A VIDA DOS LIVROS
De 1 a 7 de janeiro de 2024
Recordo o pintor e crítico de arte Fernando de Azevedo, nascido no ano de 1923, em Vila Nova de Gaia, cofundador, com Marcelino Vespeira, António Domingues, João Moniz Pereira, Mário Cesariny de Vasconcelos, Alexandre O’Neill e José-Augusto França, do Grupo Surrealista de Lisboa (1947-49).
O «SOBREREALISMO» EM AÇÃO
Neste ano de vários centenários, que nos leva a concluir como foi fértil 1923 numa antecipação ao “baby boom” do fim da outra grande guerra que sucedeu ao mal terminado conflito de 1914-18, referimos alguém que merece lembrança como artista que soube refletir sobre as grandes tendências do seu tempo, marcando pela sua presença e intervenção. A afirmação do Grupo Surrealista de Lisboa marcou a transição do pensamento social e político dos anos trinta e quarenta do século XX para a procura de novos caminhos no pós-guerra em que a liberdade e a valorização existencial abriram perspetivas inovadoras de diversidade e sentido crítico. O grupo assumiu o inconformismo sistemático, começando por romper com Cândido Costa Pinto, que tinha tido um papel simbólico importante no contacto com o patriarca do surrealismo André Breton. E a razão da rutura foi a participação daquele numa mostra organizada pelo SNI, organismo do Estado Novo, “quartel-general da demagogia a cores”. Como dizia a nota de rutura: “O super-realismo tem de seguir a linha da não transigência com as posições equívocas”.
A primeira iniciativa do grupo foi a realização de uma exposição, em 1949, no ateliê da travessa da Trindade, com a participação de António Pedro, onde se incluíam dois Cadavre Exquis, um de Vespeira e Fernando Azevedo e outro, de grandes dimensões, de António Domingues, Fernando Azevedo, António Pedro, Vespeira e Moniz Pereira. Fernando Azevedo teve, assim, uma participação muito ativa desde o início. A exposição seria, aliás, motivo de grande agitação e de ameaças policiais, até porque a primeira proposta de capa do catálogo inseria-se na campanha presidencial de Norton de Matos. “Depois de 22 anos de medo ainda seremos capazes de um ato de Liberdade – é absolutamente indispensável votar contra o Fascismo”. A censura não poderia, porém, autorizar esse texto e a capa seria substituída à última da hora por outra de cor branca riscada à mão por dois traços de lápis azul. Fernando Azevedo era um dos participantes mais ativos. O pintor tinha-se formado na Escola de Artes Decorativas António Arroio, inscrevendo-se depois na Escola de Belas Artes de Lisboa, que acabaria por abandonar, recusando as sombras do academismo. Começou por pintar dentro das orientações do Surrealismo, no entanto o seu percurso caracterizou-se pela evolução para o Abstracionismo. Tinha exposto pela primeira vez em 1943, com Vespeira e Júlio Pomar, acompanhando o início do movimento neorrealista em 1945-46, mas logo no ano seguinte foi cofundador do referido Grupo Surrealista (com objetivos demarcados dos do neorrealismo). Depois da exposição de 1949, que seria a única exposição do grupo, os seus membros consideraram não ter condições para continuar. Em 1952, participa na exposição realizada na Casa Jalco, em Lisboa, dedicada ao precursor do surrealismo em Portugal António Pedro - «Uma exposição de óleo, fotografia, guache, desenho, ocultação, colagem, linóleo, constituída por três «Primeiras exposições Individuais» de Fernando de Azevedo, Fernando de Lemos e Vespeira. No projeto “Unicórnio…, Pentacórnio, de 1951 a 1956, Azevedo é, com Jorge de Sena, José Blanc de Portugal, Eduardo Lourenço e o organizador José-Augusto França, totalista, ao participar em todos os cinco números, com um texto exemplar sobre o Surrealismo no Tricórnio.
TOTALIDADE E AUTENTICIDADE
O Surrealismo proclamava, pela pena de Fernando de Azevedo, a procura da totalidade e autenticidade do ser, através da entrega aos modos de erupção do inconsciente: o sonho, a trouvaille, a alucinação, a associação livre, a loucura, a magia, a alquimia, a mediunidade, o mundo infantil e o mundo da imaginação primitiva, mítica, artística, sonâmbula e automática”. Deste modo, o pintor assumiu uma criação pictórica de importância notável (“ocultações”) e uma frenética e persistente reflexão, em ligação com a participação em inúmeras exposições coletivas, tendo recebido um 1º Prémio de Pintura na II Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, em 1961. Desde a 1947 desenvolve atividade não apenas como artista, mas também como crítico (no “Mundo Literário” e em “Horizonte”); publicando, ao longo da sua vida, textos na imprensa, em catálogos, livros e revistas da especialidade, com destaque para na Revista “Colóquio-Artes” (editada pela Fundação Calouste Gulbenkian entre 1971 e 1996), da qual foi Consultor Artístico, e de facto grande impulsionador ao lado do seu amigo José-Augusto França e com Rui Mário Gonçalves. “Sabe hoje o pintor que a realidade exterior e a realidade interior têm dois perfis dados pela mesma linha comum” – afirmou o artista logo no início dos anos cinquenta, definindo com clareza os dois lados em que se assumia em si a vocação de cultor do “desejo partilhado e inadiável de liberdade”. E é esta coerência irrepreensível que encontramos no seu percurso de intelectual comprometido. Nessa missão de intérprete da arte como pensamento inconformista, ocupou sucessivamente os cargos de Assessor da Direção, Diretor-Adjunto (1989-92) e Diretor (1992-94) do Serviço de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian. E ainda exerceu a presidência da Direção da Gravura – Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses entre 1972 e 1974. Foi vice-presidente e presidente da Secção Portuguesa da AICA (1977-1979 e 1987-1994). Foi presidente da Sociedade Nacional de Belas Artes entre 1979 e 2002.
Leonor Nazaré tem razão ao afirmar que Fernando de Azevedo foi figura central do surrealismo português “tendo empregado o seu entusiasmo e a sua criatividade artística na ação cívica e no preenchimento desse programa que se queria liberto de constrangimentos estéticos referenciais e políticos – em dissidência com os neorrealistas, com quem o grupo inicia o percurso artístico, mas de quem depois se separa”. Afinal, o artista soube sempre a importância de manter uma tribuna que era simultaneamente um modo de pôr em diálogo a receção e a criação. “A escrita abre um espaço próprio ao pensamento sobre as obras e os artistas (como insiste Leonor Nazaré), e esse espaço aberto lhe assegurava conceitos, razões, poesia, intuição e verdadeira relação com a arte, do ponto de vista da receção que quis manter ativo a par do ponto de vista da criação”. Arte e compromisso são as duas faces do pintor e do ensaísta, em busca de um caminho em que coubesse a medida do homem e não a sua imitação…
Guilherme d'Oliveira Martins
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