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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA


O INÍCIO DE UMA NOVA ERA
por Camilo Martins de Oliveira


Frei Tiago Voragino conclui o seu sermão sobre a Natividade do Senhor - de acordo com o texto incluído na Legenda Aurea - com o comentário sobre a utilidade dessa manifestação de Deus, depois de ter comentado, como vimos, o maravilhoso do acontecimento e o modo múltiplo, cósmico, como este se manifestou. "Ela vale, antes de mais, porque confunde os demónios: o inimigo já não pode prevaler-se do poder que tinha antes desse nascimento". Como ilustração, refere episódios sucedidos em mosteiros clunicenses, onde o virtuoso comportamento e a disciplina dos monges afugenta o diabo, que ali procurava instalar-se. A mensagem é clara: o Natal de Jesus marca o início de uma nova era na história da humanidade, que pode enfim libertar-se do pecado e das suas servidões. "Em segundo lugar, esta manifestação é útil para a obtenção do perdão. Lemos num livro de exemplos que uma mulher de má vida, que regressara enfim à sua consciência, desesperava do seu perdão; pensando no Juízo, considerava-se culpada; pensando no inferno, estimava-se merecedora de ali ser torturada; pensando no paraíso, estimava-se impura; pensando na Paixão, considerava-se ingrata. Mas, tendo ideia de que as crianças se deixam facilmente enternecer, rezou a Cristo pelo nome da sua infância e teve a graça de ouvir uma voz que lhe concedia o perdão".  O que Frei Tiago diz é que o Cristo infante é já o Cristo da Paixão, Aquele que padeceu, com infinita simpatia, o pecado do homem, para que com Ele ressuscitasse Homem Novo. "A terceira utilidade toca na cura dos nossos males. Diz S. Bernardo: "O género humano sofria de três doenças, ao princípio, no meio e no fim, isto é, no seu nascimento, na sua vida, na sua morte... ... O seu nascimento (de Cristo) purificou o nosso, a sua vida ordenou a nossa, e a sua morte destruiu a nossa". E continua Voragino: "A quarta utilidade dessa manifestação consiste na humilhação do orgulho. Por isso Agostinho diz que "a humildade do Filho de Deus, que a mostrou na incarnação, foi para nós um exemplo, um sacramento e um remédio. Ofereceu um exemplo muito apropriado, imitável pelo homem; um alto sacramento, capaz de nos livrar das amarras do pecado; e um remédio poderosíssimo, capaz de curar o abcesso do nosso orgulho"...  E Frei Tiago conclui: "A sua humildade desencadeou-se pelos homens, para serviço e salvação deles, até eles, por um modo de nascer análogo ao deles; e acima deles, por um modo de nascer diferente. Pois o seu nascimento foi, por um lado, análogo ao nosso: nasceu de uma mulher e saiu pela mesma porta de filiação. Por outro lado, o seu nascimento foi diferente: nasceu do Espírito Santo e da Virgem Maria". Que atualidade têm estas reflexões sobre a lição do Natal, feitas na segunda metade do século XIII? Num tempo que foi, quiçá, até ao Iluminismo do século XVIII, o período de maior cosmopolitismo de ideias na Europa, pois procurou reunir, analisar e comparar, as heranças bíblicas e patrísticas, gregas e romanas, árabes e das tradições "bárbaras" e populares que permaneceram, assentes em variados suportes, desde a queda do império romano até ao advento da sociedade urbana, pré-industrial, comercial e universitária da Europa pré-renascentista. Fala-se aí do poder do demónio, do pecado como negação, e da humildade como força de redenção e esperança. Ora bem: essa do demónio - ou dos demónios que habitam os homens e Shakespeare tão intensamente evocaria, três séculos depois da "Legenda" - não é uma ideia originalmente cristã, pois que a ideia do mal e seus agentes é tão velha como a humanidade e a consciência; a ideia de pecado como culpa própria ou fatídica de ofensa ou omissão, já estava nos temores literários anteriores a gregos, troianos e hebreus; como também não é exclusiva a ideia cristã de que se pode sempre fazer diferente, mais e melhor. E também será claro, para quem pense e procure tentar o bem - para os de boa vontade, sejam crentes ou não - que só a humildade nos pode levar ao reconhecimento do outro, ao diálogo e à construção da justiça e da paz. E o que é ser humilde? Não é, certamente, aceitar com recalcamento o jugo que nos é imposto, nem, por outro lado, considerarmo-nos acima do direito dos outros. Da lição da Natividade de Jesus, que vimos acompanhando, ressalta o exemplo de ter-se o próprio Deus feito igual aos homens... Por ser Deus com os homens é Deus sempre, e acompanha-nos no esforço de construção de uma sociedade mais justa e anunciadora de paz. As igrejas cristãs - católica incluída - talvez tenham insistido demais no pecado como culpa individual, concentrando-o, ainda por cima, sobretudo na transgressão de normas de comportamento sexual e de outras fraquezas da carne. Mas não será pecado maior aquele que ofende o Espírito Santo, isto é, a estupidez de se pretender o igual de Deus no juízo dos homens? O mandamento primeiro e maior é o do amor: o que fizeres a cada um destes pequeninos, a mim o fazes; antes de apresentares a tua oferta no altar, reconcilia-te com teu irmão.  Justiça e paz.


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 04.01.13 neste blogue.

ANTOLOGIA

  


FREI TIAGO VORAGINO

por Camilo Martins de Oliveira


A iconografia dos antepassados, da família, do nascimento e da infância de Jesus que a tradição dos crentes, pelo imaginário popular, foi reproduzindo em inúmeras imagens e outras representações artesanais, ou ainda, através de magníficas obras de arte hoje espalhadas pelos museus do mundo e pelas igrejas, do Vaticano a Portugal, ao Brasil, às Filipinas, pela terra inteira... é maioritariamente inspirada pelas descrições que se encontram na "Legenda Aurea", que já conhecemos e visitámos. As fontes dessa obra de Frei Tiago Voragino são muitas, desde os livros canónicos da Bíblia a textos cristãos primitivos apócrifos até aos escritos dos Padres da Igreja, de bispos, monges, eremitas e santos, cronistas e comentadores, dos primórdios da cristandade até ao séc. XIII. Escreve Jacques Le Goff: "Tiago Voragino explora os géneros tradicionais da Idade Média: a compilação e, especialmente no séc. XIII, a enciclopédia. Os clérigos da Idade Média fizeram da compilação um método original e criativo... Quanto à enciclopédia, é uma especialidade que ocupa um bom lugar no grande movimento do progresso intelectual do séc. XIII: é uma suma que permite dar a medida dos conhecimentos acumulados, para que sirvam de apoio a ir-se mais longe." Para esta quadra natalícia, retenhamos também esta afirmação do professor e historiador francês:"Como diz Tiago Voragino no princípio da "Legenda Aurea", o mais importante neste desenrolar do tempo litúrgico, que é também o tempo da história, é a Incarnação de Deus: "pelo advento de Jesus Cristo tudo foi renovado". O séc. XIII é um século em que os valores descidos do céu à terra permitem aos homens apoiar-se no presente para seguirem em frente. É um sécúlo de otimismo e esperança". No presépio cósmico de Voragino que começámos a visitar entrando, por uma pintura de Fra Angelico, na manifestação da Natividade pela terceira categoria das criaturas, ou seja, pelos animais (burro e boi), a primeira proclamação da Incarnação de Deus é todavia feita pelo primeiro tipo de seres criados: os corpos puramente materiais. Pelos opacos, primeiro, com a queda da estátua de Rómulo e a sua destruição com o templo de Roma e a de muitas outras estátuas em inúmeros lugares. Já o profeta Jeremias dissera aos reis do Egipto que os seus ídolos cairiam quando uma virgem desse à luz um filho... Mas também corpos transparentes e translúcidos deram a conhecer o nascimento do Salvador, como predissera a Sibila: nessa noite, a escuridão do ar se transformou em dia claro, e uma nascente de água em fonte de óleo a desaguar no Tibre... Finalmente, deram sinal os " corpos puramente materiais luminosos como os corpos celestes"... "Segundo a narrativa dos antigos, como diz João Crisóstomo, aos Magos que rezavam no cimo de uma montanha apareceu uma estrela, mesmo sobre eles. Essa estrela tinha a forma de um lindo menino, sobre cuja cabeça brilhava uma estrela. Esse menino dirigiu-se-lhes e disse-lhes que fossem à Judeia, onde encontrariam um recém-nascido. E nesse mesmo dia, três sóis apareceram no oriente, que, a pouco e pouco, se fundiram num único corpo solar. Assim se significava que o conhecimento de Deus trino e uno se espalharia por todo o universo, ou então que tinha nascido aquele em que três coisas, a alma, a carne e a divindade se conjuntavam numa só pessoa..." Frei Tiago, que viria a ser arcebispo de Génova, vai agarrando notícias, lendas e narrativas constantes da tradição romano-latina numa Europa que fora dominada e dividida pelos "bárbaros" conquistadores do Império Romano, e procura servir-se delas para consolidar a história e o pensamento de uma cultura em que se enraíze uma sociedade nova: a que se desenvolverá por burgos e cidades, em corporações e universidades, em comércio, indústria e navegação. Saída dos medos e da insegurança dos campos e florestas, a gente europeia começa a lidar mais racionalmente com o escuro da história e as superstições antigas.

  

Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 21.12.12 neste blogue.

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

     Minha Princesa de mim:

 

   Pensa que, ao tempo de frei Tiago Voragino, não havia internet nem wikipédias, nem sequer livros ou jornais impressos... Os manuscritos existentes, com mais ou menos iluminuras, eram pacientemente copiados em mosteiros, conventos e cabidos, e a respetiva consulta fazia-se in loco. Tal circunstância tornava demorada e laboriosa a tarefa a que hoje chamamos consulta bibliográfica. Assim, é tanto mais espantoso o rol de fontes informativas e citações constantes da Legenda Aurea, redigida por volta de 1275. Só para um dos três sermões que o Voragino escreveu sobre o Baptista - este, que tenho à frente, sobre a degolação do Percursor - o seu autor recorreu às fontes seguintes: Mitrale, de Sicardo de Cremona; História Escolástica, de Pierre le Mangeur; Libri Antiquitatum, de Flávio José; Commentarium in Mattaehum, de Hraban Maur; Sermões, de Sto. Agostinho; Commentarii in epistulas Paulinas, de São Jerónimo; Historia Eclesiástica, de Rufino; Historia Tripartida, de Cassiodoro; Historia Eclesiástica, de Eusébio de Cesareia; Summa, de Beleth; Crónica, de Sigisberto de Gembloux; In gloria martyrum, de Gregório de Tours; Historia dos Lombardos, de Paulo Diácono; Diálogos, de Gregório Magno. É claro que também textos desses encerram lendas e boatos e veiculam mais tradições e contos do que verificações históricas. Mas não deixam, por isso, de retratar universos mentais, referências de crenças e devoções, tradicionais e coevas. Voragino, aliás, recebe umas melhor do que outras, aqui e ali até emite críticas ou dúvidas. Faz trabalho sério.

 

   As festas a cuja celebração se refere - todas à volta da degolação ou decapitação de São João Baptista - eram, ao tempo, quatro, conforme estabelecido no Ofício Mitral de Sicardo de Cremona: a primeira, ainda hoje celebrada a 29 de Agosto, é a do próprio martírio; a segunda é a da cremação e dispersão dos ossos do santo; a terceira celebra a invenção ou descoberta da cabeça decapitada (hoje celebrada com a primeira); a quarta tem a ver com a translação do dedo e a dedicação da igreja que lhe foi consagrada por Santa Tecla. Levo-te à festa da descoberta da cabeça, de que já te falara em cartas anteriores, precisamente por ser a que refere a mesma que nos foi lembrada, na charola do Convento de Cristo em Tomar, esculpida no topo de um capitel. Traduzo-te passos do texto do Voragino:

 

   Em terceiro lugar, comemora-se em razão da Invenção da sua cabeça. Porque diz-se que foi nesse dia que a encontraram. [cf. relato da audiência de Bento XVI em 29 de Agosto de 2012, em Castel Gandolfo] Segundo o livro XI da Historia Eclesiástica, João foi detido e decapitado na prisão de um castelo da Arábia, chamado Macheronte, mas Herodíade mandou transportar a cabeça para Jerusalém, e enterra-la, com precauções, junto à casa de Herodes, temendo que o profeta ressuscitasse se a cabeça fosse enterrada com o resto do corpo. Mas segundo a Historia Escolástica, ao tempo do imperador Marciano, que começou a reinar no ano do Senhor de 452, João revelou a localização da sua cabeça a dois monges que tinham vindo a Jerusalém. Apressaram-se a ir ao antigo palácio de Herodes, e encontraram a cabeça em sacos de pele de cabra, que, a meu ver, provinham das vestimentas que o santo trazia no deserto... A seguir, o Voragino conta que, depois, um oleiro de Emesa se juntara a eles e, avisado, em sonhos, por São João, fugira com a cabeça para a sua cidade. Mais tarde, confiou o segredo a sua irmã, e assim ele foi sendo confiado, por gerações sucessivas, a legítimos herdeiros, até São Marcelo, a quem o Percursor, em visão, deu o beijo da paz e revelou a urna onde se conservava a cabeça, a qual foi então colocada numa igreja, para lhe ser prestado o devido culto. Finalmente, por intervenção imperial, a relíquia iria parar a Constantinopla e guardada noutra bela igreja. E depois? - perguntas tu, Princesa de mim... Depois, a cabeça passou para as Gálias, para o Poitou, no reinado de Pepino, e pelos seus méritos muitos mortos foram ressuscitados - responde frei Tiago Voragino, que a seguir conclui o seu relato do movimentado destino da cabeça de São João Baptista:

 

   E, tal como foram castigados Herodes, que mandara decapitar João, e Julião o Apóstata, que ordenara que lhe queimassem os ossos, igualmente foram punidas Herodíade, que sugerira à filha que pedisse a cabeça, e a própria rapariga, que a pedira. Há quem diga que Herodíade não foi, afinal, condenada ao exílio, nem morrera em Lyon: enquanto segurava a cabeça de João, e rindo o insultava, por vontade divina a cabeça soprou-lhe na cara e ela morreu naquele instante. Eis certamente uma narrativa popular, e convém atermo-nos à versão, anteriormente contada, de que ela acompanhara Herodes no exílio e nela tivera um fim miserável; esta é, aliás, a versão que os santos narram nas crónicas. Quanto à filha dela, um dia em que passeava sobre o gelo, este quebrou-se debaixo dela e levou-a para o fundo da água, onde se afogou... Uma crónica afirma que a terra a engoliu viva, coisa que podemos entender à maneira do que se diz dos egípcios que foram engolidos pelo Mar Vermelho: A terra devorou-os [Êxodo, 15, 12].

 

   Atenção, Princesa, olha que o Pepino acima nomeado não é O Breve, avô de Carlos Magno, mas, sim, o neto deste, Pepino I da Aquitânia que, em 817, mandou construir a igreja de São João, ao que dizem, para albergar a relíquia, e assim ali, em Angély, se ergueu a abadia beneditina de Saint Jean d´Angély. O sítio foi estação de um dos itinerários do Caminho de Santiago. A abadia foi destruída e reconstruída mais de uma vez, sendo que, por volta de 1562 (creio), durante as Guerras das Religiões (entre católicos e huguenotes) foi alvo de atentado que provocou incêndio em que ardeu a pretensa cabeça se São João Baptista. Todavia, a devoção a esta manteve-se, e outras "candidatas" havia, como te referi em carta anterior, quer em França, quer noutras localidades e templos das igrejas cristãs romana e orientais, e mesmo em mesquitas. Não te esqueças de que o Profeta João também aparece no Corão. Nem de que a cidade de Emesa, acima mencionada, viria, com a ocupação muçulmana, e até hoje, a chamar-se Homs. Fica na Síria, a uns sessenta quilómetros do famoso Crac dos Cavaleiros, castelo fortificado que os cruzados levantaram e chegou a ser governado pela Ordem dos Hospitalários. Mas os Templários é que ficaram com a fama da devoção (até já lhe chamaram adoração!) da cabeça de São João Baptista...

 

   Mas disso, e de outros boatos sobre Templários falaremos em carta próxima. E, já agora, para acabar esta: está também na Síria, em Damasco, cidade capital, a Grande Mesquita dos Omíadas (séc. VII), que alberga um santuário onde alegadamente se enterrou essa cabeça, e onde uma tradição muçulmana pretende que Jesus comparecerá, no fim dos tempos. 

 

     Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

   Minha Princesa de mim:

 

    No seu sermão, frei Tiago Voragino irá contar, ao gosto do seu tempo, uma vida de Santa Madalena. Começa por lhe dar família certa, de sangue real, pai chamado Siro, mãe Eucária, irmão Lázaro, irmã Marta. A família de Betânia, de que todavia não constam, no Novo Testamento, os nomes dos progenitores aqui mencionados. Maria é Madalena, porque, da herança paterna, lhe calhou o castelo de Magdala. Dá para filme do Walt Disney, é imaginário, mas sem as presunções e pretensões pseudocientíficas de um Dan Brown, ou qualquer dos seus indigentes seguidores. O arcebispo de Génova, contudo, não poupa nos retratos pessoais: Lázaro dedicava-se sobretudo a empresas militares, Marta administrava com cuidado os bens de sua irmã e seu irmão, e ainda conseguia prover com o necessário os soldados, os servos e os pobres; quanto a Maria, essa não se inibia da entrega desenfreada aos prazeres dos sentidos.

 

   Passo a traduzir: Mas como Madalena usufruía de riquezas, e a volúpia é companheira da abundância de bens, quanto mais ela brilhava pelas suas riqueza e beleza, tanto mais abandonava o próprio corpo à volúpia; e até perdera o próprio nome para somente responder ao de pecadora. Ora, quando Cristo pregava ali e alhures, Madalena, inspirada pela vontade de Deus, apressou-se para a casa de Simão o leproso, onde, ouvira dizer, Cristo fora convidado a jantar; mas não ousando, enquanto pecadora, misturar-se à companhia dos justos, deixou-se ficar atrás, aos pés do Senhor, que lavou com as suas lágrimas, enxugou com o cabelo e cobriu de precioso unguento [...] E quando Simão dizia para consigo que, se Jesus fosse um profeta, não deixaria que uma pecadora lhe tocasse, o Senhor repreendeu-o pelo orgulhoso juízo e absolveu a mulher de todos os seus pecados. Tal é portanto essa Maria Madalena, a quem o Senhor concedeu tão grandes benefícios e a quem deu tantas marcas de afeto. Pois expulsou sete demónios do corpo dela, abrasou-a totalmente de amor por ele, fez dela a sua amiga preferida e hospedeira; quis que fosse ela a ter cuidado dele em seu caminho, e defendeu-a com doçura em todas as circunstâncias. Na verdade, justificou-a diante do fariseu que a dizia impura, de sua irmã que a chamava preguiçosa, junto de Judas, que a acusava de prodigalidade. Vendo as lágrimas dela, não pôde reter as suas. Graças ao seu amor, ressuscitou-lhe o irmão ao fim de quatro dias; em nome do seu afeto, libertou a sua irmã Marta de um fluxo de sangue que há sete anos a afligia; e graças aos seus méritos, Marcela, a serva de sua irmã, foi digna de pronunciar essa palavra tão doce e cheia de felicidade: «Bendito o ventre que te pariu!»

 

   Terás notado, Princesa, que se confundem, propositadamente, aqui, vários passos dos evangelhos: Mateus, 26, 6-7; Marcos, 14, 3 e 16, 9; Lucas, 7, 37-50 e 8, 2 e 10, 38-42 e 11, 27; João, 11, 1-44 e 12, 3-8.

 

   Frei Tiago era, certamente, grande devoto da santa - a quem dedica um dos mais longos capítulos da Legenda - esta sendo uma figura maior da hagiografia medieval, sobretudo na Igreja latina ocidental que aceitou a figura das três Marias numa, forjada por Tertuliano, reconhecida pelo papa Gregório Magno. Na Igreja oriental, greco-bizantina, manteve-se a distinção das três mulheres referidas. No Ocidente, todavia, a devoção popular, e o pertinente culto, juntou ainda, às três Marias evangélicas, a figura de outra pecadora: Maria Egipcíaca, personagem que não escapou ao nosso querido António Alçada Baptista. E que, com o nome de Thaïs, é heroína de uma novela de Anatole France e da ópera de Jules Massenet, nele inspirada e com o mesmo título. Cortesã, é convertida por um santo cenobita e acaba por viver no deserto, em oração e penitência. Frei Tiago também põe a Madalena a viver trinta anos num deserto (algures, no Midi da França?), antes de ser arrebatada ao céu por um bando de anjos... Mas a ópera acaba, na versão que tenho cá em casa, com a morte de Thaïs-Renée Fleming a cantar Ah! Le ciel! Je vois... Dieu! e o monge Athanaël-Thomas Hampton exclamando Morte! Pitié!, pois se tinham, entretanto, invertido os papéis, e o pobre cenobita quedara-se enfeitiçado pelos encantos da mulher...

 

   Como acontecerá com a cabeça degolada de João Baptista - assunto para próxima carta - a veneração de Madalena reclamar-se-á da presença corporal da santa, ou das suas relíquias, em variadas paragens, desde Éfeso, na Turquia atual, donde a terá expulso o ódio dos judeus, até Constantinopla e Jerusalém, passando, e demorando-se, por diversas localidades do sul de Itália e, sobretudo, de França: Vézelay, num caminho de São Tiago de Compostela, Marselha, Saint Maximin da Provença... Aqui, conta uma crónica, a descoberta, em 1279-1280 (12 de Dezembro de 1279?), por Carlos d´Anjou, do sarcófago da santa numa capela funerária paleocristã levou à construção de uma basílica, confiada aos dominicanos, e a um surto do respetivo culto, tornando-se aquele convento um destino de popular peregrinação provençal. Ainda hoje dura, apesar de Éfeso, Jerusalém ou Vézelay reclamarem também para si o repouso final do corpo de Maria Madalena...

 

   Pensossinto agora, minha Princesa de mim, como nos é tão familiar - aceitável, direi, corretamente proposto e edificante - o tema da mulher pecadora que se redime. Recordo a Traviata, poderia lembrar a Butterfly, há sempre maneira de invocar a culpa da mulher e o sacrifício dela... Quiçá por isso, eu, que não sou devoto, talvez compreenda a primazia dada a Santa Maria Madalena, mulher insigne no panteão de tantos homens - muitos clérigos - sempre santos... Será a misoginia uma mancha indelével no cristianismo? A mulher, se não for a Imaculada Conceição - a Virgem Maria nascida sem pecado original - lembra sempre o pecado, logo desde o original...

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Em carta ida, antes da anterior, já te falara de Madalena e da questão da sua identidade. Curiosas lendas antigas, escritos apócrifos, apresentaram-na como noiva de João, o discípulo que Jesus amava, outros como companheira de Jesus (pensa no Evangelho de Filipe, apócrifo gnóstico); romances hodiernos comprazem-se em celebrar o seu casamento com Cristo, de quem teria descendência; tal como o nosso Saramago os põe nos braços carnais um da outra. Nada de novo, nem original, já no século XIII a Legenda Aurea de Tiago Voragino referia: Dizem alguns que Maria Madalena fora noiva de João Evangelista, e que estava mesmo para casar com ele, quando Cristo o chamou no momento da boda. E Madalena, indignada por ele lhe ter roubado o noivo, foi-se embora e entregou-se a todas as possíveis volúpias. Mas como não estaria bem que a vocação de João se tornasse em ocasião de danação para ela, o Senhor, em sua misericórdia, converteu-a à penitência; e porque a arrancou aos supremos prazeres da carne, encheu-a, mais do que aos outros, do supremo deleite espiritual, que reside no amor de Deus. Alguns também dizem de João que, se Cristo o honrou admitindo-o na sua doce intimidade, foi porque o tinha afastado do prazer de Madalena. Mas são ideias falsas e frívolas.

 

   Frei Tiago Voragino era dominicano prudente e sábio, foi sagrado arcebispo de Génova, onde morreu em 1298. Entre as suas lendas douradas - que, afinal, são sermões que acompanham as festas dos mistérios da fé, ao longo do ano litúrgico e do calendário hagiográfico - além de vidas de santos e reflexões teológicas, respiga tradições da devoção popular, incluindo, como no exemplo acima, as que considera fantasiosas, tal como outras, bonitas e toleradas pela Igreja, que ele encontrou em textos apócrifos. Creio que tinha noção da baralhada à volta da identidade da Madalena, personagem sobre a qual, hoje ainda, muitas coisas poderão ser ditas sem que alguma acerte. Exceto, quiçá, uma só: Lucas, no seu evangelho (Lc. 2, 8), narra o episódio da mulher possuída por sete demónios - e, eles sendo sete, quer isso dizer que estava totalmente possuída - que Jesus exorciza. Essa mulher, ali identificada como Maria de Magdala, toma a liberdade que lhe foi então dada para seguir Jesus, amá-lo e servi-lo até à cruz. Será a primeira a testemunhar a ressurreição do Senhor e, nesse momento, quando o reconhece, quererá tocar-lhe a fímbria da túnica. Mas fica-lhe no ar o gesto, pois Cristo ordena que não lhe toque. Noli me tangere - essa intimação em latim da Vulgata de S. Jerónimo - será, como sabes, tema de incontáveis criações da iconografia cristã...

 

   Assim, o essencial da pessoa Madalena não é quem ela, de facto, em carne e osso, foi. Mais é a personificação do destino humano da misericórdia de Deus: tomando a nossa condição mortal, vence a nossa contingência, supera os demónios do nosso mal, e a própria morte, é, como na parábola do filho pródigo, a vitória e a glória do amor regressado. Talvez por isso, desde muito cedo a devoção cristã identificou numa só Maria Madalena, não só essa de quem saíram os sete demónios, mas a de Betânia, irmã de Lázaro - a tal que escolheu a melhor parte, a contemplação da palavra de Jesus - e a pecadora que com suas lágrimas lhe lavou os pés, os enxugou com seus cabelos e perfumou com bálsamos caros em casa de Simão, o fariseu. Em 591, o papa S. Gregório Magno declarou-as a mesma e uma só pessoa. E assim permaneceu essa lição de teologia da Redenção no imaginário e na devoção dos cristãos.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira