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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS PLURICULTURAIS

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69. A DUPLA FACE DE JANO

Segundo a lenda, Saturno teria dado a Jano o dom da dupla ciência, a do passado e a do futuro, representando-o os romanos com duas faces voltadas em sentido contrário.

Jano tornou-se o deus do início de todas as coisas, entre elas o início do ano, o 1.º de janeiro, “a porta que abre o ano”.

Responsável pela abertura das portas ao ano que se iniciava, era o guardião das portas, tendo presente que toda a porta olha para dois lados, com duas faces, uma contendo o ano velho que findou e outra o ano novo com os seus mistérios e segredos futuros.

Jano mostra-nos que tudo tem duas faces, que tudo tem em si princípio e fim, daí ser representado por duas faces contrapostas e opostas: uma envelhecida (passado) e outra jovem (futuro).

Há sempre o ano velho e o novo, no sentido de que tudo tem, pelo menos, duas faces, nada sendo imutável e permanente.

Mas nem tudo é a preto e branco, bom e mau, numa dualidade constante, com referência a uma pretensa analogia com as duas faces do ser humano.

Jano também simbolizava o deus das metamorfoses, das transformações, da mudança, da sabedoria, podendo ser representado com uma face masculina e feminina, ou outras dualidades, como guerra e paz, sol e lua.

Para Ovídio a face dupla de Jano exercia o seu poder sobre a terra e sobre os céus.

E de deus que presidia aos começos, do início de todas as coisas, como o início do ano (januarius significa janeiro), tornou-se no deus das quatro estações possuindo, então, quatro cabeças, em vez de duas.

Para os romanos, o primeiro mês do ano era dedicado a Jano, celebrando-se as januárias, no início de janeiro, em sua honra, por analogia com as atuais celebrações de ano novo, num renascer permanente ano a ano, querendo descartar o passado (ano velho) e viver o futuro (ano novo), numa afirmação e formulação anual de rituais, balanços, expetativas e desejos que no essencial se repetem e que marcam a natureza transitória da nossa passagem no mundo que conhecemos.

No final e início do ano há sempre promessas e juras de metamorfoses em que acreditamos ou teatralizamos acreditar.

Há o passado (ano velho) e o futuro (ano novo) que, para Santo Agostinho, são figuras de linguagem de um tempo que já foi ou que virá a ser, mas que não é, em que a realidade existe apenas no presente, que é o tempo em movimento.

Um melhor e mais auspicioso 2021.

 

01.01.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

 

O FUTURO ABSOLUTO

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1. Face ao futuro, é essencial pensar. A palavra escola vem do grego scholê, que significa ócio, com o sentido de tempo livre para homens livres pensarem e governarem a polis.

Hoje, falta esse ócio, tudo se torna negócio (do latim nec-otium). A própria política tornou-se sobretudo negócio. Assim, sob o império da técnica e do negócio, não se pensa, calcula-se. A técnica não pensa, calcula (Heidegger), o mesmo valendo para os negócios.

 

2. O futuro vem grávido de esperanças, mas também com perigos: a guerra nuclear, as NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, ciências cognitivas, neurociências), desembocando no trans-humanismo e no pós-humanismo, a injustiça estrutural mundial, o meio ambiente, as drogas, a paz, os direitos humanos, o trabalho... Vivemos num mundo global, estes problemas são globais e a questão é que a política é nacional, quando muito regional.

Olhando para o futuro, não se impõe pensar numa governança global? Não digo governo mundial, mas governança global, já que os problemas enunciados só com decisões ético-jurídico-políticas globais podem encontrar solução.

 

3. Problema maior hoje: uma espécie de cansaço vital. Porque não há sentido último. Daí, nem é no desespero que se vive, mas na inesperança.

Só com Deus, "Futuro Absoluto" (K. Rahner), se pode erguer um futuro autenticamente humano, com Sentido final, pois Ele é o Futuro de todos os passados, do presente e de todos os futuros.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 28 DEZ 2019

CRÓNICA DA CULTURA

 

Que me dizes? Já passou o futuro? Então e a gente já não o vai viver? E passou em que tempo e em que rua? Quem te disse?

 

- Pois disse-me o desejo do futuro.

 

- Qual desejo? O teu desejo ou o desejo de todos? Ou o teu desejo do Pedro?

 

- Olha, estou confusa com as tuas perguntas. Não pensei que reagisses tão alarmada. Não vês que o futuro é o presente, e nele o futuro é uma espécie de vida suspensa, e quem o topa, vai, e vive-o. Pronto é isso o que sei.

 

- Mas isso é uma crueldade. Não vês que estou com gripe e a febre não me deixa ir a lado nenhum. Vieste visitar-me para me dizer isso? Ó Rita tem dó, há muitas maneiras de desperdiçar o tempo e dentro dele o tal tempo de futuro que se apanha numa porção especial do presente, mas dizeres-me assim essas coisas sabendo como eu estou? Até já nem sei quando me começou a febre, e se o tal pedaço de presente que é futuro, não tem em consideração uma espécie de suspensão para ser vivido mais tarde, se acaso a culpa não for nossa? Se não tiver em conta a nossa ausência de culpa, então sim, é que estou tramada: perdi imenso com a gripe.

 

- Alexandra tem calma ou a febre sobe-te. Disse-me o Pedro que estes dias em que a gente não topa o futuro, têm mais de 24h e é nesse acima 24 h que está o futuro que, às vezes, pode ser 1h, 10h, ou 1 segundo a mais das 24h. Ninguém sabe mais nada. Acontece.

 

- O quê pode ser um segundo? Pode ser só um segundo para se viver o futuro daquele dia? Ai! que já me sinto muito pior. Vou chamar o médico.

 

- Não! Não chames ninguém. A porção desse segundo foi o melhor beijo que o Pedro me deu. Foi uma porção de segundo imensa! E nada digas a ninguém. Isto é um segredo enorme, pois imagina tu se naquele dia, a porção fossem 10h?

 

- 10h? Que tarefa! Achas que o Luís pode saber disto e nada me ter contado até que chegue o tempo máximo das 10h?

 

- Não sei. Ele olha-te muito, mas enfim, a preparação rouba muito tempo à porção, e entretanto ele gasta-a pondo-te à prova.

 

- E a prova real será eu provar-lhe que aceito viver com ele no futuro? Deus! Não me quero de adivinha, mas pressinto que a sucessão do tempo, se não a acalmarmos, faz o futuro ser agora, e já ter passado, e tudo ao mesmo tempo. Que embrulhada me trazes, Ritinha!

 

- Alexandra, eu é que vou daqui confusa e a pensar que eu e o Pedro fomos mesmo muito parvos.

 

- Porquê?

 

- Ora porque se tu estás certa, e nós que só vivemos aquele futuro num segundo, devíamos era ter esperado mais. Ter esperado que o segundo fossem horas. Estou mesmo a ver que tu aproveitas a gripe e te preparas para as 10h, e ao tempo, dás ainda, na altura certa, um Lexotan à penúltima das horas, ou seja, às 9h. Estou mesmo a ver que primeiro que cheguem as 10h, tens um futuro imenso pela frente!

 

- Bom, a ideia tem pernas ó Rita, mas eu estou doente. Saberás tu quanto tempo dura isso do futuro ser presente? E sabes se se gasta? O meu maior receio, digo-te, nem é bem esse do futuro se gastar, mas o do desejo de o viver se tornar escasso, se acaso não depender só de nós.

 

- Agora é que me afundei. Viraste o tempo contra nós, contra o futuro, contra a tal porção que te falava no início, e tudo isto por conta do desejo estar só em nós. O futuro do qual falamos - cuida-te-, que mal uma pessoa se distrai e as 10h já eram… mas se o desejo for nosso e de alguém, então é que o futuro não é de ninguém e dura para além das 24h, sem que se intua o tempo que estará no para além das 24h.

 

- Talvez não seja como eu penso. Acalma-te! Afinal se esta gripe que me apanhou for a das aves – não te rias - eu contagio-te já, e até podemos voar para além das 10h.

Como sabes, os voos são sempre aproximações aos momentos e estes são bem maiores que os segundos, e até maiores que as horas, aliás estas até se espantam por não saberem quanto tempo a mais das 24h, têm os momentos. Foste uma querida em vir visitar-me. Foste uma querida por me trazeres um algo muito especial e ambas a podermos ir em direção a ele. Já viste? Livrámo-nos da vontade dos outros de nos tornarem distraídas face aos nossos desejos. Aos nossos desejos das porções de tempo de futuro que estão contidos em todos os nossos presentes. E la grande question est de décider ce que l’on sacrifiera: il faut savoir qui, qui, sera mangé, como dizia Valéry.

 

- Nós ou o tempo do futuro?

 

Teresa Bracinha Vieira

30 novembro