Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O encontro de agora de Amadeo de Souza Cardoso, Sonia e Robert Delaunay em Paris no Centro Pompidou numa exposição memorável, inaugurada há dias, constitui um marco fundamental para a compreensão da história do modernismo no início do século XX. Depois da apresentação no Grand Palais parisiense da grande retrospetiva sobre Amadeo, com curadoria de Helena de Freitas (2016), há agora oportunidade para, através de uma correspondência entre os três artistas de exceção, se proceder à análise (que é disso que se trata para o visitante informado) de um verdadeiro diálogo, baseado em identidades criadoras que se diferenciam e que se completam, dando-se à expressão Correspondência(s) um significado que envolve aproximação e emancipação no domínio do pensamento e da arte. Como diz Helena de Freitas num precioso catálogo: “foi uma escandalosamente (quase) desconhecida correspondência que deu corpo ao histórico da relação destes três artistas, e dos restantes que constituíram os artistas da chamada “corporation nouvelle” reunidos pela guerra (de 14-18) em Portugal e em Espanha”. E o certo é que essa ideia de grupo informal surge como sinal de uma surpreendente modernidade, à volta das ideias de expositions mouvantes, de transferências culturais e de um trabalho transnacional em rede, em tudo contrariando qualquer centralismo parisiense.
A verdade é que a exposição do Centro Pompidou é ela mesma uma ilustração criativa da ideia complexa de correspondência, antes de mais expressa no rico diálogo entre Helena de Freitas e Angela Lampe na apresentação do tema e, em seguida, na demonstração prática sobre os percursos paralelos de Amadeo e dos Delaunay, nos quais nos apercebemos bem da independência de Amadeo, avesso à ideia de escola, em contraponto com o caminho de Sonia e Robert. Como salientaram Laurent Le Bon, presidente do Centro Pompidou, e Xavier Rey, diretor do Museu Nacional de Arte Moderna, a cooperação com a Fundação Calouste Gulbenkian “inscreve-se numa ambição mais alargada de reescrever a história da arte do início do século XX, revelando um panorama artístico complexo e interconectado”. E assim podemos não só reconhecer a grande importância da obra de Amadeo, mas também compreender neste contacto transfronteiras o sentido plural das raízes do pensamento moderno, bem evidenciado no grupo que abrange ainda Eduardo Viana, Almada Negreiros e Samuel Halpert, que Ana Vasconcelos criteriosamente tem estudado.
Contudo, a força criadora capaz de pôr as cores a girar e de garantir o culto da luz, como dizia Sonia, foi perturbada por um episódio grotesco em que a artista foi vítima de uma denúncia anónima, algo delirante, que a acusava de ser espia pró-alemã, por emitir sinais, através dos círculos órficos da sua pintura, para os submarinos alemães ao largo da costa portuguesa. Foi um caso caricato que projetou para fora da dimensão artística uma premonição intelectual que constituiu pano de fundo para estas correspondências que representam a vivência de uma nova mentalidade na arte de pensar e de criar.
Sente-se o ambiente tenso. Amadeo, em 1915, diz: “Esta paz tornou-se demasiado cara (…) e nós estamos a pagá-la”. Mas, perante as acusações absurdas de espionagem, já em 1916, descansa Robert Delaunay: “Fique tranquilo. Tudo acabará por correr bem. A verdade e a razão são muito poderosas. Todo o Porto está ao corrente deste caso e Lisboa também. Depois disto, fará exposições artísticas ainda com mais sucesso…” E dirigindo-se a Sonia: “O meu jardim está pleno de cores de seiva e de luz. Há morangos para encher os cestos, ‘rosas jovens e fortes’. Estou apaixonado. O Rimbaud vive no meu quarto. Vivo sob ‘cúpulas de esmeraldas’. Vejo ‘na minha anca a assinatura do poeta, e sou animal, e isso agrada-me”. E, embrenhado nesse prazer vivido, em Manhufe, Vila Meã, concluía: “Cuido, do que aprendi e herdei”.
“Madalena Perdigão (1923-1989): Vamos Correr Riscos” permite conhecermos a obra de quem defendeu com determinação e entusiamo o ensino artístico em Portugal.
O VALOR DO ENSINO DAS ARTES Nunca é demais valorizar o Ensino Artístico como peça fundamental de uma Educação para todos e como fator de democracia cultural. Quando celebramos o centenário do nascimento de Madalena de Azeredo Perdigão, com notável ação na Fundação Gulbenkian, no serviço de música e no ACARTE, devemos recordar as propostas que fez no âmbito das reformas do ensino artístico, quer no período de Veiga Simão (1971-1974) quer em 1979, no plano entregue ao então Ministro Luís Veiga da Cunha, no governo de Maria de Lourdes Pintasilgo. Devo salientar o trabalho desenvolvido por Rui Vieira Nery e Inês Thomas Almeida na exposição “Madalena de Azeredo Perdigão (1923-1989): Vamos correr riscos”, agora patente na Fundação Gulbenkian, e na antologia a publicar, a partir do amplo levantamento de fontes nos arquivos da própria Fundação e em coleções privadas, que permitiu identificar um conjunto de documentos que nos ajuda a compreender o pensamento e a ação de uma figura excecional que deixou uma marca profunda em toda a evolução das Artes Performativas. O primeiro encontro de Madalena, jovem viúva de um bolseiro, com José de Azeredo Perdigão no seu gabinete da Fundação foi providencial. Até aí não havia por parte da instituição uma prioridade dada às questões da Música, apesar do apoio ao I Festival Gulbenkian de Música, em 1957, sem um envolvimento direto na organização, já que esta não pretendia substituir-se às responsabilidades do Estado e de outros privados neste setor. O entusiasmo e as qualidades de organização da futura responsável pelo setor da música abririam um novo horizonte no pensamento do Presidente da Fundação. É multifacetada a ação de Madalena Perdigão, responsável pelos Festivais Gulbenkian de Música até 1970, além da criação da Orquestra (1962), do Coro (1964) e do Grupo de Bailado – depois Ballet Gulbenkian (1965); da organização de Cursos de Educação e Didática, de Direção Coral e de Iniciação Musical Infantil, sob a direção de pedagogos como Edgar Willems, Carl Orff, Pierre Koelin, Michel Corboz; ou da catalogação dos fundos musicais das Bibliotecas e Arquivos Portugueses e publicação da coleção de obras de música portuguesa antiga. Tudo isto, com a apresentação de propostas de valorização do ensino artístico na política educativa.
COMEÇAR PELAS ARTES Perante a existência no país de poucas escolas de ensino artístico, de poucos professores e de uma procura cultural crescente, sendo necessária mais e melhor formação de docentes e mais oferta educativa, para que os estudantes pudessem ser beneficiários de educação artística de qualidade, a ausência de um ensino artístico integrado obrigava a medidas concretas relativas à criação de uma rede que pudesse corresponder ao desenvolvimento educativo exigido até pela integração no espaço europeu. O relatório de 1979, apresentado pela comissão a que Madalena Perdigão presidiu, pôs a tónica nos temas essenciais. “O conceito de ensino artístico integrado pode levar-se mais longe, considerando-se que as disciplinas artísticas constituem o fulcro da aprendizagem, o polo no qual convergem e donde irradiam os vetores dos diferentes ramos do conhecimento”. Assim, o ensino artístico integrado implicaria alterações de programa e obrigaria a um esforço por parte dos professores, permitindo uma maior concentração e aproveitamento pelos alunos nas disciplinas artísticas, facultando-lhes uma exigente motivação para o estudo das restantes disciplinas, fornecendo melhor preparação e uma visão global dos problemas artístico-culturais. Aos professores do primeiro ciclo, deveriam ser fornecidos conhecimentos indispensáveis para poderem motivar estudantes e assinalar as crianças com predisposição e gosto pela música, dança e artes, com atenção ao problema da orientação precoce para a profissão, nestes domínios. Haveria que garantir aos jovens dotados a possibilidade de uma realização profissional futura, com benefício individual e da sociedade. Dever-se-iam formar bons artistas e contribuir para uma reserva de talentos. De facto, os estabelecimentos do ensino artístico particular e cooperativo supriam carências e lacunas do ensino oficial, mas tal era insuficiente. E, sendo o ensino artístico de qualidade necessariamente caro, haveria que criar um sistema de bolsas de estudo para contrariar as disparidades sociais. E punha-se o tema da descentralização, já defendido nos alvores da República (1911), quando se afirmava “o fito de nacionalizar a nossa arte, regionalizar o ensino, tanto quanto o permite a atual educação artística”. E assim a descentralização e a regionalização serviriam os projetos de valorização do património cultural, nos aspetos popular ou erudito, no sentido de uma democracia cultural. O ensino superior artístico deveria abranger a longa e a curta duração, sendo esta de carácter profissionalizante, permitindo a formação de artistas profissionais, de técnicos de apoio ao exercício das artes e de docentes do secundário, de elevada competência, de que o país urgentemente carecia. O relatório lembrava que a Música fazia parte do “quadrivium”, que se ensinava nas Universidades medievais, recordando os lentes de Música de Coimbra e o alvará de D. João II que declarou obrigatória, em 1546, a representação anual de comédias por mestres e alunos da Universidade, tendo a pintura sido reconhecida oficialmente como arte, e não só como ofício, em 1577.
UMA APOSTA CORAJOSA A subalternização do ensino artístico devia-se ao desconhecimento da situação nos “países altamente civilizados”; à ignorância da importância do artista na sociedade de hoje; e à falta de dados sobre as características da formação de um artista em termos de exigência, de duração e de conhecimento. E dava-se o exemplo da Slade School de Londres, escola eminentemente prática de Pintura, Escultura, Gravura e Cinema, integrada na Universidade. A história dos últimos cento e cinquenta anos mostrava que em Portugal, e apesar de alguns esforços importantes, a educação artística não mereceu dos poderes públicos atenção devida, ou sequer idêntica à que tem sido dispensada a outros ramos do conhecimento. A inserção da educação pela arte no sistema educativo português representaria o reconhecimento do valor deste conceito e seguiria o movimento internacional tendente à livre expressão estética. A experiência do ACARTE na Gulbenkian seria uma afirmação notável desta prioridade, projetando-se dentro e fora da escola: com animação cultural, realização de exposições, concertos, espetáculos de Teatro, de Bailado e de Cinema, leituras poético-dramáticas, utilização de meios audiovisuais, vivências artístico-culturais de toda a ordem. O plano de Educação Artística pretendia evitar que nos convertêssemos em cidadãos insensíveis, numa sociedade que “nos deforma ‘fisicamente’ durante o processo de educação, de modo que os nossos corpos não se possam exprimir por meio do movimento e sons naturais, ou ‘psiquicamente’ porque nos vemos obrigados a aceitar um conceito social que exclui a livre expressão dos impulsos estéticos”. Eis o essencial!
Passa no dia 28 de abril o centenário do nascimento de Madalena Perdigão (1923-1989), personalidade marcante quer na Fundação Gulbenkian (desde 1958 no serviço de música), quer nas propostas que fez de valorização do Ensino Artístico e de promoção de uma cultura moderna e aberta. Com uma ação notável, refiro em especial o desafio a que correspondeu brilhantemente no Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte (ACARTE), no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian (1984-1989), iniciativa de excecional valor, que correspondeu a um projeto original e ambicioso, baseado na inovação e na interdisciplinaridade, na aproximação entre práticas culturais eruditas e populares, na abertura às artes não ocidentais, no reconhecimento de percursos não académicos de aquisição de competências, na ligação entre teoria e criação artística contemporânea, na aposta em novos olhares críticos, e em novas abordagens da mediação cultural e da educação artística. Para Madalena Perdigão, a Arte é essencial à vida e uma forma imperativa de Educação. Não deve haver, assim, preferências de escolas e correntes estéticas, mas sim abertura e itinerância no país e no exterior, sem preconceitos quanto a géneros artísticos, preenchendo lacunas e recusando duplicações. Tratava-se de agir no Teatro, na Dança, no Cinema, na Música, na Literatura, nas Artes Plásticas e Arquitetura. Segundo a sua criadora, o objetivo seria dar aos portugueses a visão mais atualizada possível do que se passava em outros países no campo da Arte. Mas, além da informação, cumpriria estimular a criação artística e “animar” os espaços do Centro de Arte Moderna.
A política cultural do ACARTE baseou-se em critérios de qualidade, reclamando-se da possibilidade de correr riscos e de os fazer correr aos seus colaboradores. Era uma política de carácter cosmopolita, capaz de estimular a criatividade dos artistas portugueses. Haveria produções próprias e colaboração com companhias portuguesas ou estrangeiras, promoção de jovens autores e de projetos de pesquisa e de vanguarda. No cinema, referia-se a apresentação de filmes de arte, sessões para crianças e de animação, “ciclos do novíssimo cinema”, além de formação de realizadores de filmes de animação, em colaboração com o Royal College of Art, de Londres. Na Música previam-se concertos informais à hora de almoço para apresentação de jovens intérpretes, concertos de Jazz na Sala Polivalente e no Anfiteatro ao ar livre, séries de concertos de Música Contemporânea, além de bandas e música popular e promoção de jovens compositores. Na Literatura, havia projetos interdisciplinares, palestras, testemunhos de escritores a falar da sua obra, leituras comentadas e exposições biobibliográficas. E nas Artes Plásticas e Arquitetura previa-se a promoção de jovens artistas, projetos interdisciplinares, exposições temáticas e didáticas, manifestações de arte contemporânea e resultados de pesquisas atuais. Deste modo, em coerência com a lição de vida de Calouste Gulbenkian dizia-se: “A Arte não é um produto estável da criação do homem; pelo contrário, a história ensina-nos que a Arte é uma atividade em constante evolução ou transformação e nisso está um dos motivos do seu grande interesse”. Como se disse na última edição dos Encontros ACARTE em vida de Madalena (1989): “Ser-se europeu quer dizer respeitar os direitos da pessoa humana, respeitar e lutar pela democracia, a qual, como sublinha Edgar Morin, se tornou o caráter político comum e distintivo da Europa”. Assim, “a nova consciência europeia reside na consciência de uma comunidade de destino (…). Ninguém pretende uma Europa cinzenta, igualizada, mas sim um continente plurifacetado, rico da diversidade das culturas dos seus vários países, que cruzarão experiências e as confrontarão, como meios de se enriquecerem reciprocamente através das suas próprias diferenças”. Inesquecível exemplo de coragem e pioneirismo!