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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR


Através da poética do sublime, o romântico passou a referir-se a uma relação mais misteriosa do indivíduo com o cosmos.


No final do séc. XVIII a crise gerada pela Revolução Francesa e consequentemente pelo cessar do universalismo supra-histórico do neoclássico abre-se a possibilidade do Romântico se expandir como alternativa.


Lê-se em ‘Arte Moderna’, de Giulio Carlo Argan, que o clássico está ligado à arte do mundo antigo greco-romano e à relação clara e positiva do ser humano com a natureza. O Romântico, por outro lado, está ligado à ideia de que a arte é a revelação do sagrado e tem necessariamente uma essência religiosa. O Romântico está por isso ligado à arte cristã da Idade Média e à consideração de que a natureza é uma força misteriosa e hostil, que tem a capacidade de expor a pessoa humana às grandes questões relacionadas com o sentido da vida.


Segundo Argan, estas duas conceções diferentes do mundo - poético vs mimético -, a partir da segunda metade do séc. XVIII, “…tendem simultaneamente a se opor e a se integrar à medida que se delineia nas consciências, com as ideologias da Revolução Francesa e das conquistas napoleônicas, a ideia de uma possível unidade cultural…”. Para Argan, o ‘belo romântico’ é subjetivo, característico, mutável e contraposto ao ‘belo clássico’, que é objetivo, universal e imutável.


A cultura do Iluminismo trouxe a ideia de que a natureza não é só ordem revelada e imutável, é sim o ambiente da existência humana e por isso estímulo a que cada um reage de modo diverso, ora racional ora passionalmente. É do pensamento iluminista que nasce a tecnologia moderna, que não obedece à natureza mas que a transforma.


O termo romântico, em meados do séc. XVIII, significava ‘pitoresco’, a poética do relativo, isto é uma arte que não imita nem representa, mas que educa a natureza sem destruir a sua espontaneidade. Porém através da poética inglesa e alemã do sublime e do horror, o romântico passou a referir-se a uma relação mais misteriosa do indivíduo com o cosmos. Para o ‘sublime’ a natureza desenvolve na pessoa o sentido da sua solidão e da sua tragédia de existir. O ‘sublime’ é absoluto, visionário, angustiado e aprisionante. A poética do ‘pitoresco’ vê o indivíduo integrado no seu ambiente natural, mas na poética do ‘sublime’ o indivíduo paga, com a angústia e o pavor da solidão, a soberba do seu próprio isolamento.


As poéticas do ‘sublime’, definidas como proto-românticas, que veem a arte como uma atividade inteiramente espiritual, adotam em geral modelos das formas clássicas, como acontece na obra transcendental de William Blake e profunda de Heinrich Füssli - sendo Miguel Ângelo o exemplo supremo de génio inspirado e solitário que põe em comunicação o céu e a terra.


“Father, father, where are you going
O do not walk so fast.
Speak father, speak to your little boy
Or else I shall be lost,


The night was dark no father was there
The child was wet with dew.
The mire was deep, & the child did weep
And away the vapour flew.”
William Blake, ‘The Little Boy Lost’ In Songs of Innocence


O pintor e poeta William Blake (1757-1827) pensava que Homero, a Biblia, Dante e Milton eram os portadores das mensagens divinas. Para além dos limites terrenos só pode existir a transcendência ou o abismo, o céu ou o inferno. Blake acreditava que ao ultrapassar o limiar do ‘sublime’ as sensações desvanecem-se e entra-se em contacto direto com as forças divinas - porque o perfeito equilíbrio entre a humanidade e a natureza já se perdeu para sempre.


Para Blake, Arte é pura atividade do espírito, que escapa à matéria. É conhecimento intuitivo das forças eternas e por isso estabelece uma constante relação com o divino e o sagrado e com o Ser na sua totalidade. É anticiência, síntese, inspiração e subjetividade. É comunhão com o Universo. Blake acreditava na infinita bondade inerente ao ser humano (que cessa ao ser corrompido pelas restrições da sociedade) e na ideia de que nos primórdios da humanidade todos os seres humanos estavam ligados ao infinito (ver A Casa do Lazareto, 1795).


Blake deseja que o artista seja um ser excecional, em contacto com tudo o que a ciência, nos limites da sua racionalidade, não chega a compreender. (ver Newton, 1795)


Para Argan, ainda que o traço, das pinturas de William Blake, seja nítido e duro, é capaz de definir a indefinibilidade, a imensidão e a deslumbrante e imóvel imanência das figuras.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Arte Moderna - A história de arte como uma história de juízos de valor.


‘A arte é justamente a realidade que se cria a partir do encontro do Homem com o mundo…’
Giulio Carlo Argan


No livro ‘Arte Moderna, Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos’ (1992), Giulio Carlo Argan situa o nascimento da modernidade no séc. XVIII, coincidindo com o início da participação ativa da arte na evolução da História. Aqui, Argan procura impor a esfera social à esfera artística.


Em ‘Arte Moderna’ Argan aplica um estudo direto e analítico das obras, entendidas como documentos essenciais da história de arte. Para Argan a história da arte, como expressão e significado que extravasa a esfera do belo, é acima de tudo a história da cultura. Argan analisa as obras segundo critérios éticos, permitindo partilhar a compreensão da arte para todos. Acredita que obra de arte é exemplar, é modelo para as demais atividades. Argan ao analisar as obras pela sua aparência e ao determinar significados abrangentes aproxima-se do método fenomenológico – porque num fenómeno todos os factos têm um significado. Argan descreve o fazer artístico como sendo um processo estrutural – é um fazer que requer uma dimensão reflexiva e que permite uma intencionalidade.


Para Argan, o objeto de arte pretende chegar à conceção total do mundo, é produto supremo e perfeito do fazer humano. É sistema em que todas as relações são possíveis. É fazer ético por excelência – acima da exatidão existe uma exatidão moral, um dever. A arte é constituída por objetos que permanecem presentes,  e é capaz de afirmar constantemente uma atualização de experiências passadas – a arte forma uma unidade com a história, criando valores. A arte é, assim, um projeto estruturado que inclui o agir humano, aspetos sociais e éticos, em que passado, presente e futuro se condensam.


Para Argan, a história da arte moderna é a história do fazer ético do ser humano face ao fazer racional da máquina – no trabalho artesanal, o artista traz para o trabalho criativo a sua experiência acerca da sua realidade e está permanentemente a renovar essa experiência; já o trabalho da máquina transforma simplesmente o sistema criativo num sistema puramente funcional e material.


Argan constrói a história como pensamento e como ação, visionando a arte e a arquitetura no seu compromisso com a sociedade. Em ‘Arte Moderna’, Argan considera a obra de arte, num contexto amplo, como uma relação constante entre a atividade mental e a operacional partindo de um complexo monumental, abrangendo até a cidade inteira.


Para Argan, o conceito de arte define um tipo de valor, ligado à forma e ao tipo de experiência que ela proporciona ao ser humano, ao ser percecionada. As formas são significantes e significados, ao darem-se a perceber, ao serem interpretadas como tal. A história de arte é uma história de juízos de valor, porque contribui para o entendimento de uma civilização inteira atual, descolada do passado e que estabelece premissas para pesquisas artísticas futuras. A obra de arte surge como uma oportunidade de se produzir um valor (pela sensibilidade da operação, pela singularidade).


Para Argan a História da Arte não se limita a uma análise agrupada de factos artísticos – a obra de um artista é uma realidade histórica. É uma componente da história da cultura geral.


Argan busca a essência das suas ideias através da cultura, da ética, fundindo diversas metodologias (iconológica, sociológica, estrutural, …) na condição de integrar a obra de arte no seu momento histórico. Sendo assim, contribuíram para a obra Argan diversas perspetivas históricas:


Escola de Viena
 – na aplicação do método psicanalítico ao fenómeno artístico através da Teoria da Visibilidade Pura. Teoria que estuda as ideias, oposta ao Positivismo (que só atenta ao conteúdo de uma obra de arte) elaborada por:

  • Korand Fiedler – o campo da arte é o limiar entre a ideia e a sua representação, a intuição e a expressão. Todos os aspetos de um objeto artístico têm significado. O conteúdo da obra de arte é o seu processo de formalização de conformação livre.

  • Alois Riegl – valoriza toda a hierarquia entre as artes maiores e menores, porque todas fazem parte da evolução humana.

  • Wölfflin – afirma uma arte ligada apenas aos processos da visão.


Erwin Panofsky
 – dando ênfase aos significados simbólicos. Argan vai além da aplicação do método iconológico de Panofsky na produção da arte moderna: ‘É fácil reconstituir o significado simbólico, mas existem muitas coisas para as quais não se pode encontrar um significado simbólico: evidentemente essas coisas são portadoras de um significado que nos escapa, mas que todavia é um significado.’


Karl Marx
 – Argan incorpora aspetos do marxismo, combinando a questão artística e a dinâmica da produção e da economia. Argan salienta o facto de Marx sustentar a arte não como entidade pura e que o artista executa também um trabalho social.


No entanto, Argan recusa uma visão fechada e dogmática do materialismo histórico, antes privilegiando a articulação de múltiplos contributos que vão desde a psicanálise, a análise sociológica e a compreensão da complexidade de fatores ligados à criatividade.
 

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

O espaço urbano e o encontro do eu mais profundo.

 

‘A cidade favorece a arte, é a própria arte.’, Lewis Mumford

 

Giulio Carlo Argan, em ‘História da Arte como História da Cidade’, declara que a arte pode revelar a experiência urbana individual real. Diz ainda que Gaston Bachelard (no livro ‘The Poetics of Space’) ao estudar a casa da infância constrói um modelo sobre o qual se funda grande parte da psicologia individual – isto é, um modelo onde se constroem as imagens mais profundas de espaço e de tempo.

 

Desde muito cedo, a arquitetura (real ou imaginada) é motivo de pintura. A presença da arquitetura permite situar o homem no seu contexto temporal, social, político, histórico, moral e sensível. A propósito da exposição ‘Building the picture: Architecture in Italian Renaissance Painting.’, que esteve patente na National Gallery em Londres, em 2014, Peter Zumthor em entrevista afirma que os objetos arquitetónicos são de facto sempre concretos e nunca abstratos porém têm de ter a forma de uma alma.

 

Neste contexto, o espaço arquitetónico (no qual também está incluído o espaço urbano) é entendido como um campo de mútua interação entre a esfera espiritual e a esfera física. Segundo Argan, o espaço urbano é por excelência um espaço visual. E por isso, existe uma infinita variedade de valores simbólicos que os dados visuais do contexto urbano podem assumir em cada indivíduo. E a arte existe como modo de acentuar a memória, a identidade, o tempo e o lugar do homem. E assim ajudar na construção da alma da cada indivíduo.

 

O conceito de espaço arquitetónico - ideal (abstrato, puro) e real (físico, vivencial) – aproxima-se da arte. O homem é o elemento central da arquitetura. A arquitetura é uma disciplina que tem a capacidade de cruzar o sensível com o inteligível, o corpo e o mundo, a intuição e racionalidade. E da relação e do entendimento do homem com o espaço pode surgir o encontro com o seu eu mais profundo.

 

No texto ‘Walking’ de James Hillman, a cidade é, por excelência lugar de reflexão. É manifesto de profundidade, onde perceção se confronta com sensação. A realidade é, segundo Hillman, construtora do eu. Em períodos de maior perturbação psicológica, andar pode atuar como terapia. Andar permite o fluir dos pensamentos, a clarificação das ideias, o encontro com o princípio da vida (‘As we walk, we are in the world, finding ourselves in a particular space. If we cannot walk, where will the mind go?’). Mas pode a cidade permitir esta cura psicológica? A cidade tem de oferecer desafios para a alma, implicando descobertas sucessivas – ‘When we no longer walk, what happens to the soul? I am as I move’ ‘…the foot should never travel to it by the same path which the eye has travelled over before…’ ‘…stopping the progress of the walk, forcing the foot to turn and the mind to reflect’.

 

James Hillman propõe resolver os mistérios da natureza humana. A vida humana segue uma imagem particular – o Homem tem um destino, tem um fazer e um ser individual que pertence à espírito e não ao corpo. O Homem não consegue descobrir a extensão da sua alma, tão profunda é a sua natureza. Do que o Homem fizer na sua vida dependerá que se torne ‘alma pura’.

 

A inspiração é o encontro absoluto do Homem consigo próprio. O movimento das coisas do mundo aparentemente simples leva ao fundo do ser. Essas coisas têm de aceitar as projeções do Homem, experimentar sentimentos, recordações e intenções. Precisam de subjetividade e profundidade para que se associem à procura do Homem pela sua alma. Para que a cidade pertença ao Homem tem de se tornar identificável e permitir o fluir do conhecimento do eu (lugar de reflexão) através do confronto com os outros (lugar de relações humanas). A cidade ao ser objeto identificável pode ser construtora da alma.

 

Ana Ruepp