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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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PROFUNDÍSSIMA E REVERENDÍSSIMA REFORMA

 

1. Participaram dois cardeais, duas dezenas de bispos, muitos fiéis, entre os quais o Presidente da República, na Sé de Braga completamente cheia. Foi no passado dia 10 deste mês de Novembro, na canonização de Frei Bartolomeu dos Mártires, antigo arcebispo de Braga. Marcelo Rebelo de Sousa disse o essencial: “Foi um bispo reformador, pobre e amigo dos pobres, pastor, intelectual e, dos pontos de vista teológico e sociológico, um homem muito à frente do seu tempo.”

 

Nesse mesmo dia, o Papa Francisco, na recitação do Angelus, disse dele que foi “um grande evangelizador e pastor do seu povo”. Pessoalmente, não duvido de que, se vivesse hoje, Frei Bartolomeu dos Mártires seria um apoiante firme de Francisco e das suas reformas, de que foi aliás precursor. Se vivesse hoje, aplaudiria, com todo o coração e inteligência, Francisco, pois foi com um Papa como ele que terá sonhado. Não se pode esquecer que, no encerramento do Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI ofereceu a cada um dos bispos uma das suas obras, o célebre Estímulo dos Pastores. Na sua essência, uma canonização só pode ter por finalidade apresentar um modelo de vida a seguir, e não há dúvida de que Frei Bartolomeu dos Mártires é um exemplo vivo de pastor para todos os pastores. Ele foi, pela sua vida e pela sua palavra, com desassombro e frontalidade, uma das figuras mais eminentes para a reforma de uma Igreja que, no século XVI, atravessava uma profundíssima crise. Não pregou só pela palavra, pregava pelo exemplo. Quando confrades dominicanos e outros o tentavam demover dos rigores que a si próprio se impunha, respondia: “Permanecerei contumaz numa única coisa: conservar-me-ei afastadíssimo de todo o fausto e esplendor da casa e da família. Hei-de manter como bispo a mesma humildade e cuidado do meu corpo, na mesa e coisas semelhantes, que observei como frade. Nenhuma força me desviará deste propósito.”

 

2. Nasceu em Lisboa, na freguesia dos Mártires, onde os pais, pessoas piedosas e abastadas, viviam, em 1514. Tornou-se dominicano e, convidado a assumir a arquidiocese de Braga, por três vezes disse não à rainha, reafirmando que renunciara às honrarias do mundo. Foi por obediência ao Provincial da Ordem que acabou por aceitar tornar-se arcebispo de Braga.

 

O poder não o deslumbrou. O seu biógrafo, Frei Luís de Sousa, conta que numa das suas visitas pastorais durante o Inverno — não se deve esquecer que, na altura, o território da Arquidiocese de Braga abrangia o que hoje são quatro Dioceses: Braga, Viana, Vila Real e Bragança — deparou com um miúdo que guardava o rebanho. “Ofereceu-se-lhe à vista, não longe do caminho, posto sobre um penedo alto e descoberto, ao vento e à chuva, um menino pobre e bem mal reparado de roupa, que vigiava umas ovelhinhas que, ao longe, andavam pastando. Notou o arcebispo a estância, o tempo, a idade, o vestido, a paciência do pobrezinho e viu juntamente que, ao pé do penedo, se abria uma lapa que podia ser bastante abrigo para o tempo. Movido de piedade, parou, chamou-o e disse-lhe que descesse abaixo, para a lapa, e fugisse da chuva, pois não tinha roupa bastante para esperar. — Isso não, respondeu o pastorinho, que em deixando de estar alerta e com olho aberto, vem o lobo e leva-me a ovelha, ou vem a raposa e mata-me o cordeiro.”

 

No caminho, comentou como este miúdo era exemplo para ele: “Este esfarrapadinho ensina Frei Bartolomeu a ser arcebispo. Este me avisa que não deixe de acudir e visitar as minhas ovelhas, por mais tempestades que fulmine o Céu. Que, se este, com tão pouco remédio para as passar, todavia não foge delas, respeitando o mandato do seu pai mais do que o seu descanso, que razão poderei eu dar se, por medo de adoecer ou padecer um pouco de frio, desamparar as ovelhas, cujo cuidado e vigia Cristo me confiou quando me fez pastor delas?”

 

A divisa que adoptou e sempre o norteou como bispo foi: “Ardere et Lucere” (Arder e Iluminar). E foi-lhe fiel, preocupando-se continuamente não só com as necessidades espirituais do seu rebanho mas também com as necessidades materiais, chegando a vestir e alimentar 400 pobres, distribuindo alimentos às famílias carenciadas e cuidando dos doentes.

 

3. Ficou famosa a sua presença na terceira e última fase do Concílio de Trento. E, aqui, sirvo-me da comunicação do académico Aires do Nascimento na Academia das Ciências de Lisboa.

 

Saiu de Braga em 1561, tendo percorrido 2200 km de Braga a Trento, durante 49 dias. A fama da sua participação no Concílio provém do seu exemplo de humildade, do seu saber teológico e do combate corajoso a favor das reformas que se impunha operar na Igreja. A trave mestra do seu pensamento era a instauração de “poder pastoral” por parte dos bispos, a partir da transformação do homem interior, despojado de honrarias e de bens materiais, “capaz de repartir as riquezas do corpo e da alma”. Não eram precisos mais dogmas: o que se impunha com urgência era a reforma eclesiástica, programada segundo “padrões de piedade e de mudança de costumes”. A caminho de Trento, foi-se apercebendo do descalabro em que mergulhara a cristandade, constatou que a crise da sua Diocese não era caso único, convencendo-se, por isso, cada vez mais, da urgência da reforma: com humildade, sentiu que — palavras dele — “está o mundo de maneira, cá, que convinha que andássemos todos descalços e com cilícios”.

 

Até o Papa quis ouvi-lo em privado, ainda que poucos tenham seguido os seus conselhos. Mas não hesitou em verberar a vaidade, o fausto e a ostentação dos eclesiásticos. Denunciou de modo veemente a Cúria Romana que, escreve Aires do Nascimento, “se burocratizou e se valia de expedientes para assegurar dinheiro que se tornara necessário para manter serviços inúteis”. Perante clivagens e críticas, não esmoreceu em zelo e apelava para o direito divino que opunha às tradições romanas: “Invocando autoridades consagradas, aos bispos que não cumpriam as suas obrigações pastorais, nomeadamente o dever de residência e de visitação, não hesitava em compará-los a meretrizes, por apenas se interessarem com usufruir de benefícios materiais.” Sobre as reformas urgentes e se os cardeais também precisavam delas, respondeu: “Vossas Senhorias ilustríssimas são as fontes de onde todos bebemos e por isso impõe-se uma profundíssima e reverendíssima reforma”.

 

Ainda sobre os cardeais escreveu: “Não se elejam senão aqueles que se destaquem pela excelência de vida e doutrina. Entre o seu número, escolham-se alguns maximamente idóneos que com o Papa governem a Igreja.” Quando lhe mostravam “os faustosos palácios e jardins que permitiriam convívio regalado, respondia que melhor fora preocupar-se com os pobres e que, mais que resguardar-se em edifícios sumptuosos, importava visitar e cuidar dos desamparados e acolhê-los nas dependências vazias.”

 

4. Pediu a renúncia, invocando 22 anos de serviço intenso, e o rei acedeu. No dia em que recebeu a autorização do Papa, regressou ao convento, para viver numa cela como se fosse o último dos frades. O povo chorou a sua partida, mas para ele era uma alegria: “Perdoai-me se me aparto de vós com alegria, porque é só porque sempre me achei indigno de ocupar a cadeira. Não me levam amores novos nem vos deixo para servir outro ou amar outra mais do que a vós, senão porque desejo que venha outro que supra os meus defeitos, emende as minhas faltas.”

 

Morreu em Viana do Castelo em 1590, tendo sido a formação do clero outra das suas preocupações fundamentais. Aires do Nascimento sintetiza: “Procurava viver na ascese de quem vivia do interior, mas sabia sobretudo inteirar-se dos mais necessitados (de corpo e de espírito), sem lhes regatear acolhimento... Dera ele testemunho de vida pelas demonstrações de humildade, de desprendimento pessoal e de piedade sincera para com Deus e de devoção para com os homens.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 24 NOV 2019

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Conta frei Luís de Sousa como o papa mandou chamar o arcebispo e das honras que lhe fez, e de algumas particularidades que teve com ele, e da facilidade e amor com que o tratava [o itálico reproduz o título do capítulo XXII do Livro II da Vida de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires]. Deste respigo o trecho seguinte:

 

   Levou-o um dia consigo passeando até o jardim famoso dos papas, que chamam Belveder; e, mostrando-lhe as obras que se iam fazendo, disse-lhe, sorrindo-se, como quem lhe sabia já o humor, porque não fazia lá na sua Braga uns paços como aqueles? -  Santíssimo Padre -  respondeu o arcebispo - não é de minha condição ocupar-me de edifícios que o tempo gasta.  Não ignorava o papa que havia de ser esta a resposta, e, contudo, tornou a instar e disse: - Pois que vos parece destas minhas obras?  Então, com maior energia, respondeu:

 

   - O que me parece, Santíssimo Padre, é que não devia curar Vossa Santidade de fábricas que, cedo ou tarde, hão de acabar e cair. E o que digo delas é que, de tudo isto, pouco e muito pouco e nada, e do edifício temporal das igrejas seja mais do que se faz; mas no espiritual, aí sim, que é razão ponha Vossa Santidade toda a força e meta o cabedal de seus poderes.

 

   Lembro-me bem de te ter já contado esta história, em carta remota. Repito-a agora, não só como testemunho da minha contínua fidelidade à leitura e memória dos nossos escritores antigos, mas por me dar o ensejo de pegar, de outro modo, no fio da nossa divagante conversa acerca de história, língua e "identidade" nacional. Esta, enquanto ser, é a comunhão de todos num ideal de solidariedade, ou seja, de união possível, com justiça e paz. Todos temos na vida altos e baixos, melhores e piores momentos, bem feito e mal feito, e omissões, mais ou menos conscientes, quer de um,quer de outro. Lamentar ou vangloriarmo-nos do nosso passado nacional, de pouco, muito pouco ou nada serve: o que nos transforma é um novo olhar sobre a vida e os outros, um olhar mais lúcido e a querer bem. Agora já, neste nosso momento de vida. Não te esqueças, Princesa, de que actualis, em latim, quer dizer ativo. Sabes com que gosto visito e revejo monumentos e obras outras de arte que nos testemunham o engenho criador de tantos que, antes de nós, por cá andaram e procuraram vencer a imperfeição... Livro-me sempre de condenar, ou sequer censurar, a despesa que terão custado, nem me parece que a remuneração do meritório esforço de um artista possa ser, só por si, motivo de escândalo, se não esquecer que é tão justo remunerar o mérito do esforço e do trabalho, como atender a que a distinção não seja razão de injustiça. E também compreendo os modos de tempos idos, em que o preço dos materiais utilizados era como que intrínseco ao valor da obra humana, e traduzia a grandeza do sentimento ou da homenagem prestada.  Mas igualmente tenho de entender que populações que se iam civilmente organizando em espaços e obediências diferentes, se recusassem a pagar obras de sumptuosa arte, em troco da promessa de menos uns anitos no purgatório, fantasia teológica inventada em tempos de pretensiosa clerical mentalidade. A compreensão dessa reação não me inibe de admirar as que recheiam o Vaticano, ainda que possa interrogar a sua pertinência evangélica. Mas não tenho de julgar, esquecer, nem apagar o passado: pensossinto que devo só procurar entendê-lo, e sua circunstância. Sabes bem, Princesa de mim, quanto tanto dou graças a Deus por pensarsentir que a interrogação e a demanda são parte integrante da minha, nossa, condição de imperfeito... Eu que, como tu, no que toca à "produção artística", fui crescendo numa época em que a pobreza dos meios disponíveis e a própria mínima  valorização dos materiais utilizados nos levavam a mais calorosamente apreciar a obra dos  artistas... Ao ponto de termos até caído na tentação de sobrepor a paixão pelo efémero à da tentativa de gerar eternidade... Ilusões ou utopias, que importa? São sinais das nossas contradições, da nossa imperfeição incompreendida, esse ponto íntimo em que começamos o caminho da nossa demanda...

 

   Para mim, o problema da escrita destas cartas que te envio, é deixar-me sempre perdido no percurso dos fios em que pego e hesito tecer. Não ensino nem quero ensinar seja o que for que se entenda como orientação de outros, contento-me com abrir as minhas janelas e deixar adivinhar paisagens que avisto. Convivo muito com o passado, é certo, procuro entender como outros se entendiam noutras circunstâncias, ganho alma para a minha vida ao visitá-los, como se essa comunhão me sustentasse só por deixar ver que a condição humana é este movermo-nos entre um ser e um estar, e as suas divergências, e os seus contrários... Um olhar inocente, isto é, sem convicções prévias, ou preconceitos, quiçá nos revele muito da realidade das coisas. Sempre assim penseissenti o convite de Jesus a sermos como crianças.

 

   Hoje, falamos de um arcebispo português, frade dominicano, padre conciliar em Trento, que o papa respeitava e carinhosamente tratava por "Bracarense", teólogo e pastor admirado que, todavia, numa cristandade latina em plena agitação da Reforma e Contra Reforma, não se coibia de lembrar ao "Santíssimo Padre" a necessidade de a Igreja se dedicar às obras do espírito e da solidariedade fraterna, como também  -  ao discutir-se em Concílio o celibato dos padres  -  quis lembrar os seus párocos perdidos nas serranias de Portugal, que talvez se aliviassem pela dispensa de tal disciplina... [Permite-me este parêntese: lembrei-me disto, da primazia de olhar o real sobre os desideranda de qualquer imaginada doutrina, quando, há pouco ainda, deparei com a atitude do episcopado português relativamente à questão do reconhecimento da paternidade de filhos espúrios de senhores padres... Será que o Deus de que se reclamam não é capaz de enfrentar umas realidades das suas criaturas? Ou será, mesmo, o sacerdócio católico uma espécie de promoção de baptizado=soldado raso a padre=capitão, com mais privilégios e isenções, ou dispensa do cumprimento de obrigações morais juridicamente imputáveis, que, mais, são naturalmente decorrentes da responsabilidade e do afecto dum progenitor? E será mesmo ainda irrevogável ou tão somente inderrogável a determinação canónica - cujo fundamento é, quiçá, mais de ordem cultural do que propriamente teológica - de se reservar aquele ministério pastoral apenas a solteiros (ou viúvos, ou divorciados de anteriores matrimónios civis) de sexo masculino? Digo isto com muita sofrida amizade por tantos padres que vivem a missão  que aceitaram e assumiram... Eles sabem bem que são, como todos nós, pobres muitas vezes fracos. E muito bem entendem como a conversão é uma tentativa de resposta ao apelo do melhor, não é negar o que fizemos, nem achar razão maior para não suportarmos as consequências. Qualquer filho de um padre católico celibatário não é "filho do pecado", não pode nem poderá sê-lo, pela simples razão de que todo o ser humano é sempre filho de Deus. Sobretudo se for um falso-órfão, num modo absurdo de ser abandonado. A primazia dos pobres e mais fracos é regra básica da mensagem evangélica. A tal ponto que até há quem diga que Deus é pobre. E, com muitas ou poucas inquisições, nunca ninguém foi, é, ou poderá ser, pela Mãe-Igreja, condenado por confessar que Deus é pobre. Sei bem, Princesa de mim, que isto que ora digo pode não ser fácil de entender. Mas quem ler atentamente o Novo Testamento talvez conclua que Jesus Cristo é o Deus autodespojado, para incarnar a condição humana. Assim não o entendem os fariseus, quando Ele lhes diz que se destruírem este templo, ele o reconstruirá em três dias: não se referia ao templo de Jerusalém, mas ao seu próprio corpo. O ser humano tem um valor espiritual que nenhum monumento nem regra jurídica ou social poderá atingir. Pensando assim talvez entendamos a misericórdia. Tenho tido esta carta, já há tempo escrita para ti, guardada, nem sei porquê. Sei hoje que lhe acrescento a grata memória do bispo Manuel Martins, nortenho, português de todos os costados, que foi o padre dos pobres na sua diocese de Setúbal. Era amigo de frei Bento Domingues, mas foi Francisco de Sá Carneiro, querido lembrado amigo, o primeiro a falar-me dele... Em tempos, Princesa de mim, de tão incompleta transição política... Mas não há incompletude que apague a memória e o testemunho de frei Bartolomeu e do padre Manuel Martins, nem imperfeição que empalideça a esperança ou enfraqueça a demanda da justiça.

 

Camilo Maria    


Camilo Martins de Oliveira