Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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A publicação de “Camões Uma Antologia” de Frederico Lourenço (Quetzal, 2024) constitui um acontecimento importante na celebração dos 500 anos do nascimento de Luís de Camões, aproximando o grande poeta do grande público e de todos os estudiosos.
Uma Antologia reunindo as passagens mais importantes de Os Lusíadas e da poesia lírica camoniana, envolvendo sonetos, canções, éclogas e demais obras significativas é uma necessidade quando celebramos o quinto centenário do mais importante poeta da língua portuguesa. Daí a importância da obra de Frederico Lourenço Camões Uma Antologia (Quetzal. 2024), que pretende responder à pergunta feita por muitos: Por onde começar a ler Camões de modo a poder apreender o significado e o lugar de uma obra fundamental, também para a cultura contemporânea? E ninguém melhor que um classicista para nos ajudar nessa diligência. Daí a importância da matriz latina na poesia de Camões, único na afirmação de um idioma falado em todos os continentes, o primeiro do hemisfério sul, com capacidade de atração multifacetada que ultrapassa em muito a dimensão textual. E importa lembrar que a origem do português está na herança dos trovadores, que um rei poeta tornou língua oficial e que a maturidade do idioma comum foi atingida por um poeta genial, que se tornou símbolo da pátria, não apenas ao cantar as glórias do passado, mas assumindo a erudição e a expressão popular enquanto marcas de uma cultura e contributos de civilização.
O CONTACTO COM A DOCTRINA Virgílio e Horácio estão bem presentes na poesia camoniana e “o que impressiona acima de tudo na poesia de Camões é a profundidade da sua cultura e das suas leituras: daquilo a que os romanos chamariam a sua doctrina”. E Frederico Lourenço insiste em que “se há poetadoctus na história da literatura que possa ser posto ao lado de Virgílio e de Horácio, esse é Camões”. E se não há prova documental da frequência do poeta da Universidade, o certo é que parece evidente o contacto com o ambiente académico através de seu tio D. Bento de Camões, cancelário da Universidade e prior dos frades de Santa Cruz de Coimbra. Além disso, Camões pode ter seguido lições do humanista André de Resende, a quem se deve a criação do neologismo Lusíadas, típico da preocupação neoclássica de encontrar raízes antigas contemporâneas da civilização romana. A verdade é que o épico teve acesso a bibliotecas, ligando intensamente a leitura e a memória. E nas Rimas revela-se um profundo conhecedor de Petrarca e dos seus seguidores em Itália e Espanha. E Os Lusíadas, desde as primeiras palavras, revelam um conhecimento profundo da Eneida e dos principais clássicos latinos. Do mesmo passo, as redondilhas das Rimas pressupõem um conhecimento seguro do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende e a dramaturgia do Autos de Filodemo, dos Anfitriões e d’El-Rei Seleuco evidencia o conhecimento certo dos modelos italianos e ibéricos. E se não encontramos em Camões nem Beatriz, nem Laura, como fixações individualizadas, há as raízes trovadorescas das cantigas de amor e de amigo, na medida velha, enriquecidas com a medida nova, trazida por Sá de Miranda. Mas, seguindo a boa lição de Jorge de Sena, a melhor atitude na leitura camoniana é a recusa da tentação biografista, apesar das “puras verdades já por mim passadas”. E quando lemos “Transforma-se o amador na cousa amada / por virtude do muito imaginar” é a inspiração de Petrarca que se nota – “l’amante nell’amato si transforme”… Há, pois, a relevância da poesia como processo criativo próprio, com reminiscências pessoais, quer para proteção da intimidade, quer como afirmação pública do valor próprio. E se há afirmação autobiográfica, ela não se encontra escondida, mas está claramente afirmada em Os Lusíadas, no Canto décimo: “Nem me falta na vida honesto estudo / Com longa experiência misturado” (154).
LIDAR COM UMA OBRA-PRIMA O genial poeta encontra-se, porém, envolto em mistério no caso mais evidente da publicação da sua obra-prima. De facto, não estamos perante uma figura ignorada ou subalterna. Camões não foi um poeta maldito. O período em que morreu, esse sim, foi de angústias e tensões. A publicação do célebre poema obteve um parecer favorável da Inquisição, o que pode surpreender, em contraste com as desconfianças depois encontradas, designadamente no comentário de Faria e Sousa, em 1640. Mas o rei Filipe I de Portugal não escondeu admiração (quiçá política) por quem sabia ser um símbolo de Portugal, em respeito com as decisões de 1581 das Cortes de Tomar… Mas é a história de um pelicano que nos fixa as atenções. Subsistem cerca de 50 exemplares da edição de 1572, iguais em quatro erros, com algumas particularidades, devidas à complexa organização dos vários cadernos que os constituem, avultando a posição do pelicano no frontispício e a diferença na expressão “E entre gente remota edificaram” e “Entre gente remota edificaram”. Deve-se hoje a K. David Jackson, Vítor Aguiar e Silva e Rita Marnoto a demonstração de que a realidade da edição de 1572 é muito mais complexa do que as simplificações que se foram repetindo. E merece atenção o exemplar que se encontra em Austin, na Universidade do Texas, com anotações do padre católico, um indiano convertido, que testemunhou a morte de Camões e que anotou no referido exemplar que o poeta faleceu no hospital sem um manto para se cobrir… Mas, como ler nos dias de hoje a obra de Camões? Ninguém duvida (…) que o seu mundo era profundamente diferente do nosso. Contudo, Os Lusíadas à semelhança da Eneida contém a semente do seu próprio contraditório. Como não encontrar em Virgílio e em Camões nas entrelinhas das obras outras vozes, distantes da lógica imperial, capazes de reconhecer uma lógica emancipadora, decorrente do significado humano da literatura? De facto, também Camões quis que ouvíssemos outra voz, além da triunfalista. “Quis que soasse no seu poema uma voz a transmitir a consciência pesarosa da limitação humana”. E aí está o Velho do Restelo, como voz crítica, com o saber de experiências feito, pondo-nos de sobreaviso para a glória de mandar e a vã cobiça. Daí o alerta do canto nono: “E ponde na cobiça um freio duro / e na ambição também, que indignamente / Tomais mil vezes, e no torpe e escuro / Vício da tirania infame”…
Recordo-me de que várias das minhas cartas à Princesa de mim, nos interrogavam acerca da fé. Duas delas me ocorreram mais profunda e assiduamente no decurso da minha presente caminhada pela areia fugidia de um deserto desconhecido, ardente talvez, todavia silencioso. Até por dentro me queima, a tal ponto que já nem gritar sei. E com silêncio, como num desafio, à minha mudez responde. Seco de recursos, só a mim pergunto o que tantas vezes implorei em versos velhinhos, como estes que compõem um dos meus Sonetos de Amor Mordido que enviei em carta à Princesa de mim, e o blogue do Centro Nacional de Cultura publicou em agosto de 2013. Rezava a carta: O amor humano é procura e sinal. Como no Cântico dos Cânticos, poderia dizer-te o grito que lanço a Deus:
No deserto cresce o meu desejo por ti tantas vezes destemido: és a minha fome e o meu pedido de ver-te, Senhor, a Quem não vejo...
Minha sede é seres, e só procuro a fonte da sede que me dás; no desejo de ti vivo e duro com sede da sede que me traz
este deserto em que sou despojo, lixo de ser, graça do teu nojo... Esqueleto ebúrneo me levanto,
branco de areia, de morte e de espanto, e de ti te grito a minha fome. E sei que te chamo pelo teu nome!
Ao evocar a definição de fé na epístola aos Hebreus (11, 1), automaticamente ela me ocorre na versão latina da Vulgata: Fides est substantia sperandarum rerum. Traduzo empiricamente: "A fé é a substância das coisas que devemos esperar". Tradução ambígua, significação ambivalente, já que substantia é o que está por baixo, ou seja, o assento ou sustentáculo, o apoio; mas também é o que constitui, isto é, aquilo de que algo é feito. Mas não será a fé isso tudo? Na respetiva tradução direta do grego, o cónego José Falcão escreve: "A fé é o sustentáculo das coisas que se esperam". O professor Frederico Lourenço, por seu turno em tradução direta do grego: "Fé é garantia de coisas que se esperam", versão próxima da francesa de Bible de Jérusalem: "Or la foi est la garantie des biens que l´on espère... Assim sendo, pode pois concluir-se que sem fé não há esperança, da qual ela é, necessariamente, a base, o sustentáculo. Mas a fé surge também enquanto garantia de bens por vir, como se, não havendo ou faltando fé, esses futuríveis não se realizassem. A partir daqui, fará pleno sentido a afirmação latina constante da Vulgata, que traduzi por "a fé é a substância das coisas que devemos esperar", ou seja, que ela é mais do que sustentáculo e sustento, sendo afinal a própria essência delas, a sua realidade atual.
Para qualquer leitor assíduo do Novo Testamento - isto é, da Bíblia propriamente cristã -, tal como para qualquer observador atento da história e escritos dos primitivos cristãos, ressalta a evidência de que a sua fé se vota e devota fundamentalmente à pessoa de Jesus Cristo. A fé cristã é, assim, a confiança posta na pessoa do Verbo feito carne, com o qual, e pelo qual, todos nos tornamos filhos de Deus. Acreditamos na palavra do Senhor Jesus, e por ela sabemos que o bem que devemos esperar, o Reino, já está dentro de nós : Interrogado pelos fariseus sobre quando chegaria o Reino de Deus, Jesus respondeu-lhes : «O Reino de Deus não vem de maneira observável. As pessoas não afirmarão "Ei-lo aqui" ou "Ei-lo ali". Pois o Reino de Deus está dentro de vós». (Lucas, 17, 20-21). A nós cabe fazê-lo crescer, somos parte integrante da sua vinda.
Quando vier o Filho da Humanidade na sua glória... ...dirá o rei àqueles que estão à sua direita: «Vinde, benditos do meu Pai, e herdai o reino preparado para vós desde a fundação do mundo. Eu tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, eu era estrangeiro e acolhestes-me, estava nu e vestistes-me, estava doente e visitastes-me, estava na prisão e viestes até mim». (Mateus, 25, 34-36)
E dizia ainda: «Bem aventurados os mendigos, porque vosso é o Reino de Deus. Bem aventurados os que agora tendes fome, porque sereis saciados. Bem aventurados os que chorais agora, porque rireis». (Lucas, 6, 20-21)
Vale a pena citar aqui a tradução, por Frederico Lourenço, dos versículos 1 a 10 do capítulo 5 do evangelho segundo Mateus:
Vendo as multidões, Jesus subiu até à montanha e, sentando-se, vieram ter com ele os seus discípulos. E abrindo a sua boca, ensinou-os, dizendo:
«Bem aventurados os mendigos pelo espírito, porque deles é o reino dos céus. Bem aventurados os que estão de luto, porque eles serão reconfortados. Bem aventurados os gentis, porque eles herdarão a terra. Bem aventurados os esfomeados e os sedentos de justiça, porque eles serão saciados. Bem aventurados os misericordiosos, porque eles serão alvo de misericórdia. Bem aventurados os puros pelo coração, porque eles verão Deus. Bem aventurados os que fazem a paz, porque eles serão chamados filhos de Deus. Bem aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.
O Reino de Deus está dentro de nós: o luto ou saudade dorida, a gentileza ou mansidão, a sede de justiça e a misericórdia, a pureza de intenções e o amor da paz, a perseverança no bem, tudo isso, com sua paixão, nasce connosco, é parte integrante da nossa contraditória condição humana. E é essencialmente a nossa fé, desde já substância do bem que um dia nos será dado. O Reino, ensina-nos Jesus, não está fora de nós, antes em nós cresce, se o procurarmos. As suas bem-aventuranças são-nos dadas, como potencialidade e chamamento. A religião cristã é simples, no sentido em que não exige grandes especulações metafísicas ou teológicas, mas tão somente a humanidade benevolente de escutarmos e nos inspirarmos nas palavras misericordiosas de Jesus. E será pelo amor aos outros que nos reconhecerão.
Escrevia estas linhas, quando um telefonema de um hospital de Torres Vedras me anunciou a morte da Isabel Maria, minha Mulher há mais de 55 anos. Na dor que me enche o coração, encontro ainda a alegria de ter assistido, durante esses anos todos, à bondade cristã de uma mulher que amava e procurava a concórdia e a paz, a justiça e a misericórdia, a visão de Deus no coração da humanidade. Foi sempre construindo um pedacinho do Reino de Deus, atenta aos sinais temporais dos bens que devemos esperar, e sempre disponível para o acolhimento, a consolação e a partilha.
Regresso agora das exéquias fúnebres e retomo a escrita. Para acrescentar apenas que escolhi a versão portuguesa de Frederico Lourenço para citar o sermão da montanha, porque gosto das expressões mendigos pelo espírito e puros pelo coração, já que me sugerem a ação do espírito e a do coração por ele movido. Essa é a lembrança que guardo da Isabel Maria, bem perto da fonte da nossa religião.
Ia-te dizendo que a eclesiologia ou tratado da Igreja começa a constituir-se como tal, e como disciplina autónoma, num período de lutas entre papado e monarcas. Congar observa, e bem, que já nos finais do século XIII e princípios do XIV se sente que um modo jurídico de discorrer vai invadindo largos sectores da teologia: Sentimo-lo até à evidência, quando passamos dos textos de São Tomás de Aquino ou São Boaventura, ambos mortos em 1274 (a caminho ou participando no Concílio de Lyon) aos textos de Henrique de Gand (morto em 1293), por exemplo, mas sobretudo aos de Guilherme de Ocam (morto em 1349/50). Achamos posições teológicas e conclusões menos determinadas por razões internas tiradas duma consideração contemplativa da natureza íntima das coisas, do que por autoridades puramente positivas, textos de decreto cujo valor mais ou menos coercivo se aprecia...
... O juridismo em teologia, em ética, em liturgia, etc., levanta a questão das condições mais positivas e mais estritas a que uma coisa possa ainda dar o nome, ser válida, satisfazer uma obrigação. [Quem se familiarizou com o método discursivo do Aquino, sabe bem a importância da distinção entre as coisas, conceitos e premissas para o progresso e a fecundidade do pensamento ou, dito doutra maneira, Princesa de mim, para se saber discorrer ou raciocinar. Mas, depois, a escolástica foi transformando esse espírito analítico num exercício de separação e dissociação, quantas vezes esvaziador de realidade]. Tal atitude dominou e prejudicou especialmente a liturgia. Favoreceu um velho instinto coisista e muito pouco espiritual, em virtude do qual as pessoas se interessam pelo rito, pela materialidade de uma prestação procurada, obrigatória, e não pela atitude pessoal profunda de quem, para além da satisfação de uma dívida, empenha o seu "coração": interessam-se pelas condições legais mínimas de validade, necessárias a estar em regra com a lei, pelo menos com a letra desta e com a autoridade, e não pelo sentido das coisas. [O escrito em itálico é sempre de Congar].
Pessoalmente, com alguma frequência pensossinto que o irrealismo - com que a igreja clerical (em que incluo não só clérigos, e nem todos, mas muitos leigos igualmente imobilistas) considera circunstâncias e questões do nosso tempo - é fundamentalmente decorrente de um conceito de Igreja como instituição sociopolítica de direito divino, dotada de poderes jud jurisdicionais e judiciais sobre todos os aspetos da vida humana, tais poderes sendo exclusivamente atribuídos a, e por, uma nomenclatura chamada "hierarquia". Coloca-se esta num plano diferente (superior), não só ao do comum dos mortais, mas ao da própria comunidade dos fiéis. Tal separação conduz ao seu desfasamento da realidade e, infelizmente e sobretudo, à degradação, e até rutura, do essencial entendimento - e diálogo dialético - no seio da comunhão cristã.
Voltando ao início de uma minha carta anterior, aperto e espremo o trecho onde vem dito «tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja!». Palavra pronunciada na sequência de uma inaudita confissão de fé, como decorre do próprio texto do evangelho de Mateus (16, 13-20), na tradução portuguesa, diretamente do grego, do professor Frederico Lourenço:
Chegando Jesus à região de Cesareia de Filipe, interrogou os seus discípulos, dizendo: «Quem dizem as pessoas ser o Filho da Humanidade?» Eles disseram: «Uns dizem João, o Batista; outros, Elias; outros, Jeremias, ou um dos profetas.» Diz-lhes Jesus: «E vós, quem dizeis que eu sou?» Simão Pedro, respondendo, disse: «Tu és o Cristo, o filho do Deus, do Vivo.» Jesus, respondendo, disse-lhe: «Bem-aventurado és, Simão, filho de Jonas, porque carne e sangue não te revelaram ´isto´, mas sim o meu Pai, o que ´está´ nos céus. E eu digo-te que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha assembleia e os portões do Hades não terão poder sobre ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus e aquilo que ligares na terra terá sido ligado nos céus, e aquilo que desligares na terra terá sido desligado nos céus». Jesus recomendou então aos discípulos que não dissessem a ninguém que ele é o Cristo.
Sempre meditei esta fortíssima bendição de Pedro como anúncio da renovação da fé no Pai Eterno, pelo reconhecimento e confissão da sua incarnação em Jesus Cristo. O que proclama o prólogo ou abertura do evangelho de João - No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e Deus era o verbo. Este no princípio estava com Deus. Todas as coisas existiram por ação dele e sem ele nem uma só coisa existiu. Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha na escuridão e a escuridão não dominou a luz - eis, precisamente, o que, segundo Mateus, Pedro responde a Jesus. E a fé de Pedro, pescador iletrado, é tão profunda, e tão profundamente clara, que não pode ter surgido do seu ser humano e carnal, mas apenas pelo próprio Deus revelada: a confissão de Pedro, como a profissão de fé de cada crente cristão e da assembleia ou reunião dos crentes que é a Igreja, proclama algo que existe nos céus desde o princípio dos tempos. O que Pedro diz, na sua resposta à pergunta de Jesus, liga o Verbo, o Cristo do Vivo, ao próprio Deus na sua realidade ontológica, que já assim era una nos céus. É evidentemente difícil, quiçá rigorosamente impossível - e sempre tentativo e ousado - procurar definir ontologicamente seja o que for: o próprio Deus, que é Ser absoluto, escapará sempre a qualquer definição. Até dizemos, ao professar, no Credo, a nossa fé em Jesus Cristo - não só na pessoa humana e histórica que Deus quis ser, mas na pessoa divina e eterna que Ele é, desde o todo sempre - Deus de Deus, Luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro... Deus é só de Deus, é já antes do princípio de tudo, é no vácuo, no meio de nada, a potência de tudo. Afinal, o início do Evangelho de São João remete-nos para o primeiro trecho da Bíblia (Génese 1, 1-3): No princípio Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra era vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, um vento de Deus revolvia-se sobre as águas. Deus disse: «Faça-se luz!"- e a luz fez-se.
Não sendo eu tradutor nem exegeta de textos bíblicos, deixo ao teu dispor a transcrição de algumas notas do professor Frederico Lourenço, tradutor dos textos evangélicos reproduzidos nesta carta. Por ordem, as duas primeiras observações referem-se aos trechos do evangelho de Mateus, a terceira ao prólogo do de João. Todas respigadas do volume I (Os Quatro Evangelhos) da tradução da Bíblia publicada pela Quetzal (Lisboa, 2016):
16,18 - «tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha assembleia»: Jesus não está a dar agora o nome de Pedro a Simão, pois já antes se dissera (4, 18) que Simão se chamava Pedro. Mateus é o único evangelista a empregar a palavra "ekklêsía" («assembleia»; mais tarde «igreja» - não esquecer que «igreja» como edifício de pedra e cal é uma realidade que não existe antes do século IV). Uma das dificuldades desta célebre passagem (lida, durante séculos, para legitimar a identidade do Papa romano como sucessor de Pedro e, por isso, único representante autorizado de Cristo na terra) centra-se no próprio anacronismo de "ekklêsía", palavra que muitos comentadores têm dificuldade em admitir que pudesse ter sido dita pelo Jesus histórico, uma vez que a ideia da existência de uma «assembleia» de cristãos pressupõe a morte e ressurreição de Jesus. Não é por acaso que, das mais de cem ocorrências de "ekklêsía" no NT, só encontramos três (Mateus 16,18 e duas vezes em Mateus, 18,17) fora do "corpus" constituído por Atos dos Apóstolos, Epístolas e Apocalipse.
16, 19 - «aquilo que ligares na terra terá sido ligado nos céus»: note-se aqui a utilização do futuro perfeito passivo (perifrástico: "éstai dedeménon"). Não é fácil determinar ao certo o sentido que Mateus pretende dar a esta construção verbal. «Aquilo que ligares na terra será aquilo que já foi ligado por Deus»? Ou tratar-se-á, antes, de sublinhar a simultaneidade do ato de ligar, que acontece ao mesmo tempo na terra e no céu? Um aspeto importante a ter em conta é o facto de «aquilo» corresponder ao pronome relativo neutro em grego: trata-se de ligar (e desligar) algo - não alguém.
Prólogo - «No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e Deus era o verbo. João inicia o seu Evangelho com uma das mais intraduzíveis afirmações alguma vez registadas por meio da palavra escrita: uma afirmação de fulminante arrojo assertivo, de sublime alcance teológico, carregada de múltiplos e complexos sentidos. A palavra-chave é "lógos", celebremente traduzida na Vulgata de São Jerónimo por "verbum" ("In principio erat verbum"), opção que condicionou desde então todos os que traduziram o quarto Evangelho para uma língua neolatina.
Não entremos agora, Princesa de mim, pela esclarecedora explicação de Lourenço sobre o facto de que, embora inescapável (por falta de outra opção convincente em português) «verbo» não é uma tradução satisfatória... Já em cartas anteriores, falando-te deste magnífico prólogo que, desde uma infância de mim, sempre considero uma página luminosa da literatura universal, te repeti que o logos grego tanto é palavra significante de um raciocínio, como a própria razão deste, isto é, o ser. Mas está bem lembrado, pelo nosso erudito professor, um trecho de Goethe:
Quem leu o Fausto de Goethe (vv.1224-1227) lembrar-se-á da cena em que o herói procura traduzir o início do Evangelho de João por «no princípio era a palavra» ("am Anfang war das Wort"), chegando de imediato à conclusão de que não faz sentido dar à palavra tão excelso estatuto. Na realidade, o que João diz ter existido «no princípio» não é só a razão na sua forma de pensamento já verbalizado, mas também a Razão em si mesma. Recorde-se que a própria palavra "lógos" já servira aos primeiros filósofos helénicos (e mais tarde aos estoicos) para designar a inteligência que preside ao universo. Um desses filósofos, também morador (como tradicionalmente se pensa de João Evangelista) de cidade de Éfeso, falou inclusive do "lógos" («segundo o qual todas as coisas acontecem») como sendo eterno (cf. Heraclito, fragmento 1). João dá ao termo "lógos" um novo sentido teológico, mais transcendente do que aquele que lhe é próprio no âmbito da filosofia grega. Deste "lógos" - desta Razão desde sempre «com Deus» que ao mesmo tempo é Deus - nos dirá o Evangelista que se tornou carne (1, 14) e tomou forma humana. É da Razão Divina encarnada em forma de homem - Jesus - e da sua passagem pelo mundo dos homens que trata, pois, este Evangelho.
Se para aqui te trago, Princesa, todas esta considerações não será apenas pela meditação que, só em si mesmas, elas merecem. Mas porque pensossinto muito aquela resposta de Pedro: «Tu és o Cristo, o Filho do Deus, do Vivo!». Só porque tal lhe foi revelado é que aquele humilde pescador galileu, sem instrução, certamente com enorme coração - no qual, todavia, até por qualquer engolida resignação ao seu estatuto social, haveria quiçá mais medos e silêncios do que ambições e protestos - perguntaria depois: «Para onde iremos, Senhor, se só tu tens palavras de vida eterna?». E deixaria a sua terra e o seu lago ou mar da Galileia, para apontar a Roma e ser crucificado. Desafiara um poder imperial, ele que não tivera nem brio nem coragem para reconhecer Jesus defronte de pobres serviçais judias... A confissão de fé de Simão Pedro, que acima registamos segundo o Evangelho de São Mateus, tem sido muito frequentemente destinada, na pregação do clero e no ensino usual da Igreja Católica para fundamentar a primazia de Pedro e a decorrente hierarquia clerical com todos os seus poderes de origem divina. À imagem e semelhança das monarquias imperiais. Muito menos se fala e proclama a extraordinária profissão de uma apocalíptica visão de Deus em Jesus Cristo! E, todavia, é esta fé tremenda que nos é revelada pelo próprio Deus, e não pela carne nem pelo sangue. Simão Pedro não teve uma aparição, uma alucinação, uma visão: Teve Quem, à sua frente, lhe perguntou: e tu, Quem dizes que eu sou?. E deu então uma resposta muito acima da sua própria capacidade, algo que antes não sabia mas ora ficara a saber, naquele momento de revelação. E é sobre essa rocha, essa fé substantiva da união ontológica de Deus, já ligada no céu, que assentará a verdade e a comunhão dos fiéis. Não, certamente que não, na instituição de jurisdições e poderes que pretendam impor e executar o que entendam ser mandamentos e desígnios divinos.
