CRÓNICAS PLURICULTURAIS
138. UM TESTEMUNHO DE GOYA NO CENTRO CULTURAL DE CASCAIS
Em “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, de Jorge de Sena, lê-se:
“(…) Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha há mais de um século e que por violenta e injusta ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, que tinha um coração muito grande, cheio de fúria e de amor”.
Este excerto, de 1955, e a pintura “Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808”, de 1814, vieram-me à memória de visita à exposição “Goya Testemunho do seu Tempo”, atualmente no CCC, onde indaguei por registos associados ao tema, após me aperceber que entre as várias séries de gravuras, aí expostas, estão “Os Desastres da Guerra”.
Se na célebre pintura a óleo (não exposta) nacionalismo, patriotismo, crueldade, brutalidade e demais horrores da guerra se combinam, evocando os espanhóis fuzilados depois da revolta contra os franceses (em que a vítima iluminada lembra, pela sua postura e pormenores, a crucificação de Cristo), isso mesmo sobressai nas várias dezenas de gravuras (80) alusivas aos infortúnios da guerra.
Pelo título da série (“Desastres da Guerra”), antevê-se uma visão crítica, dura e crua, angustiante e penetrante, sem censuras, nem temor, de tons expressivos que mergulham na sabedoria da alma humana, não propagandeando o triunfo do ganhador, nem a hagiografia do vencedor, mas sim a barbaridade e desumanidade do agressor francês para com as gentes espanholas e destas com os invasores, num olhar que tenta ser neutro. Ao exprimir o lado doloroso e implacável dos conflitos bélicos, finda com o preconceito, tido por positivo, de glória, poder e vitória dos vencedores, até então associado à guerra, não esquecendo os vencidos, que são os heróis sofredores primordiais da sua obra artística. Não surpreende, para muitos, que Goya seja tido como o primeiro repórter de guerra, devidamente adaptado aos tempos que vivemos.
Dividida em três partes (representação da guerra, suas consequências e reflexões), começa a série com o sugestivo e premonitório tema “Tristes pressentimentos do que há-de acontecer”, alusivo a uma situação penosa, derivada da inevitabilidade da guerra, com um homem ajoelhado, olhos no céu e mãos estendidas, rezando e lastimando-se, em farrapos e num lamento consentido, como um Cristo abandonado, a que Goya tenta dar resposta, na última gravura “Ressuscitará?”, numa indecisa e esperançosa interrogação, logo a seguir a “Morreu a Verdade”. Tudo isto num percurso de largas dezenas de gravuras com personagens deformadas, desfiguradas, massacradas, mutiladas, torturadas e mortas pelo conflito, em confrontos de seres esfarrapados e sangrentos, contra uma máquina de matar, perante a qual se quedam impotentes.
Foi em “E não há remédio” e “Não se pode olhar” que encontrei o Goya que agarra mais de perto a icónica pintura “Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808”, em todos elas surgindo as baionetas distinguindo-se, às vezes, só as suas vívidas pontas, incitando-nos a observar e a compreender o seu horror, em que as vítimas, como que iluminadas, mesmo quando mártires, são um apelo à liberdade, compaixão e justiça. Destaco ainda “Dura é a passagem”, “Estragos da guerra”, “Eu vi” e “As camas da morte”.
Goya retrata “Os Desastres da Guerra” como uma realidade transversal a todos os intervenientes, vencedores e vencidos, embora tenha pertencido a uma geração de artistas e intelectuais espanhóis (tal como em Portugal) que começaram por ver nos ideais da revolução francesa a tão proclamada liberdade, igualdade e fraternidade, sem correspondência, na prática, quando confrontado com os horrores sinistros que viu e o seu legado nos deixou, alertando-o para um mal maior, como que endémico do ser humano.
Entre os óleos, o conflito bélico está também presente em “Dois de maio de 1808 ou a Carga dos Mamelucos” (1814), a que acrescem pinturas de outros temas, como “Baile de Máscaras”, duas religiosas e uma deliciosa série de cenas de seis jogos infantis: crianças a brincar aos soldados, no baloiço, por castanhas, à procura de ninhos, ao salto ao eixo e às touradas, em brincadeiras alegres, ternas e ruidosas, ora brigando entre si para fartar a fome com castanhas, ou lutando por ninhos, dando tensão plástica e visual às cenas, sem esquecer a condição humilde dos miúdos descalços.
Na série “Os Caprichos”, de 1799, “Os assuntos tratados compõem um retábulo vivo de vícios e defeitos humanos e estão relacionados com a religião, a moralidade, o amor, o casamento, a sedução, o rapto, a violação, a superstição, a bruxaria, os abusos da inquisição, a vaidade e a tagarelice”.
Satiriza e critica a sociedade do seu tempo, com base na razão ou entrando no campo exagerado do fantástico, conjugando o seu valor artístico, com um sentido didático e de universalidade, testemunhando que os abusos e vícios humanos podem ser pintados, onde se inclui “O sonho da razão produz monstros” (quando não se ouve a razão, tudo se converte em visões). De destacar, ainda, “Bufos”, “Os chichilas”, “Vem aí o papão”, “Ninguém se conhece”, “Amor e morte”, “Belos conselhos”.
Na série “A Tauromaquia”, há uma pintura alusiva à brutalidade e violência real das touradas, onde surge a única mulher toureira da época em “Coragem varonil da célebre pajuelera na de Saragoça”.
Termina a exposição com as gravuras de “Os Disparates ou Provérbios”, tida como a série “(…) mais misteriosa que criou, chegando a anunciar o surrealismo, que não se desenvolveria senão um século mais tarde. As personagens grotescas e as formas incompreensíveis dos diabos apresentam um panorama fantasmal e supõem uma rutura total com a lógica”. Há nela representações delirantes, fantasiosas, oníricas, sublinhadas pelo carnavalesco, estranho, excêntrico, grotesco, desabrido, absurdo, irracional, pela desrazão, ignorância, ironia, superstição, violência e pelas trevas, uma exploração plástica do subconsciente e dos sonhos, numa mescla de desespero e para além do real, como que prevenindo a vinda do expressionismo e surrealismo. Entre os “Disparates” refira-se o “Feminino”, o “Fúnebre” e o de “Carnaval”. Atente-se em o “Toleirão” e o “Cavalo raptor”.
Também há o Goya que não integra esta mostra, o dos famosos retratos, de arte profana mais conhecida, como pintor da corte, mas há que felicitar e reconhecer ser louvável que o CCC tenha conseguido reunir uma exposição tão especial e extensa, de assumida qualidade, que nos faz ansiar por iguais ou mais altos voos.
De todo o modo, Goya continua intemporal, dado que a obra de arte vale por si, mesmo depois de ter aparecido, após a sua morte, a fotografia, pensando muitos pintores da época que seria o fim da pintura. E não foi. A pintura reconfigurou-se e permanece.
12.05.23
Joaquim M. M. Patrício