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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  
De 22 a 28 de abril de 2024


“Uma Voz na Revolução” (Clube do Autor, 2014). É emblemática a imagem de Francisco Sousa Tavares no Largo do Carmo a dizer que esse dia 25 de Abril de 1974 era o dia mais importante da história portuguesa, desde o dia Primeiro de Dezembro de 1640.


UMA HISTÓRIA EXEMPLAR
A Revolução de 25 de Abril de 1974 constitui um momento especial na História política contemporânea. Soma-se, no caso português, a 1820, 1826, 1834, 1836, 1851 e 1910 – datas marcantes na afirmação do constitucionalismo liberal e democrático. Para Samuel Huntington, Abril de 1974 foi mesmo o começo da Terceira Vaga da Democratização, numa perspetiva global. (Cf. Democracy’s Third Wave, Journal of Democracy, Spring 1991). De facto, entre 1974 e 1990, pelo menos em 30 países operaram-se transições para a Democracia, duplicando-se no mundo o número de governos legitimados pelo primado da lei e pela legitimidade do voto e do exercício. Para o pensador norte-americano, a Primeira Grande Vaga da democratização começou em 1820 com a conquista nos Estados Unidos do reconhecimento da generalização voto masculino, antecâmara do sufrágio universal, com a consagração até 1926 de 29 democracias constitucionais. Contudo, já em 1922, a chegada ao poder de Mussolini em Itália determinou o início de uma reversão de tendência que levou, tragicamente, até 1942, à redução drástica do número de democracias no mundo a apenas 12, na contabilidade de Huntington.


Com o triunfo dos Aliados na II Guerra Mundial iniciou-se a Segunda Vaga da Democratização que atingiu o seu apogeu em 1962 com 36 países governados democraticamente. Apesar de ter ocorrido no período 1960-1975 uma segunda reversão que reduziu a 30 os regimes de liberdade. A Terceira Vaga, que o 25 de Abril de 1974 lançou, tem expressão significativa na Europa, em especial com a transição em Espanha e na Grécia e com o impulso democrático nas Comunidades Europeias, designadamente a partir de final dos anos oitenta com os alargamentos decorrentes da queda do muro de Berlim, do fim da Guerra Fria e da abertura política ocorrida no centro e leste do Velho Continente. Contudo, a situação atual apresenta-se com especial complexidade, uma vez que assistimos a uma nova tendência de regressão, especialmente evidenciada nas tensões manifestadas quer na Europa quer na América… São evidentes hoje as incertezas ditadas pelas Presidências de Donald Trump e de Vladimir Putin, pela crise financeira de 2008, pela Pandemia Covid-19, pelos conflitos da Ucrânia e do Médio Oriente, pela ambiguidade da R. P. da China, pela evolução protecionista na Hungria e na Polónia, pelos efeitos do Brexit, num contexto de polaridades difusas no sistema internacional, que ditam a emergência de paradoxos originados por tensões entre as liberdades políticas, as ineficiências económicas, o agravamento das desigualdades e a afirmação de correntes radicais de sinal contrário, que têm posto em causa a afirmação dos Estados de Direito. A emergência de situações autoconsideradas como democracias iliberais e o desrespeito da legitimidade democrática nas relações internacionais constituem fatores que têm marcado negativamente uma evolução equilibrada e gradualista, de um pluralismo capaz de favorecer o desenvolvimento humano.


UMA CRISE A SUPERAR
Vivemos, pois, um tempo em que as democracias registam uma crise de legitimidade quer pela ausência de mecanismos institucionais de mediação, que permitam aos cidadãos sentirem-se devidamente representados e participantes, quer pela crise demográfica nos países desenvolvidos e pela pressão migratória proveniente dos países menos desenvolvidos do sul. Por um lado, temos a crise do Estado-Providência pelo desequilíbrio entre contribuintes e beneficiários dos sistemas de segurança social, por outro, há as carências de mão-de-obra para empregos indiferenciados que conduzem a uma pressão significativa ditada pelo afluxo de migrantes – com consequências na coesão social e no sentimento de insegurança. Nestes termos, a crise da Democracia tem a ver com a necessidade do estabelecimento de soluções que visem a coesão, a confiança e a estabilidade das sociedades. A sustentabilidade cultural entra, assim, na ordem dia, ligando questões diversas e complexas como a preservação do meio ambiente e as respostas ao aquecimento global, o envelhecimento das populações nos países desenvolvidos, a transição digital, a emergência a Inteligência Artificial e a desmaterialização da economia, exigindo a criação de instituições mediadoras capazes de favorecer a defesa do bem comum, a prevenção da corrupção e do desperdício e a estabilização social. 


COMPROMISSO NECESSÁRIO
Jorge de Sena, num poema de 1971, distinguiu as “verdadeiras revoluções que terminam em compromisso e as que não começam nem acabam” (Poesia III, Moraes, 1978). E foi João Fatela quem lembrou, na revista “Esprit” (1979), as duas razões que podem explicar os compromissos que ritmaram a vida portuguesa. Antes do mais a economia e a sua incerteza e ainda o desejo de salvaguardar e de estender os valores democráticos, que surgem como a conquista fundamental de Abril. Em Portugal, primeiro, houve a tentação radical e depois o compromisso europeu. E a ideia de compromisso constitucional e político apresenta uma dupla face: a estabilização necessária e um conformismo perverso. Eis o dilema. Mas o compromisso permitiu a duração e a continuidade da Democracia. Como salientou Eduardo Lourenço, a questão colonial foi o detonador da eclosão da revolução. “Quando os portugueses regressam a casa, fecham-se como os piratas sublimes com o seu tesouro imperial. E pouco importa que esse tesouro seja um verdadeiro tesouro ou apenas a lembrança de um tesouro perdido. O imaginário português não tem outro centro nem outra circunferência a não ser os desse império sonhado” (Cf. Une Vie Écrite, Gallimard, 2015). E a diáspora portuguesa assumiu toda a sua amplitude com os movimentos migratórios para as Américas e, a partir dos anos sessenta do século XX, para França e para a Alemanha. Assim, a Europa e a Democracia foram as duas faces da mesma moeda, suscetíveis de mobilizar os portugueses no sentido da liberdade necessária. Mário Soares compreendeu perfeitamente a necessidade de ligar estas duas referências num projeto político de abertura e de estabilização que designou com “A Europa Connosco”. Ernesto Melo Antunes, o dirigente militar que assumiu com exemplar coerência o caminho desde o programa do MFA até ao compromisso constitucional, teve um papel fundamental ao afirmar, em 25 de novembro de 1975, quando foi vencida a última tentativa dos militares radicais, que o pluralismo e a democracia deveriam ser defendidos com todas as suas consequências, e sem qualquer exclusão. E João Fatela afirmou: « Se a democracia não se forma sem compromisso, só o exercício coletivo da liberdade o torna possível». A grande lição de Abril, é, deste modo, o que Agustina Bessa-Luís exprimiu ao dizer: «Não se tratava de uma revolução no sentido que cada um desejava dar-lhe, como triunfo de uma classe sobre outra, por exemplo, mas de algo talvez mais profundo, como o fim de um medo milenar e do desprezo de si» («Crónica do Cruzado Osb», 1976). Esta é sem dúvida uma das reflexões mais lúcidas sobre a «revolução portuguesa».


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença