Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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A figura de Sandokan chega-me à lembrança e às mãos, na saudosa coleção da Romano Torres. Se acabo de falar de Corto Maltese, devo recordar que recentemente foram descobertas no espólio de Hugo Pratt diversas pranchas onde se documenta o encontro com Sandokan. E invoco Fernão Mendes Pinto, de Malaca até ao Japão, ligando a ele a alusão mítica e imaginosa de Sandokan, o Tigre da Malásia, não por ele só, mas também por Gastão de Sequeira, o português que o acompanha e representa os nossos mercadores e mercenários, que povoaram a Malásia, o Bornéu e as Molucas desde o século XVI. É muito curioso encontrar em cada canto do mundo um português. Corto é neto de um português célebre e Emílio Salgari colocou como braço direito de Sandokan um outro herói portuguesíssimo. É verdade que Emílio Salgari deu-lhe originalmente um nome pouco credível de Yañes de Gomera, mas a linhagem portuguesa não oferecia dúvidas. Entre nós foi conhecido como Gastão de Sequeira (que não deve perder-se). E Mompracem, a ilha celebrizada por Sandokan, que este desejava libertar do jugo de Sir James Brooke, pode ser Mengalum, nome relacionado com o grande Fernão de Magalhães, protagonista do maior feito na história da navegação, na grande travessia do Oceano Pacífico. Magalhães teria estado em Mengalum aquando da visita ao Sultão do Brunei… A alternativa seria a ilha próxima de Kuraman, mas a minha preferência é a outra. Devo aqui recordar aqui a prolífera tradutora portuguesa Leyguarda Ferreira (1897-1966), da série Sandokan em Portugal, bem como de Max du Veuzit e Magali, além de Dickens, Walter Scott, Jane Austen e Dumas. Foi ainda colaboradora de “O Senhor Doutor – Um Amigo que Diverte, Educa e Instrui” (1933-1944), ao lado de José Gomes Ferreira (o avô Cachimbo), Odette de Saint-Maurice e Ana de Castro Osório. Do mesmo modo que Júlio Verne, Emílio Salgari (1862-1911) era um falso viajante, que nunca deambulou além do Adriático, e que colhia informações em enciclopédias, revistas, relatos de viagens e mapas de longes terras. O jovem Emílio tinha vocação marítima, mas reprovou na escola naval, fazendo-se então repórter. Nos folhetins criou um universo de intensa ação, surpresas narrativas, cenários exóticos e personagens fortes. Umberto Eco em “A misteriosa chama da Rainha Loana” (2007) invoca o seguinte “estava de novo a remexer no armário, estavam lá todos os romances de Salgari, com capas coloridas, onde por entre volutas elegantes surgiam sombrio e impiedoso o Corsário Negro, e de cabeleira preta e bonita touca delicadamente desenhada no rosto melancólico, o Sandokan dos Dois Tigres, com a sua cabeça feroz de príncipe malaio num corpo felino, a voluptuosa Surama e os prahos [pirogas] dos Piratas da Malásia. (…) Era difícil dizer se estava a redescobrir alguma coisa ou se estava simplesmente a ativar a minha memória de papel, pois fala-se muito ainda de Salgari, e críticos sofisticados dedicam-lhe artigos cheios de nostalgia. A descoberta continua.
Cheguei à secção dos mapas. Procurei um próximo do nosso tempo, mas tive dificuldade, uma vez que as edições eram inglesas e francesas, mas não a que eu desejava. Fiquei, por isso a deleitar-me com uma versão de 1502… Falo do planisfério, dito de Cantino. É a cópia de um mapa de grandes dimensões que estava na sala das cartas da Casa da Guiné e da Mina, onde se administrava a exploração e a colonização dos territórios descobertos à ordem do Rei de Portugal. Provavelmente, Alberto Cantino, espião ao serviço do Duque de Ferrara, subornou um cartógrafo português, ou conseguiu que um ilustrador italiano reproduzisse clandestinamente esta preciosidade da altura. Conta-se a pequena história de que Cantino pagou doze ducados pela carta e recebeu do Duque de Ferrara vinte ducados por tê-la conseguido. Junto da gravura que tenho, feita no século XIX, a cores, encontrei um pequeno caderno de capa vermelha, onde anotei os roteiros de Corto Maltese, que a seguir reproduzo… «Nasceu o maltês, descendente de um português, grão mestre da Soberana Ordem de Malta, em La Valetta, em 1887, e foi com sua mãe para Gibraltar, tendo ainda vivido no Bairro judeu de Córdova e frequentado, por influência do Rabbi Ezra Toledano, em Malta, a escola judaica… A vida aventurosa começou cedo. Em 1900, com treze anos, encontrámo-lo na China, aquando da revolução Boxer. Em 1904, com dezassete, embarca em Malta, como marinheiro do “Golden Vanity” e faz um percurso longo: Ismailia (Egipto), Aden, Mascate (onde encontra a memória da presença portuguesa no Gofo Pérsico em Oman), segue para Karachi, Bombaim ou Boa Baía, cidade que foi dada pelo rei de Portugal como dote de D. Catarina de Bragança aquando do casamento desta com Carlos II, (referências dos portugueses no bairro de Mazagão), Colombo (em plena Taprobana, Ceilão), Chenai, (Madras), Rangun (Mianmar), Singapura, Kowloon (Hong Kong), Xangai e Tien-Tsin. Rumo à Manchúria – Corto encontra-se com Jack London (1876-1916) e com o homónimo do monge louco russo, Rasputine, em plena guerra Russo-japonesa. Em 1905 está nas Celebes, a oeste de Bornéu, no mar partilhado pela Indonésia, Filipinas e Malásia. E segue para a América do Sul: Chile, Argentina, e entusiasmando-se com a Patagónia. Regressado à Europa, em Ancona, encontra-se de novo com Jack London e descobre Eugene O’Neill (1888-1953). Entre 1908 e 1913 faz um périplo fantástico – Marselha, Trieste (onde encontra James Joyce) e Tunísia. Parte para América do Sul, envolvendo-se na magia de Salvador da Bahia, e depois nas Antilhas e Nova Orleães – e volta para a Ásia – Índia e China, com especial atenção à Indonésia, Java, Samoa e Tonga. É o tempo da “Balada do Mar Salgado”. É a convulsão do primeiro conflito mundial. Corto embrenha-se no Pacífico, na Nova Guiné, e segue para o Chile (Iquique), Peru (Callao) e Equador. No Panamá Corto e Rasputine separam-se, porque este tem cabeça prémio nos EEUU. E em 1916 Maltese viaja pela América Latina, Guiana francesa e Suriname. Em 1917 o cenário é o das Antilhas, Belize, Maracaibo, Venezuela, Honduras e Amazonas ocidental, perto dos Andes. 1917 é o tempo dos celtas em Veneza e Dublin e no ano seguinte: França, Iémen, Somália e Etiópia. Passada a página da guerra sangrenta, o percurso é Xangai, Manchúria, Mongólia e Sibéria. É a estranha missão da sociedade secreta chinesa das Lanternas Vermelhas, de recuperar o tesouro da família imperial russa que se encontra na posse do almirante Kolchak. Com Rasputine segue entre a Sibéria e Hong-Kong. Regressa à cidade dos Doges e o mundo onírico invade a narrativa, 1921. Em Rodes vai estudar, de outro modo, a viagem de Marco Polo, desta vez para tentar descobrir o fabuloso tesouro de Alexandre, o Grande. A Turquia, o Irão e a URSS estão a criar-se. É “A Casa Dourada de Samarcanda”, a defesa da vida de Rasputine e uma perigosa viagem: Azerbaijão, mar Cáspio, Tadjiquistão, Paquistão, Afeganistão. Corto testemunha a morte do líder dos jovens turcos Enver Pasha. Entre 1923 e 1936, as viagens sucedem-se; Argentina, Suíça (encontro com Hermann Hesse e Tamara Lempicka), Caribe (ainda com Rasputine) em busca de Atlantis; Etiópia com lembrança de Rimbaud em Harar (Etiópia) e ainda encontro com Teilhard de Chardin»… Mas o sistemático pequeno caderno tem mais…
Continuo às voltas com as pilhas de livros da minha biblioteca. Desta vez, despedi-me por um pouco do fantasma de Camilo Castelo Branco, a quem voltarei em breve. Ontem à noite, depois do meu passeio higiénico, vislumbrei numa das esquinas do meu bairro um amigo do velho Calisto Elói. Confesso-vos que quase me esquecera dele. Tem a mesma pose fora de moda e a distração própria de quem há muito não vive neste mundo, mas é um apaixonado da banda desenhada e tornou-se um colecionador frenético de aventuras de Banda Desenhada. Desta vez, fiz por nos desencontramos, mas uma das nossas últimas charlas foi sobre a genealogia de Corto Maltese. Em lugar da recordação medíocre de Calisto, embrenhou-se agora na descoberta das raízes familiares portuguesas do herói de Hugo Pratt. E depois de ler as «Memórias Secretas» de Mário Cláudio (D. Quixote, 2018) entrou na busca sistemática dessa ligação lusitana. Tudo começou quando percebeu que o mundo dos fantasmas de Mário Claúdio constitui um manancial inesgotável. A vida reserva-nos muitas surpresas!... O entusiasmo do meu conhecido é tão sistemático e até doentio que ele vive presentemente num novo mundo de fantasmas – uma plataforma de ironia e pesadelo, como se se tivesse mudado em sonhos para Veneza, com “Casanova, saltando da masmorra para uma coluna, e depois para um telhado, Scarlatti vogando de rosto velado por tules vermelhos, cautério para a sua incurável antropofobia, quem poderá garantir que não resultante da obsessão cultivada pelas ninfetas órfãs, e cantoras de um coro de querubins”. A Sereníssima República dos Doges é um mundo à parte de tudo o que possamos conhecer. Entre Lorde Byron e George Sand, Ruskin e Hemingway, aparece o imprevisível Corto Maltese. Também eu, como Mário Cláudio, conheci tardiamente a personagem, já que só em 1967, na revista “Sgt. Kirk”, Hugo Pratt lhe deu corpo. E tornou-se um notável mito romanesco – nascido a 10 de julho de 1887, filho de Vânia “la Niña de Gibraltar” (de quem Ingres se enamorou) e de um marinheiro da Cornualha. Corto foi dado à luz na ilha de Malta, sede da Soberana Ordem, na descendência de um português célebre, Grão-Mestre da dita Ordem, Frei Manuel Pinto da Fonseca (1681-1773). E deve lembrar-se que foi em sua em honra que a cidade de Qormi, onde se produz o melhor pão da ilha (e quiçá da Europa), se designou como Cittá Pinto, adotando o seu brasão de armas, com cinco crescentes vermelhos, simbolizando os otomanos que o mestre venceu com a própria espada de uma só vez. Os outros três Grão-Mestres da Soberana Ordem de Malta foram: Frei Afonso de Portugal (falecido em 1207), Frei Luís Mendes de Vasconcelos (falecido em 1623) e Frei António Manoel de Vilhena (1663-1736). Pinto da Fonseca fora milagrosamente salvo, depois de uma grave doença, pela sedutora Severiana, mãe da avó Corto, Maria de los Milagros, filha de Pinto da Fonseca. Milagros não teve as glórias que seu pai gostaria que tivesse tido, pois quem sucedeu a Pinto da Fonseca pôs fim a todas as honras. E assim temos a estirpe portuguesa de Corto, que ganhou tal nome pela exiguidade do seu corpo à nascença. Com estes novos elementos, talvez compreendamos melhor o fundo aventureiro, de quem se apaixonara pela obra-prima de Thomas Morus, ou não fosse português Rafael Hitlodeu… E como chegou Corto a Portugal? Pela mão de Dinis Machado e Vasco Granja, em 8 de março de 1975, na revista Tintin. Dir-se-ia que Mário Cláudio legitimou essa opção e completou-a. Hugo Pratt faz desaparecer Corto Maltese durante a guerra de Espanha, mas não foi o fim… Não desapareceu então, como assevera uma carta de Pandora. A 3 de novembro de 1941, dizem as “Memórias Secretas”, apesar da guerra sangrenta, Corto arrendou uma pequena casa na Ilha de Burano, na lagoa de Veneza, no Adriático, onde também moraram Tarao, Pandora, Abel e Sephora. Mas aí temos matéria para mais enigma....
O Morgado de Agra de Freimas, Calisto Elói, «naquele tempo, orçava por quarenta e quatro anos. Não era desajeitado da sua pessoa. Tinha poucas carnes, e compleição, como dizem, afidalgada. A sensível e dissimétrica saliência do abdómen devia-se ao uso destemperado da carne de porco e outros alimentos intumescentes. Pés e mãos justificavam a raça que as gerações vieram adelgaçando de carnes. Tinha o nariz algum tanto estragado das invasões do rapé e torceduras do lenço de algodão vermelho. A dilatação das ventas e o escarlate das cartilagens não eram assim mesmo coisa de repulsão. Estes narizes, se não se prestam à poesia lírica, inculcam a serenidade dos seus donos, o que é melhor. Eram assim os narizes de José Liberato Freire de Carvalho e de Silvestre Pinheiro Ferreira. Quase todos os estadistas de 1820 se condecoravam com a rubidez nasal. Não sei que há nisto indicativo de estudo, gravidade e meditação; mas há o quer que seja. As restantes feições de Calisto Elói de Silos eram regulares, a não querermos encarecer a alta e brunida cara, que poderia servir de rótulo a um talento abalizado, se o inimigo da Lucrécia Bórgia não fosse, a meu ver, capacidade eminente, viciada pela educação e tradições de família. Excedia a estatura meã e era direito de pernas. No tronco havia tal qual inclinação, que denunciava o arqueamento da espinha por efeito da incansável leitura e minguado exercício. O que certamente o desairava era o traje. Calisto Elói vestia de briche da Golegã, e dos alfaiates de Miranda. A gola e portinholas da casaca eram sérias demais para estes tempos em que um homem se veste hoje à moda, e daqui a um mês corre o perigo de sair ridiculamente entrajado. Não se sabe a razão por que o morgado da Agra se afeiçoara às calças rematando em polainas abotoadas de madrepérola. Vestira assim umas pantalonas em 1833, quando se matrimoniou com D. Teodora. Ou porque a esposa gostasse do feitio das calças, ou porque a moda se conservasse, mantida pelo fidalgo, na comarca de Miranda, o certo é que desde aquela época todas as pantalonas de Calisto foram talhadas pelas primeiras, e a abotoadura sempre aproveitada». É assim que conhecemos a personagem. Quando chegou a Lisboa, para tomar assento na Câmara do Deputados, era alguém que não destoaria muito de tantos dos seus colegas de S. Bento. Quando começou a pedir a palavra e a intervir, houve, no entanto, um sinal de alarme – um excesso de formalismo e a tentação de se exprimir a despropósito com citações e forçadas referências eruditas. «Ora, Calisto Elói, sem embargo da seriedade e gentil compostura da sua pessoa, não podia de todo poupar-se ao riso de certas pessoas da plateia. Estava ali gente que o ouvira fulminar no Parlamento o teatro lírico, e nomeadamente a Lucrécia Bórgia. Estava quem se lembrasse daquelas calças de polainas assertoadas de madrepérola, e do farfalhoso colete, e das pantalonas axadrezadas do aljubeta Nunes & Filhos». E o tempo não facilitaria a sua vida. Agravou-se a tentação de citar, a propósito e despropósito. É certo que as vestimentas modernizaram-se, porque ficou mais distante de Miranda. Mas, ao riso que provocavam no início os seus barroquismos e fixações, sucederam os comentários e os segredinhos que ocorriam quando passava ou procurava evidenciar-se. E assim tornou-se um símbolo das más influências da capital. O facto de ter passado a apresentar-se melhor não melhorou as coisas, uma vez que todos perceberam que essa era uma consequência de ter encontrado uma viúva rica, bonita e conhecida. Tornou-se assim um anjo decaído. E, para efeito deste folhetim, juntou o seu nome aos exemplos enumerados. No mundo destes fantasmas, ficaram as citações abstrusas e a cegueira da ambição. E retemos o fio da meada, à procura de quem esteja a ponto de fazer parte desta saga…
Tenho estado a folhear o meu velho “Album das Glórias”. Muitas vezes comparo-o com a londrina “Vanity Fair”, que o inspirou. Cada vez gosto mais do nosso… Mas não esqueço as figuras das ilustrações da velha Albion. A rainha Vitória comparava Gladstone a quem a confundia com um comício. Adiante. Prometi-vos que este folhetim seria uma espécie de gabinete de curiosidades. Tem sido, porém, um repositório de recordações de papel. Mas ainda não desisti de outras coisas. Temos caminhado ao sabor dos fantasmas que povoam a minha antiga livraria. Carlos Drummond deu o título, pelas pedras que descobrimos no caminho. Carlos Fradique Mendes lançou-nos ameaças homéricas, por termos desvendado que continua a existir, escondido numa toca qualquer. Justino Antunes, Gervásio Lobato e Tibúrcio Torres descobriram o espírito tonitruante do coronel Segismundo. O Conselheiro Acácio homenageou o génio incompreensivelmente obnubilado que deu pelo nome de Pacheco. E descobrimos que a estatueta que imortalizou Pacheco no Alto de S. João desapareceu misteriosamente, partida em mil pedaços num canteiro de Campo de Ourique. E em Pero Pinheiro apareceu a cabeça dada como perdida. Oh ignomínia! não era mais do que um Zé Povinho risonho e trocista. A verdadeira glória é a dos zombeteiros. E veio à baila o mais genuíno dos políticos. Nem mais do que Joãozinho das Perdizes. E ficou por dizer ou lembrar que, no fim de tudo, ele trouxe os seus apaniguados a votar no Conselheiro Manuel Bernardo, que dava já a eleição como perdida. O bom cacique. Era o ano de 1868, o do romance da Morgadinha, e então rebentou o motim no Porto, a “Janeirinha” – que teve como um dos seus heróis o velho Bispo de Viseu, figura especial. D. António Alves Martins (1808-1882) veio da província até à cidade para moralizar a nação pelo reformismo. Seu lema? «A religião deve ser como o sal na comida: nem muito nem pouco, só o preciso». Foi condenado à morte pelos miguelistas, mas nunca se deixou aprisionar, liderando o partido reformista, o da janeirinha, e chegando a Ministro do Reino. Celebrizou-se por uma afirmação: “Anda qualquer coisa no ar”. Logo houve chacota. Falaria ele de quê? De maus odores ou do rapé? O clérigo incarnava o espírito do morgado das perdizes… E eis-nos num ponto culminante. Zás, aqui nos chega o Senhor Camilo Castelo Branco, de braço dado com Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda. E relata a chegada do deputado da nação vindo do país profundo: «Por fins de janeiro, chegou Benevides de Barbuda a Lisboa, e alugou casa no bairro de Alfama, por lhe terem dito que, naquela porção de Lisboa antiga, a cada esquina havia um monumento à espera de arqueólogo competente. Ao cabo de três dias, Calisto mudou-se para rua mais limpa, supondo que os lamaçais de Alfama tinham tragado os monumentos, lamaçais em que ele desastradamente escorregara, e donde saíra mal limpo, e assoviado por marujos e colarejas, seus vizinhos mais chegados. Mau agouro! A primeira quimera de Calisto, seu tanto ou quanto científica, atascara-se na lama daquela parte de Lisboa, que devia ser a ínclita Ulisseia de Luís de Camões! O deputado, sem embargo de ir habitar o quarto andar de uma casa lavada de ares e muito desafogada na rua da Procissão, quis-lhe parecer que a atmosfera da capital não cheirava bem. Abriu um dos seus livros velhos, intitulado Do Sítio de Lisboa, etc., por Luís Mendes de Vasconcelos, e leu: «...E assim, de todo o território de Lisboa, parece que da terra, fontes e rios respiram suavíssimos vapores, amigos da natureza humana; porque é coisa certíssima que a benignidade dos ares deste sítio não só é por natureza deleitosa, pelo seu temperamento, mas de grandíssimo proveito para algumas doenças, etc...» Calisto Elói fechou o livro, e disse de si para consigo, tomando uma vez de rapé: — O meu clássico não podia mentir. Este mau cheiro é desconcerto da minha membrana pituitária. E alcatroou segunda vez as ventas com uma pitada desinfetante». Mas o tema continuará…
Já vimos, como Joãozinho das Perdizes invocou o pau de marmeleiro como disciplinador de conflitos e organizador da nação. É verdade que muito do palavreado usado na venda de Grijó correspondia mais a entusiasmo do que à realidade. Estamos no ano de 1868, data da publicação da “Morgadinha”. Os acontecimentos relatados situavam-se nos primórdios da política das Obras Públicas e dos melhoramentos de António Maria Fontes Pereira de Melo, no esteio do seu amigo Rodrigo da Fonseca. O certo é que havia desconfiança, pois a memória de Costa Cabral ainda estava viva. Daí a ambiguidade do discurso do brasileiro Eusébio Seabra. Não ficara esquecida a reação da Maria da Fonte e da Patuleia contra as papeletas da ladroeira, que eram as matrizes prediais. As bandeirolas temidas pelo morgado das perdizes eram reminiscências dessa memória, que não se apagava. Em Janeiro de 68, rebentou um motim de pequenos comerciantes e proprietários em nome da moralidade pública contra o novo imposto sobre o consumo. O jornal portuense “O Primeiro de Janeiro” nasceu deste movimento… Caiu o governo regenerador de Fontes e foi convidado o Duque de Loulé para constituir um novo executivo, mas rejeitou, seguiu-se a recusa do marquês de Sá da Bandeira e seria empossado António José de Ávila, futuro Duque d’Ávila e Bolama. O artífice deste sobressalto foi o Bispo de Viseu que aqui está representado com o seu pau de marmeleiro a fazer de bengala, para o que desse e viesse. Depois do golpe, acabou o imposto, nasceu o novo Partido Reformista, cujo programa era moralizar a nação, que durou pouco, até se fundir com os Históricos, criando o Partido Progressista. E o “Album das Glórias”, pela pena de João Rialto (Guilherme de Azevedo), conta esta deliciosa história: “Possuído do desânimo que assalta os bravos que no meio da feira parlamentar se sentem tolhidos… de leis para brandirem um arrocho, o reverendo bispo abismado do que apalpou e do que viu nas regiões do poder, voltou em breve às suas montanhas e à sua diocese como deve voltar um verdadeiro crente – “com o credo na boca!”. Se bem que desde então desça em longos intervalos das serranias para a política, a tribuna parlamentar deveu-lhe ainda (…) a frase mais sintética e mais expressiva de que se pode ufanar a loquela de um povo. No meio de uma discussão desorientada na aridez cerebral da Câmara Alta, no ponto culminante da contenda, o sr. Bispo pediu a palavra e bradou: - Sr. Presidente, anda qualquer coisa no ar! Os retóricos militantes riram desta exclamação, mas na verdade nunca tiveram outra que exprimisse de forma mais exata e mais nítida o estado mental da nossa sociedade, a obscuridade do seu ponto de vista, a incerteza dos seus destinos! «Anda qualquer coisa no ar!» Quer dizer: tapemos o nariz e esperemos. Ninguém sabe de que natureza é nem donde veio este cheiro; o que se percebe perfeitamente é que nas instituições existem miasmas que corrompem a atmosfera. O reverendo Bispo de Viseu pôde não ter grandes vistas políticas, mas ao menos mostra que tem ventas. Bem faz ele persistindo em não tomar o poder para continuar a tomar bom rapé!»... Assim tenhamos tanto faro.
Dei-me a procurar numa coleção antiga de obras da minha livraria uma representação de Joãzinho das Perdizes, o célebre artífice dos votos e das influências, símbolo do caciquismo, do carneiro com batatas, dos votos arregimentados do tempo do rotativismo, entre Regeneradores e Históricos. A figura foi criada no ano de 1868, o ano atribulado da janeirinha. Descobri-a numa edição da “Biblioteca Escolhida” da “A Morgadinha dos Canaviais – Crónica da Aldeia” de Júlio Dinis, feita na casa de J. Rodrigues & Cª Editores, de 1933, com ilustrações de Alfredo Roque Gameiro. E vejamos a gravura em pormenor. Acolá está ele, o Joãozinho das Perdizes, no centro da ilustração, com as suas suiças desajeitadas, bebendo o seu copo, na vasta assembleia da venda da aldeia. Mestre Bento Pertunhas, acusa o Conselheiro Manuel Bernardo de prometer demais, ao que o brasileiro Eusébio Seabra, de inconfundível vestimenta, obtempera que não o convencem as falas mansas e os anúncios das estradas que vão construir-se, pretendendo-se que existam para benefício de todos. São os mágicos melhoramentos do Conselheiro Fontes (já aqui comparado a Bismarck por Tibúrcio Torres). Mas, o brasileiro é ácido! “Para mim é que ele vem de carrinho…” .
Mas voltemos ao nosso morgado das perdizes. «Tudo por lá era o Sr. Joãozinho: não havia função, rixa, solenidade oficial para que ele não fosse consultado. É que a superioridade do morgado das Perdizes não era daquelas que intimidam e acanham o povo; ninguém hesitava em falar-lhe e em procurá-lo em casa, porque, falando e vivendo com eles o Sr. Joãozinho não constrangia ninguém. Os seus defeitos, a sua vida de feiras e de tavernas eram outras tantas causas a popularizá-lo; justo é porém que se diga que algumas boas qualidades também para isso concorriam. O Sr. Joãozinho não era avarento, nem soberbo. Sentado a beber, e com dinheiro no bolso, não consentia que pessoa alguma, desde o mais rico proprietário até o jornaleiro mais miserável, recusasse tomar assento a seu lado». Naquela roda de debate político, com muita desconfiança por causa das estradas que aí vinham, há prognósticos sobre as próximas eleições gerais. Há um larvar descontentamento ali em Grijó, Vila Nova de Gaia. Desta vez, Joãozinho ainda não sabe como votará. Muitas dúvidas! Talvez seja voto perdido! E o Seabra não está pelos ajustes. E o morgado das perdizes assevera que se os tais homens das bandeirolas tornam a passar nas terras “sempre lhes meço as costas com um marmeleiro que lá tenho, e que já me serviu para varrer a feira de Santo Estêvão. Uns mariolas». Na roda da conversa as queixas desenvolvem-se. «Quando se fala em estradas, já estou a tremer» (disse um dos lavradores) «O que elas vêm cá fazer é cortar-nos os campos, e afinal não sei para que servem».
Depois de nos encontrarmos com diversas figuras marcantes da nossa história constitucional, temo aqui duas genuínas figuras: o conselheiro Manuel Bernardo Mesquita, pai de Madalena, a Morgadinha, que depende da mobilização dos seus apaniguados; e o morgado Joãozinho das Perdizes que vai deixar suspensos os leitores do romance, sem saberem qual o destino político do conselheiro. E é neste ponto que vamos suspender o nosso relato. Não se trata de saber o que aconteceu e que todos muito bem sabemos. Trata-se sim de apurar neste complicado ano de 1868 como vamos desatar o nó que se vai estabelecer, quando um grupo de pundonorosos ilustres pretende salvar a pátria através do primado da virtude!…
Sabemos pela carta de Fradique sobre o extraordinário Pacheco, que esteve a um passo de ser nobilitado, não fora o seu inesperado decesso, e que esteve sepultado no Alto de S. João, num mausoléu, onde por sugestão do inefável conselheiro Acácio foi esculpida uma figura de Portugal chorando o Génio, graças a uma sentida carta publicada no “Diário de Notícias”, bem como ao contributo generoso de um conjunto de amigos e leitores. Todavia, anos passados, quando me aprestei a deixar um ramo de gerberas na base de tão gloriosa invocação, para lembrar a excelsa figura de Pacheco, deparei-me (eu disse alguém, mas, de facto, fui eu mesmo testemunha desse infausto momento), encontrei com surpresa um vil buraco e uma tabuleta anunciando a construção de um outro jazigo. Ora, ficou-me então a dúvida sobre onde se quedaria o pedaço de pedra de lioz que representava a glorificação do ex-futuro marquês de Pacheco. E lembro a estupefação de Fradique quando perante a viúva do ilustre finado, pouco mais encontrou do que uma vaga indiferença: «Meses depois da morte de Pacheco, encontrei a sua viúva, em Sintra, na casa do dr. Videira. É uma mulher (asseguram amigos meus) de excelente inteligência e bondade. Cumprindo um dever de português, lamentei diante da ilustre e afável senhora, a perda irreparável que era sua e da pátria. Mas quando, comovido, aludi ao imenso talento de Pacheco, a viúva de Pacheco ergueu num brusco espanto, os olhos que conservara baixos – e um fugidio, triste, quase apiedado sorriso arregaçou-lhe os cantos da boca pálida… Eterno desacordo dos destinos humanos! Aquela mediana senhora nunca compreendera aquele imenso talento!». Relatarei sumariamente que aconteceu nas minhas aturadas diligências para saber do destino da estátua “Portugal chorando o Génio”. De facto, sumiu a peça calcária. Os serviços municipais informaram-me que um canteiro de Campo de Ourique levou os despojos já danificados, para a sua oficina da rua Ferreira Borges. No registo que havia nos serviços do cemitério, dizia-se que havia dois fragmentos – um corpo e uma cabeça. Cheguei à fala de um velho mestre da cantaria em causa. Já se não lembrava bem do sucedido, tinha vaga ideia. Era uma estatueta de pouco valor, que se encontrava em mau estado. Ficou surpreendido com o título – não se apercebeu nem de sombra de Portugal e muito menos de génio… Depois, disse-me que tinham aproveitado as pedras para reparação de um antigo jazigo nos Prazeres. Todas? Não. Faltou a cabeça, que ficou esquecida e sem uso no fundo do armazém. Tentei ver se a encontrava. O canteiro não sabia, porém, onde tinham ido parar os pertences da loja. Mas um belo dia, recebi uma chamada de um telefone desconhecido. Era o mestre canteiro, que vivia em Montelavar, próximo de Pero Pinheiro e me disse que lhe parecia ter encontrado a misteriosa cabeça da estátua do Pacheco, que tinha com ele. Fiquei orgulhoso com a descoberta e dispus-me a ir a Montelavar, ver o achado. E assim fui ao encontro do senhor Canário (era seu nome). Mas, quando vi a cabeça, caiu-me o coração aos pés. Seria possível? O que ali estava era um Zé Povinho trocista, mal-amanhado. O mestre ficou desalentado por não ver o meu entusiasmo, e eu fiquei sem palavras… E assim saí de Montelavar talvez entendendo a viúva do Pacheco. O mistério não parava ali.
Há sempre novos mistérios na cidade. A memória de Acácio, o renomado Conselheiro, suscitou-nos o problema de saber onde terá ido parar a estatueta de lioz de Pero Pinheiro, que se encontrava no Alto de S. João no mausoléu em honra da figura de Pacheco, celebrado por Carlos Fradique Mendes, e esculpido por sugestão de Acácio, em carta ao Diário de Notícias, “Portugal chorando o Génio”. Alguns anos após a morte do notório admirador de Luísa, alguém desejou homenagear Pacheco e Acácio, depondo um ramo de gerberas no mítico monumento. Porém, esse alguém não encontrou mais do que um infame buraco e uma a tabuleta anunciando novo jazigo que ali se iria erguer. Um desalento, um despautério. Onde fora parar a escultura erguida com tanta devoção pela diligência do Conselheiro?
Importa lembrar o que diz Fradique do talentoso Pacheco: “Tenho presente, como num resumo, a sua figura e a sua vida. Pacheco não deu ao seu país nem a obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma ideia. Pacheco era entre nós superior e ilustra unicamente porque tinha um imenso talento. Todavia (…) esse talento que, duas gerações tão soberbamente aclamaram, nunca deu, da sua força, uma manifestação positiva, expressa, visível! O talento imenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido nas profundidades de Pacheco! Constantemente ele atravessou a vida por sobre eminências sociais: Deputado, Diretor Geral, Ministro, Governador de bancos, Conselheiro de Estado, Par, Presidente do conselho – Pacheco tudo foi, tudo teve, neste país que, de longe e a seus pés, contemplava assombrado do seu imenso talento. Mas, nunca, nestas situações, por proveito seu ou urgência de Estado, Pacheco teve necessidade de deixar sair, para se afirmar e operar fora, aquele imenso talento que lá dentro o sufocava. Quando os amigos, os partidos, os jornais, as repartições, os corpos coletivos, a massa compacta da nação, murmurando em redor de Pacheco “Que imenso talento!” o convidavam a alargar o seu domínio e a sua fortuna – Pacheco sorria, baixando os olhos sérios por trás dos óculos dourados, e seguia, sempre para cima, sempre para mais alto, através das instituições, com o seu imenso talento aferrolhado dentro do crânio como no cofre de um avaro. E esta reserva, este sorrir, este lampejar dos óculos, bastavam ao país que neles sentia e saboreava a resplandecente evidência do talento de Pacheco”. Mas que aconteceu verdadeiramente? Moveram-se céus e terra. Consultaram-se os arquivos do Município. De facto, um mestre de obras conseguira comprar por tuta e meia o que restava do sublime monumento, mas nada revelava onde fora para a estátua. Guardada num armazém? Vendida a um ferro velho? Na arrecadação de um antiquário? Nada. A procura foi aturada e sistemática. E lembro mais um passo da genial invocação de Fradique: o talento de Pacheco «nasceu em Coimbra, na aula de direito natural, na manhã em que Pacheco, desdenhando a “Sebenta” assegurou ‘que o século XIX era um século de progresso e de luz’. O curso começou logo a pressentir e a afirmar, nos cafés da Feira, que havia muito talento em Pacheco: e esta afirmação cada dia crescente do curso, comunicando-se, como todos os movimentos religiosos, das multidões impressionáveis às classes raciocinadoras, dos rapazes aos lentes, levou facilmente Pacheco a um prémio no fim do ano. A fama desse talento alastrou então por toda a academia – que, vendo Pacheco sempre pensabundo, já de óculos, austero nos seus passos, com praxistas gordos debaixo do braço, percebia ali um grande espírito que concentra e se retesa todo em força íntima. Esta geração académica, ao dispersar, levou pelo país, até os mais sertanejos burgos, a notícia do imenso talento de Pacheco. E já em escuras boticas em Trás-os-Montes, em lojas palreiras de barbeiros do Algarve, se dizia, com respeito, com esperança: - “Parece que há agora aí um rapaz de imenso talento que se formou, o Pacheco!». Mas faltava saber onde estava a estátua…
Se houvesse um local em Lisboa para colocar um memorial de recordação do Conselheiro Acácio, seria a meio da rua Garrett, rua Larga de Santa Catarina, naquele ponto em que Luísa se despede apressadamente para entrar na igreja dos Mártires. Nado e criado em Lisboa, com cerca de setenta anos, Acácio era um alfacinha de gema, solteirão sem família conhecida. Vivia com a governanta, que o atraiçoava, resistia às investidas de D. Felicidade. Era aposentado de diretor-geral do Ministério do Reino, vivendo num terceiro andar na Rua do Ferragial. Foi feito Cavaleiro da Antiga Ordem Militar de Santiago da Espada, em atenção aos seus merecimentos literários e às obras publicadas no domínio da economia política. Era autor de vultuosas monografias, como: Elementos Genéricos da Ciência da Riqueza e Sua Distribuição - Segundo os Melhores Autores; além do exaustivo Relação de Todos os Ministros do Estado desde o Grande Marquês de Pombal até Nossos Dias com Datas Cuidadosamente Averiguadas de Seus Nascimentos e Óbitos e da nutrida Descrição Pitoresca das Principais Cidades de Portugal e Seus Mais Famosos Estabelecimentos. Era ainda assinante antigo do Teatro de S. Carlos e conhecia a sociedade frequentadora da ópera e toda a intelectualidade do tempo. Tudo, sem esquecer a admiração que votava a Luísa, a heroína de “O Primo Basílio”, tendo-lhe dedicado um sentido obituário: «Mais um anjo que subiu ao Céu! Mais uma flor pendida na tenra haste que o vendaval da morte, em sua inclemente fúria, arremessou mal desabrochada para as trevas do túmulo…»
“Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até à calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos que de uma orelha à outra lhe faziam colar por trás da nuca – e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca”. Acrescia a palidez do rosto, as lunetas escuras, a covinha do queixo, “e as orelhas grandes muito despegadas do crânio”, que o vulgo designa como orelhas de abano. Mas à figura física, temos de juntar a verve, que fez de Acácio um tipo social e mental inconfundível: “Sempre que dizia – El Rei! Erguia-se um pouco na cadeira”, “nunca usava palavras triviais”, “dizia sempre «o nosso Garrett, o nosso Herculano»”. Por outro lado, não dizia vomitar ou regurgitar, mas sim “restituir”. Tudo junto, torna as suas palavras sinal picaresco de chiste… A personalidade, os gestos, a mentalidade de Acácio, paradigma de Conselheiro, deram lugar ao adjetivo “acaciano”, uma singular afirmação de sobrevivência da personagem presente na própria Correspondência de Fradique Mendes, quando este, ao fazer um resumo daquilo que na existência há de exemplar e contraditório, diz: “Em resumo adoro a Vida — de que são igualmente expressões uma rosa e uma chaga, uma constelação e (com horror o confesso) o conselheiro Acácio”. Do mesmo modo, na carta sobre o célebre Pacheco, pode ler-se, a respeito da morte daquela espécie de alter ego do Conselheiro: “Jaz no Alto de S. João, sob um mausoléu, onde por sugestão do senhor conselheiro Acácio (em carta ao Diário de Notícias) foi esculpida uma figura de Portugal chorando o Génio”. Ora, o mistério que desta vez suscito tem a ver com esse pedaço de pedra de lioz que misteriosamente desapareceu…