Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Uma segunda reflexão sobre "O Amor das Três Laranjas" e Prokofiev leva-nos à consideração da arte num contexto político totalitário. Podemos dizer que, pragmaticamente, os sistemas políticos e os detentores do poder têm uma vocação totalitária. Por isso, é tão importante a institucionalização de contra-poderes, como também o respeito e defesa da liberdade de expressão. Esta, por disparatado que nos pareça, aqui e ali, o seu fruto tem pelo menos sempre uma virtude: interroga-nos. Prokofief saiu da Rússia em que já se anunciava o movimento "prolkul", a imposição pelo Estado, dos cânones da cultura do proletariado. Algumas décadas mais tarde, em 1942, Mao Tsé Tung afirmaria: "Exigimos a unidade da política e da arte, a unidade do conteúdo e da forma, a unidade de um conteúdo político revolucionário e duma forma artística tão perfeita quanto possível". Será preciso explicar algo mais? Em contraponto à tentação totalitária e ao centralismo autoritário, temos a tradição anarquista que, curiosamente, na cultura europeia, vai muitas vezes buscar a sua inspiração ao Evangelho. Do próprio "pai" de um socialismo anarquista que tanto influenciou, entre nós, uma certa geração coimbrã, disse o jesuíta Henri de Lubac, teólogo conciliar, que "exegeta de fantasia, Proudhon é, na nossa literatura, um dos grandes representantes da tradição bíblica"... Adversário do poder estabelecido, fosse clerical ou estatal, em nome da liberdade e justiça social, é todavia Proudhon quem diz: "Jesus é por excelência o tribuno dos povos... ...É por aí que foi, no seu tempo, e que permaneceu como expressão mais alta do génio popular, quer prático quer moral". Ou ainda: "A luz que ilumina os homens incendeia-me!" Mas não era apenas a autoridade dos poderes tradicionalmente estabelecidos que ele combatia mas a própria essência do poder como regulador de cima para baixo. Veja-se: "O meio mais seguro de fazer o povo mentir é estabelecer o sufrágio universal..." O ideal proudhoniano, o anarquismo, "é a ordem sem poder". E não era assim também para João da Ega? Não nos ocorrerá logo que Maurras se tenha inspirado em Proudhon, mas é Maurras quem escreve: "Um César anónimo e impessoal, todo poderoso, mas irresponsável e inconsciente, entretém-se a molestar os franceses desde o berço. Viva só ou queira associar-se, o cidadão francês sabe que vai encontrar, a cada passo do seu caminho, o César Estado, o César burocrático que lhe impõe ou propõe as suas diretivas com as suas proibições, ou as suas mercadorias com os seus subsídios"... O chefe de fila da Action Française, na defesa de um Estado nacionalista e forte e no ataque àquilo que, para ele, é a decomposição da França pela democracia, deita mão de argumentos que hoje ainda ressoam nos discursos ideológicos e políticos dos nossos neo-liberais: "O Estado francês, que hoje se mete em tudo, mesmo a fazer escolas e a vender fósforos e que, consequentemente, faz tudo infinitamente mal, vendendo fósforos ininflamáveis e distribuindo um ensino insensato, o Estado é, ele mesmo, incapaz de desempenhar a sua função de Estado..." e continua fustigando o facto de se sujeitar a autorização prévia a iniciativa ou a solução de questões locais ou vicinais, por se considerarem para tal incompetentes os cidadãos comuns, os mesmos que, todavia, são chamados a pronunciar-se, através das consultas eleitorais, sobre o regime político e económico do Estado, ou a "orientar pela sua escolha, pelo seu voto, a legislação, a alta justiça, a diplomacia, a organização militar e naval do país inteiro!"
Entre a utopia anarquista da "ordem sem poder" e a deriva totalitária da formatação estatal da vida de todos, a questão da organização da "polis", sobretudo a do convívio de consciências individuais soberanas, ainda não terá encontrado, apesar dos méritos de soluções como as dos sistemas orgânicos e estados corporativos, resposta mais equitativa do que a da democracia participativa. Como conceito. Na verdade, a manipulação do funcionamento dos sistemas representativos por grupos de interesses que, no menos mau dos casos, tratam comercialmente o comportamento político dos cidadãos, desafia-nos a um exercício contínuo de aperfeiçoamento dos espaços e mecanismos de participação de todos na vida da cidade. Mas tal reflexão não pode circunscrever-se à, nem sequer perspetivar-se pela, consideração de critérios das ciências políticas e sociais, como se o mero exercício de organização e mecânica de entidades, poderes e interesses, fosse inspirador e condicionante. Não. Ela deverá primeiramente incidir sobre a pessoa que, sendo necessariamente um ser em relação, é sempre uma referência plural, "as pessoas". Ora o ecossistema das pessoas, isto é, o meio ambiente em que vivem e se movem, é a cultura. Neste sentido, a cultura contemporânea apresenta facetas assustadoras, desde o domínio da propaganda política e religiosa (v. g. os fundamentalismos) até à vulgaridade do consumerismo. No seu libelo "La France contre les Robots", Georges Bernanos, em 1947, alertava para o perigo de nesta civilização do consumo, "o desenvolvimento das máquinas vir a desenvolver de maneira inimaginável o espírito de cupidez". E ainda: "Para as colossais máquinas de slogans, o objetivo não é convencer, operação demasiado delicada, mas destruir sistematicamente o espírito crítico, de o reduzir a nada - ou, pior ainda, de o ridicularizar, desonrar, como se ele fosse realmente uma forma inferior, suspeita, quase inconfessável, da atividade intelectual". Hoje, talvez devêssemos perguntar-nos se o ensino por aí dispensado não pecará por um excesso de fornecimento de noções e imagens, a consumir e debitar nos exames, e por uma carência de formação do espírito crítico e de estímulo do esforço pessoal.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 24.08.2012 neste blogue.
Creio que foi Robert Brasilach quem primeiro apelidou o grande Georges Bernanos de l´anarchiste chrétien. Terá, pois, dito O anarquista cristão... Todos sabemos que tem havido e vai havendo anarquistas cristãos (ainda escreverei uma carta a contar-te histórias), mas a distinção especial de Bernanos por Brasilach traz, a meu ver, água no bico, quiçá aponte algum desvio ou um lançar a confusão. O próprio Pio XII, todavia, mesmo sendo papa, não se deixou levar pelas acusações de desordem ou heresia feitas contra o escritor de combate e romancista. Aos que com ele insistiam para que pusesse no Index dos livros proibidos alguns de Bernanos, respondeu um dia: "Lá que aquilo queima, queima! Mas é fogo que ilumina!" O crítico e ensaísta Sébastien Lapaque, cronista de Le Figaro, no seu Georges Bernanos - encore une fois (Les Provinciales, Paris, 1998 e 2018 - edição aumentada) abre-nos uma janela sobre a escrita ardente e luminosa do autor de Journal d´un Curé de Campagne, La Joie, Sous le Soleil de Satan, etc.:
Não nos enganemos: a preocupação que atravessa o Soleil de Satan é idêntica à que origina La Grande Peur, e aqueles que caridosamente se esquecem do segundo desses livros, fariam melhor se o aceitassem. Em ambos Bernanos denuncia um mundo que cinicamente labora para poder passar sem alma. Em ambas as obras ele anuncia o advento de uma nova forma de barbárie. Procura comover os seus leitores - "que importa se de amizade se de cólera?" - e a levá-los a ajoelharem-se e a chamar por Deus.
[La Grande Peur des bien-pensants (1931) é o primeiro de sete ensaios, dos quais La France contre les robots (1945), de que também já te falei, foi o último. Entre ambos, contamos Les Grands Cimetières sous la lune (1938), Nous autres Français (1939), Scandale de la vérité (1939), Lettre aux Anglais (1942) e Les Enfants humiliés (1939/40) que, todavia, só foi editado em 1949, a título póstumo.]
Um mundo sem alma, essa tentação, ou deriva já, das nossas sociedades economicistas, quais cegos para a queda num barranco, é a nossa rendição, cultural e civilizacional, à tirania do dinheiro. Assim, há três quartos de século, clamava a voz profética de Bernanos, como neste passo de La France contre les robots, livro de que te falei ainda em carta recente, aliás, quando o ofereci à minha neta Inês, pela sua entrada na faculdade de direito da Sorbonne: O reino do Dinheiro é o reino dos Velhos. Num mundo entregue à ditadura do Lucro, qualquer homem capaz de preferir a honra ao dinheiro é necessariamente reduzido à impotência. Eis a condenação do espírito da juventude... Se, para infelicidade nossa, o dinheiro for, continuar a ser, a obrigatória motivação principal dos nossos comportamentos sociais, tudo o mais, nas nossas vidas, irá perdendo sentido, e do muito, muito, que nos constitui como pessoas humanas seremos esvaziados. Recorro à expressão lapidar de Adriano Moreira, que tantas vezes lembro: É substituir o valor pelo preço.
De nada valerá pedir a Deus que nos livre do mal... se não nos livrarmos, nós mesmos, de tal miséria.
Era muito ténue a madrugada, mal despontava a alba, quando a passarada desatou sinfonias bem sonoras: surpresa anunciando surpresas? Certo é que a canícula seca destes últimos dias não me deixara prever a súbita libertação de águas celestes que, mal os pássaros se calaram, foi abençoado refresco... Só não sei se tantas aves canoras a pressentiram ou, simplesmente avisadas, celebraram, anunciando-a. Esta manhã, a alegria precedeu o nascer do sol. E logo o peso de outro dia quente me reavivou a memória de imagens tremendas, o choro magoado de tanta gente que o incêndio raivoso de Pedrógão Grande privou de entes queridos e de bens estimados pelo valor do trabalho que os criou. Eis que agora apenas o silêncio dos pássaros me habita, e fecho os olhos: não quero ver a explicação que não encontro. Talvez espere que a contemplação do mistério de tudo me volte a reconciliar. Talvez esse fado da meninice que diz: É tão bom ser pequenino / ter pai, ter mãe, ter avós, / ter confiança no destino / e ter quem goste de nós... Se possa cantar assim: É tão bom ser pequenino, / tão fracos, tão pobres, tão sós, / sem sabermos do destino, / querer quem goste de nós! Ninguém sabe como se ressuscita, a fé encontra-se no que devemos esperar.
Aqui há dias, lia no Philosophie Magazine alguns artigos glosando o mote Quel part d´enfance gardons nous? - e encontrei várias citações de autores celebrantes da infância, momento construtor do nosso ser, talvez por ser a idade da esperança, aquela em que um olhar ou um sorriso ainda pode apagar desgosto e tristeza, por vir ao encontro do indestrutível núcleo de qualquer de nós, dessa força vital que é a tal esperança. Recorda-se o sentido evangélico da palavra de Jesus que diz se não fordes como estes pequeninos não entrareis no Reino, ou o ensinamento taoista - que contrariamente ao confucionismo, para o qual a infância é uma situação que deve ser abandonada, por ser o estádio das nossas incapacidades - a considera, não algo para ser deixado para trás, mas um objetivo, um fim a atingir, como nos explica Alexis Lavis, da Universidade de Rouen: Abra-se o livro atribuído a Laozi, o Dao De Jing. Em vários passos, Laozi, "o Velho Mestre", se serve da infância como imagem com valor de modelo. Ali se lê que " o sábio é semelhante ao menino nu. Enquanto os adultos complicam inutilmente a vida, o menino é um símbolo de simplicidade, de despreocupação. Para nos realizarmos, não precisamos de capitalizar saberes nem de entrar no jogo das interações sociais, mas de regressar a essa inocência primeira. Laozi até chega a comparar-se a uma criança de mama. Num trecho espantoso, diz de si mesmo: "ainda mamo na minha mãe"... ...Não se trata, é evidente, de um apelo à regressão, à infantilização absoluta. A "mãe", aqui, remete para o que os taoistas chamam o "Dao", ou Tao, a "Via", que é o fundamento de tudo o que é, o princípio de todo o movimento. O sábio "mama" porque se alimenta nessa fonte da vida - está numa relação de intimidade com o Dao. Em cartas antigas, Princesa de mim, também te falava do Shinto nipónico - essa Via dos Espíritos - tal como te referi o amae, palavra japonesa que resume a doçura do amor, da dependência da mãe, e afinal nos diz essa saudade fundadora da nossa pessoa. Lembro-te ainda duas expressões, uma de Gilles Deleuze, outra de Charles Baudelaire, neste Philosophie Magazine (junho de 2017): Só a infância é capaz de reanimar um adulto como se reanima uma marionete, injectando-lhe conexões vivas... E ...O génio mais não é do que a infância reencontrada à vontade. É, digo eu, essa nossa capacidade de renascer e recriar.
No meu pensarsentir, ser criança é ser ainda capaz de acreditar em que tudo poderá ser melhor, nós e os outros e o universo inteiro, pois que tragédia mesmo é só o inexplicável e há muitas, muitas coisas que só entenderemos quando formos "crescidos". E nenhum de nós sabe quando será nem se nos será então dado o apocalipse. A esperança não é, não pode ser, a pretensão de poder definir e decidir o destino do que se quer que seja, é apenas, autenticamente, a confiança infantil de que o porvir sempre virá por bem. Tal é quase impossivelmente aceitável pela nossa geração, tão convencida ela está de que tudo é controlável, ao ponto de tão facilmente apontar a outros culpas e responsabilidades pelos desastres que nos escapam... Não se prevê, precavê ou investiga, é sempre mais fácil a gente descartar-se.
Dois grandes escritores e pensadores europeus, Stefan Zweig e Georges Bernanos, estiveram exilados no Brasil, onde o segundo, aliás, recebeu a visita do primeiro na sua casa, em Cruz das Almas. Conta Geraldo França de Lima que Bernanos acolheu Zweig com amiga ternura e grande compaixão pelo drama interior que o judeu austríaco atravessava naqueles atribulados anos 40 do século passado. O escritor católico francês admirava nele o espírito europeu, europeísta e pacifista, e ainda a sua marcada defesa dos perseguidos e humilhados. Sentimento com raízes certamente muito profundas no autor do Journal d´un Curé de Campagne, Les Grands Cimetières sous la Lune, ou desse diário que, considero, será a sua mais bela obra: Les Enfants Humiliés. Os humilhados foram também personagens muito afetuosamente queridas por Stefan Zweig, um homem mundano que, todavia, nas suas novelas, se coloca sempre, como que por dever ético, do lado dos humilhados. Jean-Yves Masson, curiosamente, aponta ainda outro aspeto que, no contexto desta carta, gostaria de te mostrar: Um dos textosque mais me tocou foi uma das suas primeiras novelas, O Segredo Ardente. Uma criança é testemunha duma aventura entre a sua mãe e um homem. Mas nada diz, protege sua mãe. Encontramos aí o fascínio de Zweig pelo segredo, pelo que não se deve nem pode dizer. É também um grande texto sobre a infância.
Stefan Zweig suicida-se em Petrópolis (Brasil) no ano de 1942. À pergunta que lhe foi feita por Le Monde, sobre se o escritor austríaco não teria tido forças para recomeçar a sua vida no Brasil, de que tanto gostava,o mesmo professor da Sorbonne, Jean-Yves Masson, responde: ... Esse suicídio é misterioso... porque, afinal ele estava salvo, não estava na miséria. Mas tinha nele mesmo, há muito, um permanente fascínio pelo suicídio. Não como gesto de protesto, mas como gesto de liberdade, um modo de levar em conta o facto de que pertencia a um mundo que já não renasceria. A um mundo perdido, que ele viu acabar-se. Não quis ver o que se seguiria, o renascimento noutro mundo. Seria então um estrangeiro, não por feito do espaço, mas por feito do tempo. O que era verdade.
As pessoas, como as instituições, sejam estas nações, estados ou igrejas, existem enquanto assim podem, mas só são conforme forem capazes de ressurreição que, subjetivamente, é a confiante esperança da infância. Quando, logo após o suicídio de Stefan Zweig, que tantas elegias provocou, Bernanos escreve no brasileiro O Jornal (6 de março de 1942) um texto sobre as Apoogias do suicídio. Diz: Léon Bloy escreveu que devemos a verdade aos mortos. Desse lugar de repouso - locum refrigerii, lucis et pacis - donde doravante lhe é dado observar o mundo que a nossos olhos aparece como a exposição permanente de todas as formas da ignorância ou do ódio, mas de que certamente saberemos um dia que está perdido na imensa piedade de Deus, como um pequeno seixo no mar, o Sr. Stefan Zweig vê a verdade melhor do que nós, e tenho a certeza de que preferiria o silêncio a certos panegíricos sobre o seu acto desesperado... E mais adiante explica: O suicídio do Sr. Stefan Zweig não é, aliás, um drama privado. Mesmo antes e ter sido lançada a última pazada de terra sobre o caixão do célebre escritor, já as agências transmitiam a notícia ao público universal. Milhares e milhares de homens que tinham por mestre o Sr. Zweig, e como tal o honravam, podem ter pensado que esse mestre tinha desesperado da causa dele, e que essa causa estava perdida. A cruel deceção desses homens é um facto ainda muito mais lamentável do que o desaparecimento do Sr. Stefan Zweig, porque a humanidade pode dispensar o Sr. Stefan Zweig ou qualquer escritor, mas não pode ver, sem angústia, reduzir-se o número de homens obscuros, anónimos, que, sem nunca terem conhecido as honras nem os proveitos da glória, se recusam a consentir na injustiça, e vivem do único bem que lhes resta, uma humilde e ardente esperança. Quem toca nesse bem sagrado, quem arrisca a dissipar uma parcela dele, desarma a consciência do mundo e despoja os miseráveis.
Penso e sinto muito, minha Princesa de mim - agora que te escrevo uma carta que não terá continuação tão cedo, já que outros trabalhos proximamente me aguardam - esta minha união a Les Enfants Humiliés do Georges Bernanos, pelo poder da saudade da infância como esperança regeneradora, talvez a força que me faz escrever, bem pior do que ele, como acreditando que, afinal, ainda tudo está ao nosso alcance. Dou-lhe a palavra:
Falar uma linguagem cristã, uma linguagem que toque os corações, ganhe corações - não quero dizer uma linguagem somente ortodoxa, aprovada pelos censores, irrepreensível, mas uma linguagem cristã, Deus meu!... Quantas vezes, desde a vossa infância, ouvistes realmente falar cristão?... ... Não sei para quem escrevo, mas sei porque escrevo. Escrevo para me justificar. - Aos olhos de quem? -- Já vo-lo disse, mas desafio o ridículo de o redizer. Aos olhos da criança que fui. Que ela tenha deixado de me falar, ou não, que importa, não me acomodarei ao seu silêncio, responder-lhe-ei sempre. Quero mesmo ensiná-la a sofrer, não a desviarei do sofrimento, prefiro vê-la revoltada do que desapontada, pois a revolta, o mais das vezes, mais não é do que um passo, enquanto que a deceção já não pertence a este mundo, está cheia e densa como o inferno.
Por muito que me tivesse doído escrever-te tudo isto, sobretudo pelo receio de não me entenderes, dou graças a Deus e fico com saudade maior do menino que fui.