Jesus Cristo não fundou "Igreja" alguma, no sentido institucional, isto é, como se constituíram estados nacionais, a ONU, a Companhia de Jesus ou o Sporting Clube de Portugal. As primeiras comunidades cristãs eram reuniões de fiéis que confessavam a união das naturezas humana e divina na pessoa de Jesus, celebravam a eucaristia, ação de graças, pela partilha do pão, sacramento do corpo morto e ressuscitado de Jesus Cristo, e do seu corpo místico. Assim, a eucaristia era, já ela própria, sacramento de reconciliação (antes de levares a tua oferta ao altar, reconcilia-te com teu irmão), memória do sacrifício redentor de Cristo e da sua ressurreição, celebração da sempre presença do Senhor na sua Igreja, comunhão fraterna. Pode até dizer-se que, nesse sentido, a Igreja é a eucaristia comungada, não há eucaristia sem Igreja. Nem Igreja de Cristo sem abertura aos seres humanos, a começar por todos nós pecadores, para que todos encontremos respostas à vocação universal de Deus.
Frederico Lourenço, quando recebeu o Prémio Pessoa, lembrou uma conversa com Sophia de Mello Breyner sobre a sua opção pelos estudos clássicos. É da maior importância essa recordação e a proposta que lhe está subjacente, no sentido do reconhecimento da importância das Humanidades, num sentido amplo e integrador, para a compreensão das nossas raízes.
AO ENCONTRO DAS RAÍZES
A poesia da autora de Geografia e de Dual foi profundamente inspiradora para o jovem Frederico Lourenço que então dava passos decisivos relativamente à sua vocação. Houve, naturalmente, outras influências, como as muito marcantes de seus pais, Manuela e M.S. Lourenço ou a de seu padrinho João Bénard da Costa – nessa geração extraordinária de “O Tempo e o Modo” – mas o caso de Sophia foi muito especial. Ela “inventou uma Grécia própria. Não é a Grécia dos guias turísticos, não é a Grécia dos compêndios de história, filosofia ou literatura. (…) É uma Grécia construída pelo olhar dela, uma geografia anímica que tem tanto de Grécia como de Portugal” (Valsas Nobres e Sentimentais). De facto, a atração clássica, veio até Sophia dessa confluência fantástica do Mediterrâneo e do Atlântico, donde houve existência Portugal e que Orlando Ribeiro estudou com génio e brilhantismo. E Frederico Lourenço recorda o búzio comprado na ilha de Cós, onde apenas se ouvia “o cântico da longa vasta praia / Atlântica e sagrada / Onde para sempre a minha alma foi criada”. É Sophia quem fala, naturalmente, e cada um de nós sente familiaridade nessa sensação. E poderíamos recordar ainda nos Contos Exemplares as referências homéricas a Manuel Bote, banheiro mítico da Granja… Mas voltemos ao discurso do premiado e à recordação do modo desconcertante como a autora de Livro Sexto rematou essa conversa iniciática: “Só espero que não se arrependa”… Nada havia mais a acrescentar, tudo de essencial estava, porém, na ligação poética ao mar e ao “país de montanhas e navios onde os golfinhos correm quase à tona de água, onde a alegria se multiplica de ilha a ilha e sobre o qual paira a grande felicidade dos deuses de Homero” (O Nu na Antiguidade Clássica). Tudo estava dito e não dito. O amor fundamental de Sophia tinha a ver com as raízes antigas, em que os portugueses, como novos Argonautas, não poderiam ser compreendidos sem a referência aos genes que nos chegaram de Homero e de Ulisses – nosso pai mitológico...
UMA PROPOSTA SÉRIA E NECESSÁRIA
Naquele fim de tarde, na Culturgest, ao ouvirmos o galardoado, fomos transportados até a essas fontes mais distantes, onde bebemos a cultura que nos formou. E percebemos como o gérmen da cultura clássica ficou bem presente na criatividade perene do mais recente tradutor da Bíblia. “Além da inspiração que fui beber a Eugénio de Andrade e a Ruy Belo, ou a Camões e Pessoa, não tenho a menor dúvida de que o génio tutelar da minha tradução é Sophia. No fundo, o que eu tentei fazer foi traduzir Homero como se eu próprio me chamasse Sophia Andresen, embora, como eu já frisei, sem andresenizar artificialmente o texto” (Valsas…). Com especial pertinência, F. Lourenço defendeu agora ser “preciso começar o estudo do grego e do latim no ensino secundário. Enquanto isso não voltar a acontecer, a qualidade das nossas humanidades e o estudo da história e cultura portuguesas estarão no futuro seriamente comprometidos”. Esta ideia merece uma especial atenção. E não se pense que estamos perante uma sugestão avulsa de um cultor de determinado ramo de saber. Não. Do que se trata é de um apelo sério, que tem a ver com a preparação adequada dos estudantes na área essencial da língua e da cultura. O bom domínio da língua não é tema de gramáticos, é questão de cidadãos. Precisamos de saber comunicar bem, de modo a que nos entendam, a que nos entendamos uns aos outros e a que saibamos exprimir-nos com ideias claras e distintas. Não há verdadeiro diálogo se não soubermos falar e ouvir. Infelizmente, quando ouvimos tantos debates nos meios de comunicação, presenciamos monólogos maçadores e uma invariável incapacidade para exprimir pontos de vista próprios e para responder aos interlocutores.
A CULTURA COMO CRIAÇÃO
A sugestão de Frederico Lourenço é muito mais profunda, positiva e plena de consequências do que à primeira vista possa parecer. E não se julgue que tudo se poderia resolver com acrescentos curriculares. Bem sei que há sempre a tentação de colocar mais um adereço numa espécie de árvore de natal de temas. Não é disso que se trata. Impõe-se uma atitude inteligente que permita nos núcleos essenciais de aprendizagem saber integrar o conjunto e o contexto, a razão histórica, a diacronia e a sincronia, a etimologia, as regras e o método. Nesse sentido, o escritor tem toda a razão. Como poderemos entender e proteger a língua que falamos se não conhecemos de onde provém e qual a razão de ser das palavras que usamos. De facto, a qualidade das nossas humanidades e o estudo da história e cultura portuguesas estarão no futuro seriamente comprometidos se não dermos atenção as nossas raízes culturais. E insisto num ponto de que tenho feito cavalo de batalha – uma cultura aberta, consciente da necessidade de preservar o património como realidade viva, precisa de assentar numa atitude que favoreça a atenção ao que tem valor humano, assegurando o cuidado relativamente ao que recebemos dos nossos ancestrais. Só haverá atenção e cuidado se estivermos despertos. E as humanidades têm a ver com as letras e as artes, mas também com a matemática, a cultura científica e a importância do método experimental. Não se trata de dizer que tudo tem lugar, mas de compreendermos que a complexidade do mundo contemporâneo obriga à complementaridade de conhecimentos e de perspetivas. Mais do que da especialização, vivemos a era da cooperação de saberes. Na última crónica falávamos de Damião de Goes e de José Mariano Gago. Não podemos esquecer que os gregos referiam a “paideia” e os romanos a “humanitas”. E temos de nos lembrar das artes liberais da Idade Média: o Trivium, abrangendo: lógica, gramática e retórica; e o Quadrivium, com aritmética, música, geometria e astronomia… Se lembro isto mesmo não é para desfazer fronteiras e enfraquecer as ditas ciência sociais, mas sim para evitar o fechamento e garantir o encontro, a inter e a transdisciplinaridade. Sobre Oxford, que Frederico Lourenço conheceu desde tenra idade, encontramos, como se fosse uma metáfora sobre o diálogo entre o conhecimento e a vida: “é indesmentível que Oxford parece propiciar esse constante esmaecimento de fronteiras entre o literário e o factual, sobretudo quando o olhar que perceciona a cidade é, já de si, atreito a substituir a realidade que tem à sua frente por imagens e projeções livrescas”. A valorização das humanidades é, no entanto, o favorecimento de um combate constante e sereno contra a mediocridade e a ignorância. Não se trata de fechar conhecimentos sobre si mesmos ou de ignorar que a educação para todos obriga, nas suas profundas diferenças, a compreendermos a subtileza das relações entre cultura e vida e que não podemos confundir pessoas e robôs. A presença dos clássicos ajuda certamente.
Os amigos que te referi, na carta anterior, é que me apontaram todos esses dogmas de que falo, bem como o da infabilidade papal. Para mim, este é um decreto datado, claramente decorrente de algum pânico clerical perante a crescente subversão do poder das autoridades eclesiásticas sobre as consciências, devida ao desenvolvimento do livre pensamento e do espírito crítico laico. De pouco ou nada serviu, e até eminentes teólogos e santos bispos se sentiram inconfortáveis com ele.
Quando recito o Credo de Niceia, confesso que Jesus Cristo nosso Senhor foi concebido pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria. Tal conceição virginal não consta da tradição joanina, nem dos textos paulinos, nem do evangelho de Marcos, o mais antigo escrito evangélico, redigido em grego para a instrução de pagãos sem conhecimentos de cultura judaica. Consta, todavia, dos chamados "evangelhos da infância", os de Mateus e Lucas. O primeiro, feito para judeus e para lhes demonstrar que Jesus Cristo é, na verdade, o Messias prometido pelas Escrituras, começa, aliás, pela genealogia de Jesus, desde Abraão a David, deste ao exílio em Babilónia, e daqui até José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo... ... O nascimento de Jesus Cristo ocorreu deste modo. Estando sua mãe Maria desposada com José - e antes que eles tivessem consumado o casamento - ela foi descoberta como tendo [concebido] no ventre a partir de um espírito santo... ... Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que foi afirmado pelo Senhor através do profeta, ao dizer: eis que a virgem terá no ventre um filho e o parturirá; e chamá-lo-ão pelo nome de Emanuel, o que significa Deus connosco. (Mateus,1, 18 e seguintes, na tradução de Frederico Lourenço. Em grosso, Isaías, 7, 14). Neste evangelho, se virmos bem, a anunciação surge feita pelo anjo a José. Só em Lucas (1, 26 e seguintes) aparece o relato da Anunciação a Maria, com a virgindade desta assim atestada (Lc. 1, 34-35, trad. de FL): Disse Maria ao anjo: «Como será isto, uma vez que não conheço homem?». E o anjo, respondendo, disse-lhe: «Um espírito santo virá sobre ti e o poder do altíssimo te sombreará. Por isso, o concebido é santo e chamar-se-á filho de Deus». E logo a seguir Gabriel lhe diz que Isabel, sua parente, estéril e já idosa, está grávida de seis meses e dará à luz João Baptista. A comparação de ambos os "milagres" ajuda-nos a melhor entender o significado da Virgem Mãe na fé profunda e na devoção cristãs. Já São Paulo (Romanos I, 3-4) nos aponta o "mistério": surto da linhagem de David segundo a carne e estabelecido Filho de Deus com poderio segundo o Espírito de santidade pela ressurreição dos mortos... Se a Ressurreição de Jesus Cristo o afirma como Filho de Deus, a sua Conceição terá de estar em linha com essa afirmação: será pois concebido pelo poder de Deus, por uma virgem. É inesperadamente novo, o Deus feito homem. Os relatos de Mateus e Lucas devem, portanto, compreender-se de uma perspetiva mais cristológica do que mariana. Na tradição judaica, os heróis de Israel são dados por Deus ao seu povo, quase sempre pelo milagre do parto de uma mulher estéril ou idosa que, todavia, terá tido, para o efeito, relação sexual com seu marido: Isaac, Jacó e Esaú, José e Benjamim, Sansão, Samuel... O mesmo sucederá com João Baptista. Mas que eu saiba, apenas o exemplo de Melquisedeque, contado no Livro dos Segredos de Enoque - que não é bíblico - será exceção: nesse caso, aliás, não deparamos, nem com uma conceição milagrosa (a mulher estéril que concebe um filho após uma relação sexual determinada), nem com uma virgem, mas com uma estéril não virgem, sem relação procriadora apontada. Diz o texto do Livro dos Segredos: Sofonim, a mulher de Nir, estéril e que não lhe tinha dado filhos, estava já na velhice e às portas da morte, e concebeu em seu ventre; ora Nir, o sacerdote, não tinha dormido com ela desde o dia em que o Senhor o tinha posto à cabeça do seu povo. A conclusão de Nir e de seu irmão Noé foi: Isto é obra do Senhor, meu irmão!
O profeta Isaías (7, 14) dirá: Por isso o Senhor vos deixa um sinal: eis que a jovem [almah, em hebraico] está grávida e conceberá um filho e lhe dará o nome de Emanuel. Em Mateus e na tradução de Isaías na Bíblia dos Setenta, o hebraico almah será,em grego, parthénos, isto é, virgem. Há aí, claramente, uma afirmação teológica que se exprime pela imagem forte da conceição por uma virgem: a Incarnação de Deus é o início do triunfo da vontade divina sobre o mal, triunfo que se consumará gloriosamente na Ressurreição. Jesus não é um herói, um super-homem que o Senhor oferece ao seu povo. É o Emanuel, o próprio Deus connosco. Não esqueças, Princesa, que, no Credo, professas que crês em Deus Pai todo poderoso... ...e em Jesus Cristo seu Filho unigénito, nascido do Pai antes de todos os séculos... ...Deus de Deus... ...gerado não criado, consubstancial ao Pai... ...que por nós, homens, e para nossa salvação desceu dos céus e incarnou, pelo Espírito Santo, no seio de Maria Virgem. Fez-se homem como nós, Ele que era antes de nós. Se a mulher em que tomou forma humana fora isenta do pecado original (e não será este uma parábola de explicação do mal?) parece-me questão de somenos importância, antes serão desvelos de devoção mariana ou especiosidades teológicas. Aliás, repensando, não poderia o Salvador ter sido concebido no seio de uma mortal ainda sujeita ao pecado original (se este tiver mesmo substância), não terá o resgate começado pela incarnação de Deus? Durante toda esta quadra, que hoje se encerra com a festa da Epifania, todos os dias tenho contemplado o mistério do Natal de Deus entre os homens. E tal mistério desafia qualquer ciência. Resta-nos contemplá-lo, até ao apocalipse, dia da revelação final. Intuindo, como Frederico Lourenço, que nos cabe, a nós, seres humanos, sermos a refração da luz de Jesus.
Essa luz é, simplesmente, a do mandamento novo: amai-vos uns aos outros. E tu, Princesa de mim, que há tantos anos me conheces, sabes bem como pensossinto que o mundo já nos torna as vidas tão complicadas... que será certamente de Deus a graça de um sorriso que nos anime.
Já te falei na tradução, para português, diretamente do original grego, da Bíblia Grega que, além de grande parte da chamada Bíblia dos Setenta - textos vertidos para a língua helénica, na judeo-helenística Alexandria, por sábios judeus, a partir de originais hebraicos - inclui ainda outros livros da Bíblia Hebraica acolhidos pelo cânone católico, mas que foram originalmente redigidos em grego, tal como todos os vinte e sete do Novo Testamento. Tradução portuguesa esta empreendida pelo conceituado professor catedrático de Coimbra, especialista em cultura clássica, Frederico Lourenço. A publicação desta Bíblia em versão direta do grego para o português inicia-se pelos quatro evangelhos. Adquiri e li um exemplar desse primeiro volume da obra. Nada digo, nem me pronunciarei, sobre a qualidade da tradução: o Professor Frederico Lourenço conhece infinitamente melhor o grego clássico do que eu. Como e calo. Ponto final. Por outro lado, devo dizer-te que concordo com uma observação de Paulo Mendes Pinto, da Universidade Lusófona, publicada na edição do Jornal de Letras de 23 de dezembro de 2016: Com o trabalho de Frederico Lourenço, passamos a ter mais que uma nova edição da Bíblia, passamos a ter uma edição descomprometida de uma visão religiosa. Não que para a História da Bíblia toda e qualquer ligação religiosa não seja importante, mas hoje, mais que nunca, urge perceber que ela é um património que não se esgota no campo da crença e das afirmações de fé.
E, já agora, deixa-me acrescentar que, tratando-se de uma tradução literária criteriosa, exercitada através de uma colocação dos textos na cultura em que foram produzidos e na gramática da língua em que foram escritos, o trabalho científico do seu autor não impede o mesmo, nem o leitor, de, no seu próprio foro interior, despertar para qualquer sentimento religioso. Aliás, testemunho claríssimo disso é o que Frederico Lourenço diz em página de Diário, editada no mesmo número do Jornal de Letras. E fá-lo com uma franqueza honesta, apetece-me dizer que é very candid, como os ingleses se referem a alguém muito franco e verdadeiro. Irei todavia respigar três passos desse texto, que o autor intitulou Até ao fim da rua. Por perspetivas diversas, qualquer deles toca em questões que, volta e meia, me ocorrem e te tenho confiado. Mas vamos aos textos de Frederico Lourenço, pois falam por si e revelam o seu próprio enquadramento:
1. Existe, por exemplo, toda uma bibliografia curiosíssima que procura demonstrar que Jesus nunca existiu. Os modernos paladinos dessa teoria - só vale a pena nomear os menos irrazoáveis, como Robert Price ou Richard Carrier - são no fundo herdeiros de ideias que já vêm desde o Iluminismo francês, quando Charles Dupuis começou a publicar a sua "Origine de Tous les Cultes ou Réligion Universelle em 1793. No entanto, os padrões pagãos nos quais esses autores procuram encaixar Jesus são tão forçados! E quem diz Jesus, diz outras figuras que o Novo Testamento nos dá a conhecer: desde logo, Paulo. Para alguém que, como eu, conhece bem a Cultura Grega clássica, não é imediatamente óbvio o paralelismo Perseu / Jesus, Adónis / Jesus, ou Penteu / Paulo que estes autores querem "provar", explicando assim as narrativas do Novo Testamento como invenções baseadas em mitos pagãos. Quando um autor como Price afirma que Paulo na estrada de Damasco é uma recriação imaginativa da tragédia grega "Bacantes", alguém que conhece bem a referida tragédia na língua original dificilmente se pode deixar convencer.
2. Há um poema do Fernando Assis Pacheco que diz: "Um homem tem que viver [...] / Tem que viver / cheio de luz". Sempre fui apologista da luz e inimigo do obscurantismo. No Evangelho de Mateus (5:14), Jesus dirige à raça humana uma frase para mim enigmática: "vós sois a luz do mundo". Em nenhum outro evangelho é atribuída esta frase a Jesus. No Evangelho de João (8:12), são-lhe atribuídas palavras aparentemente contraditórias relativamente à frase de Mateus: "eu sou a luz do mundo". Mas não há contradição, a meu ver. Cabe-nos a nós, seres humanos, sermos a refração da " luz de Jesus" - do mesmo modo que nos cabe passar a distribuir o amor que, segundo a 1ª Carta de João, Deus é. Olharmos para o mundo e ver em cada noticiário a refutação da frase "Deus é amor" (o que se passa na Síria, meu Deus!) não é mais do que a medida do falhanço humano. Cabe às pessoas humanas fazer esse trabalho de Deus, criar a corrente de amor, a corrente de luz. É por questões assim que continuo sempre a achar que a mensagem de Jesus é tão válida para crentes, como para pessoas de outras religiões, como para ateus. É uma mensagem para o mundo inteiro. Acho que precisamos de Jesus.
3. Ao motivo do feriado de hoje [8 de dezembro de 2016] já falta o universalismo em que pensei ontem. Só um católico muito devoto poderá encontrar sentido na ideia da Imaculada Conceição de Maria. Muitas igrejas herdeiras da Reforma luterana viram, com desânimo, a oficialização deste dogma no século XIX como algo que veio acentuar ainda mais a divisão entre católicos e protestantes. Ainda me lembro como fiquei espantado, da primeira vez que li o Novo Testamento de fio a pavio, de não encontrar qualquer sustentação bíblica para realidades teológicas que eu achava que estariam na Bíblia (entre elas o motivo do feriado de hoje).
Curiosamente, por esses dias, almoçava eu com velhos amigos, todos filhos de famílias da velha nobreza portuguesa, católicos devotos, também homens do nosso tempo, atentos a formulações e interrogações. Subitamente, um deles, jurista de formação e gestor financeiro, perguntou-me o que eu pensava da enunciação de certos dogmas, hoje em dia, pela Igreja Católica. Referia-se a homilias e artigos recentes que, precisamente, lhe pareciam corroborar afirmações que talvez já não devessem ser interpretadas como se tivessem existência intemporal, nem, muito menos ainda, como se não pudessem ser datadas e lidas no seu contexto cultural e histórico.
Remeti-me, primeiro, para considerações de ordem geral: a proclamação de dogmas surge muito em função de clarificar uma fé comum, isto é, de manter uma unidade comunitária, ou união eclesial: exemplo paradigmático disso é o Credo, o Símbolo dos Apóstolos, o do Concílio de Niceia que, aliás, com o imperador Constantino, em 325, proclamou,sobre todas as igrejas locais, a Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica. Católica em sentido contrário a sectária, antes porque universal. Por isso estava em sínodo ou concílio, isto é, se reunia. A minha fé católica professa-se aí, nada lhe retiro nem acrescento. Outros dogmas foram depois proclamados pela "autoridade" eclesial, sobretudo quando esta pareceu poder romper-se por desacordos de partidos acerca do que, em muitos casos, mais não eram do que devoções que ganhavam força em certos sectores da Igreja.
Exemplos disso são dogmas como os da Imaculada Conceição de Maria - aliás frequentemente confundida com a sua virginal conceição de Jesus. Doutores da Igreja, como São Tomás de Aquino, recusavam a conclusão teológica da Imaculada Conceição. Claro que se, séculos mais tarde, quando o dogma foi declarado, o bom teólogo ainda fosse vivo, aceitá-lo-ia... tal como eu o aceito, ou seja, não fazendo dele condição necessária da minha confissão católica. [Mas, provavelmente, tampouco aceitaria que a confissão da fé cristã, ou de qualquer dogma católico, pudesse ser imposta em nome de uma Igreja que Jesus Cristo não fundou como instituto jurídico, mas convocou, eucaristicamente, como corpo de amor fraterno e ressurreição]. Tal dogma, dizia, não está no Credo, tal como ausentes estão a Assunção de Nossa Senhora - que também não tem relato bíblico canónico, mas nasce de uma devoção popular e seu imaginário, e de especulação "teológica" - nem sequer a Transubstanciação, resultado de um processo mais complexo que, aliás, no século XVI, as querelas entre Reforma e Contra Reforma levaram a polémicas escolásticas hoje difíceis de entender. Resumindo o que pensossinto, dir-te-ei que a consagração do pão eucarístico não é um ato de magia ou ilusionismo, o pão não deixa de ser materialmente pão, o Corpo de Cristo é um Corpo Místico, a Comunhão dos fiéis que, partilhando o pão de cada e todos os dias, continuam a tornar presente e eficaz a vontade de reconciliação que Jesus Cristo trouxe e que o levou ao sacrifício da própria vida. Pessoalmente, não sou adepto das chamadas "exposições e adorações do Santíssimo", por me parecerem - para o meu gosto, repito - mais práticas idolátricas (no sentido de pretenderem consubstanciar numa materialidade um ser espiritual) do que atos de comunhão fraterna e reconciliação universal, com Deus e os homens, com Cristo, por Cristo e em Cristo. Formulando assim o meu credo e a minha devoção, não quero, nem devo, fechar o coração aos que de outro modo melhor possam sentir o Mistério Pascal. Cada um de nós tem as suas devoções, penso que a única exigência comum a todas é que, antes de rezarmos, devemos reconciliar-nos com os nossos irmãos, pois qualquer oração cristã é um ato de comunhão. Na minha próxima carta continuarei a conversa encetada há dias com aqueles amigos meus.