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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 15 a 21 de agosto de 2022

 

A Ideia de Decadência na Geração de 70, de António Manuel Machado Pires (Ponta Delgada, 1980) constitui uma obra fundamental para a compreensão da cultura portuguesa, numa perspetiva panorâmica.

 

António Manuel Machado Pires

 

FRADIQUE MENDES E ANTERO DE QUENTAL

A última vez que estivemos juntos, foi em S. Miguel, nos Açores. António Machado Pires ainda teve ânimo para nos lembrar as diabruras do nosso amigo Fradique Mendes. Companheiro de muitas peregrinações, ora intelectuais, ora sociais e políticas, ora profissionais, cheguei mesmo a desafiá-lo para uma difícil missão educativa, era um amigo dileto. Fradique foi nosso companheiro de reflexões e lembranças. Sobre ele falámos nesse último encontro: “Fradique Mendes viaja por todo o mundo civilizado (entenda-se Europa) e vai mesmo até ao oriente, onde constata que este está já tão decadente como o Ocidente… Aliás, a ideia de decadência havia de perseguir esta geração, que nos anos oitenta já estava a dar lugar a outra, fim de século. Num verdadeiro discurso de tentação, o diabo fala a Teodoro (n’ “O Mandarim”, de Eça de Queiroz) em carruagens de luxo com molas fofas como nuvens e Carlos da Maia também usufrui do conforto da mobilidade parisiense. De Paris vem a imagem do 202 de Jacinto, a quem Eça empresta traços que o fazem pertencer à geração de 70, contemporâneo de Antero” (Antero Hoje, 2017). Na lembrança do amigo que nos deixou, recordo ainda Almada Negreiros a afirmar, de modo insidiosamente chocante: «Ainda nenhum português realizou o verdadeiro valor da língua portuguesa (…) porque Portugal, a dormir desde Camões, ainda não sabe o verdadeiro significado das palavras». E António Machado Pires, com Vitorino Nemésio, compreendeu-o muito bem, afirmando as duas linhas de pensamento dominantes na reflexão sobre a cultura portuguesa, uma idealista e outra racionalista, representadas por Teixeira de Pascoaes e António Sérgio, devendo ambas ser consideradas “para o balanço de ser português na vida, na cultura e no mundo”. Dando maior importância ora a uma ora a outra, o certo é que os dois polos têm de estar presentes na compreensão e na construção do “ser de Portugal” (para usar uma expressão de Pedro Lain Entralgo). A vontade, o sentimento de pertença, “a estruturação da Cultura e a organização do Estado”, caminhando a par, na análise de António José Saraiva, a construção de um imaginário, a experiência “madre de todas as cousas” (de Duarte Pacheco Pereira e de Camões), os conflitos entre a sociedade antiga e a sociedade moderna (bem evidentes no Portugal Contemporâneo), a compreensão de um culto de sentimentos contraditórios, os mitos da origem, de resistência ou de predestinação, tudo nos permite tentar perceber quem somos e o que nos motiva e desafia. Daí termos de comparar, de ver de dentro e de fora, de cruzar saberes e campos de pesquisa.

 

UMA VISÃO PANORÂMICA

Ao contrário de considerações superficiais, designadamente sobre a Geração de 70, sem esquecer as raízes vindas de Garrett e Herculano, verdadeiros fundadores da nossa modernidade, António Machado Pires ocupou-se, com grande rigor, na demonstração do carácter complexo da cultura portuguesa como “melting pot” de múltiplas influências e de uma capacidade especial de assumir uma atitude crítica positiva, orientada num sentido emancipador, centrada não só nas preocupações ligadas à justiça e à coesão social, mas também na criação de condições concretas para pôr o coração do país a bater ao ritmo da civilização. Por isso, Machado Pires, ao analisar o final do século XIX português como período de paradoxal decadência considera essa ideia «como “complexo de inferioridade” de povo que olha outros povos com consciência da sua inferioridade e com nostalgia da grandeza passada, mas, apesar de tudo, ainda com um sentimento de missão, que, mesmo em períodos de crise, parece poder manter-se. Não julgamos ter sido outro o mérito maior da geração de 70: inebriada de leituras novas, ter-se ocupado muito da decadência e da Revolução, acabando “vencida” ou conformada, mas como diz Eça de Fradique, nobilitando a nação e a cultura nacional pelo próprio ato de refletir e pensar. Isto é, provando que uma nação existe porque pensa». E assim se confirma que essa complexa geração de 1870 não tenha sido verdadeiramente vencida, até porque «Vencidos da Vida» é uma expressão irónica, como bem sabemos, saída de um diálogo irónico entre Ramalho e Oliveira Martins. “Battus” é o que verdadeiramente somos, diziam os dois companheiros, no sentido de zurzidos pelos acontecimentos, mas não como desistentes ou conformistas. Foi essa, aliás, a mesma ideia defendida por Eduardo Lourenço, em nome de uma imperfeição que originava uma exigência de atenção aos movimentos globais e de capacidade crítica capazes de entender o “país relativo” de Alexandre O’Neill como “meu remorso de todos nós”. E a circunstância de ter havido a atitude depressiva do pessimismo, a verdade é que nos libertamos dessa tentação, ficando-nos na real convergência entre o picaresco do maldizer e o amor-próprio que nos leva ao orgulho essencial quando falamos da grei. Daí a ideia cultivada por Machado Pires, na linha dos mestres das Conferências do Casino Lisbonense da crença numa capacidade regeneradora, já que a nação existe porque pensa.

 

AUTONOMIA AÇORIANA

Defensor da autonomia açoriana, o estudioso da cultura portuguesa compreendeu como poucos a pluralidade de fatores que permitem considerar uma identidade aberta. O Atlântico constitui uma convergência de influências, um verdadeiro laboratório cultural, que invoca a mítica Atlântida e articula a Macaronésia. Estamos na base do paradigma de um idioma que se projeta em várias culturas e diversas línguas. O Roteiro Cultural dos Açores que, Machado Pires coordenou, constitui um trabalho muito sério e aprofundado que não pode confundir-se com uma obra de divulgação, como alguns pretenderam. Trata-se de um repositório fundamental que terá de se constituir em ponto de partida para uma ação necessária de apresentação de um percurso esclarecedor para o visitante, que permita descobrir a magia de uma natureza inesgotável e de uma história complexa, a ligar naturalmente património material e imaterial, flora e fauna, paisagem única, além de lugar de criação artística e literária, social e cultural. Quem quisesse um simples roteiro turístico e se contentasse com superficialidades, precisaria de outro instrumento. No caso do mestre humanista, encontram-se as grandes referências culturais dos Açores, muito para além de postais à la minuta. E assim poderemos encontrar Gaspar Frutuoso, Antero de Quental, Vitorino Nemésio, Manuel de Arriaga ou Natália Correia e a esplendorosa identidade açoriana – onde tudo floresce entre o diálogo universalista, o sentido de pertença e a criatividade humana. Não por acaso, a iniciar A Ideia de Decadência na Geração de 70, Garrett é citado nas inesquecíveis Viagens: “Vi o Tejo, vi a bandeira portuguesa flutuando com a brisa da manhã, a Torre de Belém ao longe… E sonhei, sonhei que era português, que Portugal era outra vez Portugal».

 

Guilherme d’Oliveira Martins

 

30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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(XXII) EÇA E A GERAÇÃO DE SETENTA

 

Esta célebre fotografia foi tirada no Palácio de Cristal na Cidade do Porto e reúne cinco amigos da geração de 1870: Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro. A imagem está ligada a um mítico almoço e à compra de um leque para oferecer a D. Emília, noiva de Eça, autografado com uma pena de cozinha, entre a pera e o queijo: “quem muito ladra, pouco aprende” (Antero), “escritor que ladra não dorme” (Oliveira Martins); “dentada de crítico, cura-se como pelo do mesmo crítico” (Ramalho), “cão lírico ladra à lua; cão filósofo abocanha o melhor osso” (Eça), “cão de letras, cachorro!” (Junqueiro). E a matilha escreveu um “envoi”: “São cinco cães sentinelas / De bronze e papel almaço; / De bronze para as canelas, / De papel para o regaço”… Esta é uma das últimas expressões felizes do tempo em que Antero pôde ser feliz na costa de Vila do Conde.

Eça de Queiroz confessa o seu “temperamento conspirador”, a sua costela socialista, a sua admiração pela Comuna, mas em “As Farpas” afirma: “Detestamos o facho tradicional, o sentimental rebate a sinos; e parece-nos que um tiro é um argumento que penetra o adversário – um tanto de mais!”… No fundo, defendia uma revolução pacífica, “preparada na região das ideias e da ciência”, influenciada por uma “opinião esclarecida”, numa palavra, uma “revolução pelo governo”. Contudo, ao longo das páginas das “Farpas”, encontramos o que designa como um “panfleto revolucionário”, que punha “a ironia e o espírito ao serviço da justiça”, enquanto causas semelhantes às dos Gracos, de Spartacus, de Moisés ou de Cristo… E, dez anos passados sobre o movimento revolucionário de Paris, nos anos oitenta, dirá: “os vencidos de então são hoje cidadãos formidáveis, armados não de uma espingarda revolucionária, mas de um legal boletim de voto, e que, em lugar de erguer barricadas nas ruas, fazem deputados socialistas nas eleições”.

Proudhon, o autor lido e venerado no Cenáculo de S. Pedro de Alcântara, entre a fumarada dos cigarros dos jovens amigos de Antero, continuará bem presente no pensamento inconformista do autor de “A Relíquia”. E não se preocupava ainda o Fradique tardio com a “miséria das classes – por sentir que nestas democracias industriais e materialistas, furiosamente empenhadas na luta pelo pão egoísta, as almas cada dia se tornam mais secas e menos capazes de piedade”? E não disse o próprio Eça, com apenas 22 anos de idade, no “Distrito de Évora” que “as revoluções não são factos que se aplaudam ou que se condenem? Havia nisso o mesmo absurdo que em aplaudir ou condenar as evoluções do Sol. São factos fatais. Têm de vir. De cada vez que vêm é sinal que o homem vai alcançar mais uma liberdade, mais um direito, mais uma felicidade”? O certo é que esta mesma preocupação (pela justiça e pela igualdade) vemo-la projetada, mais tarde, desde o conto “S. Cristóvão” à crónica “Um Inverno em Paris”, para não falar nos ecos do poderoso ensaio de Antero de Quental sobre as “Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX” que Eça glosa, aludindo ao “Bem Supremo, fim verdadeiro de toda a vida, fim divino a que tende o Universo. Em resumo, a lei moral do homem é o constante aperfeiçoamento e progressiva santidade”.

Misteriosamente, encontramos em “A Ilustre Casa de Ramires” algo que o brasileiro Álvaro Lins descobre com perspicácia: “mais do que em João da Ega, é em Gonçalo Ramires que Eça pode ser encontrado. João da Ega será uma imagem da sua mocidade, dos seus projetos, das suas ‘blagues’, do seu tipo exterior e convencional – de tudo o que ele seria se tivesse falhado. Mas em Gonçalo, a mais analisada e a mais conhecida das suas personagens, é onde Eça está. Onde estão, pelo menos, alguns dos seus sentimentos mais fortes, da sua maneira de ser, da sua posição em face da vida. E é curioso que Gonçalo, ao contrário de Fradique, sendo Portugal, sendo Eça, sendo o homem-português, permaneça ainda Gonçalo Ramires. Nem o sectarismo, nem o sentimento, nem o patriotismo, em Eça de Queiroz – nada, nem ele mesmo – perturba a criação artística”. Beatriz Berrini falará, por isso, de um “intelectual discrepante”. E nesta discrepância está o paradoxo que leva Eça (e os seus amigos) a serem considerados como “Vencidos”, quando de facto são vencedores, quer pela influência decisiva que se estende aos nossos dias, quer pela mensagem, a um tempo crítica e mobilizadora, de recusa terminante de derrotismo ou desistência, já que eles, de facto, não baixaram os braços. E a contradição de Gonçalo é claríssima, sabendo que a História, mais do que um motivo de orgulho retrospetivo torna-se demonstração de que a responsabilidade fica do lado da ação…

Para entender, basta ler Antero em “A Província” no texto “Expiação”, na sequência do Ultimatum inglês: “o nosso maior inimigo não é o inglês, somos nós mesmos. Só um falso patriotismo, falso e criminosamente vaidoso, pode afirmar o contrário. Declamar contra a Inglaterra é fácil: emendarmos os defeitos gravíssimos da nossa vida nacional será mais difícil, mas só essa desforra será honrosa, só ela salvadora. Portugal ou se reformará política, intelectual e moralmente ou deixará de existir”.

GOM

 

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