CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Certa amiga minha - Senhora da minha geração, que à advocacia consagrou parte grande da sua vida - no intervalo de outras obras também se entretém, para animar o seu merecido retiro, a comentar atos e factos, ditos e escritos ou seja, a atualidade e as suas circunstâncias. Quando me lê ou escuta - e sou discreto e infrequente - morde-a sempre o alicate da contestação, em sentido próprio, não pejorativo, de resposta dialética. Concorde ou desacorde, fico-lhe sempre grato pela frontalidade, feliz pela gentileza, lisonjeado pelo apreço e contente com a ironia... Bem haja, Maria de Lourdes!
Não engraçou com eu não ter achado graça à laracha do nome Taqui Tali Taculá: acha que este define ludicamente o dom de ubiquidade do Senhor Presidente da República... Para a sossegar, reconfesso que tal piada não me provocou qualquer saudável hilariedade, quiçá mais por causa do que me parece falta de jeito ou tonta formulação de uma "inspiração", do que pela graça em si. Bem lida a frase onomástica, ficar-lhe-ia melhor graça chinesa do que japonesa: não só porque os nomes sínicos são em regra três, e os nipónicos apenas dois, mas também porque as consoantes líquidas os confundem em sentido foneticamente inverso: o chinês gosta de pronunciar sempre L, o japonês R. Caricaturando, sem malícia: se eu pedir a um chinês que repita laranja, ele dirá lalanja... Se assim desafiar um japonês, ele pronunciará raranja... Não creio que seja motivo de troça, todos os povos têm sotaques, e suas regiões também assim se distinguem, e até conheço muitos "orientais" que pronunciam "corretamente" palavras "ocidentais", tal como muitos europeus que nunca acertam com o u francês nem com o portuguesíssimo ão. Dá graça ao mundo, sobretudo se soubermos gostar das diferenças de pronúncia e devidamente apreciá-las... Embirro com chacota e, por paradoxal que pareça, sou todavia defensor do respeito escrupuloso de transcrições fonéticas com inteligível leitura acordada porque, embora nos deem mais trabalho, nos ajudam a entender e respeitar melhor as falas dos outros. Refiro-me, Princesa de mim, a transcrições fonéticas, não aos chamados acordos ortográficos... São coisas muito diferentes, embora, aliás, tal não pareça ter sido devidamente entendido pelos promotores de certos "acordos"...
Mas não te escrevo hoje para te falar disso. Nesta cultura de equívocos em que mergulhamos, é mais preocupante, creio eu, Princesa, a facilidade com que, na chamada "comunicação social", qualquer pessoa bem introduzida nos quiçá misteriosos (ou simpatizantes?) canais de acesso ao público, inclusive gente de espírito pouco culto, ou só ignorante e pretensiosa, ou talvez simplesmente obcecada ou facciosa ganha um espaço de "visibilidade" negado a outros. Há de tudo. Sobretudo muito "marketing" à mistura e também isso a que poderíamos chamar, parafraseando Kundera, a sustentável leveza da fama... Receio que - para além da infeliz ou nefasta divulgação de disparates e mentiras - tal vá paulatinamente minando a credibilidade dos chamados órgãos de comunicação social e, consequentemente, como temos visto, levando à proliferação de "tweeterismos" vários... Por isso também se vêm repetindo, graças a Deus, os apelos à reeducação do espírito crítico e a um renascimento dos "estudos gerais" e "humanidades". Haja bom senso!
Surpreendeu-me o Ípsilon do Público de 2 de junho p.p. com quatro páginas dedicadas à recente edição de uma tradução da Epopeia de Gilgamesh pela Assírio & Alvim, intitulada Épico de Gilgames, por Francisco Luís Parreira. O autor da resenha crítica - para mim tão desconhecido como o tradutor - não poupa elogios à que considera (não sei com que autoridade) a única tradução fidedigna, que se tornará indispensável a todas as traduções ou edições futuras em português... E já antes peremtoriamente nos esclarecia de que: Luxuriantemente anotada e comentada (o corpo do poema ocupa uma centena de páginas, as restantes 150 sendo consagradas à minúcia exegética), valiosa e ostensivamente erudita, a tradução de Francisco Luís Parreira parte do "texto sinóptico transliterado da edição crítica" (trata-se da edição de 2003 do reputado assiriologista Andrew R. George) mas teve em conta "os contributos trazidos pelos achados recentes" (onze fragmentos novos identificados no Museu Britânico e um outro "resgatado, já em 2011, ao saque patrimonial em curso no Iraque e na Síria") e os "estudos assiriológicos posteriores". Presumo, Princesa de mim, que a fidedigna tradução de Parreira - a tal que "parte do texto sinóptico transliterado da edição crítica" - é afinal uma versão portuguesa da tradução para inglês, do original acádio, feita pelo professor Andrew George. Cheirou-me logo pelo título "Épico de Gilgames". Como sabes, Princesa, em língua latina, épico é um adjetivo que quer dizer heroico. Em português, continua a ser adjetivo, mas também, e só, substantivo quando se refere à pessoa ou autor do poema ou da narrativa: temos, assim, um poema épico, uma história épica... ou um épico, muito simplesmente, quando nos referimos a um poeta épico, Camões, por exemplo. A expressão inglesa The Epic of Gilgamesh, em versão portuguesa correta será A Epopeia de Gilgamesh... No texto original, apenas adivinhamos... Além disso, como poderia traduzir tanto texto acádio em escrita cuneiforme, levando pouco mais de um ano, alguém que, como o próprio Parreira reconhece, não tem a assiriologia como "campo académico"? Tenho aqui a edição da versão inglesa de Andrew R. George, publicada em 1999 na Penguin Classics. Ao acaso, abro o livro, detenho-me num passo, busco o mesmo no texto português de Parreira. Vê só, verso a verso: Surpassing all other kings, heroic in stature / supremo entre os reis, soberbo de estatura / brave scion of Ulruk, wild bull on the rampage! / bravo nativo de Ulruk, touro branco enristado! / Going at the fore he was the vanguard, / Marchando na dianteira, era ele o chefe, / going at the rear, on him comrades could trust! / ou, seguindo na retaguarda, arrimo dos camaradas!
A competência do professor inglês da Universidade de Londres é mundialmente reconhecida, e acho muito bem que, não havendo entre nós quem saiba de acádio ou escrita cuneiforme para se atirar a uma tradução direta do original, se recorra e uma versão inglesa daquela qualidade. Já mais dificilmente aceitarei que o tradutor de inglês para português possa afirmar, como o faz Francisco Luís Parreira na entrevista dada a Mário Santos, o seguinte: Ora, o panorama editorial internacional só registou, até agora, duas traduções integrais do poema que refletem, de raiz, as descobertas e os critérios de George; uma alemã, de Stefen Maul, já com integração de achados posteriores à edição crítica, que ele próprio decifrou, e a minha, que é a primeira a incorporar numa edição "harmónica" o texto do mais importante achado das últimas décadas, o do museu de Suleymaniah, só editado em 2014. É simples a razão da minha reserva: sabemos que a Epopeia de Gilgamesh, tal como muita outra literatura antiga, designadamente aquela que se vai descobrindo por achados arqueológicos, paulatinamente se revela, e ninguém sabe ainda dizer o que encerram textos inscritos no barro, mas ainda não decifrados, muito menos se e quando outras tabuinhas em escrita cuneiforme serão encontradas. Parreira apenas juntou, ao texto que Andrew George "transliterou" do original e ele posteriormente traduziu do inglês, as traduções - presumo que do inglês ainda ou doutra língua europeia - de placas com escrita cuneiforme recentemente descobertas... Daí a reclamar um inexistente protagonismo na tradução "integral" da epopeia arcádia... vai um passo algo exagerado, posto que, incapaz de ler os textos originais na respetiva língua e escrita, nem sequer tem autoridade para afirmar quais deles serão integrais... E ainda se esquece de referir que o professor doutor Manuel Bouzon, padre assiriólogo e biblista, da Pontifícia Universidade do Rio de Janeiro, antes de morrer, quase concluíra, em 2006 a tradução direta do original àquela altura conhecido, como tampouco refere os trabalhos de investigação e tradução do assiriologista francês Jean Bottéro, de que já te falei em cartas anteriores, aliás publicadas no blogue do CNC em 14 e 23 de março e 11 de abril de 2014 (com os títulos de Onde se fala do 7º príncipe de Condé, Como árvores andamos..., e Entre cá e lá...). Todavia, na bibliografia apensa às suas tradução e notas, inclui a menção de obras de Bottéro, incluindo a versão francesa, diretamente do original acádio àquela data já conhecido, de L´Épopée de Gilgames (Gallimard, Paris, 1992), que possuo e li. [A talho de fouce, lembro-me do meu saudoso amigo professor António Sousa Franco, que aconselhava aos seus alunos doutorandos a inclusão, nos anexos às respetivas "teses" ou dissertações, só da bibliografia que eles efetivamente tivessem lido ou consultado].
Nada disso, todavia, retira interesse à publicação de Francisco Luís Parreira, que não deixa de ser uma trabalhosa divulgação de uma narrativa ou epopeia mítica que informou congéneres bíblicas e ainda hoje nos interroga sobre a nossa condição e os nossos anseios, e vai à questão do destino, da vida e da alma humanas. Mesmo que exaustivamente bebida na obra de Andrew George, traz esta edição portuguesa outro contributo ao conhecimento da Epopeia de Gilgamesh e da sua cultura e circunstância, precisamente pela abundância das notas coligidas. Mas não pode, nem deve, retirar mérito a outras obras e seus autores, muito menos diminuí-los. Nem esquecer que poderá haver quem prefira edições menos "eruditas", até por razões tão singelas como gostos de leitura: eu, por exemplo - que não sou nem pretendo ser um perito ou sequer simples estudioso da literatura sumério-babilónica - sinto mais agrado em ler o texto "prosaico" de Pedro Tamen, do que a rebuscada versificação de Parreira. Gostos, Princesa de mim, e desgostos: porque se há-de traduzir wild bull on the rampage! por touro branco enristado!? Também por isso me parecem escusadas e deslocadas, na entrevista conduzida por Mário Santos, e no artigo deste, as referências feitas a Nancy Sandars, Pedro Tamen e, ainda Frederico Lourenço (!). Passarei a explicar-me-te, Princesa de mim. Antes, porém, deixa-me dizer-te que, quando me interrogo sobre qual a autoridade com que fulano ou beltrana se pronunciam sobre dado tema, não procuro qualquer referência necessária a créditos ou títulos escolares, mas antes me debruço sobre provas de esforçado trabalho ou investigação e, sobretudo, de honestidade intelectual, que mais não é do que essa humildade de que falava Sócrates: Só sei que nada sei... Pretender, como Mário Santos, que em português (de Portugal), e para além de fragmentos traduzidos no âmbito de ensaios ou estudos mais ou menos académicos, circulou nos últimos 40 uma esforçada versão prosaica (sic) feita pelo poeta Pedro Tamen a partir de uma estropiada versão inglesa, para justificar a afirmação de que a presente tradução de Francisco Luís Parreira vem suprir uma lacuna... trata-se, por inerência, de uma edição histórica... e é já um dos melhores "livros do ano"... deveria ser também um acontecimento literário... dispensa qualquer comentário direto. Será que ele quer dizer, com versão prosaica, versão em prosa?Não terá reparado em que Pedro Tamen se limita a traduzir do inglês a versão em prosa de Nancy Sandars, aliás publicada, pelo menos em 1960 e 1972, pela Asian Society e pela Penguin Classics, e elogiada por críticos e letrados assiriólogos? Na verdade, Nancy Sandars, nascida numa família da aristocracia militar britânica, falecida em 2015, aos 101 anos, na mansão familiar onde nascera, foi amplamente recordada, designadamente na imprensa inglesa ( v.g. The Times, The Daily Telegraph, etc.), por universitários e jornalistas, como competente arqueóloga e tradutora, ela que corajosamente tivera de superar uma doença tuberculosa que quase a cegara e por bastante tempo lhe impedira a leitura... Com que fundamento, na entrevista, o próprio Parreira afirma que o trabalho de Pedro Tamen é a tradução de uma prosa inglesa, redigida na década de 1950 por uma divulgadora chamada Nancy Sandars, que se limitou a transvazar materiais babilónicos heterogéneos então conhecidos em forma romanesca. O facto de na capa da edição portuguesa não constar sequer o nome da autora, permitindo a impressão errónea de que se trata do épico babilónio, sugere-me, entre outras, a reflexão de que trabalhos desse género são mais prejudiciais que benéficos. Fui verificar, à edição portuguesa que possuo: na capa apenas surge Gilgamesh; na página 4, em sítio devido, tal como em letras maiores, na página 5, informa-se que se trata da Versão de Pedro Tamen do texto inglês de N. K. Sandars. Na edição do "Épico" (em vez de Epopeia, como seria correto em qualquer língua latina) "de Gilgames", a capa apenas anuncia tradução, introdução e notas de Francisco Luís Parreira e, nas páginas 3, 4 e 5 assinala-se que se trata da versão Babilónia Padrão, a qual mais não é, esclarece-se na página 7, do que a rapsódia do material épico de Gilgames em doze tábuas ou capítulos, composta c. 1200 a. C. por um redator mesobabilónico... sem qualquer indicação da versão inglesa, essa sim, traduzida por Parreira, que não lê acádio nem caracteres cuneiformes. Na verdade, quando ele afirma, na introdução à sua tradução, que a matriz da presente tradução é o texto sinóptico transliterado da edição crítica - que em nota final diz ser a transliteração sinóptica do poema, sucessivamente atualizada por Andrew George - reconhece que o texto por ele vertido para português é a sinopse, em inglês, da transcrição para caracteres latinos da pertinente escrita cuneiforme, trabalho executado por aquele professor inglês. Daí me parecer algo extravagante a pergunta que Mário Santos lhe dirige na entrevista para o Público: Contrariando uma tendência de anos recentes, exemplificável com algumas traduções de Homero feitas por Frederico Lourenço, optou por uma tradução e por uma edição ostensivamente eruditas. Porquê? O jornalista talvez não soubesse que as traduções de Frederico Lourenço são feitas diretamente do grego clássico original, não são versões de versões, o que, de per si, as situa num plano de consideração onde ainda não podemos colocar o trabalho de Francisco Luís Parreira. Aliás, as notas "eruditas" também se traduzem mas, falando de Frederico Lourenço, as que ele junta, por exemplo, à sua tradução da Bíblia grega são de sua própria autoria, decorrem do seu próprio labor de entendimento direto do grego clássico.
Aqui tens, Princesa, o que penso. Para concluir que a leitura do Gilgamesh de Pedro Tamen (tradução de The Epic of Gilgamesh de Nancy K. Sandars) é muito agradável, sem complicações rebuscadas, não sendo por isso menos fiel ao encanto da lenda e dos mitos com que a narrativa original e milenária ainda hoje nos leva a pensarsentir a misteriosa aventura humana e a sua circunstância. E para te confessar que a rebuscada versão portuguesa de Francisco Luís Parreira me torna mais pesada a leitura. Todavia, estando esse texto mais de acordo com o do Babilónia Padrão, e incluindo trechos traduzidos de achados arqueológicos mais recentes, servirá certamente melhor aqueles leitores que pretenderem aproximar-se de uma edição crítica mais completa e tenham qualquer dificuldade em dispor ou consultar diretamente as versões inglesas (e não só) das transliterações feitas por esses estudiosos estrangeiros.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira