Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

O FUTURO DE TUDO (3) 

  


A linguagem empobrecida, empobreceu o pensamento que com ela adquire e exprime significação, e por entre este vazio nasceu e cresceu o pasmo dos deslumbrados.

A linguagem sofreu mutações e a capacidade da sua apropriação por parte dos seres já dominados inibe que dessa metamorfoseada realidade se possam dar conta.

Há um novo tempo e há um novo espaço de plurissignificações que em si muito contém a mercadoria do mundo ilusório.

A barbárie do simulacro antecedeu tanta inverdade que os seres confundidos e anestesiados se têm mostrado incapazes do exercício do questionar.

As migalhas que se foram aceitando do poder e da intectualidade que com ele privaram e privam, constituíram a primeira prova da mansuetude cerebral dos múltiplos inquilinos dominados neste sistema.

Até a IA chegou em grande parte pela mão de uma informação de botox, provocadora de paralisia aos estímulos neuronais, de modo que se confundissem as inevitabilidades concordantes e discordantes, num rodopio sem significação.

Tudo o que vai chegando a um mundo sem sonho, e consequentemente sem a grande força da insubmissão, instala-se como fatalidade, já que a condição inquieta do homem se deixou subtrair da sua vida, permitindo o poder titânico que parece ter feito desmoronar o pensamento perscrutador.

E tudo ficou destinado a ficar impune. Até quem muito amedrontou com o esplendor da IA, experimentou o uso de um poder sobre uma civilização que afinal pretendia anular.

O poder incontrolado das novas realidades é tema do qual se desertou sem enfrentar, e a insatisfação absolutamente anémica, perdeu posto e não constitui doença.

O que acontece hoje será meramente pitoresco daqui a um ano, e não se estranha não compreender o agora neste imenso potencial transformador.

Navegar de um lado para o outro pode ser o mesmo que não sair do sítio de não-partida.

A capacidade analítica sobre os inúmeros dados potenciadores de um estilo de aprendizagem e desempenho que a IA transporta com a maior capacidade de sucesso, situa-se no polo oposto do não-questionamento de uma cultura simplificadamente adormecida.

Apesar de todas as possibilidades fantásticas, fascinantes e promissoras que a IA oferece, as preocupações em torno do seu uso, nomeadamente o expor uma notícia falsa indistinguível da realidade, terá consequências críticas para a sociedade, ou a tensão entre a palavra e a essência não fosse o grande poder do mundo simulado e enfim, do caos da vida.

Será que todos acham que ainda é cedo para que esta preocupação tenha raízes?

Não é fundamental que os que desenvolvem a IA e os seus usuários sejam responsáveis pelo seu uso e considerem as implicações éticas das suas criações?

A maior ferramenta da IA é a confiança, caso o abaixamento do pensar e do sentir, não tenham chegado à subcave da passagem por aqui dos seres humanos.

Que os fios poderosos que envolvem os homens não os façam acreditar num doravante de otimismo de consumo que os sacia.

A IA é agora uma eficiência se orientada, e o bule cujo conteúdo é mar, nele se não confina.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

O FUTURO DE TUDO (2) 

  


As plantas não crescem nem são belas porque a IA lhes dá o poder da Natureza.

Não, a IA não é mundo natural nem vida, como é tudo o que envolve o mundo dos seres vivos.

A natureza de algo é a sua verdade, a sua essência, a sua disposição inata.

A partir de múltiplos algoritmos não se atinge o que permanece tal como surgiu sem sequer ter tido a ajuda dos seres humanos.

Parte-se de uma ideia profunda de mundo anterior à própria existência de ordem humana.

Partilhar laços e o seu balanceio com o sensível, ter consciência da sua própria existência evolutivamente, da sua própria finitude, é algo que só existe nos humanos.

Lembremo-nos também que planta, fungo, bactéria, animal, estão sujeitos à lei da biologia e da sobrevivência e pedem sombra, sol, sossego e sono.

A célula é a menor unidade de vida e mesmo sozinha forma um ser vivo, um organismo unicelular e em grupo formam organismos pluricelulares como animais e plantas.

Ora, aquilo que é entendido por Aprendizado de Máquina (uma das capacidades da IA que possibilita aos softwares usarem inputs humanos para “aprender”), fundamenta-se no que estimula o funcionamento do cérebro humano, mas aplicando ferramentas computacionais, o que quererá dizer que a IA evolui a partir de algoritmos que “aprendem” as preferências dos usuários, e se combinam para fazerem sugestões mais precisas ao solicitado.

Mas estamos perante formas mecânicas que se não comparam nunca às formas de expressão humana qual pasmosa distância de um querer de um Deus, como o oásis.

Na verdade, sem a presença física de um ser humano, o sistema de um carro pode memorizar - através de ordens nele incorporadas - direções e trajetos o que não determina a exclusão de humanos do melhorar desta função, e sobretudo a IA teria de ser bem mais complexa e precisa do que a praticada pelos humanos para que estes nela possam confiar.

Boris Eldagsen em 2023 ganhou um prémio de um concurso internacional de fotografia gerada por IA.

Eldagsen abdicou do prémio divulgando que a foto tinha sido gerada por um algoritmo, admitindo que essa forma não é comparável à do uso das máquinas fotográficas que não constituem trabalhos derivativos de obras anteriores, e que este método não gera arte, não obstante ser possível nesta fotografia adivinhar-se um vínculo entre estas mulheres, ou a melhor prova de que processos repetitivos geram aparências.

De lembrar que quando surgiu a fotografia ela não liquidou a pintura, e se se entender que o melhor uso da IA origina muito mais do que modificações de incrementos de múltiplas obras, tal não finda com outras formas de arte, mesmo que a da IA venha a ser a ser considerada uma forma de arte.

Certamente a inteligência artificial se irá tornar cada vez mais valiosa para o mundo e melhorará muitas eficiências e irá dar muitos passos muito além, e até já originou um DNA sintético de pessoas inexistentes, o que até leva a que esta ferramenta de pesquisa de geneticistas, possa fazer experimentação sem se comprometer a ética científica ou a vida de pessoas reais.

Todavia, a inteligência humana é um processo multifacetado e ainda muitíssimo desconhecido, que envolve mudanças biológicas, sociais, culturais e cognitivas.

A inteligência humana continua a desenvolver-se à medida que enfrentamos desafios e oportunidades como espécie.

De recordar que Humberto Maturana e Pille Bunnell afirmaram que o único sentimento que amplia a visão e expande a inteligência é o amor.

E a IA não ama.

 

Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

O FUTURO DE TUDO (1) 

  


A inteligência humana não se compraz com um estado ter o limite de apenas poder ser verdadeiro ou falso.

A inteligência humana não funciona deste modo nem se baliza pela lógica booleana.

A inteligência humana para um mesmo problema acede a múltiplas variações em consciência, em perceção, em intuição, em previsão e em outras competências, e não é binária.

Mas há um reino que pela sua capacidade para combinar dados invisíveis ao nosso “olhar”, interage connosco de tal modo que nos surpreende o não distinguirmos, se o que nos espanta nos chegou ou não de uma máquina.

Pode-se então dizer que a IA combina dados de modo imprevisível não se limitando a meras colagens, revolucionando positivamente muitíssimas áreas, tal como a da medicina e dentro desta a da imagiologia particularmente, tornando-a muito mais eficiente, precisa e acessível.

A IA surge assim como uma nova razão.

Mas na IA não se paga o tempo do pensar humano.

Tudo deve ser rápido, produtivo e barato e justificador da extinção de milhões e milhões de empregos e profissões, e que as máquinas possam até disputar novos espaços recorrendo à arte convencional.

No curto prazo, a capacidade de adaptação preenche o tempo de novas profissões surgirem, mas apenas no curtíssimo prazo esta adaptabilidade terá cadeira e assento. A medida do tempo é agora diverso e implica diferentes estabilidades.

Caberá aos engenheiros de prompt, cruciais no estímulo das máquinas, obterem da IA as respostas mais precisas; caber-lhes-á o serem capazes de desempenhar as funções de “DJ” ao escolherem as melhores “músicas” (ou prompts) para que a IA possa tocar cada vez melhor a fim de que a sofisticação da resposta da IA seja cada vez mais eficaz.

E que realidade conduzirá ao fim da humanidade tal como a conhecemos?

Quem sobrevive à criação de paradigmas inerentes à criatividade?

Qual civilização se sucede e o que a fará evoluir? Que valores como espécie?

Estou convicta de que a IA já transformou a forma como vivemos, já transformou a garantia de como vivemos esse viver.

E não há que ignorar.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

deus jano.jpg

 

69. A DUPLA FACE DE JANO

Segundo a lenda, Saturno teria dado a Jano o dom da dupla ciência, a do passado e a do futuro, representando-o os romanos com duas faces voltadas em sentido contrário.

Jano tornou-se o deus do início de todas as coisas, entre elas o início do ano, o 1.º de janeiro, “a porta que abre o ano”.

Responsável pela abertura das portas ao ano que se iniciava, era o guardião das portas, tendo presente que toda a porta olha para dois lados, com duas faces, uma contendo o ano velho que findou e outra o ano novo com os seus mistérios e segredos futuros.

Jano mostra-nos que tudo tem duas faces, que tudo tem em si princípio e fim, daí ser representado por duas faces contrapostas e opostas: uma envelhecida (passado) e outra jovem (futuro).

Há sempre o ano velho e o novo, no sentido de que tudo tem, pelo menos, duas faces, nada sendo imutável e permanente.

Mas nem tudo é a preto e branco, bom e mau, numa dualidade constante, com referência a uma pretensa analogia com as duas faces do ser humano.

Jano também simbolizava o deus das metamorfoses, das transformações, da mudança, da sabedoria, podendo ser representado com uma face masculina e feminina, ou outras dualidades, como guerra e paz, sol e lua.

Para Ovídio a face dupla de Jano exercia o seu poder sobre a terra e sobre os céus.

E de deus que presidia aos começos, do início de todas as coisas, como o início do ano (januarius significa janeiro), tornou-se no deus das quatro estações possuindo, então, quatro cabeças, em vez de duas.

Para os romanos, o primeiro mês do ano era dedicado a Jano, celebrando-se as januárias, no início de janeiro, em sua honra, por analogia com as atuais celebrações de ano novo, num renascer permanente ano a ano, querendo descartar o passado (ano velho) e viver o futuro (ano novo), numa afirmação e formulação anual de rituais, balanços, expetativas e desejos que no essencial se repetem e que marcam a natureza transitória da nossa passagem no mundo que conhecemos.

No final e início do ano há sempre promessas e juras de metamorfoses em que acreditamos ou teatralizamos acreditar.

Há o passado (ano velho) e o futuro (ano novo) que, para Santo Agostinho, são figuras de linguagem de um tempo que já foi ou que virá a ser, mas que não é, em que a realidade existe apenas no presente, que é o tempo em movimento.

Um melhor e mais auspicioso 2021.

 

01.01.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

 

O FUTURO ABSOLUTO

anselmoborges.jpg

 

1. Face ao futuro, é essencial pensar. A palavra escola vem do grego scholê, que significa ócio, com o sentido de tempo livre para homens livres pensarem e governarem a polis.

Hoje, falta esse ócio, tudo se torna negócio (do latim nec-otium). A própria política tornou-se sobretudo negócio. Assim, sob o império da técnica e do negócio, não se pensa, calcula-se. A técnica não pensa, calcula (Heidegger), o mesmo valendo para os negócios.

 

2. O futuro vem grávido de esperanças, mas também com perigos: a guerra nuclear, as NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, ciências cognitivas, neurociências), desembocando no trans-humanismo e no pós-humanismo, a injustiça estrutural mundial, o meio ambiente, as drogas, a paz, os direitos humanos, o trabalho... Vivemos num mundo global, estes problemas são globais e a questão é que a política é nacional, quando muito regional.

Olhando para o futuro, não se impõe pensar numa governança global? Não digo governo mundial, mas governança global, já que os problemas enunciados só com decisões ético-jurídico-políticas globais podem encontrar solução.

 

3. Problema maior hoje: uma espécie de cansaço vital. Porque não há sentido último. Daí, nem é no desespero que se vive, mas na inesperança.

Só com Deus, "Futuro Absoluto" (K. Rahner), se pode erguer um futuro autenticamente humano, com Sentido final, pois Ele é o Futuro de todos os passados, do presente e de todos os futuros.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 28 DEZ 2019

CRÓNICA DA CULTURA

 

Que me dizes? Já passou o futuro? Então e a gente já não o vai viver? E passou em que tempo e em que rua? Quem te disse?

 

- Pois disse-me o desejo do futuro.

 

- Qual desejo? O teu desejo ou o desejo de todos? Ou o teu desejo do Pedro?

 

- Olha, estou confusa com as tuas perguntas. Não pensei que reagisses tão alarmada. Não vês que o futuro é o presente, e nele o futuro é uma espécie de vida suspensa, e quem o topa, vai, e vive-o. Pronto é isso o que sei.

 

- Mas isso é uma crueldade. Não vês que estou com gripe e a febre não me deixa ir a lado nenhum. Vieste visitar-me para me dizer isso? Ó Rita tem dó, há muitas maneiras de desperdiçar o tempo e dentro dele o tal tempo de futuro que se apanha numa porção especial do presente, mas dizeres-me assim essas coisas sabendo como eu estou? Até já nem sei quando me começou a febre, e se o tal pedaço de presente que é futuro, não tem em consideração uma espécie de suspensão para ser vivido mais tarde, se acaso a culpa não for nossa? Se não tiver em conta a nossa ausência de culpa, então sim, é que estou tramada: perdi imenso com a gripe.

 

- Alexandra tem calma ou a febre sobe-te. Disse-me o Pedro que estes dias em que a gente não topa o futuro, têm mais de 24h e é nesse acima 24 h que está o futuro que, às vezes, pode ser 1h, 10h, ou 1 segundo a mais das 24h. Ninguém sabe mais nada. Acontece.

 

- O quê pode ser um segundo? Pode ser só um segundo para se viver o futuro daquele dia? Ai! que já me sinto muito pior. Vou chamar o médico.

 

- Não! Não chames ninguém. A porção desse segundo foi o melhor beijo que o Pedro me deu. Foi uma porção de segundo imensa! E nada digas a ninguém. Isto é um segredo enorme, pois imagina tu se naquele dia, a porção fossem 10h?

 

- 10h? Que tarefa! Achas que o Luís pode saber disto e nada me ter contado até que chegue o tempo máximo das 10h?

 

- Não sei. Ele olha-te muito, mas enfim, a preparação rouba muito tempo à porção, e entretanto ele gasta-a pondo-te à prova.

 

- E a prova real será eu provar-lhe que aceito viver com ele no futuro? Deus! Não me quero de adivinha, mas pressinto que a sucessão do tempo, se não a acalmarmos, faz o futuro ser agora, e já ter passado, e tudo ao mesmo tempo. Que embrulhada me trazes, Ritinha!

 

- Alexandra, eu é que vou daqui confusa e a pensar que eu e o Pedro fomos mesmo muito parvos.

 

- Porquê?

 

- Ora porque se tu estás certa, e nós que só vivemos aquele futuro num segundo, devíamos era ter esperado mais. Ter esperado que o segundo fossem horas. Estou mesmo a ver que tu aproveitas a gripe e te preparas para as 10h, e ao tempo, dás ainda, na altura certa, um Lexotan à penúltima das horas, ou seja, às 9h. Estou mesmo a ver que primeiro que cheguem as 10h, tens um futuro imenso pela frente!

 

- Bom, a ideia tem pernas ó Rita, mas eu estou doente. Saberás tu quanto tempo dura isso do futuro ser presente? E sabes se se gasta? O meu maior receio, digo-te, nem é bem esse do futuro se gastar, mas o do desejo de o viver se tornar escasso, se acaso não depender só de nós.

 

- Agora é que me afundei. Viraste o tempo contra nós, contra o futuro, contra a tal porção que te falava no início, e tudo isto por conta do desejo estar só em nós. O futuro do qual falamos - cuida-te-, que mal uma pessoa se distrai e as 10h já eram… mas se o desejo for nosso e de alguém, então é que o futuro não é de ninguém e dura para além das 24h, sem que se intua o tempo que estará no para além das 24h.

 

- Talvez não seja como eu penso. Acalma-te! Afinal se esta gripe que me apanhou for a das aves – não te rias - eu contagio-te já, e até podemos voar para além das 10h.

Como sabes, os voos são sempre aproximações aos momentos e estes são bem maiores que os segundos, e até maiores que as horas, aliás estas até se espantam por não saberem quanto tempo a mais das 24h, têm os momentos. Foste uma querida em vir visitar-me. Foste uma querida por me trazeres um algo muito especial e ambas a podermos ir em direção a ele. Já viste? Livrámo-nos da vontade dos outros de nos tornarem distraídas face aos nossos desejos. Aos nossos desejos das porções de tempo de futuro que estão contidos em todos os nossos presentes. E la grande question est de décider ce que l’on sacrifiera: il faut savoir qui, qui, sera mangé, como dizia Valéry.

 

- Nós ou o tempo do futuro?

 

Teresa Bracinha Vieira

30 novembro