Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
1.O ser humano tem como uma das suas características ser laborans (trabalhador). Não apenas para ganhar a vida — uma expressão extraordinária, embora dura: a vida foi-nos dada e, depois, é preciso ganhá-la, e uma das coisas que me têm sido ensinadas pela experiência é que quem nada tem que fazer para ganhar a vida, trabalhando, porque tudo lhe é oferecido, nunca atinge uma adultidade madura —, mas também para se realizar autenticamente em humanidade. De facto, é transformando o mundo que a pessoa se transforma e faz. Isso é dito no étimo de duas palavras: a palavra trabalho vem do latim, tripalium, um instrumento de tortura (trabalhar não é duro?), mas também dizemos de alguém que realizou uma obra e que se vai publicar as obras de alguém (do latim, opera) — em inglês, trabalhar diz-se to work, e, em alemão, Werk é uma obra, sendo o seu étimo érgon, em grego. Ai de quem, à sua maneira, não realiza uma obra, a obra primeira que é a sua própria existência autêntica! Fazendo o que fazemos, o que é que andamos no mundo a fazer? A fazer-nos, e, no final, seria magnífico que o resultado fosse uma obra de arte.
Logo no princípio, Deus disse que o Homem tem de trabalhar. É próprio do Homem trabalhar, pois ele é constitutivamente relação com o mundo. Esta relação com o mundo é mais do que uma relação de trabalho para a produção de bens em ordem à subsistência: o trabalho é também realização própria, social e histórica: construindo o mundo, a Humanidade ergue a sua história de fazer-se.
Jesus também trabalhou, e trabalhou no duro. Normalmente, diz-se que era caprinteiro, mas o grego — os Evangelhos foram escritos em grego — diz que era um téktôn (donde vem arquitecto), isto é, o que antigamente se chamava um “faz-tudo”: era capaz de ajudar a erguer uma casa e preparar instrumentos agrícolas. Foi nessa relação dura com o trabalho, e foi a trabalhar que passou a maior parte da sua vida, que percebeu melhor a vida e, por exemplo, as relações entre quem tem muito dinheiro e os outros... Estou convencido de que, se o clero tivesse mais experiência do trabalho duro, haveria outra compreensão da Igreja na sua missão no mundo... A vida é exaltante, mas também é dura, esmagadora por vezes. Isso diz-se nos rituais dos mortos, quando se reza: “Dai-lhe, Senhor, o eterno descanso... Descansa em paz. Amén.” Tantas são as canseiras da vida!...
2.Mas Deus também estabeleceu um dia de descanso e Jesus, diz o Evangelho, também descansou. É necesssário sublinhar que a Bíblia faz questão de dizer que Deus deu o mandamento de um dia feriado semanal, santo, sem trabalho, para que o Homem fizesse a experiência de que não é uma besta de carga, mas um ser festivo. Tem de trabalhar — e duro —, mas não é besta de carga. E aí está o Domingo ou o luxo de um feriado aqui e ali. Aí estão as férias.
E as palavras não são arbitrárias. A palavra latina feria, no plural feriae, tinha o sentido de "descanso, repouso, paz, dias de festa". No século III, a Igreja assumiu os dias da semana como dias de "comemoração festiva", enumerando-os como feria prima, feria secunda, tertia, quarta, quinta, sexta, ou, invertendo a ordem das palavras: prima feria, secunda feria, tertia feria, quarta feria, quinta feria, sexta feria. Daí, ao contrário de outras línguas, como o espanhol, o italiano, o francês, etc., que adoptaram a classificação romana baseada na divinização de um planeta: Lunes, Martes, Lundi, Mardi, etc., o português ter seguido a designação eclesiástica: segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, etc. Que feira enquanto mercado esteja igualmente associada a feria deriva do facto de os comerciantes aproveitarem os dias festivos para vender as suas mercadorias.
O importante é sublinhar, até do ponto de vista histórico e etimológico, o carácter festivo associado às férias. Assim, em espanhol férias diz-se vacaciones e em francês vacances. Ora, vacaciones e vacances têm o seu étimo no latim vacatio, com o significado de isenção, dispensa de serviço. Os ingleses em férias dizem que estão on holidays, e isso quer dizer em dias santos. Os alemães, esses têm Ferien ou Urlaub. Ora, a raiz de Urlaub é Erlaubnis, com o sentido de dias livres de serviço e trabalho.
Se pensarmos bem, as férias não têm como finalidade serem apenas um intervalo no trabalho, para repor as forças em ordem a trabalhar outra vez e mais. As férias têm o seu fim em si mesmas: a experiência de que o ser humano é um ser festivo. É preciso apanhar sol na praia, no campo, na montanha, ler a grande literatura, ouvir música, que nos remete para origens imemoriais e para a transcendência utópica toda. É preciso reaprender a ver o sol a nascer e a pôr-se, e a exaltar-se com a lua enorme — cheia — ou pequenina que nem um fio, e com o alfobre das estrelas: isso que na cidade não se vê. É preciso voltar às alegrias simples: contemplar uma simples folha de erva, acolher o perfume de uma “rosa sem porquê”, como dizia Angelus Silesius, o inútil do ponto de vista da produção — "o fascinante esplendor do inútil", escreveu George Steiner —, exaltar-se com o enigma de um rosto, o mistério do ser e de ser. É preciso ter tempo para a Família, para os amigos, para ouvir o Silêncio onde se acendem as palavras que iluminam. É preciso ter tempo para a beleza: não é a beleza que redime o mundo, como disse Dostoiévski? Tempo para o melhor: ouvir Deus, dialogar com o Infinito. Rezar.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 21 AGOSTO 2021
Um conjunto de caraterísticas espirituais e materiais.
Começa por significar um elevado nível de desenvolvimento espiritual e social.
São tidos por civilizados os indivíduos polidos e bem-educados. São povos e culturas que usufruem de privilégios de um nível elevado e superior de desenvolvimento científico e tecnológico, cultural, espiritual, político e social.
Uma civilização pode reunir várias culturas, sendo interdependentes reciprocamente em termos de um mínimo de denominador comum.
A civilização é tida como o nível mais abrangente de identidade cultural.
Enquanto a cultura agarra mais de perto os valores próprios dos grupos que lhe são mais próximos (o biológico, a família, a tribo, a terra, a pátria, o país, a língua materna), a civilização é mais abrangente, englobando várias culturas, ocupando mais espaço e perdurando mais tempo, apesar das mudanças ocorridas no seu interior.
Abrangendo múltiplas culturas no seu seio, uma civilização pode consagrar a solução da diversidade sem unidade, da unidade sem diversidade e da unidade na diversidade.
Que dizer da Europa e da civilização europeia?
Embora com elementos comuns a outras civilizações, há nela elementos que a particularizam, resultantes da sua longa temporalidade.
Tem como principal base civilizacional a tradição greco-latina e judaico-cristã, a que acresce as navegações, a tradição revolucionária e liberal e a revolução industrial, com consequências a nível dos fundamentos políticos, económicos e técnicos, entre outros. George Steiner, na palestra A Ideia de Europa, define-a em cinco axiomas: o café; a paisagem a uma escala humana que possibilita a sua travessia a pé; ruas e praças com nomes de artistas, cientistas, escritores e estadistas do passado; a herança dupla de Atenas e Jerusalém; as trevas que a ensombram, mesmo nas horas mais luminosas, de Auschwitz ao Gulag.
Considerando que mesmo as ideias mais abstratas têm de estar ancoradas na realidade, questiona-se: como é que isso se aplica à ideia de Europa?
Responde num parágrafo célebre:
“A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos mapas essenciais da “ideia de Europa”.
Concebendo a Europa como uma identidade cultural, é a partir daqui que se deve pensar a civilização europeia e aquilo que deve ser a União Europeia, defendendo:
“O génio da Europa é aquilo que William Blake teria chamado “a santidade do pormenor diminuto”. É o génio da diversidade linguística, cultural e social, de um mosaico pródigo que muitas vezes percorre uma distância trivial, separado por vinte quilómetros, uma divisão entre mundos. Em contraste com a terrível monotonia que se estende do ocidente de Nova Jérsia às montanhas da Califórnia”.
É a defesa de uma solução de síntese: da unidade com diversidade.
E se o legado ontológico da Europa é o questionamento, perfilha a ideia de que a Europa ocidental pode “ter o privilégio imperativo de produzir, de pôr em prática, um humanismo secular”. E acrescenta: “Esta tarefa pertence ao espírito e ao intelecto”.
Uma ideia de Europa e de civilização europeia que tenha como valores fundamentais a democracia, a tolerância e os direitos humanos.
Exemplifica-o o ânimo espiritual e mental que permitiu a sobrevivência do pianista judeu-polaco Wladyslaw Szpilman, na segunda guerra mundial, com a imprescindível ajuda do oficial alemão Wehrmarcht Hosenfeld, retratado no filme O Pianista, de Polanski, ao som de Chopin, como se, naqueles momentos, a guerra não existisse, eclipsada pelo poder e força da música, unindo-os e libertando-os na adversidade, aliando inesperadamente em dignidade, tolerância e na unidade com diversidade, duas pessoas oficialmente inimigas, fazendo jus a uma matriz europeia humanista e transversal.
Há quem defenda que entre os intelectuais atuais os mais felizes são os cientistas, porque a ciência é poderosa e progressiva, não sendo posta em dúvida.
O seu trabalho dá-lhes felicidade porque é reconhecido, não só pelos próprios, mas também pelo público em geral, mesmo quando não compreendido.
Contrapõe-se que o mesmo não sucede com os artistas e os homens das humanidades, sendo menos afortunados que os da ciência.
Quando alguém, por exemplo, não compreende um quadro, um filme, um poema, um livro, conclui ser uma má pintura, má poesia, um mau cinema, uma má obra.
Mas quando alguém não compreende a teoria da relatividade conclui, com fundamento, que o seu conhecimento e cultura são insuficientes.
Einstein, nesta perspetiva, será admirado e reconhecido por todos, enquanto muitos dos mais proclamados pintores, poetas, cineastas e escritores serão infelizes, esquecidos, desprezados, perseguidos, morrem à fome ou na miséria.
A ser assim, pode pensar-se que apenas a ciência, e a tecnologia a ela associada, interessam à civilização e mundo atual.
É curioso que George Steiner, um dos gurus mais aclamados das humanidades, tenha elogiado e sacralizado o progresso científico e tecnológico, em fim de vida, desqualificando as humanidades, ao afirmar:
“As ciências não conhecem a hipocrisia, não fazem bluff. Na ciência verdadeira há o certo e o errado, e quem faz batota é obrigado a sair do jogo. Pelo contrário, as chamadas ciência sociais” fazem bluff o tempo todo, estão cheias de mentira, de conversa fiada”.
E acrescenta:
“O progresso e a descoberta estão no interior da dinâmica da ciência. Tive algum treino científico e tentei compreender ao menos uma ínfima parte do que os cientistas fazem. É um mundo novo, intocado. Nas humanidades, mais de 90% daquilo com que lidamos está no passado. Os livros, a música, a reflexão, a arte. É como os ponteiros do relógio a caminharem em direções opostas. Estou tão feliz por presenciar isso” (entrevista ao semanário Expresso, edição 2327, de 03.06.2017).
Será assim?
Houve tempos em que os intelectuais das humanidades eram tidos em alta estima, como na antiguidade grega, latina e Renascimento, ombreando com os cientistas, alguns simultaneamente homens de ciência, artistas e humanistas, de que Leonardo de Vinci é o magno exemplo, o que desmente, por si só, qualquer tentativa de divinização da ciência em desfavor da secundarização e mero bluff das humanidades, mesmo para quem entenda haver, de momento, um défice de pensamento crítico em todo o mundo.
“Entretiens” de George Steiner, par Ramin Jahanbegloo, Bibliothèques 10-18, Paris, 2000, é um conjunto de conversas com o pensador que apresentam de modo panorâmico uma visão global da sua obra.
LEMBRAR OS CLÁSSICOS «À medida que a nossa civilização passa a evoluir à deriva (ouvimos George Steiner), a literacia torna-se incerta. Como o chamado ‘pós-modernismo’ proclama, vale tudo. O que não significa que deixaremos de produzir e ler livros, alguns dos quais estimáveis, de visitar museus ou de construir salas de concertos. Continuaremos a fazer tudo isso. As audiências talvez cresçam. É muito o que se pode ler na Internet, ou admirar em reprodução holográfica…». No entanto, segundo o que nos é dado ver, a concorrência faz-se, em condições absurdas e viciadas, entre a qualidade e a fancaria. “Mandarins e artistas cada vez mais esporádicos multiplicarão esforços visando conquistar o estrelato no âmbito dos meios de comunicação de massa». Por isso, o intelectual fala sobre a necessidade de reintroduzir critérios de exigência que permitam a consagração de uma ordem de mérito que distinga «a excelência autêntica das formas de parasitismo que hoje proliferam como cogumelos» (Cf. Os Livros que Não Escrevi, Gradiva, 2008). George Steiner morreu há dias na sua casa de Cambridge. Nuno Júdice recordou no último número do JL o grande crítico de uma época em que “se sinalizaram o gosto e as tendências da nossa cultura contemporânea”. E lembramos uma conferência memorável na Gulbenkian em 2007. Hoje dou nota do facto de ter deixado a Nuccio Ordine o encargo de divulgar uma entrevista póstuma, com a condição de o fazer no dia seguinte ao falecimento do mestre, o que aconteceu nas páginas do “Corriere de la Sera”. A entrevista original data de 21 de janeiro de 2014, mas foi revista no ano passado. Nuccio Ordine começou por perguntar qual era o segredo mais importante que desejaria revelar nesta entrevista, e Steiner confessa que nos últimos 36 anos manteve um diálogo epistolar com uma interlocutora (cujo nome não revela), que considera um verdadeiro diário. Aí se encontram os sentimentos mais íntimos e reflexões estéticas e políticas. Essas cartas estão em Cambridge no Churchill College e apenas poderão ser consultadas depois de 2050. A ideia de uma entrevista póstuma sempre fascinou Steiner, com o objetivo de deixar uma mensagem para os que ficam e para despedir-se, deixando as suas últimas palavras. Em suma, trata-se de uma reflexão de conjunto e um balanço. “Nesta fase da vida as recordações do passado convertem-se no único e verdadeiro futuro interior”. Ao ser-lhe perguntado o que lamenta na sua vida, recorda o que afirmou na sua Errata, confessando não ter conseguido compreender alguns fenómenos essenciais da modernidade. A educação clássica, o temperamento e a carreira académica não lhe permitiu compreender completamente a importância de certos movimentos. Não entendeu devidamente a importância do cinema, como nova fase de expressão, reveladora da criatividade e de novas leituras, porventura mais ricas do que as clássicas da literatura e do teatro. Também não teria entendido o movimento contra a razão, o desconstrutivismo e alguns aspetos do pós-estruturalismo – bem como as repercussões do feminismo (que o próprio apoiou), e que assumiu uma função política e humana extraordinária.
O VALOR PARA CRIAR… No plano pessoal ter-lhe-ia faltado “o valor para criar” – a literatura criativa poderia ter tido um significado importante, mas Steiner não quis assumir o risco transcendente de experimentar algo de novo e próprio na narrativa. Crítico, leitor, erudito, professor são profissões que amava profundamente, mas é completamente diferente a grande aventura da criação… “provavelmente é melhor fracassar no intento de criar do que ter um certo êxito no papel de parasita”. De facto, a distância entre os que criam literatura e os que comentam é muito grande. O crítico vira as costas à literatura, e muitos colegas universitários nunca lhe terão perdoado ter-se destacado mais do que muitos dos autores que estudou e analisou. E o que mais sofreu teve a ver com o facto de não ter aperfeiçoado muitos dos ensaios que escreveu, e que mereceriam melhoramentos. Em contrapartida, o que o tornou mais realizado foi o ter ensinado e ter vivido em muitos idiomas. O francês, o inglês, o alemão e o italiano foram os seus idiomas e a possibilidade de traduzir poemas nessas línguas e de ir ao encontro da essência cultural foi o que o tornou mais feliz. E quanto aos desafios não cumpridos? Muitas viagens não realizadas, livros que planeou e não se concretizaram, ou encontros que não teve, “por falta de valor ou disponibilidade ou energia”. Poderia ter conhecido Martin Heidegger – mas ainda jovem não o quis importunar. E a vitória mais saborosa? Foi insistir na ideia que a Europa continua a ser uma necessidade fundamental e que, apesar das ameaças e dos muros que se constroem, não deveremos abandonar o sonho europeu. Pode ser que tenha passado o momento alto europeu, mas o contributo do velho continente não pode ser subestimado, como fator criativo e civilizacional.
VALORES CULTURAIS Daí a relevância e a necessidade dos valores culturais que não deixem abandonados ao consumismo e à mediocridade. G. Steiner sempre detestou o nacionalismo; por isso se demarcou do sionismo. Apesar de tudo, pensava no fim da vida que talvez pudesse ter combatido o chauvinismo e o militarismo em Jerusalém. Falando dos momentos tristes, lembra os amigos que já não podia voltar a encontrar e os lugares que nunca visitou. O certo é que a amizade tinha para si um significado enorme. Daí a importância dos amigos próximos, que nos últimos anos puderam dialogar e partilhar uma intimidade afetiva. “Talvez a amizade seja mais valiosa do que o amor – e isto porque a amizade não tem egoísmo nem o desejo carnal”. E quanto ao amor, recorda a importância do seu casamento, que não podia explicar-se racionalmente. “Creio que potencialmente as mulheres têm uma sensibilidade superior à dos homens”. E recorda o privilégio que teve por ter tido relações amorosas em várias línguas. Daí que considerasse que o donjuanismo poliglota foi uma ocasião de viver várias vidas. Depois de afirmar não crer em algo depois da morte, diz estar convencido que o momento do passo pode ser muito interessante. E termina a entrevista, pedindo desculpas a um amigo íntimo, durante muito tempo, com quem rompeu por um episódio de somenos. “Aprendi muito com essa experiência, como às vezes um instante sem importância pode transformar-se num facto decisivo na vida”. O entrevistador recordava ainda a proverbial irascibilidade do escritor, uma das características da sua personalidade, mas o interlocutor confessa que os anos lhe ensinaram a moderar-se, o que não impediu que tenha pago um preço caro pela sua ironia, amiúde muito mordaz, nem sempre bem recebida – o que levou, por desgraça, ao longo dos anos, a colecionar muitas hostilidades e a romper muitas amizades… Um dia Steiner disse que os Antigos são do amanhã, e acrescentou que desejaria que um livro seu dentro de muitos anos pudesse ser útil a alguém. Afinal, que são as humanidades senão a compreensão de um tempo longo de memória?
Desde o passado dia 4 do corrente, nós, órfãos para sempre.
O silêncio total neste tempo de luto face ao pensar plantado por Steiner é o tudo existir que tenho para lhe agradecer: e bem sei que não basta!
Tal é a razão das afinidades, que teremos frequentemente ensejo de observar, entre as fenomenologias da arte e as da abordagem ocidental da morte. Ao contrário do que pretende o cliché, o irmão da morte talvez não seja o sono, mas a arte, em particular a música. Ao mesmo tempo que exprime na sua essência a vitalidade, a força da vida e o prodígio da criação, a obra de arte é acompanhada por uma dupla sombra: a da sua possível ou preferível inexistência, e a do seu desaparecimento.
(…) Kafka a Milena: «Ninguém canta mais puramente que aqueles que estão no mais fundo do inferno; é o seu canto que tomamos pelo dos anjos». Deverá ser esse o único cantar?
De múltiplas maneiras emblemáticas da nossa condição moral, política e psicológica, neste momento da história, «o caos regressa». Mas estava também presente no momento da criação.
O desaparecimento de George Steiner é uma perda irreparável para a cultura europeia. Recordamo-lo neste texto.
STEINER: LINGUAGEM E SILÊNCIO Por Guilherme d’Oliveira Martins
«Linguagem e Silêncio – Ensaios sobre a Literatura, a Linguagem e o inumano» de George Steiner (Gradiva, 2014) é uma interrogação atualíssima sobre as humanidades e a comunicação nos dias de hoje. O que são hoje as Humanidades? Será que compreendemos plenamente o papel atual das chamadas humanidades quando o progresso científico e tecnológico segue caminhos inesperados e imprevisíveis? Basta lermos os grandes humanistas ao longo da história para percebermos que não podemos fechar-nos dentro de fronteiras rígidas, como se nos devêssemos ater apenas ao formalismo de algumas categorias tradicionais. Quando Dostoievski, em «O Idiota», põe na boca de Hipólito a pergunta ao Príncipe Michkine se haverá uma beleza que salve o mundo, não há uma resposta, apenas silêncio. É desse silêncio que Steiner, na prática, se ocupa – uma vez que não podemos descurar a emoção, a arte, a criatividade, a graça, a emoção e o espírito, mas temos de ligar-lhes o cuidado e a atenção. E se é verdade que há muito barulho à nossa volta, o certo é que temos de saber ver e ouvir, de modo que a indiferença e a idolatria não ocupem o espaço do sentido e da dignidade do ser. Eis por que razão devemos valorizar o silêncio, que permita ouvirmo-nos uns aos outros, e distinguir o que tem valor. Steiner costuma lembrar que por trás da casa de Goethe há um campo de concentração e que grandes atrocidades foram cometidas por quem dizia amar a arte. Eis por que não basta invocar as humanidades, é fundamental torna-las humanas. «Toda a minha vida (diz Steiner) me interroguei sobre se as humanidades realmente humanizam. (…) Passo o dia todo com os meus alunos a ler o «King Lear» e, ao voltar para casa, estou tão possuído interiormente por esse texto que não ouço os gritos de alguém na rua. Alguém grita por ajuda e eu não ouço. Sempre me intrigou até que ponto a ficção – e ficção é a palavra-chave – pode ser mais poderosa do que a realidade. Passei a vida a ensinar as pessoas a ler e a amar o que leem. Mas questiono-me a mim próprio sobre o perigo imenso de nos identificarmos com a ficção». De que falamos quando tratamos da literatura? Em bom rigor é da própria vida. O mesmo se diga das diversas artes – quando ouvimos Vivaldi, Bach, Mozart, Beethoven ou Mahler somos transportados para um domínio que supera a nossa natureza, mas que não pode fazer-nos esquecer que somos imperfeitos. Lembrando-nos de Dante e da sua viagem com Virgílio, percebemos que a vida tem inúmeras cambiantes, contraditórias, enigmáticas, sempre difíceis. Não é o facto de podermos usufruir do que há de mais sublime que muda a nossa natureza. E não é essa limitação que nos pode fazer negar a importância da dimensão artística – para compreendermos a relação entre a razão e a emoção e para entendermos que nunca sabemos o suficiente para ser intolerantes.
A cultura é um talento cheio de ambiguidades, e se Tolstoi não foi capaz de nos libertar da imperfeição, pelo menos, foi quem nos abriu os olhos para a força emancipadora das diferenças e das convergências… Caldéron de la Barca disse-nos que a «vida é sonho», mas não nos apresentou uma fuga à realidade, sim uma procura da realidade humana, do mesmo modo que Platão nos fala da alegoria da caverna… Perante os gigantes devemos ficar calados – mas temos de preservar a liberdade e o sentido crítico. Assim, George Steiner procura assegurar que não haja uma humanização da mentira. E chega, desse modo, à cultura científica, não numa lógica positivista ou naturalista, mas como a procura da capacidade criadora – que faz com que se encontrem o artista e o investigador científico, o novelista e quem descobre um novo tratamento para uma doença até então incurável… E o pensador diz-nos que a cultura científica tende a não conhecer a hipocrisia e a não fazer bluff. Quem faz batota é obrigado a sair do jogo. Nas ciências sociais talvez seja mais fácil fazer batota… É certo que as coisas não são tão simples assim. Mas do que se trata é de nos aproximarmos de Humanidades que se tornem humanas e humanizadoras… Mais poderosas que qualquer exército são as mentiras do totalitarismo. E este funciona através da linguagem. Como poderemos proteger-nos? Por vezes vivemos como se a memória fosse retrospetiva. Tratar-se-ia de considerar o mundo como um grande museu. Uma das razões para o otimismo de Steiner tem a ver com o facto de a ciência se ocupar do futuro. Mas não basta ver o mundo através desses contrastes. O Admirável Mundo Novo de Huxley reserva-nos muitas perplexidades e desenha um futuro inquietante.
As Humanidades têm, assim, de colocar as pessoas no centro da vida e do mundo – sem a tentação de repetir o que recebemos nem de considerar o novo como um absoluto. Mas surge a pergunta perturbadora: sobreviveremos como civilização? O pensador não está certo de qual a resposta. O nacionalismo é um poderoso veneno do nosso tempo. O chauvinismo torna o outro e o diferente como inimigos. Despreza as pessoas com nacionalidade diferente. A absolutização da identidade torna-se um fator de fechamento. Uma civilização autista tende a decair e a desaparecer por incapacidade de responder aos novos desafios, limitando-se a repetir tiques exteriores. O que nos caracteriza e nos distingue uns dos outros deve ser considerado como elemento de enriquecimento mútuo – não como de separação, de indiferença ou de ignorância. Os fundamentalismos e os protecionismos têm a mesma raiz. Hoje o tema dos refugiados não pode, pois, ser visto de modo simplista, como se correspondesse apenas a uma ordem de razões. Impõe-se articular a compreensão do outro, considerar a mobilidade das populações nos dias de hoje como algo de natural e tantas vezes necessário – bem como a cooperação para o desenvolvimento realizada nos países de origem… Os que se limitam a pensar na questão da segurança, bem como os que se atêm exclusivamente ao acolhimento de refugiados como tema humanitário estão equivocados – uma vez que há que equacionar a complexidade de temas, entendendo-se não só a resposta ao agravamento das desigualdades e à ocorrência dos fenómenos de exclusão, mas também a motivação social e humana e a emancipação cultural. A diversidade linguística e a comparação das diferentes literaturas colocam-nos no cerne da cultura como criação – e George Steiner permite-nos compreender a complexidade de fatores humanos que devemos considerar. E porventura estaremos hoje a atravessar um período muito semelhante ao que ocorreu no Renascimento. Daí a multiplicidade de pistas abertas e a necessidade de um diálogo entre saberes. O livro é ainda hoje uma referência para o pensador, mas ele próprio compreende que a criatividade e a resposta humana aos diferentes desafios vão depender de diferentes caminhos, a que a humanidade tenderá a responder de um modo múltiplo…
Os seis ensaios que constituem a obra «As Artes do Sentido» de George Steiner (Relógio d’Água, 2017) põem-nos perante o tema do confronto e da ligação ente Humanidades e as Ciências, o que constitui questão crucial quando se fala da noção ampla de património cultural que comemoramos este ano de 2018.
MAIS DO QUE UM ACERVO DO PASSADO O Ano Europeu do Património Cultural não celebra apenas um acervo europeu, uma identidade europeia ou um passado exclusivo. Falar de Património Cultural é falar de uma noção comum, universal, capaz de unir a humanidade e de criar condições para uma verdadeira cultura de paz, que a UNESCO tem proclamado. Estamos no centro do culto saudável das Humanidades. Este Ano Europeu situa-se na linha do que defende a Convenção de Faro, sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea (2005). Não se está a tratar de uma identidade europeia, fechada sobre si mesma, sucedâneo de identidades nacionais. O undamental é a referência ao Património Cultural, como realidade dinâmica e humanista. Recorde-se o que diz a Convenção de Faro: «O património cultural constitui um conjunto de recursos herdados do passado que as pessoas identificam, independentemente do regime de propriedade dos bens, como um reflexo e expressão dos seus valores, crenças, saberes e tradições em permanente evolução inclui todos os aspetos do meio ambiente resultantes da interação entre as pessoas e os lugares através do tempo» (artigo 2º, alínea a). E não esquecemos entre os objetivos deste instrumento do Conselho da Europa: “a preservação do património cultural e a sua utilização sustentável”, tendo por objetivo “o desenvolvimento humano e a qualidade de vida” (artigo 1º, alínea c), bem como a adoção das “medidas necessárias à aplicação do disposto na presente Convenção, no que se refere ao papel do património cultural na edificação de uma sociedade pacífica e democrática, bem como no processo de desenvolvimento sustentável e de promoção da diversidade cultural” (alínea d). É a prioridade à Cultura que está em causa, compreendendo-se esta ligada à Educação e à Ciência. Falamos do mundo da vida, das raízes, das aspirações, das atitudes e dos valores – do que recebemos e do que legamos. Eis por que razão quando Palmira foi destruída parcialmente na guerra da Síria, quando o diretor do centro arqueológico foi assassinado, ou quando qualquer parcela da humanidade e da sua cultura são atingidos é do património cultural no seu todo que está em causa. Não são os produtos do passado que devem ser repetidos – importa, sim, que o passado constitua uma base para compreender melhor o presente e para lançar as bases do futuro. E não esquecemos a lição de John Dewey quando falava da educação e da escola como realidades que pressupunham um “processo vivo”, um enriquecimento permanente pela experiência, uma sociedade aberta à inovação e à diversidade, uma democracia cooperativa. Neste sentido o cuidado do património cultural tem de ter um lugar especial na educação e na escola, na informação e na troca de saberes.
IDENTIDADE E PATRIMÓNIO Longe da tentação de ver o património cultural como uma marca exclusiva ou própria de uma comunidade só, temos de estar conscientes de que as identidades e o património cultural só se enriquecem abrindo-se à diferença e à alteridade. Só assim poderemos enriquecer o que é próprio, dando-lhe dimensão humanista e universalista, em lugar da tentação uniformizadora e indiferente ou de simplificações folclóricas e de uma cultura de bricabraque. Nesse sentido, neste Ano Europeu, propus logo de início, e foi aceite, o reconhecimento da necessidade de dar às escolas, às comunidades educativas e às famílias um papel especial – de modo a lançar sementes para o futuro e como exigência de não deixar o património cultural ao abandono, compreendendo-se simultaneamente que um monumento e uma tradição que estão próximos, têm de fazer lembrar as referências culturais e patrimoniais que estão mais distantes. Por isso, os concursos que lançámos nas escolas tiveram sempre presente a escolha de um elemento próximo e de um outro exemplo europeu – de modo a entender que há uma dimensão de abertura à diversidade que não pode estar ausente, e que torna mais valiosa e aberta a nossa identidade, como fator de troca, de respeito e de enriquecimento mútuo. O património cultural tem múltiplas componentes: monumentos, museus, edifícios históricos, arquivos, referências artísticas e arqueológicas – o património material -, tradições, costumes, línguas e dialetos, romanceiros, artesanato, música e danças, relações interculturais – o património imaterial -, mas ainda o património natural, o meio ambiente, as paisagens, o património digital, e a criação contemporânea… esta enumeração abre inúmeras pistas que nos obrigam a uma especial atenção relativamente à criatividade humana.
ENTENDER A COMPLEXIDADE Como tem ensinado Edgar Morin, importa compreender que a complexidade tem de ser entendida como chave do saber. Impõe-se que a informação de que dispomos se transforme em conhecimento e que o conhecimento se torne sabedoria. E que é a evolução das sociedades humanas senão uma sucessão de metamorfoses como as ciências naturais nos ensinam? Não é possível entender a importância das Humanidades sem ligar as culturas literária e científica, as artes e a matemática (como no-lo ensinou Almada Negreiros) – Sophia de Mello Breyner alertou-nos, deste modo, para que ler uma pauta de música ou distinguir um alexandrino ou uma redondilha obrigava a cuidar da numeracia. E se nos preocupamos com a relação com a natureza, temos de considerar a Ecologia, os recursos naturais em risco, as emissões poluidoras, o aquecimento global, do mesmo modo que os códigos genéticos, a ética suscitada pelo progresso científico e tecnológico como exigentes desafios para a Humanidade. E, se se fala da 4ª revolução industrial, temos de lembrar não apenas a microinformática ou as tecnologias de informação, mas também as novas fontes de energia e os progressos no domínio da saúde, como a imunologia e a evolução celular… O património cultural envolve, assim, um mundo fascinante, mas incerto e complexo. A cultura não é um luxo nem uma realidade supérflua, não é o último capítulo de um programa político, nem a cereja no cimo de um bolo – é uma prioridade absoluta e um tema transversal, que envolve a aprendizagem como fator decisivo do desenvolvimento humano, que reclama o espírito científico. A razão e os sentimentos estão intimamente associados, como nos ensina António Damásio, numa tradição antiga que encontramos desde os pré-socráticos até Montaigne ou Leibniz e à modernidade. A arte e a ciência reclamam o espírito criador e a necessidade de compreender como são incindíveis a continuidade e a inovação. A crise financeira que ainda sofremos desvalorizou a capacidade criadora e limitou-se à ilusão das economias de casino. A valorização do património cultural abre veredas atentas á dignidade humana. É a democracia que está em causa. Precisamos de instituições mediadoras nas quais os cidadãos estejam e se sintam representados, e em que participem. O património cultural liga-nos às gerações que nos antecederam e tornam-nos responsáveis pelo valor que formos capazes de criar, melhorando o que legarmos a quem nos vai suceder…
Guilherme d'Oliveira Martins
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“Toda a minha vida foi dominada pela pergunta: como é que aquilo pôde acontecer na Europa? Como é que por trás da casa de Goethe existe um campo de concentração? Como é que o país mais educado do mundo se tornou nazi? Nunca se esqueça que a educação na Alemanha era provavelmente a mais avançada, mas não foi suficiente para travar Hitler. Toda a minha vida me interroguei sobre se as humanidades realmente humanizam”.
“As ciências não conhecem a hipocrisia, não fazem bluff. Na ciência verdadeira há o certo e o errado, e quem faz batota é obrigado a sair do jogo. Pelo contrário, as chamadas “ciências sociais” fazem bluff o tempo todo, estão cheias de mentira, de conversa fiada”.
“E também existe outro fenómeno: pode ser-se um grande artista e um assassino, uma pessoa a favor do extermínio”.
“Quando ouço os cientistas, sinto alegria. Estão a passar um bom bocado” (excertos da entrevista de Steiner ao semanário Expresso, de 03.06.17).
Ao elogiar a ciência e vaticinar a queda e ambiguidade das humanidades, George Steiner (GS) tem uma visão idealizada e exaltante da ciência, contrária ao pessimismo que tem pelas humanidades.
Sendo um pensador, crítico literário, escritor, filósofo e um dos expoentes máximos da grande cultura europeia, é um homem especialista das humanidades.
Porquê, então, este desencanto com as humanidades?
Uma das razões é não terem evitado barbáries e crimes contra a humanidade como o holocausto, o antissemitismo estar de novo a aumentar por toda a parte, com os judeus em perigo iminente, num fenómeno sem fim à vista, não se tendo aprendido absolutamente nada com a História.
De origem judia, sente-se perplexo pela sua sobrevivência, “é um milagre ter sobrevivido”, o que significa ter ao longo da vida a obrigação ética de não esquecer os que não sobreviveram.
Idealiza, em alternativa, como refúgio, compensação e redenção, uma ciência idealista e verdadeira, desconhecedora da falsidade, do fingimento, da simulação e manipulação linguística das mentiras do totalitarismo linguístico.
Que ciência é esta? Ela existe? Existe uma ciência verdadeira que não conhece a hipocrisia, nem faz bluff?
É um dado adquirido que na ciência também há mentira, dissimulação, falsidade, erros e hipocrisia.
E há a interpretação, propaganda e manipulação dos resultados, consoante é feita por A, B, X ou Y.
Que dizer da bomba atómica e da inovação nuclear, a propósito de um lado negro, ou reino das trevas, das ciências, que desumanizam, e não humanizam?
O génio e talento de alguém na ciência não o torna uma boa pessoa.
O génio e talento de alguém nas artes e humanidades em geral não o torna uma boa pessoa.
O ser-se um guru da ciência ou das humanidades não faz, quem quer que seja, uma boa pessoa.
Nem as humanidades, nem a arte, nem a ciência é a pessoa. Estão acima do autor. Libertam-se da pessoa, do criador.
Steiner, depois de dizer, perplexo:
“Há um momento muito importante nos diálogos de Cosima Wagner, em que Wagner está lá em cima, no primeiro andar, e ela ouve-o ao piano a rever o 3.º ato do “Tristão”. Ele desce para almoçar, e de que é que eles falam? De como queimar os judeus. O homem que tinha estado a compor a melhor música do mundo desce para almoçar e discute alegremente como livrar-se dos judeus”.
Dá a resposta, questionando-se: “O que quero dizer é que eu não poderia viver num mundo sem a música de Wagner. A minha dívida para com ele é enorme. A minha dívida para com Nietszche, para com Céline! Que livros belos e horrendos! Não tenho resposta para estas pessoas. Não há explicação. Perante os gigantes temos de ficar calados”.
Uma obra cultural ou científica vale por si, independentemente das opções políticas, científicas, filosóficas, religiosas ou sociais do seu autor.
A ciência e as humanidades não são invenção recente, sempre existiram, no seu melhor e pior, em curiosidade e interligação autónoma e recíproca, havendo que saber distinguir entre a obra em si ou ao serviço de qualquer coisa, entre a obra “pura” e a pessoa ou a vontade do seu criador.
De maior desencanto seria viver num mundo em que não houvesse lugar para as questões colocadas pelas ciências sociais e humanidades em geral, e tão só, ou quase em exclusivo, para a descoberta e progresso científico que GS tem como ciência verdadeira, que também peca por défice, numa idealização excessiva e sacralizada, a nosso ver.
«Linguagem e Silêncio – Ensaios sobre a Literatura, a Linguagem e o inumano» de George Steiner (Gradiva, 2014) é uma interrogação atualíssima sobre as humanidades e a comunicação nos dias de hoje.
QUE HUMANIDADES? O que são hoje as Humanidades? Será que compreendemos plenamente o papel atual das chamadas humanidades quando o progresso científico e tecnológico segue caminhos inesperados e imprevisíveis? Basta lermos os grandes humanistas ao longo da história para percebermos que não podemos fechar-nos dentro de fronteiras rígidas, como se nos devêssemos ater apenas ao formalismo de algumas categorias tradicionais. Quando Dostoievski, em «O Idiota», põe na boca de Hipólito a pergunta ao Príncipe Michkine se haverá uma beleza que salve o mundo, não há uma resposta, apenas silêncio. É desse silêncio que Steiner, na prática, se ocupa – uma vez que não podemos descurar a emoção, a arte, a criatividade, a graça, a emoção e o espírito, mas temos de ligar-lhes o cuidado e a atenção. E se é verdade que há muito barulho à nossa volta, o certo é que temos de saber ver e ouvir, de modo que a indiferença e a idolatria não ocupem o espaço do sentido e da dignidade do ser. Eis por que razão devemos valorizar o silêncio, que permita ouvirmo-nos uns aos outros, e distinguir o que tem valor. Steiner costuma lembrar que por trás da casa de Goethe há um campo de concentração e que grandes atrocidades foram cometidas por quem dizia amar a arte. Eis por que não basta invocar as humanidades, é fundamental torna-las humanas. «Toda a minha vida (diz Steiner) me interroguei sobre se as humanidades realmente humanizam. (…) Passo o dia todo com os meus alunos a ler o «King Lear» e, ao voltar para casa, estou tão possuído interiormente por esse texto que não ouço os gritos de alguém na rua. Algyuém grita por ajuda e eu não ouçio. Sempre me intrigou até que ponto a ficção – e ficção é a palavra-chave – pode ser mais poderosa do que a realidade. Passei a vida a ensinar as pessoas a ler e a amar o que leem. Mas questiono-me a mim próprio sobre o perigo imenso de nos identificarmos com a ficção». De que falamos quando tratamos da literatura? Em bom rigor é da própria vida. O mesmo se diga das diversas artes – quando ouvimos Vivaldi, Bach, Mozart, Beethoven ou Mahler somos transportados para um domínio que supera a nossa natureza, mas que não pode fazer-nos esquecer que somos imperfeitos. Lembrando-nos de Dante e da sua viagem com Virgílio, percebemos que a vida tem inúmeras cambiantes, contraditórias, enigmáticas, sempre difíceis. Não é o facto de podermos usufruir do que há de mais sublime que muda a nossa natureza. E não é essa limitação que nos pode fazer negar a importância da dimensão artística – para compreendermos a relação entre a razão e a emoção e para entendermos que nunca sabemos o suficiente para ser intolerantes.
UMA CULTURA DE EMANCIPAÇÃO A cultura é um talento cheio de ambiguidades, e se Tolstoi não foi capaz de nos libertar da imperfeição, pelo menos, foi quem nos abriu os olhos para a força emancipadora das diferenças e das convergências… Caldéron de la Barca disse-nos que a «vida é sonho», mas não nos apresentou uma fuga à realidade, sim uma procura da realidade humana, do mesmo modo que Platão nos fala da alegoria da caverna… Perante os gigantes devemos ficar calados – mas temos de preservar a liberdade e o sentido crítico. Assim, George Steiner procura assegurar que não haja uma humanização da mentira. E chega, desse modo, à cultura científica, não numa lógica positivista ou naturalista, mas como a procura da capacidade criadora – que faz com que se encontrem o artista e o investigador científico, o novelista e quem descobre um novo tratamento para uma doença até então incurável… E o pensador diz-nos que a cultura científica tende a não conhecer a hipocrisia e a não fazer bluff. Quem faz batota é obrigado a sair do jogo. Nas ciências sociais talvez seja mais fácil fazer batota… É certo que as coisas não são tão simples assim. Mas do que se trata é de nos aproximarmos de Humanidades que se tornem humanas e humanizadoras… Mais poderosas que qualquer exército são as mentiras do totalitarismo. E este funciona através da linguagem. Como poderemos proteger-nos? Por vezes vivemos como se a memória fosse retrospetiva. Tratar-se-ia de considerar o mundo como um grande museu. Uma das razões para o otimismo de Steiner tem a ver com o facto de a ciência se ocupar do futuro. Mas não basta ver o mundo através desses contrastes. O Admirável Mundo Novo de Huxley reserva-nos muitas perplexidades e desenha um futuro inquietante.
COLOCAR AS PESSOAS NO CENTRO DA REFLEXÃO As Humanidades têm, assim, de colocar as pessoas no centro da vida e do mundo – sem a tentação de repetir o que recebemos nem de considerar o novo como um absoluto. Mas surge a pergunta perturbadora: sobreviveremos como civilização? O pensador não está certo de qual a resposta. O nacionalismo é um poderoso veneno do nosso tempo. O chauvinismo torna o outro e o diferente como inimigos. Despreza as pessoas com nacionalidade diferente. A absolutização da identidade torna-se um fator de fechamento. Uma civilização autista tende a decair e a desaparecer por incapacidade de responder aos novos desafios, limitando-se a repetir tiques exteriores. O que nos caracteriza e nos distingue uns dos outros deve ser considerado como elemento de enriquecimento mútuo – não como de separação, de indiferença ou de ignorância. Os fundamentalismos e os protecionismos têm a mesma raiz. Hoje o tema dos refugiados não pode, pois, ser visto de modo simplista, como se correspondesse apenas a uma ordem de razões. Impõe-se articular a compreensão do outro, considerar a mobilidade das populações nos dias de hoje como algo de natural e tantas vezes necessário – bem como a cooperação para o desenvolvimento realizada nos países de origem… Os que se limitam a pensar na questão da segurança, bem como os que se atêm exclusivamente ao acolhimento de refugiados como tema humanitário estão equivocados – uma vez que há que equacionar a complexidade de temas, entendendo-se não só a resposta ao agravamento das desigualdades e à ocorrência dos fenómenos de exclusão, mas também a motivação social e humana e a emancipação cultural. A diversidade linguística e a comparação das diferentes literaturas colocam-nos no cerne da cultura como criação – e George Steiner permite-nos compreender a complexidade de fatores humanos que devemos considerar. E porventura estaremos hoje a atravessar um período muito semelhante ao que ocorreu no Renascimento. Daí a multiplicidade de pistas abertas e a necessidade de um diálogo entre saberes. O livro é ainda hoje uma referência para o pensador, mas ele próprio compreende que a criatividade e a resposta humana aos diferentes desafios vão depender de diferentes caminhos, a que a humanidade tenderá a responder de um modo múltiplo…
Guilherme d'Oliveira Martins
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