Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Eu prometi que voltaria a Camilo Castelo Branco e aqui regresso ao rico mundo dos seus fantasmas. Ele bem merece. Ajuda-me o José Viale Moutinho, incansável na busca literária das melhores referências à comesaina.
Lembrava-me há dias que a frase tantas vezes ouvida às nossas mesas “Comi como um Abade” é uma citação ipsis verbis do João Semana, nas “Pupilas do Senhor Reitor”, que se lamentava por ter ainda de ver uma doente, D. Leocácia, depois daquele opíparo ágape… E já repararam que um bom cozinhado é como um bom texto, com as palavras certas nos lugares certos, os condimentos adequados com boa sintaxe e riqueza vocabular… Lembram-se o que disse o Bispo de Viseu sobre a religião?
Camilo dava tudo por um bom caldo verde e tripas. Fialho de Almeida perdia-se por umas perdizes bem temperadas. Ramalho orgulhava-se de fazer as melhores batatas fritas do orbe. João Penha fazia sonetos ao presunto e ao salpicão. Paulo Plantier reuniu as melhores receitas de escritores. João da Matta fez as ameijoas que levam o nome de Bulhão Pato, sendo este um dos maiores fazedores de pratos com a melhor caça e não com ameijoas.
Mas vamos ao nosso mestre de Seide, num livro menos conhecido, mas não menos importante. Falo de “Quatro Horas Inocentes” (1872). A descrição é, a todos os títulos deliciosa, e poderia passar-se em qualquer das nossas casas, desde que se mantenha o bom hábito de comer à mesa, a horas, com o vagar necessário e os bons manjares. Vou, por isso dar a palavra ao nosso querido Camilo, para deleite dos nossos sentidos, dos nossos ouvidos e do nosso espírito.
Um breve conselho, a humanidade fez-se não para comer alimento em manjedoura nem para a comida rápida e cheia de ingredientes de má catadura. E já agora, mais duas notas: comer vem de cum e edere, que significa alimentar-se em companhia. E não se esqueça o ditado popular, que à mesa não se envelhece, porque a conversa e o encontro significam a memória viva que nos eterniza.
“Ao domingo, depois de ouvirem a missa, cuidavam do jantar à portuguesa, d’arroz, sopa e cozido: depois, para ajudar a natureza iam dar um passeio impando o bucho grávido e estoirido. Ao lusco-fusco, as portas se trancavam, e marido e mulher, numa só alma, e numa cama só, ressonavam em sorna e doce calma, e tinham sonhos doces qual toicinho-do-céu ou pão-de-ló. Ao romper da manhã, subtil e lesta, desvelada se erguia a esposa meiga, e o almoço fazia. A xícara de chá, pão com manteiga lobrigava o marido se o olho crasso e ramelado abria, em dias festivais, em dias d’anos era a pitança mais choruda e gorda: os anjos invejavam aquela e pingue sorda que os conjuges radiosos nas festivas barricas emborcavam (…) São moda agora uns fofos vaporosos omelettes soufflés denominados, e omelettes sucrées. São etéreos de mais estes bocados, e mesmo incompatíveis c’o estomago sincero português”.
No fundo, o sábio de Seide tinha razão – “ao pé de um bom estomago coexistiu sempre uma boa alma”…
É um problema eterno de “Coração, Cabeça e Estômago”…
Ao falarmos de património cultural, a gastronomia corresponde a um domínio sem o qual não se compreende a diversidade da criatividade humana. O património cultural imaterial tem aqui um dos seus paradigmas. E o caso de Maria de Lourdes Modesto e da sua “Cozinha Tradicional Portuguesa” merece especial atenção, uma vez que estamos perante um fenómeno pioneiro e original, típico dos anos cinquenta do século passado e de um meio de comunicação como a televisão desse tempo. Quando Domingos Monteiro decidiu na RTP apostar num programa específico de culinária, compreendeu que se tratava de um campo que deveria ser visto com exclusividade, beneficiando das qualidades intuitivas de uma mulher que soube lidar, de modo extraordinário, desde os idos de 1959, com um instrumento que poucos conheciam e cujas virtualidades soube aproveitar. José Quitério falou, por isso, de uma das cada vez mais raras guardiãs do fogo, numa metáfora de rara felicidade. E essa qualidade de guardiã é essencial, quando falamos de património cultural, que apenas se torna realidade viva quando pode contar com cultores de qualidade.
Foi tarde que em Portugal tivemos livros de cozinha. O mais antigo manuscrito de cozinha em português até hoje conhecido é o da Infanta D. Maria, neta do rei D. Manuel (1538-1577), duquesa de Parma e Piacenza, casada com Alexandre Farnese. Quando partiu de Portugal levou consigo um manuscrito com 73 folhas, encadernado em carneira, conhecido como “Códice da Biblioteca de Nápoles”, que se encontra junto a outros manuscritos da livraria da infanta. O livro reúne 67 receitas, abrangendo manjares de carne, de leite, de ovos e das coisas de conservas, assim como receitas medicinais. Aí encontramos a utilização ainda rara do açúcar, o ouro branco, e a curiosidade da primeira receita de lampreia, a única de peixe, ou da mais antiga de pastéis de leite, que antecipam os pasteis de nata. Mas só em 1680 se imprimiu o primeiro livro de receitas – “A Arte de Cozinha” de Domingos Rodrigues…
Ciente da necessidade de aproveitar o sucesso da televisão, um editor de grande sensibilidade como Fernando Guedes, no início dos tempos áureos da editorial Verbo, fixou em livro as receitas da TV, para responder às muitas perguntas das telespectadoras. E Paula Moura Pinheiro viu bem como essa escrita se tornou indispensável para compreender a cultura portuguesa, ao lado dos textos fundamentais de Orlando Ribeiro. E assim, mais do que os grandes gastrónomos oitocentistas, como João da Matta, Bulhão Pato ou Paulo Plantier e da erudição que os antecedeu, ou do que Berta Rosa Limpo e de seu filho Jorge Brum do Canto, ou ainda das duas amigas que se popularizaram sob o pseudónimo de Isalita – Maria Isabel Campos Henriques e Ângela Telles da Silva, Maria de Lourdes Modesto foi pioneira, a abrir novos caminhos e a criar novos públicos. E tudo começou com uma alcachofra, que se tornou símbolo de audácia renovadora que soube aliar tradição, modernidade e compreensão da vida moderna. Da sociedade rural ao tempo urbano, houve a compreensão da mudança. Se os gastrónomos antigos procuraram seguir hábitos, tradições e práticas multisseculares, o papel pedagógico da televisão permitiu abrir as perspetivas correspondentes a uma nova sociologia. Além da tradição, passou a estar em causa o consumo de qualidade, a prevenção da alimentação saudável (com o apoio de Fernando Pádua) e o património imaterial da gastronomia ligou-se à qualidade e à utilização de matérias-primas acessíveis, sem esquecer as boas tradições. E Maria de Lourdes Modesto marcou pela compreensão do equilíbrio entre criatividade, inovação e respeito pela identidade cultural, atlântica e mediterrânica, pelo diálogo entre o norte e o sul, e por um entendimento da diversidade do melting-pot, minhoto, transmontano, beirão, ribatejano, alentejano e algarvio, sem esquecer as ilhas atlânticas e a compreensão de uma cultura repartida, castiça, cosmopolita, enriquecida pelo achamento de novos mundos.
Como continente em miniatura e lugar de encontro de muitos povos, Portugal tem uma gastronomia naturalmente sortida e cheia de pequenos segredos e mistérios. Encontramos mesa rica e mesa pobre, mas fundamentalmente a mesa remediada no dia-a-dia, feita com o que são os alimentos da estação com a necessária sobriedade. Convém lembrar que a palavra “comer”, origem da “comezaina” queirozina, vem do latim cum edere, que significa alimentar-se em companhia, fator fundamental da transmissão de valores, da boa conversa, do convívio, da partilha do pão e do vinho. E diz o povo “à mesa não se envelhece”, percebendo-se que os afetos tornam a vida mais fecunda e duradoura. A literatura está plena dessa vital comunicação, que figura, em toda a sua riqueza, na eucaristia. E esta palavra, que vem do grego kharis, favor, graça, significa agradecimento, gratidão, ação de graças. O leitor de A Cidade e as Serras lembra a famosa ceia oferecida por Jacinto no 202 dos Campos Elísios, na comemoração do peixe da Dalmácia, encalhado e perdido no teimoso elevador dos pratos. O requinte transforma-se em caricatura, que aumenta o tédio. Mas também nos recordamos do arroz com favas, servido na primeira refeição de Jacinto em Tormes, para saciar a sua «velhíssima fome»? E aquilo que encanta o herói de Tormes não é o arroz, ou o apetecível frango assado no espeto, nem a salada temperada com azeite da serra, mas o vinho: “caindo do alto, da bojuda infusa verde – um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo”. Cada um lembrará momentos verdadeiramente restauradores, como uma cabidela de galinha pica no chão e um arroz solto bem simpático… A UNESCO declarou em 2013 património imaterial da humanidade a Dieta Mediterrânica, que envolve sete Estados - Chipre (Agros); Croácia (Hvar e Brac); Espanha (Sória), Grécia (Koroni); Itália (Cilento); Marrocos (Chefchaouen) e Portugal (Tavira). A Dieta caracteriza-se pelo consumo de elementos frescos, produzidos localmente, de acordo com as estações do ano. Promove a utilização de leguminosas, hortícolas, frutos secos, frutas diversas, incluindo citrinos, como laranjas e tangerinas, e ainda damascos ou albricoques, ameixas, romãs e outros…Comer é um ato cultural, a refeição em conjunto assegura a transmissão de valores culturais e éticos e a permuta de conhecimentos, além de negociações e acordos. O fundo mediterrânico revela-nos muitas palavras de origem árabe ligadas à alimentação: açorda, alcachofra, alcagoita, alcaparra, alecrim, alface, alfarroba, almondega, alperce, alqueire, arroz, azeitona, cenoura, escabeche, griséus, laranja, limão, sorvete, salada, tâmara e xarope. Percebe-se bem como a cultura portuguesa se faz de norte para sul e de sul para norte. Há um entrosamento, que leva à partilha de tradições diferentes. Comecemos pelo Pão. Etimologicamente vem de pan, que significa em grego tudo, e a variedade é extraordinária: de trigo, de milho, de centeio. E temos desde a broa de Avintes às bôlas recheadas, exemplos de fazer da massa de pão um fantastico alimento. O azeite é um néctar essencial. Corroborando o que Jacinto sentiu em Tormes, temos os vinhos, que o tempo tem tornado de maior qualidade, graças à delimitação das regiões, começada com Sebastião José, no Douro, com o vinho fino, se curarmos dos vinhos generosos. Há os vinhos verdes (no Minho e na continuação da Galiza, dos Alvarinhos) e os maduros, com grande desenvolvimento. Minho, Douro, Bairrada, Valpaços, Dão, Bucelas, Colares, Carcavelos, Setúbal, Alentejo, Algarve e Madeira são regiões de dimensão e importância diferentes, mas onde a qualidade singra. Júlio Dinis retrata-nos em “Uma Família Inglesa” a importância do comércio do vinho fino, baptizado como do Porto. Na variedade dos acepipes, que o grande gastrónomo Paulo Plantier importalizou em “O Cozinheiro dos Cozinheiros” (1877), temos magníficas sopas, a começar no célebre caldo verde, acompanhado de broa de milho, e a continuar na grande variedade dos legumes, e a terminar nas sopas frias alentejanas, o gaspacho (de tomate, pepino e pimentão). Na nossa gastronomia merece destaque o cozido à portuguesa, feito com vegetais, carnes e enchidos cozidos. No que respeita aos vegetais, temos feijões, batatas, cenouras, nabos, couves e arroz, carne de bovino de diversas partes. Nos enchidos, são típicos o chouriço, a farinheira, a morcela e o chouriço de sangue. No tocante aos enchidos, é de referir o subterfúgio usado pelos cristãos novos a partir do século XVI. Proibidos de comer carne de porco, os habitantes de Mirandela criaram uma salsicha feita com pão, arroz ou frango, que se assemelhava aos tradicionais chouriços e farinheiras com carne suína: e assim nasceram as alheiras. A lista das iguarias é extraordinária. Nos peixes e mariscos, temos o bacalhau vindo da Terra Nova, a sardinha, o atum e as ameijoas. E na doçaria, a variedade é apetitosa: ovos moles, pão de ló (desde Felgueiras a Ovar, variando na consistência), toucinho do céu, papos de anjo, pasteis de nata, pasteis de Belém, arroz-doce, queijadas de Sintra, travesseiros, pasteis de Tentúgal, pudim Abade de Priscos, e a doçaria do Algarve feita com amêndoa e figos, como D. Rodrigos, Morgados e Queijo de Figo… A melhor doçaria conventual é reminiscência dos gostos da nobreza, já que as filhas-família levavam para a congregação as receitas de família. O predomínio dos doces com gemas de ovos deve-se ao facto de as claras serem aproveitadas para os engomados dos hábitos e para clarearem as hóstias a consagrar. Sobrando muitas gemas, elas eram utilizadas nos doces. Uma das consequências do aumento da produção de açúcar (ouro branco) e respetivo barateamento, com as viagens dos portugueses e a produção das ilhas é a generalização das doçarias. E terminamos, referindo a natureza morta da autoria de Josefa de Óbidos. Como afirma António Pinto Ribeiro: «Uma tela de Josefa de Óbidos (1630-1684) cria mais apetite, sofistica mais o gosto e revela mais voluptuosidade do que todos os programas de culinária que as televisões exibem. Por exemplo, Uma natureza morta com doces e barros, de 1676, que está exposta na Biblioteca de Santarém. À boa maneira dos bodegón, esta composição meridional, quente, com grande riqueza plástica e cromática, apresenta uma combinação de doces e utensílios de barro de cozinha. O seu propósito era decorativo, embora houvesse uma simbologia cristã (e portanto programática) nessas obras que decoravam as casas nobres da época. A belíssima descrição de Gustavo de Matos Sequeira — desta e de outra pintura, Natureza morta com flores — diz que são “quadros de alto sentido decorativo, tão ricos de cor, dominadores pela opulência da composição (…), [dando-nos] com feminilidade conventual uma lição do que era a confeitura fria do seu tempo, empapelada de rendas, acondicionada em condessas de verga fina, resguardada em caixas pintadas (…) num jeito de glória teatral às virtudes domésticas da culinária doce”».
"Um Jantar de Escritores – Seleção de Textos e Notas Epicuristas" de José Viale Moutinho (Colares Editora, 2015) é um repositório de receitas culinárias com a particularidade de contarmos com cicerones célebres da nossa literatura.
UMA REUNIÃO DE RESPEITO Comecemos pela ilustração da capa, que merece referência. Da esquerda para a direita, temos Maria Rolim (editora da Colares), o sarcástico setecentista Tomás Pinho Brandão, Almeida Garrett (o divino), Bocage, Cesário Verde, Camilo Castelo Branco (Visconde de Correia Botelho), a quem dá a direita o prolífico José Viale Moutinho, como não poderia deixar de ser, depois seguem Fernando Pessoa, José Maria Eça de Queiroz, Júlio Dinis (escandalosamente pouco conhecido…), Mário de Sá Carneiro, António Nobre e a Ramalhal Figura. O José Quitério está a voar, e a ilustradora é Fedra Santos. Os escritores que faltam estão debaixo da mesa “entretidos com os ossinhos”. A crónica do livro é leve e feita sobre o joelho num dia de canícula. Mas o ser escrita sobre o joelho não quer dizer que não tenha sido muito pensada, pois este livro do meu querido amigo José Viale Moutinho está sempre por perto e conheço-o razoavelmente. Devo começar por dizer que o complemento natural desta obra é uma outra, essencial, de um contraparente meu, Paulo Plantier, autor de “Cozinheiro dos Cozinheiros” (1877), comerciante de livros e flores, o primeiro editor de Oliveira Martins… Lá está quase tudo o que sabemos da matéria… “Ao pé de um bom estômago coexistiu sempre uma boa alma”, disse o nosso Camilo. E conto um pequeno episódio que se passou comigo. Alguém quis-me ouvir sobe o grande memorialista Bulhão Pato e começou por me perguntar sobre as famigeradas ameijoas. De facto, a maior parte das referências a escritores gastrónomos tem a ver com Bulhão Pato, a propósito de um prato que ele não cozinhou nem era da sua especialidade. De facto, como bem se demonstra neste “Um Jantar de Escritores”, o escritor era um especialista de caça e assim é representado pelos irmãos Bordalo Pinheiro, Columbano e Rafael. Assim, temos neste precioso livrinho uma açorda à andaluza, perdizes à castelhana, arroz opulento (com codornizes e queijo parmesão) e lebre à Bulhão Pato. E se lermos com cuidado e respeitarmos as receitas verificaremos que são de comer e chorar… por mais. Mas cabe-me explicar a confusão tão comum. Um dia o grande chefe cozinheiro Mestre João da Matta, autor de “Arte da Cozinha”, do Hotel Central (do Cais do Sodré e do jantar de “Os Maias”), onde vimos pela primeira vez Maria Eduarda, quis homenagear o grande gourmet Bulhão Pato e dedicou-lhe um prazo original, que não pudesse concorrer com o homenageado; e assim nasceram as Ameijoas para Bulhão Pato! Eis uma história bem simples que gerou tamanha equívoca. Mas folheemos o livro e sigamos o plano da obra e as figuras da capa…
UMA OBRA ESSENCIAL O precioso livro abrange: Entradas, Sopas, Pão e Boroa, Saladas e outros acompanhamentos, Peixes e mariscos, Carnes, Sobremesas, Vinhos (uns de mesa e outros), Chá e Café, Digestivos e Arroz malandro. Mas tudo começa, muito bem, pelos bolos de bacalhau da “Ilustre Casa de Ramires” e continua nos ovos com chouriço, uma pratada devorada por Cruges – acompanhada apenas por uma chávena de café pelo Carlos… António Correia de Oliveira fala-nos do verde caldo e da loira boroa. Caldo sem boroa fica solteiro… Teixeira de Vasconcelos, o célebre autor de “O Prato de Arroz Doce”, sobre a Patuleia e a Maria da Fonte, ensina-nos a fazer um Arroz à moda de Valência. E Ramalho Ortigão ensina-nos a frigir batatas: “Não! Não morrerás comigo, o doce, ó bom, ó divino segredo” do delicioso manjar das batatas fritas. “A batata fica crocante por fora; por dentro o resultado é deslumbrante: fofa, amanteigada, farinhenta, inchada, leve e mole, como um sonho!”. Camilo Castelo Branco elogia a divinal lampreia. E confessa que a sua desgraça estava “nos apetites glutões delicadíssimos, que se limitam às subtilezas do bacalhau e do caldo verde. Um perfeito sibarita…”. E sobre linguados, Camilo, que enjoava com o mar, diz: “Está hoje um sol de poeta e de formigas. Saí de casa numa sege, fui até à beira-mar, não gostei, o mar a mim nunca me deu nada que prestasse, tirando algum linguado”. Em “O Crime do Padre Amaro, o Cónego Dias achava que uma boa cabidela de galinha era de “tentar Santo Antão no deserto”. Quanto a sobremesas, Abel Salazar diz-nos que “o Minho é lambão, e inventou três classes de doces, os doces de romaria, os doces caseiros e os doces de convento. São ingénuos e simples, sorridentes, embrionários, gaiatos de formas e de ornatos de açúcar branco, de açúcar róseo, os doces de romaria, entre os quais impera, fofo, elástico, dourado, o famoso pão-de-ló, enorme, em forma de roda, encastoado em papel”… João da Ega deixou cair ao chão um embrulho de queijadas de Sintra ao cumprimentar Maria Eduarda – “todo o embaraço findou através de uma risada alegre…”. E em “Coração, Cabeça e Estomago”, lemos sobre um fantástico requeijão: “Tomásia sentou-se do outro lado, e comeu e bebeu como a filha de Labão com Jacob”. E o poeta pícaro de setecentos Tomás Pinto Brandão agradece a um amigo uma bandeja de uvas e vinho de passas (“Em bandejas, sumo gosto / Em canecas, gosto sumo”). Eugénio de Castro invoca o carácter sagrado do vinho fino, que celebrizou a cidade do Porto: “Metido nesta garrafa / Por mão sabida e prudente, / Como joia, fui passando / Pelas mãos de muita gente”… Falando de café, Camilo diz: “É preciso almoçar em Braga. Lembro-lhes que é necessário pedir no botequim café forte; não se pedindo do forte, dão-nos fraco. (…) A certeza do café forte deu-nos alma”. São as reminiscências das nossas viagens orientais… Wenceslau de Morais explica-nos como no Japão toda a gente toma chá – ricos e pobres, nobres e plebeus: - bebe-se na ocasião das refeições e a toda a hora em pequeninos goles”. Já “a cozinha de João Semana era de um caráter portuguesíssimo e eu, ainda que me valha a confissão os desagrados de alguma leitora elegante, francamente declaro que, para mim, a cozinha portuguesa é das melhores cozinhas do mundo”… Mas como poderíamos esquecer Álvaro de Campos, na heteronomia pessoana? Exatamente para distinguir as tripas e a dobrada, na diferença entre o Porto e Lisboa. “Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo, serviram-me o amor como dobrada fria. Disse delicadamente ao missionário da cozinha / Que a preferia quente, / Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria…”.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
Os Jotas festejam este ano dez de casados. Assim, João e Joana, felizes autores de três descendentes diretos, todos varões, vão passar umas férias de mel no Japão. Pediram-me umas sugestões de itinerários e estadias (o João, em solteiro, já passara uma temporadazinha em nossa casa, em Tokyo), procuraram outras também, e lá traçaram programa e percurso nipónico. Faço votos de boa viagem e feliz encantamento por uma terra que julgo conhecer tão bem quanto me foi possível e que pacificamente amo.
Entretanto, dizem-me que Kamakura, cidade antiga e de muitos templos será uma das suas etapas. Curiosamente, na semana passada, os dois livros que me ajudaram a mobilar umas horas de insónia tratavam ambos de cozinha e gastronomia japonesa: Sandwich wa Ginza de, da escritora Yoko Hiramatsu (versão francesa pelas Éditions Picquier em 2019: Un sandwich à Ginza) e Kodoku no Gourmet, do mangaka Jiro Taniguchi (versão francesa pela Casterman em 2016: Les Rêveries d´un gourmet solitaire). Em japonês, kodoku significa solidão, isolamento, e Taniguchi, com guião de Masayuki Kusumi, desenhou dois livros sobre um petisqueiro abstémio que gosta de, solitário, ir experimentando a gastronomia de vários restaurantes de diversas cozinhas. Penso que, em português, um título que diria bem o conteúdo da obra seria "Deambulações e Devaneios dum Petisqueiro Solitário". Ou talvez devesse antes dizer Solteiro, em vez de Solitário, lembrado duma sonora gargalhada do Avô do Jota, o embaixador João de Deus Bataglia Ramos, há uns bons sessenta anos, em plena baixa lisboeta, quando, de passeio com ele e o filho mais velho, outro João de Deus, tio e padrinho deste Jota de que te falo, e meu querido amigo, larguei uma evidência que me houvera ocorrido: "De repente, percebi que ser solteiro quer dizer andar à solta!" Ao escrever-te esta carta, recordo-me dessa referência, creio que sem prejuízo das razões que seguidamente explano, e a pensar sugerir aos Jotas um certo almoço em Kamakura.
O templo de Komyo (o Komyo-ji) é budista, foi fundado no século XIII por um mestre da seita ou escola de Jodo-shu, ou da "Terra Pura", creio eu ; ganhou fama, ultimamente, pelas refeições vegetarianas que serve a visitantes turistas. A Yoko Hiramatsu lembra-nos que shoguns antigos dedicaram este templo ao estudo, mas que, hoje em dia, é um jovem cozinheiro, Takashi Ueda, do restaurante Miyokawa, conhecido em Kamakura, o autor e diretor das ementas respeitadoras das regras dietéticas e culinárias budistas que são servidas no templo. Apesar da sua juventude, o chefe Ueda é um mestre na preparação do caldo budista, arte básica daquela cozinha. Diz ele que manda vir de Hokaido, no norte, as algas kombu, e do Kyushu, no sul, os cogumelos secos shiitaké. "Para o caldo, utilizo meia centena de algas e uns noventa cogumelos. Na cozinha budista, é costume preparar-se um caldo gostoso e rico que sirva depois para uma série de pratos, desde sopas a guisados". [Sabes bem, Princesa de mim, porque já provaste, que também eu me entretenho, por vezes, a fazer uns caldos de cogumelos variados e dentes de alho, a que junto folhas de espinafre ou agriões, e um fio de azeite, para uma abençoada sopa!]
A Yoko descreve-nos a "Ementa do Exegeta" do chefe Ueda, que ela provou, para saudar a Primavera, em fins de fevereiro. Traduzo:
Prato liso: feijões pretos, confeito de legumes da horta do Komyo-ji, gengibre "myoga" com vinagre doce, favas "à jade".
Prato fundo: pele de tofu, taro, beringela descascada, algas hijiki com massa de glúten, ervilhas. Prato liso: rolo de pele de tofu fresco com pepinos e acompanhamento, flores de wasabi. Prato liso: tempuras budistas (angélica do Japão, beringela, abóbora menina). Taça: feijão verde em caldo me "miso" e sésamo. Tacinha: tofu com sésamo (wasabi e molho de soja perfumado). Tijela de arroz com legumes. Pires: três legumes em salmoura. Tijela de sopa de batata doce (batata doce, "daikon", cenoura, lâminas de tofu frito, bardana, alho porro).
A escolha dos legumes e flores presentes obedece ao propósito de configurar a ementa à celebração do advento da Primavera, que os filhos do Império do Sol Nascente iniciam na segunda metade de fevereiro. Assim, também a decoração dos pratos e taças em que tudo é servido se inspira de imagens e símbolos da estação em que a natureza parece renascer. Este princípio aplica-se também nos restaurantes e refeitórios que não fazem cozinha budista nem sequer vegetariana.
A oração antes da refeição vem escrita no invólucro dos pauzinhos para comer, e reza assim:
Recebemos este alimento No respeito dos benefícios da natureza E com gratidão pelo trabalho que foi feito. Após dez encantações Comecemos o repasto.
A ação de graças está sempre presente nas refeições japonesas, faz mesmo parte essencial da devoção xintó-budista à natureza e ao mundo todo. O nosso "bom proveito" ou " bom apetite", pronunciado no início de qualquer refeição partilhada, diz-se "itàdàkimás!" em japonês, isto é, "demos graças!"
Acabada a mesma, os convivas, de mãos postas para orar - e, nos mosteiros budistas, a convite de um monge assistente, que apenas aparece antes e depois do ágape - recitam esta reza:
Terminada a nossa refeição, com o espírito e o corpo satisfeitos Retomamos as nossas atividades E comprometemo-nos a honrar este dom. Recitemos dez encantações Para agradecer este repasto.
Não concluas, Princesa de mim, que ação de graças, respeito pela natureza e pelo trabalho humano, tal como a prestação de honras aos produtos consumidos, são exclusivos do budismo vegetariano mais rigoroso ou de qualquer religião ou filosofia. Na cultura nipónica, o ser humano é indissociável da natureza que o cria e da qual depende. Vou trazer-te uma curiosa ilustração, traduzida do "Sanduíche em Ginza" da Yoko Hiramatsu, que relata a sua experiência de um almoço de tsuki-nabe, em Hira-Sanso, na região de Shiga, a noroeste de Kyoto. São curtos trechos, mas muito elucidativos:
O senhor Matsubara, caçador, diz-me que, «no Inverno, os ursos são três vezes maiores do que no Verão, porque têm de se preparar para passar três meses sem comer nem beber. As bolotas são o seu alimento preferido. Da Primavera a meados do Verão, comem amoras e também se alimentam da seiva dos cedros e carvalhos». O urso é o mensageiro da montanha, o servo da floresta. Eis, sem dúvida, o que confere à sua carne delicadeza e generosidade. A sua gordura imaculadamente branca e luzidia é a banha das bolotas e das árvores...
... Na manhã seguinte, no coração do Inverno, a estalagem de Hira-Sanso está banhada de uma luz muito terna. Ao longe, os montes estão envoltos em bruma matinal. Na floresta recôndita, os ursos estão certamente adormecidos, todos enrolados. Ontem, o senhor Ito explicou-me a origem do "tsuki-nabe", o "cozido de urso":
«O urso come-se quando neva, antes da eclosão das flores na Primavera. Fui buscar um caracter à trilogia neve, lua, flores - tão cara a poetas e pintores - e escolhi tsuki (lua) para dar nome a este prato».
Ontem, o urso, trazendo consigo a terra de Hira, penetrou-me no corpo. Comer seres vivos é uma maneira dos humanos marcarem o seu respeito pela natureza, de lhe exprimirem gratidão, de acompanhá-la. Senti-o profundamente.
Ando a matutar, Princesa de mim, a divagação, em próximas cartas, por vários temas referentes à gastronomia japonesa, quer de índole religiosa ou filosófica, quer a tradições e superstições populares, quer, ainda, ao calendário e estações do ano, como a estéticas e etiquetas, à literatura e às artes plásticas e decorativas... A arte da mesa é, na verdade, uma festa contínua, um banquete de reunião da cultura nipónica. E como pensei em sugerir aos Jotas dois restaurantes especializados em kaiseki (dois ryotei), apenas lembro que tal estilo de refeição em 12 a 14 pratos os escolhe e dispõe atendendo a diversos tipos de culinária, de modo a contrastar paladares. Já te escrevi sobre isso, e creio que lhe fiz um apontamento para o meu Fomos em Busca do Japão. O primeiro desses ryotei, o Nanzen-ji Hyotei, situa-se em Kyoto Oriental, na zona do templo de Nanzen, quase visita obrigatória. O outro, o Waranji-ya, também em Kyoto, já foi por mim descrito numa das cartas para ti, com uma recordação do grande escritor Junichiro Tanizaki: Os compartimentos particulares do Waranji-ya são salinhas de quatro tatami e meio (+ ou - 7m2) em que o toko-no-ma e o tecto têm manchas escuras, dando uma impressão de escuridão que nem um candeeiro elétrico consegue totalmente eliminar. Mas substituindo o candeeiro por um castiçal, descubro, à luz tremente da chama, que as lacas ganham reflexos profundos e densos como pântanos. Eis um encanto novo que nos deixa compreender como os nossos antepassados, ao descobrirem esse unto a que chamamos laca, se tinham deixado encantar por esse lustro das cores do utensílios, e que tal não fora certamente obra do acaso.
Mas se, sempre em Kyoto, a par ou em vez de uma refeição de luxuoso requinte, os nossos Jotas - ou tu, Princesa - quiserem, antes ou também, descobrir o espírito culinário zen, vegetariano e rigoroso, poderão ir até ao Isuzen, no mosteiro Daitoku-ji, na zona norte da cidade, onde o almoço lhes será servido em teppatsu. As teppatsu são malgas de ferro, iguais às que, em tempos idos, os monges levavam para pedir esmola.
Ao falar-se, cada vez mais, de património cultural imaterial, temos de considerar a gastronomia e a culinária como matérias fundamentais.
E a verdade é que só podemos compreender as tradições e os costumes cuidando dos alimentos, sejam eles mais ricos ou mais pobres, consoante as circunstâncias, os territórios, as culturas e as economias locais.
Da sopa da pedra ao gaspacho encontramos tudo – desde a abundância à penúria, mas sempre a capacidade humana de superar as dificuldades e constrangimentos… E há a gastronomia popular e a culinária erudita… Há manjares de deuses e literatos.
Se lermos uma das obras-primas da cultura portuguesa gastronómica, percebemos isso mesmo. Falo-vos de «O Cozinheiro dos Cozinheiros», publicado por Paulo Plantier em 1870. Aí encontramos as mais extraordinárias receitas, as suas variantes e a sua história.
Hoje, a sua celebridade é maior no Brasil do que em Portugal, mas lá encontramos as nossas maiores glórias literárias e artísticas. E lá estão, por exemplo, as receitas de caça de Bulhão Pato, o grande memorialista, autor de «Paquita», braço direito de Herculano. E percebemos por que razão as «Ameijoas ditas à Bulhão Pato» não são uma receita do escritor.
De facto, foi João da Matta, o célebre cozinheiro do Hotel Central (o Hotel de «Os Maias») que, em homenagem a Bulhão Pato lhe dedicou o renomado manjar – que, aliás, o literato nunca cozinhou…