Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Gonçalo Ribeiro Telles disse um dia que desejaria que Portugal no futuro fosse uma espécie de Gulbenkian. Lembrámo-lo na inauguração da extensão do Jardim do Parque de Santa Gertrudes e do novo Centro de Arte Moderna (CAM).
Numa das últimas conversas que tive com Gonçalo Ribeiro Telles, encontrei-o satisfeito com a extensão do Parque da Gulbenkian até ao limite natural da Rua Marquês de Fronteira e com o projeto de Kengo Kuma e Vladimir Djurovic para o Centro de Arte Moderna. As objeções antigas tinham desaparecido, uma vez que o edifício renovado passaria a ligar a natureza e a construção, deixando de haver um muro cego, privilegiando-se a leveza e a transparência, salvaguardando-se a qualidade da paisagem. O Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian que reúne a mais significativa coleção de arte moderna e contemporânea portuguesa, em diálogo com o panorama internacional, reabre ao público depois de quatro anos de profunda remodelação. O CAM, da autoria original de Leslie Martin, inaugurado em 1983, graças à iniciativa do Doutor Azeredo Perdigão, foi agora completamente redesenhado pelo arquiteto japonês Kengo Kuma, em colaboração com o arquiteto paisagista Vladimir Djurovic num projeto que visou estabelecer uma mais efetiva ligação entre a natureza envolvente e o edifício, que está imerso na paisagem, em sintonia com a ideia original de Gonçalo Ribeiro Telles e de António Viana Barreto. E o simbolismo da cobertura do engawa, o telhado do novo edifício da CAM, permite a ligação entre a imagem das placas de cerâmica branca inspiradas nos azulejos portugueses e o desenho das grandes embarcações que se aventuraram nos mares.
Abrangendo múltiplas iniciativas, a reabertura do CAM, inicia-se com Leonor Antunes, numa investigação e apresentação de obras e percursos de artistas mulheres, agora revelados à luz do dia, como elementos determinantes no movimento moderno, numa história antes marcada pelas desigualdades. O ponto de partida de Leonor Antunes é um diálogo rico e inesperado com Ana Hatherly, centrado no contraste entre as linhas do negro da tinta da china e o fundo branco num entrançado em que a aparência caligráfica representa a destreza e a fluidez, numa lógica de sobreposição, capaz de contrariar a “desigualdade constante” que o tempo foi aceitando por inércia e que a liberdade artística procura contrariar – abrindo espaço e tempo para quem antes ficava na penumbra… “Da desigualdade constante dos dias de Leonor” procura, assim, um sinal de coerência no sentido da igualdade e da superação de uma história de subalternidade e de exclusão, relativamente às artistas-mulheres. O CAM, ao reabrir as suas portas, dá um sinal emancipador sobre a importância da mulher, fiel ao espírito de Madalena Azeredo Perdigão e ao ar fresco do ACARTE de boa memória, com o lema “Vamos correr ricos”. E Ana Hatherly vai às raízes e representa variações a partir do vilancete de Camões “Descalça vai para a fonte / Leonor pela verdura / vai formosa e não segura”. Um tema emancipador, vindo de tempos remotos, que abre campo à modernidade. Com uma rara capacidade de pôr em ação o confronto integrador de espaços, volumes e intervenções, Leonor Antunes articula e reconstrói diferentes experiências e tempos históricos, numa circularidade fecunda que realça a transparência do novo CAM, entre Arte e Natureza, numa rica hospitalidade para acolher um mundo múltiplo e diverso, disponível para encontrar os novos e os de sempre e capaz de entender a moderna contemporaneidade.
UMA LINHA DE MARÉ «Linha de Maré» é uma mostra que parte de 25 de Abril de 1974 para chegar aos nossos dias, com curadoria de Ana Vasconcelos, Helena de Freitas e Leonor Nazaré refletindo sobre as mudanças em curso, sobretudo relacionadas com o planeta, questionando a relação do homem com o mundo natural. São obras de pintura, desenho, vídeo, fotografia e escultura não antes mostradas, com Mónica de Miranda, Filipa César, Graça Pereira Coutinho, Kiluanji Kea Henda, Rui Chafes e Paulo Nosolino. Gabriel Abrantes assina uma instalação vídeo, Bardo Loop, encomenda original do CAM para a circunstância, que corresponde a uma reflexão muito séria e tocante sobre a dignidade humana.
Em «O Calígrafo Ocidental», Fernando Lemos surge como o autor surpreendente e inesquecível, com uma obra muito rica e multifacetada que se exprime de um modo especial através de um diálogo peculiar com o Japão, que os portugueses foram os primeiros europeus a encetar, e que aqui se reinventa. Trata-se do testemunho vivo sobre o período passado pelo artista no Japão no ano de 1963, para estudar a caligrafia e a arte japonesas durante seis meses, graças à bolsa de estudo da Fundação Calouste Gulbenkian, que lhe permitiu um “encantamento” com que “encheu os olhos e a alma”. E costumava dizer: “Quanto mais desejo, mais invento o que vejo”. Eis o que pode dizer-se sobre o que significa a extraordinária originalidade do artista. E Fernando Lemos permite-nos compreender que a procura de uma sombra é sempre busca da eternidade, como ensinam os calígrafos japoneses, ajudados por uma sabedoria milenar, na qual o artista português procurou as raízes essenciais da dignidade humana. Afinal, “Letra é um desenho mudo que começa numa ponta e acaba noutra, produzindo sempre que caminha um som diferente”. É o que encontramos na fantástica exposição do CAM, concretizada por Rosely Nkagawa e Leonor Nazaré e enriquecida pela profunda reflexão de Ryuta Imafuku.
O CANTO DOS CRISTÃOS ESCONDIDOS A Sala de Som recebe The Voice of Inconstant Savage, com uma instalação sonora de Yasuhiro Morinaga que sobrepõe uma oração inspirada no relato de um missionário português do século XVI, um canto dos cristãos escondidos, além de referências tradicionais de Nagasaki, da Amazónia e do canto gregoriano ocidental. Ainda no âmbito da Temporada de Arte Contemporânea Japonesa, o artista Go Watanabe apresenta uma intervenção, em que a sensibilidade criativa procura o encontro das diferenças. Já Didier Faustino concebeu uma sala de vídeo itinerante, H-Box, apresentada no Centro Pompidou em 2007, numa encomenda da Fundação Hermès, que agora permite a apresentação de 12 vídeos, com curadoria de Benjamin Weil.
Contíguo à Galeria da Coleção encontra-se o acervo do CAM que terá parte das suas reservas acessíveis ao público, numa iniciativa original, que permite alargar a capacidade para mostrar a coleção. Pretende-se assim garantir que não haja um lado esquecido de uma coleção tão rica, dando aos visitantes a possibilidade de se reencontrarem com obras referenciais de várias décadas da ação da Fundação Gulbenkian na promoção da formação e do desenvolvimento da criação artística entre nós e no contexto internacional.
O meu Avô Mateus ensinou-me o nome das árvores, como fizera consigo o velho professor José Jorge Rodrigues, de Boliqueime, freguesia que dedica ao velho mestre-escola uma rua junto à praça principal, invocando o pedagogo, para quem não seria possível compreender o mundo e a liberdade sem amar a natureza, conhecendo-a nos seus mais insondáveis segredos. E a minha Avó Ana tinha as melhores mãos do mundo para plantar, enxertar, cuidar do seu jardim e das suas figueiras, que produziam os melhores figos, desde junho até ao Outono. Foi assim possível entender, desde que me conheço, que, antes de tudo a Cultura começa por ser a dos campos, a agricultura, do semear, do colher, do plantar e do cuidar.
Só os humanistas europeus do século XVI começaram a falar de cultura do espírito, para traduzir em língua moderna o que os gregos chamavam paideia e os romanos designavam por humanitas. Lembrei estes ecos de infância ao reler a “A Árvore em Portugal”, obra-prima de Francisco Caldeira Cabral e Gonçalo Ribeiro Telles, reeditada por ocasião do centenário deste pela Associação Portuguesa de Arquitetos Paisagistas. É um livro indispensável e comovente, onde aprendemos “a importância de plantar sempre que possível as nossas árvores espontâneas”, porque “dão-nos sempre melhor garantia de desenvolvimento e permanência, porque é ótima a sua adaptação ao meio”. E, considerando o cuidado da paisagem, “devemos pedir às árvores o mesmo que deseja qualquer pessoa educada: não dar nas vistas”. E lembro, apenas ao sabor da memória, a lista das árvores que meu avô me ensinou, conhecendo-as pelo nome vulgar, pelo porte, pela folhagem, pela cor, pela floração como amáveis seres vivos que nos fazem companhia e nos ajudam. As vetustas oliveiras, em tantos casos com mais de meio milénio de vida, as azinheiras, os carrascos, os carvalhos, os choupos, os loureiros, os medronheiros, os pinheiros-mansos, as palmeiras-das-vassouras, os sobreiros, as frágeis amendoeiras, amargas e doces, as variadas figueiras, com o complexo e misterioso processo de “toque”, considerando que a tradição mais antiga diz que são estas as verdadeiras árvores do paraíso, até às generosas alfarrobeiras, que nos podem dar tudo, desde a sombra e fixação do solo, à diversidade do fruto. E continuamos com o castanheiro, o damasqueiro, a laranjeira (célebre até ao Levante mediterrânico, onde a laranja se designa como portugália), a nogueira, a nespereira, o pinheiro-bravo, mas também a amoreira (que nos afadigávamos a descobrir, por causa dos nossos bichos-da-seda famintos) – eis o mundo que se nos ia revelando nas deambulações campestres, numa apaixonante e inesgotável descoberta.
Em tantas conversas, Ribeiro Telles insistia na perceção de que, entre nós, “a mata cobria outrora toda a extensão do nosso território”. “Não percebemos a árvore sem adivinhar o seu forte sistema radicular, não entendemos o prado sem sentir sob ele a vivificante humidade do solo”. A paisagem é a segunda natureza, que “garante uma ética de que fazem parte o tempo e a perenidade”. A floresta portuguesa é a mata, numa ligação fecunda entre o Mediterrâneo e o Atlântico. “Portanto, a destruição da mata não pode ir além de um certo ponto, sem comprometer gravemente o equilíbrio ótimo para o Homem”. Quando no Conventinho da Arrábida avistamos a paisagem magnífica do Mediterrâneo no Atlântico, e lembramos os poemas de Frei Agostinho da Cruz, compreendemos o que Gonçalo escreveu na revista “Cidade Nova” em 1956: “O homem desempenha na modelação da paisagem um papel muito importante: pode ser considerado, neste aspeto, como um autêntico criador de beleza”. E volto às antigas caminhadas remansosas e ao percurso cadenciado que levava a entender a magia da paisagem como essência do património cultural - ali está a antiga azinheira, acolá a nespereira que era a perdição dos estios de outrora…
Este domingo foi inaugurado o Parque Gonçalo Ribeiro Telles na Praça de Espanha. Tratou-se de uma justíssima homenagem. Mas para sermos fiéis ao sócio honorário e fundador do Centro Nacional de Cultura temos de continuar o seu combate sem tréguas. E recordamos o documentário “Em Nome da Terra” da autoria de Rita Saldanha e do nosso saudoso amigo Miguel Ferraz (2010).
HOMEM CRIADOR DE BELEZA
“O homem desempenha na modelação da paisagem um papel muito importante; pode ser considerado, neste aspeto, como um autêntico criador de beleza”. (Cidade Nova, 1956, IV série, 4). Esta citação pioneira é emblemática de um percurso riquíssimo e exigente – que nos deixa uma herança que temos de respeitar e prosseguir. Gonçalo Ribeiro Telles é uma referência da sociedade portuguesa pela ligação que sempre soube estabelecer entre a cidadania e o exercício apaixonado da sua profissão de arquiteto paisagista, discípulo de Francisco Caldeira Cabral – com quem escreveu o fundamental “A Árvore em Portugal”, defesa intransigente das culturas tradicionais. Nunca o vimos indiferente em relação a qualquer tema relevante que pudesse ser discutido em qualquer momento. Eduardo Lourenço chamou-se “Jardineiro de Deus”. Tinha toda a razão. Quando a defesa do meio ambiente e da qualidade de vida era ainda algo muito distante e quase exótico relativamente às preocupações imediatas, por muito que o tema começasse a ser discutido no início dos anos setenta com crescente projeção comunicacional, a verdade é que desde sempre, a partir das origens do Centro Nacional de Cultura, nos anos quarenta e cinquenta, e da revista “Cidade Nova”, Gonçalo Ribeiro Telles pôs a tónica na dignidade da pessoa humana inserida numa natureza respeitada e equilibrada. Daí que não seja estranho que o encontremos, e a muitos dos seus amigos mais chegados, como Henrique Barrilaro Ruas, João Camossa Saldanha, Luís Coimbra ou Augusto Ferreira do Amaral em movimentos alargados na defesa da liberdade e da democracia. Dir-se-ia que é natural essa ligação e esse caminho de abertura e de inconformismo. Liberdade e tradição estão intimamente ligados ao magistério deste homem singular para quem o amor à terra e à História era algo tão natural como o ato de respirar. No entanto, para Gonçalo Ribeiro Telles a tradição não se confundia com o que se repete ou com qualquer inércia que se impõe contra o dever de completar e enriquecer pelo valor humano a herança recebida das gerações que nos antecederam. Tradição é traditio, isto é, a capacidade de transmitir generosamente e em movimento o que cada geração herda e cria. Mas a traditio é, por essência, dinâmica – daí o movimento de dar e receber, enquanto a revolutio é o regresso ao mesmo ponto de partida, num movimento circular. O seu empenhamento monárquico deve-se a esta conceção genuína baseada na tradição. A pessoa e a comunidade são elementos cruciais – como o património cultural, material, imaterial, natural, paisagístico, até às tecnologias novas e à criação contemporânea. Patres e múnus, o dever de preservar a herança dos nossos pais, eis o que tem de ser lembrado. Assim, Gonçalo Ribeiro Telles sempre se manifestou como um espírito livre para quem o mais importante são as pessoas e não os regimes formais. Daí o seu comunalismo de base – e a sua capacidade para debater e refletir com todos.
PÔR A DIGNIDADE HUMANA EM PRIMEIRO LUGAR
A economia existe para as pessoas. As culturas tradicionais devem ser preservadas e protegidas – uma vez que correspondem àquilo que o tempo testou através do exemplo e da experiência. Veja-se como a preservação do património tem de seguir os métodos e os materiais tradicionais. A sociedade constrói-se pela confluência fecunda entre a singularidade das pessoas e o bem comum. A obra da autoria do Arquiteto Fernando Santos Pessoa dá-nos o percurso humano do homem, cidadão atento, disponível, generoso, capaz de fazer do diálogo entre as pessoas e a natureza algo de vivo e perene. Nada lhe era indiferente, e com que entusiasmo o víamos abraçar as causas que realmente valem a pena. Na cidade bateu-se pelos corredores verdes, pelas hortas urbanas, por um urbanismo que pusesse as pessoas em primeiro lugar. No campo, compreendendo Portugal como um rico continente em miniatura, como Orlando Ribeiro ensinou, pugnou sempre pelo respeito do que nos foi legado desde tempos imemoriais. E invoco especialmente o muito que o Centro Nacional de Cultura lhe deve. Gonçalo Ribeiro Telles é o elo que nos liga à primeira geração do CNC, fundado por António José Seabra, Afonso Botelho e Gastão da Cunha Ferreira, num tempo em que Almada Negreiros e Fernando Amado articularam cultura e teatro, conferências e debates, convívio e reflexão. Depois, foi o momento de Sophia de Mello Breyner, de Francisco de Sousa Tavares, de António Alçada Baptista – até à presença luminosa de Helena Vaz da Silva... Gonçalo foi uma presença permanente e ativa no CNC, nunca deixando que a cultura fosse de mera circunstância. E foi assim que a cultura no CNC se tornou ciente de que a criatividade e a ecologia andam a par, como uma ética pública de liberdade e responsabilidade, de cidadania e de respeito da dignidade humana.
UM PERCURSO DE GRANDE COERÊNCIA
Com António Viana Barreto foi o autor do projeto dos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, galardoado pelo Prémio Valmor de 1975. Um dia, disse, aliás, que a sua ambição para Portugal era que se tornasse uma espécie de Gulbenkian. Não por acaso, foi o Coro da Gulbenkian que acompanhou as cerimónias religiosas de despedida de Ribeiro Telles no Mosteiro dos Jerónimos. Em 1913 foi galardoado com o Prémio Geoffrey Jellicoe, o “Nobel” da Arquitetura Paisagística. Consciente da importância da cidadania ativa, teve uma participação política corajosa que determinou a consideração como persona non grata do antigo regime, com consequências gravosas. Apoiou Humberto Delgado, com Luís Almeida Braga, Rolão Preto e Vieira de Almeida, também monárquicos; subscreveu em 1959 e 1965 três importantes documentos de católicos em denúncia da ausência de liberdade, da censura, e da repressão; participou ao lado de Mário Soares, Sophia e Francisco de Sousa Tavares em 1969 na CEUD; interveio no Congresso da Oposição Democrática; fundou o PPM e foi membro dos governos provisórios da democracia, foi um dos líderes da Aliança Democrática com Francisco Sá Carneiro e Diogo Freitas do Amaral, foi vereador independente nas listas do Partido Socialista no Município de Lisboa e fundou o Movimento Partido da Terra (1993). O corredor verde de Lisboa, a ele se deve, e o Parque da Nova Praça de Espanha tem já o seu nome; Lisboa Capital Verde da Europa teve-o como inspirador. Muito devemos a Gonçalo Ribeiro Telles – por isso é com legítimo orgulho que o lembramos como mestre da liberdade, da dignidade e do humanismo.
Gonçalo Ribeiro Telles publicou na revista “Cidade Nova” (nº 4, IV série, 1956) um texto pioneiro sobre a valorização da Paisagem, que merece lembrança. Hoje damos uma breve nota sobre o percurso político do nosso sócio número 1.
CORAGEM POLÍTICA E ECOLÓGICA Aquando das devastadoras inundações na região de Lisboa de novembro de 1967 uma voz desassombrada ergueu-se na televisão, rompendo as barreiras da censura, a denunciar o que se tinha passado. Então o jovem arquiteto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles veio explicar, num tom simultaneamente pedagógico e politicamente assertivo, que o desastre não era devido a um acaso nem à revolta das forças da natureza. A catástrofe, em que morreu um número muito elevado de pessoas (cuja dimensão real foi escondida), em que foram arrasadas habitações, campos e estradas, deveu-se, afinal, a uma confrangedora falta de ordenamento do território e à ocupação de leitos de cheia e de cabeceiras das bacias hidrográficas por gente que vivia em condições miseráveis de habitação. Ouvia-se quem, provindo do curso livre do Instituto Superior de Agronomia de Arquitetura Paisagista, criado por Francisco Caldeira Cabral, em 1942, em articulação com o Departamento de Geografia da Faculdade de Letras de Lisboa, do grande mestre Orlando Ribeiro, projetava para a sociedade portuguesa a necessidade de ligar o desenvolvimento económico à preservação ambiental. Contudo, o jovem arquiteto paisagista que deitava a pedra no charco, não era um neófito político. Católico e monárquico, era um cidadão democrata de horizontes abertos e audaciosos. Há muito que exprimia os seus pontos de vista com grande coragem. Em 1958, acompanhara outros monárquicos, como Luís de Almeida Braga, Vieira de Almeida, Rolão Preto ou Francisco de Sousa Tavares no apoio à candidatura presidencial do General Humberto Delgado. Em 1945 participara na fundação do Centro Nacional de Cultura, com Fernando Amado, Afonso Botelho, António José Seabra e Gastão da Cunha Ferreira e em 1957 apoiara a eleição de Sousa Tavares para a presidência do Centro, participando na fundação do Movimento dos Monárquicos Independentes, de feição constitucionalista.
Como cristão inconformista, subscreveu em 1959 dois documentos, que constituem marcos decisivos na preparação de uma nova fase na vida da Igreja em Portugal, após a tomada de posição do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, e antecipando a decisão de João XXIII de convocar o Concílio Ecuménico Vaticano II. Gonçalo Ribeiro Telles será um militante ativo da nova mentalidade conciliar, ao lado dos seus amigos António Alçada Baptista e Sophia de Mello Breyner Andresen, na geração de “O Tempo e o Modo”. Aí se inserem tais documentos! Em fevereiro, o texto é sobre as relações entre a Igreja e o Estado e a liberdade dos católicos – onde o visado é Salazar, por ter dito que havia “alguns católicos”, que tinham rompido com a “frente nacional”, considerando que o assunto oferecia “graves implicações no que respeita à Concordata e mesmo ao futuro das relações entre o Estado e a Igreja”. Os signatários diziam, porém, que a Igreja não podia ser acusada de hostilidade ao Estado Novo, mas se a Ação Católica não fazia política, não deveria alhear-se do mundo. De facto, os católicos tinham o direito e o dever de se interessarem pela política – com sérias razões “para julgar que o atual regime descura aquele mínimo de respeito pela justiça e pelas liberdades fundamentais dos cidadãos, sem o qual se deve pôr em dúvida o seu acordo com a doutrina cristã”. Em coerência com estas preocupações o grupo dirigiu-se a Salazar, em 1 de março – para falar “sobre os serviços de repressão do regime”. Com exemplos concretos de desrespeito pelos mais elementares direitos previstos na própria Constituição, os signatários concluíam: “Se outros católicos, e também V. Exª, julgarem que os signatários abusam dos seus direitos de simples católicos, resta-lhes a esperança de terem procedido de acordo com as exigências da sua consciência da mesma forma que eventualmente V. Exª o fará também. E só Deus julgará a todos”. Os textos são claríssimos e marcam o início de um novo tempo, que aponta para a afirmação dos valores democráticos que culminaria na revolução de 1974. Além de Gonçalo Ribeiro Telles, encontramos entre os autores os Padres Abel Varzim e Adriano Botelho, Alberto Vaz da Silva, António Alçada Baptista, António Arnaut, Francisco Lino Neto, Francisco de Sousa Tavares e Sophia de Mello Breyner, João Bénard da Costa, João Gomes, Padre João Perestrello, José Escada, Manuel Bidarra, Manuel de Lucena, M. S, Lourenço, Manuel Serra, Nuno Teotónio Pereira, Orlando de Carvalho e Vítor Wengorovius. A iniciativa merece uma atenção redobrada, já que entre 11 e 12 de março teria lugar o chamado “golpe da Sé”, que Mário Soares no Portugal Amordaçado considera como “um movimento de clara inspiração católica, embora com a participação importante de elementos não católicos, democratas de diferentes correntes oposicionistas”, sendo a alma civil da conspiração, Manuel Serra, antigo dirigente da juventude católica e apoiante do General Delgado.
O MANIFESTO DOS 101 Outro documento fundamental subscrito por Gonçalo foi o chamado Manifesto dos 101, de 25 de outubro de 1965, com muitos subscritores de 1959, num grupo mais alargado (onde se encontrava José Pedro Pinto Leite, que viria a integrar a Ala Liberal do tempo de Marcelo Caetano): onde se repudia a violência e o ódio com a maior firmeza, se defende uma cultura de paz e o respeito pelas Nações Unidas, se realçam os princípios da encíclica “Pacem in Terris” e do magistério de Paulo VI, se alerta para os problemas complexos e urgentes levantados pela política ultramarina, se denuncia a repressão da PIDE, os processos judiciais iníquos, os entraves no acesso a lugares públicos e empregos particulares, as buscas domiciliárias e a vigilância policial. Gonçalo Ribeiro Telles foi, assim, um cidadão completo – desde a oposição política democrática até à participação ativa na preparação da vida democrática. Esteve ao lado do pioneirismo de José Correia da Cunha na Comissão Nacional do Ambiente e foi um governante influente depois de 1974 (fundador do PPM, da AD e do Movimento Partido da Terra), sendo autor de medidas fundamentais, como a defesa dos melhores solos agrícolas, do coberto vegetal, do relevo natural, até à classificação das áreas adstritas à conservação da natureza e da paisagem. O seu comunalismo significa, no fundo, uma democracia centrada na dignidade humana, no primado da pessoa humana e numa ecologia global, centrada na equidade entre gerações. Manuel Alegre disse por isso: “talvez a culpa seja minha, porque fui deputado e participei na construção de uma democracia que a páginas tantas se distraiu e não soube resolver problemas estruturais, como o reordenamento do território e das florestas, assim como o combate ao abandono e à desertificação do país. Não se ouviu como se devia ter ouvido o arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles. É certo que por vezes protestei, mesmo contra o meu próprio partido. Mas não foi suficiente. Não consigo calar-me e sinto-me culpado” (2017). A afirmação merece atenção especial. Estamos a tempo de não esquecer o exemplo e a experiência de quem deixou um testemunho político essencial. Os jardins da Fundação Gulbenkian são uma das suas obras emblemáticas, cuja autoria partilhou com António Viana Barreto. Um dia perguntaram-lhe o que desejava para Portugal – e respondeu: gostaria que se tornasse uma espécie de Gulbenkian…
São visíveis os jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, na transparência serena do sorriso de Gonçalo Ribeiro Telles.
Sempre este sábio criou ao futuro, um lugar verde, para que a duração do tempo, lá onde e aonde, sempre fosse uma seiva à qualidade de vida das gentes.
A paisagem acordará sempre por Gonçalo Ribeiro Telles, abrirá as janelas aos horizontes, e muito é, foi e será o nosso o dever.
“Gonçalo Ribeiro Telles - A Fotobiografia”, de Fernando Santos Pessoa (Argumentum, 2011) - é um repositório rigoroso que nos apresenta a personalidade fascinante de alguém a quem muito Portugal deve, como defensor determinado da natureza e do meio ambiente e como cidadão empenhado na salvaguarda da cultura portuguesa.
MODELAR A PAISAGEM
“O homem desempenha na modelação da paisagem um papel muito importante; pode ser considerado, neste aspeto, como um autêntico criador de beleza”. (Cidade Nova, 1956, IV série, 4). Esta citação pioneira é emblemática de um percurso riquíssimo e exigente – que nos deixa uma herança que temos de respeitar e prosseguir. Gonçalo Ribeiro Telles é uma referência da sociedade portuguesa pela ligação que sempre soube estabelecer entre a cidadania e o exercício apaixonado da sua profissão de arquiteto paisagista, discípulo de Francisco Caldeira Cabral - com quem escreveu o fundamental “A Árvore em Portugal”, defesa intransigente das culturas tradicionais. Nunca o vimos indiferente em relação a qualquer tema relevante que pudesse ser discutido em qualquer momento. Por isso, Eduardo Lourenço chamou-lhe “Jardineiro de Deus”. Quando a defesa do meio ambiente e da qualidade de vida era ainda algo muito distante e quase exótico relativamente às preocupações imediatas, por muito que o tema começasse a ser discutido no inicio dos anos setenta com crescente projeção comunicacional, a verdade é que desde sempre, a partir das origens do Centro Nacional de Cultura, nos anos quarenta e cinquenta, e da revista “Cidade Nova”, Gonçalo Ribeiro Telles pôs a tónica na dignidade da pessoa humana inserida numa natureza respeitada e equilibrada. Daí que não seja estranho que o encontremos, e a muitos dos seus amigos mais chegados, como Henrique Barrilaro Ruas, João Camossa Saldanha, Luís Coimbra ou Augusto Ferreira do Amaral em movimentos alargados na defesa da liberdade e da democracia. Dir-se-ia que é natural essa ligação e esse caminho de abertura e de inconformismo. Liberdade e tradição estão intimamente ligados ao magistério deste homem singular para quem o amor à terra e à História era algo tão natural como o ato de respirar. No entanto, para Gonçalo Ribeiro Telles a tradição não se confundia com o que se repete ou com qualquer inércia que se impõe contra o dever de completar e enriquecer pelo valor humano a herança recebida das gerações que nos antecederam. Tradição é traditio, isto é, a capacidade de transmitir generosamente e em movimento o que cada geração herda e cria. Mas a traditio é, por essência, dinâmica – daí o movimento de dar e receber, enquanto a revolutio é o regresso ao mesmo ponto de partida, num movimento circular. O seu empenhamento monárquico deve-se a esta conceção genuína baseada na tradição. A pessoa e a comunidade são elementos cruciais – como o património cultural, material, imaterial, natural, paisagístico, até às tecnologias novas e à criação contemporânea. Patres e múnus, o dever de preservar a herança dos nossos pais, eis o que tem de ser lembrado. Assim, Gonçalo Ribeiro Telles sempre se manifestou como um espírito livre para quem o mais importante são as pessoas e não os regimes formais. Daí o seu comunalismo de base – e a sua capacidade para debater e refletir com todos.
ECONOMIA PARA AS PESSOAS
A economia existe para as pessoas. As culturas tradicionais devem ser preservadas e protegidas - uma vez que correspondem àquilo que o tempo testou através do exemplo e da experiência. Veja-se como a preservação do património tem de seguir os métodos e os materiais tradicionais. A sociedade constrói-se pela confluência fecunda entre a singularidade das pessoas e o bem comum. A obra da autoria do Arquiteto Fernando Santos Pessoa dá-nos o percurso humano do homem, cidadão atento, disponível, generoso, capaz de fazer do diálogo entre as pessoas e a natureza algo de vivo e perene. Nada lhe era indiferente, e com que entusiasmo o víamos abraçar as causas que realmente valem a pena. Na cidade bateu-se pelos corredores verdes, pelas hortas urbanas, por um urbanismo que pusesse as pessoas em primeiro lugar. No campo, compreendendo Portugal como um rico continente em miniatura, como Orlando Ribeiro ensinou, pugnou sempre pelo respeito do que nos foi legado desde tempos imemoriais. E invoco especialmente o muito que o Centro Nacional de Cultura lhe deve. Gonçalo Ribeiro Telles é o elo que liga à primeira geração do Centro, fundado por António José Seabra, Afonso Botelho e Gastão da Cunha Ferreira, num tempo em que Almada Negreiros e Fernando Amado ligaram cultura e teatro, conferências e debates, convívio e reflexão. Depois, foi o momento de Sophia de Mello Breyner, de Francisco de Sousa Tavares, de António Alçada Baptista - até à presença luminosa de Helena Vaz da Silva... Gonçalo foi uma presença permanente e ativa no CNC, nunca deixando que a cultura fosse de mera circunstância. E foi assim que a cultura no CNC se tornou ciente de que a criatividade e a ecologia andam a par, como uma ética pública de liberdade e responsabilidade, de cidadania e de respeito da dignidade humana.
UM PERCURSO POLÍTICO
Com António Viana Barreto foi o autor do projeto dos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, galardoado pelo Prémio Valmor de 1975. Um dia, disse, aliás, que a sua ambição para Portugal era que se tornasse uma espécie de Gulbenkian. Não por acaso, foi o Coro da Gulbenkian que acompanhou as cerimónias religiosas de despedida de Ribeiro Telles no Mosteiro dos Jerónimos. Em 2013 foi galardoado com o Prémio Geoffrey Jellicoe, o “Nobel” da Arquitetura Paisagística. Consciente da importância da cidadania ativa, teve uma participação política corajosa que determinou a consideração como persona non grata do antigo regime, com consequências gravosas. Apoiou Humberto Delgado, com Luís Almeida Braga, Rolão Preto e Vieira de Almeida, também monárquicos; subscreveu em 1959 e 1965 três importantes documentos de católicos em denúncia da ausência de liberdade, da censura, e da repressão; participou ao lado de Mário Soares, Sophia e Francisco de Sousa Tavares em 1969 na CEUD; interveio no Congresso da Oposição Democrática; fundou o PPM e foi membro dos governos provisórios da democracia, foi um dos líderes da Aliança Democrática com Francisco Sá Carneiro e Diogo Freitas do Amaral, foi vereador independente nas listas do Partido Socialista no Município de Lisboa e fundou o Movimento Partido da Terra (1993). O corredor verde de Lisboa, a ele se deve, e o novo Parque da Praça de Espanha terá o seu nome; Lisboa Capital Verde da Europa tem-no como inspirador. Muito devemos a Gonçalo Ribeiro Telles – por isso é com legítimo orgulho que o lembramos como mestre da liberdade, da dignidade e do humanismo.
Ontem, preparava-me eu para ir celebrar os 98 anos do meu querido amigo Gonçalo Ribeiro Telles, como exatamente fiz, quando um brincalhão se lembrou de me recordar o que um dia aconteceu com Mark Twain. Deram-no como morto e ele reagiu dizendo que a notícia era algo exagerada. Por segundos pairou no ar a notícia absurda de que o Gonçalo tinha partido. Notícia sem pés nem cabeça, diria ele ao fim da manhã com os seus botões lançando uma gargalhada sonora. “Ainda vão ter de me aturar um pouco mais”. E nós seus amigos fomos beber uma jeropiga para celebrar a anedota. Mas essa anedota tem muito que se lhe diga, uma vez que esse brincalhão que joga com a vida das pessoas faz parte de uma gente que todos os dias nos procura enganar com notícias bem mais singelas repetidas interminavelmente para que acreditemos nelas… É muito fácil. Uma mentira repetida mil vezes parece tornar-se verdade. Puro engano, porém. Uma mentira repetida um ror de vezes será sempre mentira e só pode convencer-nos de que o combate pela verdade é uma tarefa necessária e bem difícil. Uma meia-verdade é uma mentira. Uma pós-verdade, mentira é. Mas todos os dias procuram induzir-nos no contrário. E o melhor exemplo é o nosso querido Gonçalo, que nos seus escritos e nas suas lições continua a ensinar-nos que as paisagens que nos querem roubar, a natureza de que nos querem privar, os corredores verdes que querem destruir só podem continuar a ser verdade, se houver combatentes persistentes como o nosso imortal herói. Foi ele que nos ensinou muito a sério que «o homem desempenha na modelação da paisagem um papel muito importante; ser considerado, neste aspeto, como um autêntico criador de beleza. Toda a atividade humana tem como pode fim a satisfação das suas necessidades, quer espirituais, quer materiais. (…) A paisagem terá de ser considerada como um todo orgânico e biológico em que cada elemento é interdependente, influenciando e sofrendo da presença dos restantes participantes. A reciprocidade é a lei fundamental da natureza». Estas são palavras de 1956, mas poderiam ser escritas hoje. Centrando-se na pessoa, na sua dignidade e no seu sentido comunitário, Gonçalo Ribeiro Telles apela a uma natureza equilibrada, na qual a lembrança e o desejo, a memória e a criação se encontrem. Reconstruam-se os jardins, retomem-se os quintais. E a ideia de reciprocidade representa a importância de uma relação diferenciada, com influências cruzadas de interdependência e complementaridade. Sim, o que esse inventor de mentiras de meia-tigela nos ensinou ontem foi que só a verdade persistente, invencível, determinada, incómoda, à prova de bala, como água mole em pedra dura é que vale verdadeiramente a pena. O camponês do Ribatejo de botas enterradas na terra sabe bem que a enxada ou que a tesoura do jardineiro podem muito mais do que meia dúzia de piratas do mar da tinta. Por isso o nosso Gonçalo riu a bom rir ontem, mas com ar sério lembrou que ao longo da sua vida houve muitos que o quiseram ver pelas costas. Um velho amigo nosso deu-se, assim, a procurar uma pista para descobrir esse caçador de patos amador que mais uma vez se queria ver livre do nosso persistente arquiteto das paisagens, jardineiro de paraísos. Mas bastou usarmos uma corneta de caçador, para ele vir lampeiro até à armadilha. E não foi difícil encontrar a pista certa – era um pato bravo qualquer. Ele há muitos por aí, e a verdade é que este foi fácil de encontrar. Mascarado de inofensivo patos bravo da natureza é um verdadeiro pantomineiro das paisagens. Foi, de facto, um pato bravo qualquer que inventou a atoarda. Mentira torpe, mesquinha, era daquelas que se denunciam facilmente. Por isso, pela tardinha, satisfeitos todos por termos o aniversariante das noventa e oito primaveras connosco, pudemos brindar com um verdadeiro hip hip hip hurrah! Continuamos com o combatente connosco. Mas esses patos bravos de feira que tanto mal nos fazem a tentar convencer-nos de que não vale a pena continuar a combater pela paisagem, são caçadores traiçoeiros que só visam os verdadeiramente vivos, as pessoas de carne e osso com a têmpera do nosso herói - persistente, invencível, determinado, incómodo, à prova de bala, como água mole em pedra dura. Está descoberto o sevandija, pobre pescador de águas turvas, zé-ninguém de maus fígados, belzebu vicentino… E o Gonçalo aqui está!
«Textos Escolhidos» de Gonçalo Ribeiro Telles, com organização do Arquiteto Fernando Santos Pessoa (Argumentum, 2016), é um livro que constitui uma excelente oportunidade para conhecer melhor o fascinante pensamento de uma referência viva da cultura portuguesa contemporânea.
UMA CULTURA ECOLÓGICA Falar de uma cultura ecológica entre nós obriga a falarmos de Gonçalo Ribeiro Telles, que sempre nos ensinou que a democracia para se consolidar precisa de cuidar da memória e da cultura, como fatores de humanização – de modo que o ser prevaleça sobre o ter e que a dignidade humana seja o denominador comum da vida em sociedade. O jardim é a verdadeira metáfora da ação criadora de Deus em diálogo com o homem – por isso o confronto entre os textos e aquilo que nos tem sido legado pelo Arquiteto Paisagista é um motivo especial para compreendermos a cultura como ponto de encontro entre a compreensão da natureza e a capacidade humana de a transformar. «O homem desempenha na modelação da paisagem um papel muito importante; pode ser considerado, neste aspeto, como um autêntico criador de beleza. Toda a atividade humana tem como fim a satisfação das suas necessidades, quer espirituais, quer materiais. (…) A paisagem terá de ser considerada como um todo orgânico e biológico em que cada elemento é interdependente, influenciando e sofrendo da presença dos restantes participantes. A reciprocidade é a lei fundamental da natureza». Estas são palavras de 1956, na revista “Cidade Nova”, mas poderiam ter sido escritas hoje. Centrando-se nas pessoas e no seu sentido comunitário, GRT apela a uma natureza equilibrada, na qual a lembrança e o desejo, a memória e a criação se encontrem. A vida e a ação do cidadão corresponderam a uma grande coerência científica, política e cívica. Por exemplo, se temos o corredor verde em Lisboa e se a cidade é um símbolo, que em 2020 é devidamente reconhecido, tal deve-se, em parte significativa ao seu exemplo e à sua permanente determinação. Estamos perante um militante intransigente e persistente de uma sociedade mais humana, capaz de salvaguardar o meio ambiente, a paisagem e o ordenamento do território.
CONHECER PORTUGAL Qual a sua grande lição? É indispensável conhecermos Portugal e o facto de não ser um país compreensível superficialmente. Não podemos esquecer a mata mediterrânica e a necessidade de uma agricultura adequada às qualidades do nosso solo. Assim, há muito que combate a ideia de uma florestação industrial extensiva com pinheiros e eucaliptos, em nome da madeira para as celuloses e para a construção civil. Lembremo-nos de alguns exemplos históricos, como o da campanha do trigo, por muitos considerada desadequada, mas posta em prática, a partir da lógica autárcica e de uma suposta autossuficiência. A floresta industrial foi outra das soluções com resultados nefastos. O professor, o pedagogo e o arquiteto paisagista tem lembrado que os romanos dividiam o território em três áreas: o ager, o campo cultivado intensamente; o saltus, ou pastagem, com agricultura menos intensiva e a silva, a mata de proteção com produção de lenha e madeira. Todo esse ordenamento foi posto em causa com sacrifício da silvicultura e a escolha contra natura da floresta industrial. Se estudarmos a nossa cultura geográfica, verificamos facilmente que não temos uma tradição florestal, mas sim mata mediterrânica e matos. Orlando Ribeiro fala do garrigue e do maquis, respetivamente: charneca de arbustos originada no bosque primitivo de azinheiras, substituído por tufos baixos de carrasco e de um cortejo de plantas aromáticas: alfazema, rosmaninho, tomilhos e cistáceas; e um sub-bosque em certos casos com povoamentos densíssimos de medronheiros. No século XIX, o pinheiro bravo veio responder às necessidades de desenvolvimento do caminho –de-ferro. Só mais tarde surgiu a utilização da resina, a indústria da celulose e a pressão da construção civil. Houve, assim, tendência para seguir orientações de curto prazo, em lugar de um pensamento estratégico. Veja-se o caso da limpeza das matas: a verdade é que no que hoje se prevê faltam condições para a circulação de água e para o aproveitamento da matéria orgânica. Daí que a prevenção dos fogos exija ações planeadas com preservação da matéria orgânica e não ações ad hoc sem consideração global. Não devemos esquecer que na mata mediterrânica, há fogos maus e bons – contribuindo estes últimos para o enriquecimento dos solos. A limpeza tem, assim, de ser considerada uma operação agrícola e ecológica – tendo de ser integrada na lógica do ordenamento do território. Do mesmo modo, GRT tem insistido no facto de o eucalipto constituir uma solução perigosa, até porque precisa de muita água – e não a temos suficiente para concorrer com o Brasil ou África. Entre Douro e Minho é a zona de maior pluviosidade, mas não pode transformar-se em floresta. Onde se considerassem os terrenos aptos à florestação, deveriam privilegiar-se as madeiras de qualidade da cultura mediterrânica, como os carvalhos, o sobreiro, a azinheira e pinheiro criteriosamente distribuídos. Com efeito, um ordenamento do território adequado necessita de equilíbrio entre o povoamento e a natureza, ou seja entre as pessoas e as culturas. Lembremo-nos do que dizia Oliveira Martins no seu célebre Projeto de Lei de Fomento Rural: “Necessitamos hoje de implantar homens a implantar árvores: dar terra a quem a fecunde. É preciso sangrá-la nuns pontos, laqueá-la noutros”… Eis por que razão o património cultural não é uma questão do passado, mas uma realidade viva – património material e imaterial, natureza, paisagem, domínio digital e vida presente.
OPÇÃO VERDE Para Gonçalo Ribeiro Telles, a opção verde e ecológica não é (não pode ser) uma questão de moda, mas de sobrevivência. A agricultura vai, por isso, ter de ganhar uma nova importância na economia contemporânea. O homem do futuro vai ser cada vez mais o homem das duas culturas – urbana e rural. Não esqueçamos, que já hoje 30 por cento das pessoas que se dedicam à agricultura económica na Europa não são agricultores profissionais. A expansão urbana aumenta e não podemos viver sem agricultura, sob pena de morrermos à fome e vítimas da destruição irreversível do meio ambiente, sem capacidade para combatermos o desperdício e para garantirmos o equilíbrio ecológico. Constrói-se mal, planta-se mal, esquece-se a relação entre as pessoas e a natureza. A lógica do progresso pelo progresso tem de ceder lugar à racionalidade, ao respeito pela complexidade e pelas diferenças. Não podemos continuar a pensar produzir tudo, para todos ao mesmo tempo. E o mesmo se diga para o caso do consumismo desenfreado. No velho texto de 1956, o nosso autor insiste no pensamento estratégico, baseado nas relações humanas: “Procurar solucionar problemas de ordem demográfica ou de consumo à custa da quebra do equilíbrio e da ordem acarreta prejuízos no fundo biológico da mesma, só remediáveis a longo prazo...". O Papa Francisco na encíclica “Laudato Si’” di-lo com muita clareza. A economia mata não apenas pela especulação financeira, mas também pela cegueira relativamente ao capital social e à ecologia.