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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 19 a 25 de agosto de 2024

 
«Fora do Diálogo Não há Salvação» da autoria de Frei Bento Domingues, O.P. é uma coletânea que constitui uma reunião fundamental de textos sobre o fenómeno religioso contemporâneo.
 

 
 
PROTEGER A PALAVRA DE DEUS
 
Num texto importante incluído neste livro, já com alguns anos, Frei Bento Domingues afirmou: “Sei que a palavra Deus precisa de ser continuamente lavada e resgatada dos seus repetidos usos ridículos e criminosos, tanto no passado como no presente, mas não renuncio a ela. Na nossa cultura, o melhor e o pior é sugerido por essa palavra e por nenhuma outra com a mesma eficácia. (…) Tenho amigos que lamentam a minha teimosia em me manter fiel ao registo teológico, mesmo depois de já ter feito repetidas apologias da chamada teologia negativa que só consente afirmações acompanhadas de negações radicais, como da ideia de Tomás de Aquino: ‘Deus só é conhecido como desconhecido’.” (Público, 14.9.2014). Agora, a publicação da obra Fora do Diálogo não há Salvação (Temas e Debates, 2024) constitui motivo de reflexão viva e séria, num momento em que se sente haver o que Hermann Broch designou como “vazio de valores”. A coordenação da coletânea coube a João Miguel de Almeida, Alfredo Teixeira e Helena Topa Valentim. Os vinte e cinco textos reunidos constituem testemunhos da presença de Frei Bento Domingues, O.P. no Centro de Reflexão Cristã (CRC), de que foi cofundador em 1975. A reunião dos ensaios envolveu o CRC e o Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião da Universidade Católica Portuguesa. Identidade cristã – sim ou não?; Evangelização; Perseguição boa e má; Austeros, Libertinos e Religiosos; os Sacramentos – sinais da ternura de Deus; Teologia e choque de culturas; Antes de ser católico português; a Religião dos portugueses; Descolonização e consciência missionária em Portugal; Laicidade, laicismo e modernidade; para memória e futuro do CRC – eis alguns dos temas tratados, com pertinência e atualidade. O texto final é a transcrição de uma entrevista a Frei Bento Domingues, realizada por Alex Villas Boas e Inês Espada Vieira no Convento de S. Domingos em Lisboa em 2022.     
 
Ao falarmos de valores éticos não nos reportamos a abstrações, mas a referências concretas que nos permitam compreendermo-nos na ligação com os outros. Ao longo destes textos sente-se um apelo permanente ao compromisso e à capacidade de ouvir e de dialogar. O bem, o bom, o belo, o justo e o verdadeiro não são ilusões e constituem apelos a não sermos indiferentes relativamente aos outros e a entender a imperfeição como exigência de sermos melhores, sem a tentação de criar um mundo de princípios que esquecem as dificuldades e as incertezas da vida. Não por acaso, Broch escreveu Os Sonâmbulos numa época que antecedeu o trágico século XX de duas guerras mundiais, entre a massificação e um vago messianismo, interrogando-se sobre se num mundo sem ética há a possibilidade de uma relação humana baseada na dignidade e no respeito mútuo… Os três volumes da obra sintetizam a tentação de contrapor um mundo ilusório à realidade da vida – Pasenow ou o Romantismo (1888); Esh ou a Anarquia (1903) e Huguenau ou o Realismo (1918) são três modos de encarar a existência. Com uma guerra às portas da Europa e um conflito insanável no Médio Oriente, importa entender que a falta de memória nos assalta, do mesmo modo que o romancista austríaco diagnosticou. Voltamos à espada de Dâmocles de um novo conflito mundial. E o certo é que, fora do mundo, não há sentido da vida. 

 
RACIOCÍNIO SEMPRE NOVO
 
Tem razão Lídia Jorge quando afirma que Frei Bento é alguém que “coloca o espaço de leitura e da erudição ao serviço da formulação de um raciocínio sempre novo e sempre aberto, perante a transformação imparável do Mundo, sismógrafo sensível dos terramotos sociais por que passam os nossos tempos, como um discorrer radicado na sensibilidade à mudança”. Daí a importância de aproximar Frei Bento do registo de uma escrita profética ou de uma teologia sensível à grandeza do cosmos, à magnânima fragilidade do humano, ao rosto irrepetível das multidões, à pele da História, inocente e deslumbrado como se fosse um poeta que escolheu à partida a luz do princípio iluminado e fez dele o seu método de clareza”.
 
Que nos propõe o autor? “Porque é que dou muita importância à Teologia? Porque é o não estar na beatitude. É o não estar descansado, é o não se poder acomodar ao mundo que temos, à Igreja que temos, aos movimentos que temos. O não se acomodar é o que S. Paulo pede: não vos acomodeis a este mundo! Não vos acomodeis! O CRC neste momento tem feito um esforço para renovar as pessoas, mas a renovação é na medida em que se criem condições para poder congregar os descontentes (…). Eduardo Lourenço chamou sempre a atenção para algo que era a teologia negativa. É o não descansar. Por uma razão simples, é que nós não temos uma possibilidade de ir pelo lado de Deus a observar como Ele é. Portanto, a nossa teologia tem de dizer sempre: ‘Está bem, mas ainda não é isto, nem pode ser isto. ‘Porquê? Porque é o mistério absoluto do mundo, o mistério absoluto de Deus”. É neste sentido que as reflexões agora recordadas merecem leitura atenta.
 
Guilherme d'Oliveira Martins
 

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Yasushi Inoue (1906-1991) do século  terá sido um dos mais populares romancistas japoneses do século XX, conhecido sobretudo pelas suas novelas históricas, muitas delas situadas nos tempos atribulados da reunificação do Japão nos anos de 1500/600. Em O Mestre do Chá (ou, no original, Honkaku Bo Ibun, isto é, O Diário de Honkaku Bo), debruça-se sobre o mistério do suicídio ritual de Mestre Rikyu, em obediência ao Taiko Toyotomi Hideyoshi. Na minha leitura de hoje, aí redescobri o poema que se afixara à vista dos participantes numa cerimónia do chá que Rikyu celebrara por ocasião da despedida para o exílio de outra personagem, uma tal condenada pelo Taiko. Traduzo:

 

               As folhas abandonam os ramos,
               o fim do Outono é frio e puro.
               Neste instante, os laureados
               saem do mosteiro zen:
               Parti para onde quiserdes
               e se descobrirdes um lugar deserto
               voltai depressa
               para nos confiardes
               o fundo do vosso coração.

 

   Por estes dias receosos de obscuro medo - que, afinal de contas, quiçá mais não sejam do que a recusa de vivermos com reconhecimento consciente de dúvidas, interrogações e temores, que nos vão povoando a tenebrosa, vaga e silente inconsciência em que teimamos justificar as distrações e drogas com que procuramos afastar fantasmas - sabe-me bem meditar nesses cinco versos que nos incitam a partir para onde quisermos e a confiar a outros, quando encontrarmos um lugar deserto, o fundo do nosso coração...

 

   Qualquer deserto tem, para nós, sobretudo uma existência imaginária, é a utopia  da nossa solidão. Esta - tê-lo hás também tu descoberto, Princesa de mim - será sempre, para qualquer um, mais um sentimento de si do que a sua própria condição.

 

   Muitas vezes, nestes dias de quarentena, dou comigo a pensarsentir como a ascese mística vai conduzindo quem a pratica à intimidade da presença do solitário absoluto, daquele cujo nome é Eu, o Eu sou Quem sou. Mestre Eckhart diz que Deus é - com exclusão de todo o não-ser, de qualquer carência. E tal como o mouro Avicena, diz ainda que Deus não tem outra essência para além da sua existência. É, pois, uma presença pura, essa a que se dá o nome de Ser. E imagina-o como uma efervescência, a esse Ser infinito que em si mesmo se move, fervura borbulhante ou parturiente, sempre fervente em si, e que em si se liquefaz e entra em ebulição: bullitio sive parturitio...   ...fervens...   ...in se fervens et in se ipso  et in se ipsum liquescens et bulliens...  

 

   Nestes dias em que vejo menos gente, converso menos, sinto-me, como tantos outros, tentado a comprazer-me no meu isolamento, como se encerrar-me fosse decisão minha e subitamente me tornasse senhor do meu ser em relação, como naquela canção do dentista cansado da amante e da família e sonha poder existir só em si, por si e para si: I, Me and Myself... E quiçá gostaria de me esquecer dessa pura presença do Ser Absoluto e sem carência, do Quem é tudo em todos.

 

Mas eis que essa presença ferve sempre, em mim e nos outros, lembra-me que só o encontro da relatividade de cada um de nós nos poderá, como quem abraça, conduzir ao Ser.

 

   E assim me pensossinto mais próximo de todos esses profissionais de saúde, de limpeza e higiene, de produção e distribuição de bens essenciais, de segurança e transporte, de organização e logística - que nos vão permitindo usufruir de um descanso relativo, que certamente lhes é negado pela necessidade e dever de serem, nestas horas difíceis, a parte de nós que está alerta e funcional.

 

   Assim se me torna claro o pensarsentir a alteridade, não como estranha, mas antes como minha, nossa de cada um. Diz bem frei Bento Domingues, no Público do passado domingo, dia 22, que a ética samaritana, sem qualquer invocação religiosa, obriga-nos a todos, ontem e hoje. O que significa que ninguém está dispensado de procurar aprender a descobrir novos modos de responder à pergunta fundamental da condição humana: em que posso e como posso ajudar? O pregador dominicano será, penso eu, uma das poucas vozes genuinamente evangélicas da Igreja portuguesa, cuja nomenclatura clerical continua com forte propensão a privilegiar a prática de rituais com fezadas milagrosas e a discursar em jeito meloso, banalizador e pretensiosamente poético, sobre benefícios "espirituais" de ensimesmamentos religiosos.

 

   Leio frei Bento: Este período de quarentena - a quaresma inesperada - não pode servir para criar em nós uma religião intimista, uma mística de olhos fechados para as carências múltiplas das pessoas, sobretudo das mais sofredoras e isoladas.

 

Na verdade, não nos devemos esquecer de que o período difícil que atravessamos será, quando confrontado com situações similares noutras épocas da história humana, menos aflitivo e angustiante. Desde já, não porque haja termo próximo ou cura imediata à vista, mas por que os meios técnicos e logísticos nos permitem e facultam, apesar do imprescindível isolamento, condições de proximidade, contacto e assistência, muito melhores. [Imaginemos ainda o que poderá acontecer nos casos de propagação da pandemia por áreas do mundo habitado em que as infraestruturas, a disponibilidade e acessibilidade de cuidados, não possam agora ser tão bem asseguradas].

 

   Saibamos pois aproveitar as graças de que beneficiamos por via dos aparelhos técnicos ao nosso dispor para sermos a presença do próximo junto dos que estão mais sós e abandonados. E que desses contactos, por telefone, "sms" ou correio eletrónico, nasça também uma consciência nova da nossa humanidade comum, que Quem fará fervilhar em novas ideias e iniciativas pela desejável justiça e paz do nosso mundo novo. Concordas, Princesa?

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira