Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
«Esta é a madrugada que eu esperava | O dia inicial inteiro e limpo | em que emergimos da noite e do silêncio | e vivos habitamos a substância do tempo» são versos para lá de famosos e repetidos – e com razão – de Sophia de Mello Breyner Andresen, mas embora a sua oposição ao anterior regime seja hoje bastante conhecida, a escritora marcou numa outra ocasião de grande introspecção moral – e política – uma igualmente vincada posição ética de que, todavia, todos os ensaios biográficos, estudos literários, entrevistas e artigos avulsos se esqueceram, ou quiseram fazer esquecido.
A 20 de Novembro de 1956, conjuntamente com o poeta e grande amigo Ruy Cinatti Vaz Monteiro Gomes e o advogado e jornalista Francisco de Sousa Tavares, com quem se casara havia dez anos certos – todos católicos e monárquicos ligados ao Centro Nacional de Cultura -, Sophia assinou na primeira página do Diário Popular um veemente «Depoimento» em repúdio frontal à violência soviética contra a revolta libertária húngara, esmagada duas semanas antes, e em resposta ao apelo internacional dos intelectuais daquele país.
Intervenções russas desse calibre e pinta abriram conhecidas rachas e dissensões nas fileiras «humanistas» europeias, como não podia deixar de ser, mas dificilmente se compreende que o documento que adiante se divulga – um caso sem tradição na cultura portuguesa -, não tenha sido registado ou comentado na biografia de Isabel Nery (Esfera dos Livros, 2019), e inútil se torna folhear as actas do colóquio internacional promovido pelo Centro Nacional de Cultura em 2011, ou números monográficos de revistas literárias. Tão-pouco Peter Stilwell o menciona no seu magistral A Condição Humana em Ruy Cinatti (Presença, 1995) ou dele vi sinais na recolha de textos políticos de Francisco de Sousa Tavares organizada por seu filho Miguel (Escritos Políticos, 2 vols., Figueirinhas, 1996). Maria Carneiro de Sousa também não o notou no livro subintitulado Obra de 1944-1962, precursora do Concílio Vaticano II no contexto político e eclesial português (2004), nem mesmo quando avalia os seus «pontos de contacto» com o poeta de O Livro do Nómada Meu Amigo, saído em 1958 pela Guimarães Editora, com um poema-prefácio de Sophia de Mello Breyner.
No seu livro Um Combate Desigual. Ensaios de Sociologia Portuguesa, impresso em edição de autor em 1960, quatro anos depois deste «Depoimento», Francisco de Sousa Tavares escreveu: «O totalitarismo fascista e a tirania marxista foram no mundo moderno as grandes explosões políticas duma atitude filosófica verdadeiramente anticristã. […] A democracia é o regime que exige dos homens maior nível moral; que requere educação, autodomínio, respeito íntimo e profundo pela dignidade dos outros. Sem o absoluto duma lei moral e dum direito natural, a democracia arrastar-se-á prostituída pelas ruas, à mercê da massa e do tirano. A disciplina democrática é de dentro para fora e não de fora para dentro. Tem de existir na consciência dos homens para que possa viver na consciência da cidade» (pp. 186-87).
Por omissão, cumplicidade ou indiferença – que persistem -, o libelo de Sophia, Cinatti e Sousa Tavares não terá tido reverberações na sociedade portuguesa, enfeixada também ela entre duas dominações. O antifascismo tornou-se narrativa única, e não precisamos de ler Júlio Pomar. O Pintor no Tempo de Irene Flunser Pimentel (2018) para o perceber… Mas talvez agora, relendo este depoimento, ganhem outra tonalidade os versos do poema «Exílio», que em 1962 Sophia incluiu no seu Livro Sexto, e clamam assim: «Quando a pátria que temos não a temos | Perdida por silêncio e por renúncia | Até a voz do mar se torna exílio | E a luz que nos rodeia é como grades»…
Vasco Rosa
*
A tragédia da Hungria: depoimento
1956. Crepúsculo sangrento de um ano que a saudade não conserva. Com o cair das folhas neste Outono frio e inundado de sol, a horrível tragédia de Tróia e de Cartago, o grito lancinante das cidades mortas, de novo se desdobra e clama na terra martirizada da Europa antiga.
De novo o Mundo assistiu, cobarde e quieto, ao massacre do pudonor gentil de uma raça, ao estrangulamento frio e fundo do humano grito de liberdade ou morte. Encharcada no sangue dos seus filhos, sagrada pelo martírio incrível de uma geração, a terra plana da Hungria avulta aos nossos olhos como a viva imagem da tortura moral e física do homem escravizado pelo homem, massacrado pela força, atingido na sua dignidade, na sua honra e no seu sentido de justiça.
O Zero e o Infinito. O esmigalhamento da personalidade e do sonho humano de uma cidade em que os homens sejam livres e seguros, em que a lei seja a trincheira que defende todos e cada um do monstro abstracto e sem alma em que pode degenerar o poder dum Estado político.
O grande, o inanarrável drama que sintetiza e explica para a História o século XX – o drama do poder totalitário do Estado – encheu mais um capítulo de horror na História moderna; mais uma vez o diálogo mortal do direito e da força subiu à tona do destino humano, iluminado pelos clarões de uma cidade agónica e de um povo em desespero. O silêncio pesado e brutal amortalhou os últimos clamores da festa magnífica em que um povo inteiro celebrou, embriagado, o direito de ser livre, o direito de ser senhor da sua vida, do seu destino e… do seu governo.
A Hungria morreu. Mas o sangue derramado em jorro sobre as pedras antiquíssimas de Buda e de Pest, o sangue que tingiu a água ocidental e europeia do Danúbio não pode ser perdido. Como semente de heroísmo, como módulo da determinada e estóica resistência individual à tirania da força, cimenta em cada um de nós, ocidentais e europeus definitivos, a profunda vontade de estruturar a nossa liberdade cívica e vital e a nossa cristã dignidade de homens, em termos claros e iniludíveis, em termos de repugnância instintiva a toda a forma de prepotência ou de arbítrio contra a lei.
Baudelaire dizia que o poeta não é de nenhum partido, pois se o fosse seria um simples mortal.
Independentemente de qualquer partido, as terríveis violências praticadas na Hungria põem de luto a inteligência e a alma de todos aqueles que esperavam que o seu tempo não fosse um tempo de suplícios, de traição e de mentira.
Põem de luto a alma de todos aqueles que, com a sua inteligência ou a sua arte, tentaram encontrar a verdade de um universo puro e de uma ordem real.
E, na fúria anormal e desumana com que a liberdade da Hungria é esmagada, o regime russo mostrou que não trazia em si nenhum ideal, mas unicamente política. Unicamente um partido.
E ninguém pode suportar o horror de um mundo onde um homem não é um homem mas unicamente um número que, quando convém, pode ser suprimido.
A violência e o abuso que estão sendo praticados na Hungria são o resultado natural de uma maneira de ser onde, sem respeito pela individualidade, pela solidão e pela diginidade humanas, os homens chamam uns aos outros camarada. A palavra camarada, palavra que exprime promiscuidade e desidentificação, é uma palavra que tende a destruir aquele dado essencial de toda a poesia de que cada homem é em si um valor único e insubstituível. É uma palavra que serve de máscara e de incentivo àquela antiga perversão do instinto de espécie que faz com que o homem seja o lobo do homem.
Nenhuma inteligência objectiva pode aceitar uma justificação para a repressão da revolução húngara. Nenhum poeta pode deixar de chorar sobre a esperança e a claridade destruídas.
Quisemos prestar esta homenagem à grandeza e ao heroísmo da mocidade cobardemente assassinada. Nela ressurgiu o sentido esquecido da palavra homem. E não pudemos calar o eco solitário e impotente que em nós levantou o apelo angustiante dos intelectuais húngaros; temos horror de pertencer a um Mundo em que esse grito se perdeu sem que a indignação levantasse as almas e os homens se erguessem para a morte, porque a vida fica sem destino e sem leveza quando já nada se defende nem nada se combate. Ao grito dos nossos irmãos perdidos e abandonados, a todos os heróis mortos por nós, pela nossa liberdade e pelo nosso destino, nada temos para dar além deste testemunho de admiração, de piedade e de tristeza imensa.
Não podemos aceitar o massacre de uma cidade.
Não podemos aceitar nenhuma confusão de planos entre o massacre da Hungria e a luta do Suez. Porque, nesta, a inteligência, a sensibilidade e o conhecimento histórico se podem dividir em possibilidade dialéctica. Sobre o cadáver de uma cidade martirizada nenhuma discussão é possível. E, sobretudo, não aceitamos essa confusão de planos quando ela é feita por aqueles que na literatura constantemente invocam a palavra humano, e se esquecem do homem, filho de Deus, na realidade concreta.
Pelo homem húngaro, achincalhado e morto, sem discussão e sem perdão, aos assassinos nos erguemos em claro, definitivo e revoltado protesto.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Ruy Cinatti e Francisco de Sousa Tavares Diário Popular, Lisboa, 20 de Novembro de 1956, pp. 1, 6
Nota Inicialmente publicado a 28 de novembro de 2020 no jornal digital Observador, a quem o Centro Nacional de Cultura e Vasco Rosa agradecem a possibilidade desta reprodução.
“Uma Voz na Revolução – Testemunhos e Causas” de Francisco de Sousa Tavares, com seleção de textos e introdução de Miguel Sousa Tavares (Clube do Autor, 2014) permite-nos recordar uma referência fundamental na democracia portuguesa e do Centro Nacional de Cultura.
UM CENTENÁRIO A LEMBRAR Assinalamos o centenário de Francisco de Sousa Tavares, nascido a 12 de junho de 1920, e na sua pessoa lembramos uma componente fundamental da democracia que continuamos a construir no dia-a-dia - a independência de espírito. Fora de qualquer unanimismo, a sua atitude foi sempre autónoma, livre e própria. Desde muito cedo, acompanhei o seu percurso cívico e político, cultural e humano, e olhando para trás não esqueço como o seu pensamento e a sua coerência tiveram em mim influência significativa. Sendo meu avô monárquico e anglófilo, dois fatores que o levavam a recordar na história da nossa família, a marca indelével do constitucionalismo desde 1820, foi-me possível acompanhar através dos debates da época, muitas intervenções desassombradas de Sousa Tavares, contra as lógicas transpersonalista e totalitária, em nome da dignidade da pessoa humana. Recordo o que deixou escrito na I Semana de Estudos Doutrinários (Coimbra, 1960) ou o que se encontra evidenciado no livro do mesmo ano Combate Desigual (apreendido pela Censura logo na tipografia) de “uma luta ardente e incansável pela democratização do ideal monárquico”, mas também os documentos que subscreveu, em 1959, sobre as relações entre a Igreja e o Estado e a liberdade dos católicos e sobre os serviços de repressão do regime, bem como de outubro de 1965 – o célebre documento dos 101 católicos, em prol da democratização.
«DE MÃOS DADAS COM OS PERIGOS» Como afirma o meu amigo Miguel Sousa Tavares: “Ele não nasceu politicamente em 25 de abril de 1974 e não morreu intelectualmente no dia seguinte. Estava antes e continuou depois – coisa que tantos oportunistas do 26 de abril jamais lhe perdoaram. A sua formação e o seu pensamento político não advinham nem de modas nem de adesão a movimentos coletivos e instantâneos de bem pensar – e, por isso, com inteira sinceridade e até inadvertida cautela, foi capaz de deixar escapar esta frase admirável: ‘Sempre me horrorizaram os que se servem da fé dos outros para negociarem o mundo’”. De facto, era um homem sem medo e com uma coerência, que tantas vezes parecia paradoxal. E o seu filho pergunta-se se essa ausência de medo não seria inconsciência. E lembra o belo poema de Sophia, que constitui o maior elogio a essa coragem determinada: “porque os outros vão à sombra dos abrigos e tu vais de mãos dadas com os perigos”. Não, não era inconsciência. Sabemos como fervia em pouca água. Mas também sabemos que acreditava no íntimo de si na força de ser livre e de crer na humanidade. Ele, no golpe da Sé (1959), fardado de oficial de Cavalaria para assaltar o regimento de Caçadores 5. E, no momento decisivo, empoleirado na guarita do Largo do Carmo em 25 de abril. Foi o único civil, “às horas ainda incertas da Revolução”, ao lado dos militares revoltosos da coluna de Salgueiro Maia. E quase se perdeu o que disse em poucas palavras com aquele megafone histórico. Pois bem, o que Francisco de Sousa Tavares afirmou naquela tarde de primavera, foi que ali acontecia o dia mais importante desde o Primeiro de Dezembro de 1640 e que caberia ao povo defender as promessas autênticas de liberdade e de cidadania. Mas, não podemos lembrar Francisco sem o Centro Nacional de Cultura, “palco privilegiado”, onde se bateu contra a resistência integralista, que durante anos, impediu o seu acesso a presidente. Mas, o Centro, “desde que consegui ganhar a eleição para presidente (1957), ocupou-me imenso tempo e abria as portas a grande parte da intelectualidade de Lisboa, sem que o núcleo inicial de fundadores deixasse jamais o seu rumo à deriva”. “Foi assim que consegui que na mesma sala se reunissem e discutissem personalidades tão frontalmente opostas como desde Henrique Martins de Carvalho – que como presidente da assembleia geral era um seguro de vida do Centro – a José Gomes Ferreira, a Fernando Namora, de Álvaro Ribeiro e António Quadros – que desapareceu há poucos dias (1993), deixando um rasto de saudade, pela sua doçura e urbanidade convivente – até à mocidade de então, que hoje são homens na pujança da vida, como Alexandre Bettencourt e Luís Coimbra, a Vasco Pulido Valente ou João Bénard da Costa”. Quando lemos os seus textos, primeiro reunidos por Maria Andresen Sousa Tavares e revistos por Miguel Lobo Antunes em dois volumes preciosos (Escritos Políticos) e depois antologiados em Uma Voz na Revolução – Testemunhos e Causas (2014) por Miguel Sousa Tavares, descobrimos a força dos ideais que o animavam. “A esquerda, a verdadeira esquerda, não aceita receitas; inventa, descobre, luta e vive. Senão é um cadáver” (1976).
UMA VONTADE VIÁVEL E importava acreditar num Portugal de vontade e viável: “Para que Portugal seja viável é necessário que exista um futuro para os portugueses na terra que lhes cabe” (1977). Como disse em relação ao seu amigo Jorge de Sena: “odiava o dogmatismo, as seitas, os ‘conluios da mediocridade’, que denunciava com um vigor contundente” (1978). E deste modo afirmava, com determinação: “Eu, por mim, sustento há muitos anos que a mentira, a manobra, o oportunismo não são virtudes políticas e acabam por ter um preço muito caro. E que, como alguém disse, a política é, quer queiram quer não, um capítulo da moral, Desde Aristóteles” (1979). Todos quantos o conheceram sabem que nenhuma destas palavras era para si vã. O seu patriotismo prospetivo, em vários momentos afirmado e repetido com especial veemência, pressupunha que “Governar não é gerir o passado, nem remediar o presente, é construir e moldar uma conceção imaginativa do futuro. Essa conceção é a força e a alma de um Governo” (1980). Mas a Administração Pública continuava a sofrer dos males fundamentais como “a burocracia, a irresponsabilidade e a centralização do poder de decisão”, a que se somavam a quebra da dignidade da carreira pública e a instabilidade das funções (1982)… Mas, no essencial, “a primeira obrigação do Estado” deveria ser a “defesa e a realização da liberdade. Não a liberdade de uma ideia, de um partido ou de um esquema de poder. Mas a liberdade de cada homem e de todos os homens, o total respeito pelas ideias, pelas crenças e pela dignidade da pessoas humana em face do Estado” (1983)… Se lermos com atenção os seus textos, fácil é descobrir não apenas a atualidade e pertinência, mas sobretudo a preocupação de assegurar que a democracia, aceitando a imperfeição, teria sempre de se comprometer no sentido de ser melhor, de representar os cidadãos e de defender o bem comum.
Como afirmou António Barreto no prefácio ao segundo volume dos Escritos Políticos: “Diletante, como, com desgosto, se afirmava (dizia que era o seu principal defeito), mas um grande diletante, frequentemente exaltado, tinha a nostalgia dos cavalos e da vela, que praticara na juventude. Jogava bridge com pertinácia, interessava-se pela cultura em geral, viajava por desfastio, procurava o mar e o sol, estudava com curiosidade, lia com afinco e sem constancia, conspirava, advogava sem método, fazia jornalismo sem cartão profissional (…) e tinha uma verdadeira paixão, a política”. Muito mais do que diletante, porém, era um apaixonado da vida. Sem a sua determinação, o Centro Nacional de Cultura, por exemplo, não se teria tornado o lugar marcante que pôde ser!...
«Correspondências» (2016), o filme de Rita Azevedo Gomes, parte de uma amizade e de uma fecunda relação epistolar entre Sophia de Mello Breyner Andresen, Francisco de Sousa Tavares e Jorge de Sena.
DIFERENTES E COMPLEMENTARES A cineasta usou o título no plural para deixar claro que ia além da relação assente apenas num conjunto de cartas. É uma relação complexa que está em causa. Correspondências significa encontros, pontos de contacto, identificações. Daí que o registo epistolar se misture com os poemas, os testemunhos e as missivas. Se há um diálogo, há igualmente um confronto e uma complementaridade. Como são diferentes Sophia e Jorge, mas como faz sentido a continuidade da sua presença. Usando as palavras de Maria Andresen de Sousa Tavares na Nota Prévia à Correspondência propriamente dita: «a sua dimensão poética e romanesca resultará (…) do convívio com a intimidade de um pensamento que se apresenta como se desenrolado “ao correr da pena”, ou com um modo singular de uma conversa que se crê a dois, pouco precavida (…) no seu modo de ser confidencial ou lugar de manifestação de sentimentos vitais, de natureza amorosa ou da natureza dessa raridade maior, a Amizade, talvez o mais alto e mais misterioso sentimento humano». No filme, em coerência com o que a autora tem apresentado como marca própria em obras anteriores, deparamo-nos com um percurso de vários registos, em que é, no fundo, a dimensão poética e romanesca a ser procurada, em que as múltiplas vozes procuram dar-nos com fidelidade a expressão viva do que foram Sophia e de Jorge de Sena, figuras maiores de uma geração de exceção, com modos próprios de se afirmar e de resistir. Como é forte o testemunho de Sophia, ao lado de Francisco, a dizer não ser compreensível que o regime tivesse investido na polícia e em prisões, em lugar da aposta na educação e nas escolas…
BELAS IMAGENS, REGISTOS DIFERENTES Vemos belas imagens em registos diferentes, numa cadência que nos permite ir ouvindo em várias línguas, mas sobretudo na original expressão dos próprios, o diálogo cruzado e as cartas trocadas entre Sophia e Jorge de Sena entre 1959 e 1978. O diálogo é a ilustração do contraponto entre a casa e a ideia mesma de hospitalidade, representadas pela autora do Livro Sexto – e a viagem, a distância e o exílio, permanentes e incertos, simbolizados pelo poeta de Fidelidade… Sophia viaja e regressa a casa. Sena é um andarilho impenitente. Mas é sempre a ideia de Amizade, de procura e de encontro que estão bem presentes – como se o “trobar” dos velhos trovadores medievais reencontrasse a ambiguidade etimológica da poesia, da procura e do encontro. Com grande limpidez vamos registando diversos sinais. Sophia vai recebendo mensagens e cartas, perguntas e incertezas. E a PIDE vai fazendo das suas, apreendendo cartas e vigiando tudo. Amiúde Sophia exprime o sentimento de ausência, a falta que faz não haver os almoços antigos na casa da Travessa das Mónicas. É muito mais do que aquilo que sentem “a Luiza e a Sofiazinha”…. É recorrente a referência ao vazio deixado por Jorge. Do que se trata, obviamente, é de um tempo dividido… “Caminho nos caminhos onde o tempo / Como um monstro a si próprio se devora”…E ouvimos Sophia a dizer-nos “Marinheiro Sem Mar”: “E ao Norte e ao Sul / E ao Leste e ao Poente / Os quatro cavalos do vento / Exatos e transparentes / O esquecerão // Porque ele se perdeu do que era eterno / E separou o seu corpo da unidade / E se entregou ao tempo dividido / Das ruas sem piedade”… Mas Jorge de Sena, com a sua voz forte e bem timbrada, exprime-se, num registo bem diferente do de sua interlocutora, sobre um tema que ambos muito bem conhecem: “Em Creta com o Minotauro, / sem versos e sem vida, / sem pátrias e sem espírito, / sem nada, nem ninguém, / que não o dedo sujo, / hei de tomar em paz o meu café”. A encruzilhada de percursos é, de facto, fascinante. Fascinante mas difícil, serena e agitada como a vida: “Será que a vida é a luta das imagens que não morrem?”. Dir-se-ia que aqui está a chave da obra de Rita Azevedo Gomes. De facto, a sucessão de imagens, de registos, de palavras, de pessoas tem o significado de exprimir os sentimentos vitais que subjazem à Amizade aqui retratada… Mas não é uma amizade feita de placidez, mas de combate incessante. “Eu começo a sentir-me incapaz de fazer tudo o que quero fazer. Ser ao mesmo tempo poeta, mulher do D. Quixote e mãe de cinco filhos é uma tripla tarefa bastante esgotante” (10.6.63). Sena pergunta: “Diz-me o Francisco, na carta: ‘Alguma vez aí nos encontraremos todos?’ Eu creio que sim; e creio que chamados a várias responsabilidades por aqueles que nos acusarão dos seus próprios fracassos” (1.3.63)…
«TENHO VIVIDO UM VERÃO MARAVILHOSO»… As belas imagens obtidas nos rochedos da Praia de Dona Ana são a melhor ilustração da paixão mediterrânica de Sophia. Afinal, a Grécia da sua poesia começa no Algarve, como tantos estudiosos da obra têm dito com justeza. As imagens do filme são fidelíssimas relativamente ao que sabemos das impressões das cartas e dos poemas: “Aqui em Lagos tenho vivido um Verão maravilhoso nesta luz mais que limpa, neste calor leve e doirado, nesta água verde e transparente e nas grutas invisíveis que são o mais espantoso barroco, roxas e doiradas por dentro. Em Agosto quando o mar estava liso como um chão e completamente transparente eu alugava uma chata e ia de gruta em gruta e nadava na gruta do leão e na ‘sala’ e na ‘porta do sol’ e na ‘Balança’, rodeada pelos pequenos e guiada por um extraordinário barqueiro, um pescador chamado José Vicente, que mergulhava para trazer do fundo ouriços, pedras e búzios e que nos ensinava o nome dos peixes e nos contava as mais fabulosas histórias de pesca. (…) Acho este povo algarvio maravilhoso de honestidade e dignidade e muito mais evoluído e consciente do que o povo do Norte” (22.9.1961). João César Monteiro ilustrou magnificamente tudo isto e com as suas imagens revemos Sophia a nadar de gruta em gruta e a usufruir do mais espantoso barroco dessa costa de configuração mágica. É preciso dizer que este belo filme é um ato de generosa compreensão da Amizade, da natureza e da humanidade. Quando, por exemplo, ouvimos e vemos Alberto Vaz da Silva encontramos uma presença saudosa, singular e única – e lembramo-nos da ausência de João Bénard da Costa. Para os filhos de Sophia eles eram o Tempo e o Modo, espécie de siameses inesquecíveis no mundo dos melhores cultores da poesia da mãe. Alberto conhecia bem a obra de Sophia, falava dela com ternura e saber – e a última grande viagem que fez foi à Grécia (com o Centro Nacional de Cultura, ao qual Sophia deu muito de si) seguindo os passos e a obra poética que tanto admirava. E recordava o poema profético de Geografia: “O sol rente ao mar te acordará no intenso azul / Subirás devagar como os ressuscitados / Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial / Emergirás confirmada e reunida / Espantada e jovem como as estátuas arcaicas / Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto”.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença