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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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DUAS OU TRÊS COISAS…


Francisco Seixas da Costa ao escrever Antes Que Me Esqueça – A Diplomacia e a Vida dá-nos um bom conjunto de quadros. Como salienta Jaime Gama, a seleção de textos agora vinda a lume com a chancela da D. Quixote, reflete a pluralidade quase heteronímica do autor, demarcando-se do mero anotador de acontecimentos ou telegramas, sabendo “isolar situações, caracterizar contextos, referenciar protagonistas e situar temas, questões e desafios”. Num tempo dado à superficialidade, encontramos, em cada texto, a preocupação de entender a complexidade do mundo e do género humano – lembrando a História e as mil peripécias que ela nos reserva. O discernimento para nos darmos conta do mundo perigoso que nos cerca obriga a não ficarmos pela superfície que nada esclarece e apenas alimenta a indiferença. De facto, “os seus retratos atestam verve criativa suficiente para deixar antever a alma do escritor que neles se disfarça”. Ao lermos o livro, encontramos uma laboriosa escolha de temas e problemas, que enriquecem aquilo a que estão habituados os leitores dos blogues que o autor anima. E falo no plural, porque não esqueço o finíssimo gourmet que o Francisco é, além de um arguto contador de histórias no seu imperdível blogue Duas ou Três Coisas, que recorda o célebre título do filme de Godard de 1967, protagonizado por Marina Vlady. Não se trata de um livro de memórias. É antes o produto de uma escrita solta, com episódios relatados com humor e ironia, e uma adequada dose de caricatura, evitando a crueldade fácil, incompatível com a experiência de um diplomata rodado e como conhecimento de causa. Daí a cautela em não identificar nomes e pessoas, que em nada reduz o interesse da leitura. Devo dizer que, sendo um fiel leitor da sua escrita, dei por muito bem empregado o que usufrui na leitura deste belo livro.


E lembro o episódio impagável do Senhor Ferreira da Residência do Primeiro-Ministro, antigo funcionário, de simpatia inexcedível, no auge do período revolucionário, a deixar entrar sem qualquer identificação ou diligência de segurança o jovem diplomata, que, espantado, pôde chegar junto dos membros do Governo para a entrega de um documento que era oficial, mas que poderia não o ser. E a justificação do procedimento teve-a com uma simplicidade e candura desarmantes: havia tanta gente, ministros, secretários de Estado, chefes de gabinete, secretários e secretários de secretários, ajudantes vários, que não havia qualquer possibilidade de distinguir, até porque todos eram muito parecidos uns com os outros… Noutra ocasião, ficamos com um sorriso ternurento perante o episódio ocorrido no Gabinete Português de Leitura do Rio, numa cerimónia da máxima solenidade, o Presidente Lula embevecido pela arquitetura imponente e pelas estantes recheadas com quase meio milhão de livros, com luminosidade única, deu-se a acenar levemente para alguém que devia estar num dos varandins superiores. Tratou-se, no entanto, apenas de saudar um grupo de empregadas com bata de trabalho que se haviam colocado lá no alto para verem o seu Presidente.


Num 1º de abril, o Embaixador em Paris não resistiu a lançar em ambiente adequado uma mentira piedosa, verdadeiro poisson d’avril. Cansado de ouvir histórias sobre as famosas concierges portuguesas, usou da melhor circunspeção para dizer: “Há um segredo que vos quero contar, embora peça a maior discrição. Como devem imaginar, a existência de uma imensidão de concierges portuguesas em muitas casas de Paris não passou despercebida aos nossos serviços secretos. Naturalmente, eles não podiam deixar de aproveitar o potencial que representava a existência de um grupo de cidadãs nacionais colocadas em lugares tão vitais para a obtenção de informações”. A ideia era imaginosa e não pôde deixar de causar preocupação nos circunstantes, que certamente passaram a ver com outros olhos aquelas pacatas senhoras, que deveriam ter de ser vistas com mais cuidado…


GOM

ARTUR CASTRO NEVES (1944-2014)

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Era um prazer passear com o "Kiko" (Artur Castro Neves) pelas ruas de Paris. Tinha delas uma leitura muito diferente do "turista diplomático" que eu nunca deixei de ser, olhava-as com a mirada de "vieux routier", contava a história da loja de esquina que já fora outra coisa, do andar onde vivera fulano, do bistrot onde se comia, bom e barato, algo que era sempre bem diferente dos locais que eu conhecia. Era viciado na "La Une", eu na "L'Écume des Pages". Depois das livrarias de cada um, encontrávamo-nos no Lipp. Para a semana, vou beber por lá, por ele, um Chablis que sei que apreciava.
 
Paris era a cidade para onde ele saíra em 1962, onde se licenciou em Sociologia, onde lecionou na universidade, antes de o fazer por cá. Em Paris, escreveu na "L'Esprit", por cá editaria vários livros sobre o audiovisual, o tema que o fascinava. Por lá, viveu a sua mãe, que visitava regularmente, tendo eu, por quatro anos, sido beneficiário, pelo convívio, desse seu percurso cíclico. Surgia-nos lá em casa, com o inconfundível "papillon", sempre com uma oferta, umas flores, um livro, um chocolate ou uma compota. Trazia-nos a sua visão do país em crise, sempre original, fruto de um pensamento livre, feito de mundos que decantara. Refletia o mundo a partir dele, não de uma perspetiva paroquial. Tinha amigos de excecional qualidade, que gostava de partilhar, enriquecendo-nos. Através dele conheci gente muito interessante, em Paris ou em Brasília, onde nos visitou e nos iluminou os dias.
 
Conhecemo-nos nos anos 80, em Lisboa, no Procópio, onde ele parava a espaços. Ficámos amigos num segundo. A capital, contudo, parecia-me que não era a sua "praia". Era o Porto, a sua terra, que lhe dava a identidade, aquela maneira única de estar na vida e na relação franca com os outros. O Kiko era uma espécie rara de intelectual urbano, porque não se enfronhava nas folhas, antes sorvia  o quotidiano. Tinha uma graça natural, uma agitação quase adolescente. Era adepto de uma ironia culta, frequentemente feroz. Às vezes, divergíamos, politicamente e não só. No fundo, era um jogo: "picávamo-nos" um ao outro, divertidos. 
 
O Kiko deixou-nos, na madrugada de ontem. Quis o acaso que hoje eu estivesse de passagem no Porto. Pude, desta forma, despedir-me de um amigo com quem partilhava muitas inquietações, algumas certezas e, sempre, um olhar de esperança sobre Portugal. Deixamos aqui um abraço sentido à sua Família e um beijo muito amigo à Isabel. 
 
Francisco Seixas da Costa
http://duas-ou-tres.blogspot.pt/