Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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O futurismo antecipou muito do atual fascínio que rodeia o transumanismo.
O futurismo era uma espécie de novo modernismo, à época, como o é, agora, o transumanismo.
Há em ambos a atração pela velocidade e ritmo acelerado da transformação científica e tecnológica.
Convivemos, cada vez mais, com ciborgues, androides, híbridos de humanos e máquinas, com uma transformação radical dos nossos corpos, substituídos por próteses ou silício, em que nos vem à memória a escultura aerodinâmica e futurista de Boccioni, Formas Únicas de Continuidade no Espaço, de 1913, alegórica à velocidade e ao progresso, representando um ciborgue, metade homem, metade máquina.
Se o futurismo pressupõe um corte radical com a tradição artística e cultura dominante (passadismo), um grande espírito de experimentação, via criação de uma arte orientada para o futuro (futurismo), também o imaginário transumano antecipa o futuro, como nas artes, onde o cinema e a literatura são um bom exemplo, através da ficção científica, da inteligência artificial e da ideia de uma pós-vida digital.
Como no futurismo, há no transumanismo um processo de aceleração movido pela ciência e pela tecnologia, pela ousadia, audácia, velocidade, pelo dinamismo, contra o decadentismo, o simbolismo, a imobilidade pensativa e o sono, tornando os seres humanos mais fortes e inteligentes.
A que acresce, para o transumanismo, o desejo de seres humanos de maior longevidade biológica, mais duráveis, tentando reverter o envelhecimento ou, numa última fronteira, transcender a mortalidade.
Realidade vindoura ou ficção?
Há uma tentativa de libertação do humano daquilo que lhe foi doado biológica e naturalmente, redefinindo-o, o mesmo quanto à distinção entre a vida e a morte, superando uma corporização carnal baseada no carbono, para um corpo imaterial ou não carnal, baseado no silício. Pense-se no físico Stephen Hawking, filho de pais biológicos, que quando morreu a maioria do seu corpo era de silício, devido a doença por atrofiamento. Também a possibilidade, cada vez mais falada, de transferir a mente para um computador, é um dos exemplos mais versados.
Pode, ainda, parecer chocante, perigosa e sinistra a ideia de uma vida pós-digital, mas se os humanos carnais cada vez consomem mais tempo online, que farão quando tais possibilidades estiverem disponíveis e se comercializarem, com a agravante de terem a internet como a mãe de todas as coisas?
E que dizer de quem argumenta ser injusto não podermos viver eternamente? A começar por alguns tidos por génios? O que de nada lhes vale.
Embora a evolução seja contínua, nunca seremos um Homo Deus, como nunca fomos, dado que somos seres terrenos e mortais, havendo que ponderar equilíbrios, pois nem sequer sabemos se mais poder, longevidade, inteligência e saber são compatíveis entre si, o planeta em que vivemos e o cosmos de que somos parte.
Fazemos hoje referência um livro muito recente: “100 Futurismo”, se intitula, organizado por Dionísio Vila Maior e Annabela Rita (Edições Esgotadas., 2018). Trata-se de um muito extenso volume de cerca de 650 páginas, que reúne textos de 50 autores, entre os quais com muito gosto me incluo com uma evocação crítica sobre “Almada Negreiros, um Dramaturgo Futurista”, resumindo estudos que durante décadas efetuei, redigi e publiquei, sobretudo baseados na profunda amizade familiar e na também profunda e vastíssima admiração que Almada motivou e significou. Perdoe-se esta nota pessoal...
No que respeita aos Teatros - edifícios citados no livro, saliento agora o estudo de excelente qualidade, da autoria de Ana Isabel de Vasconcelos, intitulado “Contra o Gosto Público que Sustenta o Teatro: Almada e o Panorama Teatral de uma Época”.
A propósito da chamada Conferência Futurista que Almada Negreiros pronunciou em 17 de abril de 1917 no então chamado Teatro República, antes Teatro D. Amélia e depois Teatro e Cinema São Luiz, Ana Isabel Vasconcelos refere e analisa um conjunto de teatros que, já na transição dos séculos XIX/XX, marcaram a vida teatral portuguesa, tanto no que respeita aos edifícios em si mesmos, com aos repertórios mais marcantes.
Desde logo o Teatro D. Amélia - República- São Luiz já citado. Mas também o Teatro Ginásio, o Teatro Avenida, o Teatro da Trindade, o Eden então Teatro (e episodicamente voltaria a ser) o Teatro Apolo, e ainda o que a autora denomina, e bem, “palcos de 2ª, como o Fantástico e o Povo (que) apresentam revistas”...
Citamos o comentário que Ana Isabel Vasconcelos faz ao teatro produzido por autores portugueses.
“Nessa época, os dramaturgos portugueses têm uma relação muito próxima com o palco. As suas criações são sobretudo enformadas pelo que tradicionalmente agrada ao público e pelas escolhas dos empresários, ambos tantas vezes responsabilizados – ainda que por razões diferentes - pela falta de inovação e de renovação dos palcos portugueses. Numa lógica mercantilista, em que o nível cultural do “consumidor” é muito baixo, torna-se difícil compatibilizar o horizonte de expetativas com propostas dramatúrgicas mais modernas. Sempre que se arriscaram tendências de teor inovador, os resultados foram tímidos e de pouca duração”. E em nota: “Basta lembrar as experiências do Teatro Livre, do Teatro Moderno e já em 1925, o Teatro Novo de António Ferro, que, apesar de inovadoras não conseguiram resistir”.
No livro 'Glittering Images' de Camille Paglia lê-se que a catástrofe da Grande Guerra (1914-1918), em nome do progresso, deitou por terra todas as esperanças de uma Europa que pensava ser a civilização mais avançada da história.
George Grosz (1893-1956) estudou na convencional e clássica Escola de Belas Artes em Dresden, mas desde sempre se fascinara com a cultura popular - e até mesmo como estudante contribuía para revistas satíricas. Grosz adorava os desenhos das crianças e em Dresden seguia o trabalho do grupo expressionista (Die Brücke). Por isso, o contacto com o expressionismo, o futurismo e o dadaísmo foram determinantes para Grosz. Como se sabe o expressionismo apresenta como principal característica a distorção do mundo exterior através do sofrimento interior (ansiedade, medo, desespero, repugnância, alienação, desgosto e desordem).
Já o Futurismo influenciou Grosz sobretudo com os seus ângulos dinâmicos (ver 'The Funeral:Dedicated to Oskar Panizza', 1917-18).
O movimento Dada, começou em Zurich e logo após a Grande Guerra espalhou-se por todo a Europa. Os Dadaístas desejavam refundar a sociedade com novos valores - virando de cabeça para baixo todos os valores conhecidos até então - só assim se poderiam evitar no futuro conflitos tão absurdos e devastadores. Em Berlim, o Dadaísmo tinha uma diferente expressão. O colapso da sociedade e de toda a ordem estabelecida era bem real. Berlim tornou-se assim palco de performances provocativas que vigorosamente lutavam a favor de uma suposta liberdade pessoal. E George Grosz era bem conhecido, no grupo berlinense, pelos seus desenhos incómodos.
'Freut Euch des Lebens' (Alegrai-vos na vida) é o melhor retrato da Alemanha, entre guerras, sob o humilhante Tratado de Versalhes. O caos avassalador provocou na sociedade um desassossego e uma instabilidade interminável. A Alemanha era assim palco de imensos contrastes e Grosz através dos seus desenhos limpos e claros desejava capturar essas desigualdades grotescas.
'Great art must be discernible to everyone.', George Grosz
A indiferença, o abandono e a solidão dominam o cenário urbano de 'Freut Euch des Lebens'. O céu, nem se vê, mas parece que pesa mais do que devia. Os edifícios continuam de pé, porém cheios de rachas. A fadiga endurece o trabalhador. O veterano amputado afunda-se, sem esperança, contra a parede do restaurante. A mulher de costas indica uma espera interminável. O rico capitalista delicia-se, mais do que devia, com a sua refeição e os seus olhos nem se abrem. O crucifixo inclinado e partido indica que a sua mensagem de compaixão foi totalmente esquecida. Enfim, o vazio dominador indica uma sociedade sem valores, uma sociedade oca, sem futuro e em desespero.