficiários foram os poetas.

 

   Na verdade, graças a essa escrita, foi-nos transmitido um canto ininterrupto há mais de três mil anos. [O Shi-jing ou Livro da Poesia, primeira seleta de cantos a inaugurar a literatura chinesa, contém peças datadas do primeiro milenário a.C.]. Esse canto, no início intimamente ligado à dança sacra e aos trabalhos do campo ritmados pelas estações, conheceu mais tarde muitas metamorfoses. Na nascente destas está precisamente essa mesmíssima escrita que engendrou uma linguagem poética profundamente original. Toda a poesia dos Tang é um cântico escrito, tanto quanto uma escrita cantada. Através dos sinais, obedecendo sempre a um ritmo primordial, uma palavra explodiu e extravasou por todo lado o seu ato de significância. Cercar primeiro a realidade desses signos, o que são os ideogramas chineses, a sua natureza específica, os seus laços com outras práticas significantes é realçar traços essenciais da poesia chinesa.

 

   Como não tenho - e assim tal qual te lo disse em cartas passadas, sobretudo quanto a traduções ou análises de textos japoneses - possibilidade de escrever aqui outros caracteres além dos nossos latinos, passo à demonstração da versão de um poema de Wang Bo para francês, feita por François Cheng, escamoteando o texto original em caracteres sínicos, mas mantendo a literal tradução do mesmo, paralelamente à versão literária final, em língua francesa, pelo mesmo autor. O título

do poema é, em qualquer língua, O Vento. Logo de seguida, apresento a minha versão portuguesa, composta a partir das duas de François Cheng, a sino-francesa, literal, e a francesa livre, literária:

 

 

Su-su / fraîches ombres naître
Accroître en moi / bois-vallon pureté
Chassant fumée / chercher torrent logis 
Roulant brume / franchir montagne piliers
Aller-venir / toujours sans trace       
Se mouvoir-s´arrêter / comme y avoir sentiment     
Soleil couchant / mont-fleuve calme  
Pour vous / susciter pins bruissement.      
Susurre le vent: ombres, fraîcheurs
Purifiant pour moi vallons et bois
Il fouille, près du torrent, la fumée d´un logis
Et porte la brume hors des piliers de montagne
Allant, venant, sans jamais laisser de traces
S´élève, s´apaise, comme mû par un désir
Face au couchant, fleuve et mont se calment:
Pour vous il éveille le chant des pins.

                                                                                                             

Num sussurro o vento faz nascer frescas sombras

e crescer em mim a pureza de bosques e vales.

Enrola em bruma o fumo dum lar ribeirinho 

e sopra-o para além dos montes próximos.

E assim num vai-vem, sem nunca deixar rasto,

ora agita ora amaina, sentindo apenas.

E ao sol poente sossega os montes e os rios,

para ti despertando o murmúrio dos pinhais...

 

 



   Eis um poema Tang no modo Lü Shi, isto é, de poesia regrada, aqui em oitavas. Em português, só pelo que gostei nessas palavras até capazes de falar caladas, em jeito de meditação silenciosa que, tal como o vento do poema chinês, nele tão só procura uma comunhão no sentimento. Traduzo, isto é, trago-te o que e o como senti.

 

Camilo Maria 

 

 

Minha Princesa de mim:

 

   A dinastia Tang (618-907) acolheu uma era de ouro da arte poética chinesa. Logo no seu período inicial (618-712) se destacam os poetas conhecidos como "Os Quatro Talentos", entre eles o "nosso" Wang Bo (650-676), de que, em carta anterior te enviei O Vento... Confesso jamais ter pensado que algum dia me apaixonaria pela poesia antiga do Celeste Império que, aliás, me invadiu, pelo gosto literário, a minha busca da imanência de Deus, no sentido da presença mística do uno inicial. Já nos meus dezassete anos traduzia, para português, Teilhard de Chardin, que em mim deixou raízes. E, na poesia solar de Sophia de Mello Breyner, cedo percebi aquilo que, curiosamente, numa entrevista, que hoje li, do jornal Público ao comunista editor da Caminho, Zeferino Coelho, este filósofo de formação afirmava: O modo como ela  [a Sophia] entende a poesia e as preocupações que estão por detrás da elaboração poética; e, sobretudo, uma tradição muito alemã, que arranca com o Novalis e que é, no fundo, a morte de Deus depois do Iluminismo, a impossibilidade de acreditar em Deus, o sentimento de perda que isso acarreta a quem isso acontece e a tentativa de, através da poesia, restabelecer essa unidade com o mundo. Ela teoriza isso. Há quase toda uma teologia na obra de Sophia.- Sendo ela católica. - Exacto , com uma contradição enorme. Uma vez atrevi-me a dizer-lhe que havia uma contradição nela. Católica e seriamente católica, acredita num deus católico, que é um deus transcendente, que cria o mundo mas está fora dele , e toda a sua poesia é a exaltação do divino como inerente ao mundo material; o divino é a perfeição da curva da onda, a elegância da haste do trigo. Na natureza e no construído pelo homem, como as colunas de Sunion. Uma das filhas dela ouviu-me dizer isso e não gostou. Mas isto está muito por descobrir e a poesia dela não é valorizada.

 

   Para me ater apenas a Teilhard e Sophia, digo-te, Princesa de mim, que, seis décadas atrás, intuí com o primeiro o que, para me servir das palavras de Zeferino Coelho, a poesia da segunda anuncia enquanto exaltação do divino como inerente ao mundo material. E posso ainda invocar S. Francisco de Assis e o seu Laudato sì, ou, do lado de lá do planeta e da nossa cultura, o François Cheng que, precisamente em Assis, percebeu essa síntese da intimidade do dao e do universo com a transcendência imanente do Deus a quem Jesus chama Pai. Em muitas cartas te falo disso, como da Estranha Ordem das Coisas do António Damásio, ou da fé como substância das coisas que hão de vir... Vejo muito maior contradição entre a visão de um Deus transcendente que, todavia, pode ir intervindo a curar maleitas, arranjar empregos ou ganhar guerras, e a ideia evangélica de que a única parte do Reino que é deste mundo é a presença de Deus no mistério inicial de tudo e na nossa comunhão com o universo, bem como no amor que soubermos partilhar.

 

  Voltando aos grandes poetas da era Tang, e em resposta a perguntas tuas, deixo-te apenas breves notas. A par de Li Bo (ou Li Bai) considera-se Du Fu, seu contemporâneo e amigo, o outro maior. Mas enquanto o primeiro, no dizer de François Cheng, era um apaixonado pela liberdade taoista, o segundo aplicava-se a empenhar a sua conduta conformemente ao ideal confucionista, o que fez dele o grande mestre do lu-shi, ou poesia regrada, complementarmente ao primeiro, que se sentia mais à vontade no gu-ti ou poesia castiça, à moda antiga. Este Li Bo, reza a lenda, gostava da boémia e bebia melhor do que gostava de provar. Talvez por isso tenha, em noite etílica, morrido afogado por ter querido agarrar a lua espelhada nas águas do rio por onde navegava. Sobre a lua e o luar nas artes e letras da China e do Japão talvez um dia te escreva uma carta. Por hoje, deixo-te tão só uma maravilhosa "quadra" de Li Bai, que livremente traduzi: 

 

               Aos pés da cama se deitou o luar,

               como fria geada a cobrir o chão.

               Ergo os olhos e vejo o esplendor da lua.

               Baixo-os e encontro a terra de meus pais.                                                      

 


Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA


Minha Princesa de mim:

 

   Na sua segunda meditação sobre a beleza (cf. Cinq méditations sur la beauté, Albin Michel, Paris 2008), François Cheng, um dos meus companheiros espirituais, exclui qualquer utilização de beleza como instrumento de engano ou dominação, pois tal seria a própria feieza (os dicionários dizem fealdade, mas eu, ao dizer beleza, não digo beldade...). E explica que sim, deve sempre evitar-se a confusão entre a essência de uma coisa e o uso que lhe possamos dar. E como isto é verdade quanto à beleza! Cito-te esta afirmação agora, porque me recorda a reflexão medieva - e os debates! - sobre estética, que Umberto Eco tão metodicamente analisou, ele que se conta entre os grandes estudiosos do pensamento medieval europeu e, neste capítulo, da filosofia estética de Tomás de Aquino. Iremos lá depois, noutra carta. Por enquanto, deixa-me recitar François Cheng: a beleza é algo virtualmente aí, desde sempre aí, um desejo que jorra do interior dos seres, ou do Ser, qual inesgotável fonte que, mais do que figura anónima e isolada, se manifesta como presença radiante e religante, que incita ao consenso, à interação, à transfiguração. Relevando do ser e não do ter, a verdadeira beleza não poderá ser definida como meio ou instrumento. Por essência, é uma maneira de ser, um estado de existência. Observemo-la através de um dos símbolos da beleza: a rosa.

 

   Curiosamente, correndo o risco de entrar em banalização, o filósofo-poeta colhe a flor, lembrando-me aquela lindíssima ária de Il trionfo del Tempo e del Disingano do Haendel, em que Piacere (o Prazer) tenta converter a si a Beleza, contra a razão do Tempo e do Desengano, personagens que sobre o Prazer triunfarão, neste primeiro oratório de Georg Friedrich Händel, ainda nos seus vinte anos, com libreto do cardeal Benedetto Pamphili, já com cinquenta e quatro de idade (em carta por te enviar falo mais dessa obra e seus autores): Lascia la spina, / cogli la rosa; / tu vai cercando / il tuo dolor... Traduzo a ária toda: "Deixa o espinho, colhe a rosa ; estás buscando a tua dor. Encanecida geada furtivamente te cobrirá, quando menos a espera o coração". Mas, já no oratório de Händel, sairá derrotado o prazer, pois o efémero escolherá a eternidade. Pensossinto, ó de mim Princesa, que sempre, a contemplação do efémero é uma cancela sobre dois caminhos: o da complacência no imediato da beldade, ou o da sublimação até à essência da beleza. Tal como diz Paul Claudel numa das suas intimíssimas Cent Phrases pour Éventails, inspiradas por haiku japoneses: Seule la Rose / est assez fragile / por exprimer / l´Éternité - pois sentimo-la, como diz Claudel ainda, e eu traduzo, um certo perfume / que só cheiramos / fechando os olhos... e... Fechamos os olhos / e a Rosa diz / Sou eu!  François Cheng vai buscar a Angelus Silesius, poeta germânico setecentista, que se filia na tradição mística renano-flamenga -que também tenho como muito minha, sobretudo por Mestre Eckhart, dominicano do século XIII, de quem já muito te falei - estes versos que livremente te traduzo:

 

               A rosa é sem porquê,

               floresce por florescer,

               sem ter de olhar para si,

               sem desejo de ser vista.

 

   Da atualidade da rosa, te posso lembrar, Princesa, traduzindo-te a abertura da primeira meditação de Cheng sobre a beleza: Nestes tempos de misérias omnipresentes, de violências cegas, de catástrofes naturais ou ecológicas, falar da beleza poderá parecer incongruente, inconveniente, quiçá provocador. Quase um escândalo. Mas precisamente em razão disso, vemos que, no oposto ao mal, se situa a beleza, mesmo na outra ponta de uma realidade que temos de enfrentar. Estou persuadido de que temos a tarefa urgente, e permanente, de encarar esses dois mistérios que constituem as extremidades do universo vivo: de um lado, o mal; do outro, a beleza. E prossegue dizendo que o mal é sobretudo aquele que o homem inflige ao homem, a beleza sendo como que uma enigmática evidência que nos espanta: o universo não tem obrigação de ser belo mas é, contudo, belo... E interroga-se sobre o que significa então a beleza para a nossa existência, procurando entender o que significa a frase de Dostoïevsky no Idiota: A beleza salvará o mundo. Chega assim a esse inescapável sentimento íntimo - que já tantas vezes nos desafiou nestas cartas - de que o mal e a beleza são antagónicos mas inseparáveis, na medida em que nesta se tende a encaixar aquele, a fazer dela uma máscara enganadora do maligno... Eis como me leva a reencontrar essa preocupação da nossa tradição greco-cristã acerca de uma qualquer hipotética dissociabilidade do vero-bom-belo. Mas não voltarei agora, Princesa de mim, ao meu outro mestre, Tomás de Aquino, que tanto se interrogou sobre a estética como fundamento da independência artística, musical e poética - se assim posso, ao jeito hodierno, exprimir-me. Nem tampouco abordarei o tema da iconofilia e da iconoclastia, nas tradições monoteístas, judia, cristã e muçulmana. Fico-me, com o nosso tão amigo François Cheng, pela meditação, em modo talvez taoista - mas tão próximo da mística e da arte cristãs que mais venero -, dessa surpresa sempre inesperada na sua permanência, talvez o laço que mais firme e fielmente nos una ao universo que é nossa morada: a beleza como raiz e devir de tudo. Aprendi muito com a minha cerejeira do Japão, que todos os anos floresce porque floresce, e não dá frutos, e cujas flores sem saber de si me encantam e me levam para muito longe quando fogem com o vento, talvez então muito mais próximas de mim comigo, porque não as tenho e apenas sou com elas, simplesmente. O efémero torna-se assim num sacramento de eternidade.

 

   Regresso por aí à meditação de François Cheng sobre a beleza e a rosa, escolho um trecho que me ocorrera ao ler um bilhete  de uma amiga minha, pintora, mulher, mãe e avó, completada pela família e pelo campo onde vive em natureza, e pelo ateliê, onde nem todos os dias são tranquilos ou gloriosos, porque até nas coisas que mais gostamos de fazer, ou que maiores alegrias nos dão, pode insinuar-se a perplexidade, um quase desânimo, talvez mesmo a tentação maléfica (?) de desistir, de destruir até. O mal detesta a beleza, tentará aniquilá-la, mas a beleza não se livra do mal pela violência de um apagão, tal não é próprio dela. Ela é positiva, criadora, não é negativa. Lembras-te, Princesa, de que já nas aulas de física, no liceu, sabíamos que um corpo frio não pode acender outro, mas um corpo quente sempre transmite o seu calor? Diz então o poeta sino-francês:

 

   Na verdade, a rosa é sem porquê, como todos os viventes, como todos nós. Se todavia um observador ingénuo quisesse acrescentar algo, poderia dizer isto: ser plenamente uma rosa, na sua unicidade, e nada mais, eis o que já constitui suficiente razão de ser. Tal exige da rosa que ela ponha em combate toda a energia vital de que está carregada. Desde o instante em que emerge do solo, o seu esteio irá crescendo como que movido por inabalável vontade. Através dele se fixa uma linha de força que se cristaliza num botão. A partir desse botão, as folhas e depois as pétalas ir-se-ão formando e dispondo, seguindo esta curva, aquela sinuosidade, optando por este tom, aquele aroma. Doravante nada a poderá impedir de aceder à sua assinatura, ao seu desejo de cumprimento, alimentando-se da substância vinda do chão, mas também do vento, do orvalho, dos raios do sol. Tudo isto com vista à plenitude do seu ser, uma plenitude posta já no seu germe, já num muito longínquo começo, podemos até dizer que desde toda a eternidade.

 

   Eis enfim a rosa que se manifesta em todo o brilho da sua presença, propagando as suas ondas rítmicas para aquilo a que aspira, o puro espaço sem limites. Nesta tarde tão cinzenta e mansamente chuvosa, estou, tolhido de dores físicas que me desafiam, conseguem irritar, mas fugirão assim que eu me cale e olhe para os campos que avisto, verdes e agradecidos à grisalha húmida que os cobre, na quietação do meu gabinete, há meia hora acompanhando o lento deslizar de um caracol que, do lado de fora, percorre vários vidros da janela que me alumia. Ao vê-lo solto da casa que transporta, esticado, mas creio que ondulante sobre a superfície lisa e transparente - que me deixa vê-lo por debaixo e, à luz pálida do dia silente, me revela o seu corpo translúcido - recordo uma do católico Claudel no seu Connaissance de l´Est, que François Cheng cita (et pour cause!):

 

      Mas o que é o Tao? ... Por debaixo de todas as formas, o que não tem forma, o que vê sem olhos, o que guia sem saber, a ignorância que é o supremo conhecimento. Seria errado chamar Mãe a esse suco, a esse sabor secreto das coisas, a esse gosto de Causa, a esse estremecimento de autenticidade, a esse leite que nos ensina a Nascente? Ah!, estamos no meio da natureza como ninhada de leitões que mamam numa cerda morta! Que nos diz Lao Tseu, se não que cerremos os olhos e ponhamos a boca na própria fonte da Criação? E fecho esta carta acentuando a sua nota intimista, com uma citação de São Bernardo de Claraval (Sermones in Cantica256): Pulchrum interius speciosus est omni ornatu extrínseco, omni etiam regio cultu... Ou seja, Princesa: A Beleza mais íntima brilha melhor do que qualquer ornamento extrínseco, bem mais, até, do que qualquer paramento régio.

 

   Mas como, em dias de penumbra pluviosa, sempre me acodem, inesperadamente, lembranças que vêm mesmo a calhar para me ilustrar o pensarsentir, deixo-te mais uma que ora me socorreu. É do filme La Strada, do Fellini (1954), quando o equilibrista louco (Il Matto) diz a Gelsomina (representada pela inesquecível Giulietta Masina): Se eu soubesse para que serve este calhau, seria Deus, que tudo sabe. Quando nasces. E também quando morres. Este calhau serve com certeza para qualquer coisa. Se for inútil, tudo o mais será inútil, mesmo as estrelas. E também tu, com essa cara de alcachofra, para alguma coisa hás de servir.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Ontem ainda, falava pelo telefone com velho amigo meu sobre o meu incómodo com a impressão que me faz uma igreja clerical, que me parece muito mais preocupada com observâncias canónicas, rituais e institucionais, do que movida pela urgência da abertura do nosso pensarsentir ao espírito de vida, que sopra tudo em todos. Nas cartas que, com alguma fidelidade e franqueza, te vou escrevendo já muitas vezes te falei da minha vivência do cristianismo como libertação de tudo o que possa entravar um caminho de comunhão com o vero-belo-bom. Esta manhã, bem cedinho, madrugada ainda, quedei-me a ler e meditar trechos de uma entrevista do quase nonagenário François Cheng, chinês só, até aos vinte anos, sino-francês paulatinamente criado, desde então, membro da Académie Française, pai de Anne Cheng, sinóloga de nomeada, professora no Collège de France. Recolhi e traduzo para ti passos da resposta de François (nome cristão que escolheu pelo exemplo de São Francisco de Assis) à pergunta do Philosophie Magazine sobre a sua descoberta de Assis, acerca da qual escrevera «C´est là que mon exil va prendre fin». Trata-se de uma conversão? - pergunta a entrevistadora Catherine Portevin. Resposta:

 

   Não totalmente, pelo menos no sentido que lhe dão Claudel ou Pascal. Se, em mim, a via taoista e a via crística não se excluem, é em razão dessa visão comum assente na ideia de Via, um processo de devir que conduz, não ao encerramento ou ao nada, mas ao Aberto. O taoismo tem uma visão organicista do universo vivo onde, animadas pelo sopro primordial e os sopros vitais que dele decorrem, todas as entidades se ligam e se sustêm. As transformações que se produzem entre elas constituem o próprio movimento do Tao-«Vida», movimento sempre puxado para cima. Esta visão de um universo em devir, nenhum chinês se dispõe a abandoná-la, seja ele taoista ou confucionista, torne-se ele budista, marxista ou cristão.

 

   Pelo que me toca, embora dizendo que desposei a via crística, devo precisar que não me situo em relação a uma instituição religiosa ou a uma crença. Trata-se de uma adesão a uma verdade de Vida incarnada. Foi tardio, na minha vida, o verdadeiro encontro com Cristo. Tal se deve, em parte, a um conjunto de factos históricos que nublaram a imagem de Cristo e, por outro lado, ao meu tortuoso itinerário, bem cedo marcado por acontecimentos trágicos...

 

   E François Cheng conta então os factos e suas traumáticas consequências que, a partir de 1937, tinha ele então apenas oito anos, o afetaram: invasão da China pelo Japão, o massacre de Nanquim, a guerra civil chinesa que se lhe seguiu até ao triunfo de Mao Ze Dong, todo um cortejo de horrores, o mal como vento a varrer vidas e bens, a apagar o próprio sentimento da dignidade humana. E prossegue:

 

   Aprendi mais tarde que a crueldade sem limite é um facto inerente a toda a humanidade. Seja como for, a minha jovem alma já sabia que nenhuma verdade de vida seria válida se não respondesse de maneira absoluta aos dois mistérios instalados nas duas extremidades do universo vivo: o mistério da sublime beleza e o do mal radical. Quando me encontrei com Cristo, disse para comigo: «Já aconteceu». O quê? Alguém veio e viveu entre nós. Disse palavras e fez gestos sem qualquer semelhança com outros, e depois, em nome duma transcendência a que chamava Pai, deixou-se pregar numa cruz. Num único ato juntou as duas pontas da verdade: afrontou o mal radical e, simultaneamente, mostrou que o bem absoluto - o amor absoluto - existe. Passou por essa morte que se revelara indispensável. Eis a sua maneira de vencer a morte: oferecer uma Via aberta ao destino humano. Nisso, ele não é apenas uma vítima expiatória, pois mudou a própria natureza da morte, transfigurou-a. Antes dele ninguém fora tão longe. Depois dele, jamais alguém irá além. Na continuidade do tempo humano produziu-se efetivamente um corte: antes dele e depois dele. Quanto a mim, sem esta resposta crística, não sei se poderia viver com o problema do mal.

 

   Se recordares, Princesa de mim, as cartas em que te falava do mal e do absurdo, da coexistência do mal radical e do bem absoluto, este só podendo ser o amor absoluto como vocação da humanidade inteira, a vida tendo apenas sentido quando a anima o amor que vence a própria morte, entenderás agora melhor a comoção profunda com que me encheram a alma e a manhã estas palavras da vocação cristã dum taoista. Por isso, com elas também, que só são minhas porque como tal as tomo, te encho esta carta. Que aqui termino, com o final da entrevista de François Cheng:

 

   A Vida é a única aventura acontecida no universo, não há mais nenhuma. Ela não nos pertence: pertencemos-lhe nós. Sem essa aventura, não seríamos. Todavia, sem nós, a aventura, privada de conteúdo, também não seria. Somos capazes de pensar o universo, porque em nós o universo pensa. Presentemente, quando até temos o poder de interromper o próprio processo vital, é grande a responsabilidade que nos compete. Será bom lembrar que como princípio a Vida é uma Via aberta e ascendente. A Morte é uma lei imposta pela Vida, para que esta possa renovar-se, transformar-se e aceder a outra ordem de ser. Aceitemos com humildade tal mistério. 

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira