Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Jürgen Habermas acaba de publicar uma importante reflexão sobre a Guerra e a Paz na Europa.
REFLEXÃO SÉRIA E NECESSÁRIA Jürgen Habermas procede a uma reflexão séria e necessária sobre o perigoso momento que vivemos. A guerra da Ucrânia, às portas da Europa, obriga à consideração de diversos dilemas de difícil resposta, com milhares de vidas humanas sacrificadas todos os dias, que continuam a aumentar com o decurso do tempo. Importa, assim, agir, até para que não se cometam erros irreversíveis, que imediatamente podem resultar da natural preocupação de chegar a uma solução urgente que possa calar as armas, mas que poderão conduzir a prazo ao recrudescer mais intenso e trágico de um conflito de proporções e consequências imprevisíveis. Daí a necessidade de haver cabeça fria e nervos de aço, a fim de que os objetivos de curto prazo sejam pensados à luz de soluções de longo termo, que preparem o pós-guerra, que salvaguardem o respeito dos princípios da Carta das Nações Unidas e que permitam um equilíbrio durável no centro e leste da Europa. De facto, os acontecimentos de 1989 e a queda do muro de Berlim não permitiram a criação de um “modus vivendi” duradouro que integrasse a Federação Russa na balança da Europa e do Mundo, numa lógica de multipolaridade e com respeito e salvaguarda de uma cultura de paz. E essa é a urgência que agora se exige. O texto de Habermas, publicado no “Süddeutsche Zeitung” (15.2), procede à consideração da necessidade de não permitir que haja no terreno de guerra factos consumados, que abram caminho à violação de direitos fundamentais e à condenação irreversível de muitas vidas humanas inocentes. Partimos do reconhecimento «da importância do destino doloroso duma população que depois de vários séculos de dominação estrangeira – polaca, russa, mas também austríaca – apenas adquiriu a sua independência e a sua soberania depois da queda a União Soviética. Entre todas as nações europeias que registam um atraso de reconhecimento, a Ucrânia é agora aquela onde tal se manifesta mais claramente. Estamos, sem dúvida, ainda perante uma nação em concretização». Contudo os partidários do apoio à Ucrânia vêem-se divididos quanto ao momento e às condições considerados oportunos para as negociações de paz. Uma parte considera prioritária a exigência do governo ucraniano que reclama um apoio militar sem limites para vencer a Rússia e restaurar a integridade territorial do país, incluindo a Crimeia, enquanto a outra parte deseja forçar as tentativas para instaurar um cessar-fogo, a fim de se iniciarem negociações que possam evitar uma possível derrota, ao menos com o restabelecimento da situação anterior a 23 de fevereiro de 2022. Na análise de Habermas há referências marcantes: como afirmou o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Lituânia Gabrielius Landsbergis, “torna-se necessário ultrapassar o medo de querer vencer a Rússia”, devendo acrescentar-se que tal não pode ser visto de modo puramente voluntarista. Apesar das hesitações, a posição do chanceler alemão Olaf Scholz de apoio à Ucrânia está condicionada pela distinção entre o apoio a uma causa e a entrada efetiva na guerra. Urge, assim, considerar que a posição do governo alemão deve ser acompanhada por uma reflexão pública sobre o difícil caminho que deve conduzir a negociações. E Habermas junta-se a esta atitude, porque considera ser justo dizer que “a Ucrânia não deve perder a guerra”. Daí que a situação obrigue a negociações de carácter preventivo, para impedir que uma guerra longa faça mais mortos e destruições e para que não cheguemos no fim das contas a uma escolha dramática entre um envolvimento direto na guerra ou o abandono da Ucrânia à sua sorte. Urge, porém, impedir o desenvolvimento de um conflito, em termos semelhantes ao que ocorreu na primeira guerra mundial, com a agravante de agora termos potências nucleares. Há, no entanto, dois aspetos que obrigam a uma complexa reflexão – de facto, quando se fala em “não permitir que a Ucrânia perca a guerra” tal não significa “derrotar a Federação Russa”. Importa, sim, falar de um dever político de apoiar o direito da Ucrânia no combate corajoso contra a agressão lançada, de modo criminoso, pela Rússia em violação do direito internacional, contra a existência e a independência de um Estado soberano reconhecido pelas Nações Unidas.
DE NOVO COMO EM VERDUN A que se assiste neste momento em Bakhmout no norte do Donbass? A um combate bárbaro com perdas muito importantes dos dois lados, à semelhança do que ocorreu na primeira guerra mundial em Verdun (de fevereiro a dezembro de 1916), na mais longa e mortífera batalha na guerra das trincheiras. Não podemos assistir indiferentes. “Nas guerras - diz Habermas – a vontade de vencer o adversário é acompanhada pelo desejo de terminar com a morte e a destruição. Mas na medida em que as devastações aumentam pelo poder das armas, a importância relativa das tais prioridades inverte-se”. É essa a tragédia a que assistimos. Não podemos esquecer, porém, que no fim da segunda guerra mundial a violência teve ser pacificada por meios políticos e jurídicos e por novas formas de regulação de conflitos. A Carta das Nações Unidas de 1945 e o Tribunal Internacional de Justiça da Haia revolucionaram o direito internacional, prevendo a regulação de conflitos internacionais por meios pacíficos. Ora, é à luz de tais princípios que tem de se afirmar que “a Ucrânia não deve perder a guerra”. De facto, esta guerra desencadeada por Vladimir Putin significa um recuo civilizacional, que suscita um dilema, já que regressamos à velha perspetiva amigo-inimigo que as Nações Unidas procuraram superar, mas a verdade é que não há sinais de que Putin deseje optar pela lógica da razão. A lógica multilateral tem de ser privilegiada. “E, de um modo geral, esta guerra chama a atenção para a necessidade urgente de uma regulamentação em toda a região da Europa central e oriental que ultrapasse os objetos do litígio dos atuais beligerantes”. Desde os acordos de desarmamento às condições económicas globais, importa encarar com clareza os diferentes aspetos em causa. E se os Estados Unidos estão disponíveis para participar em negociações globais, do mesmo modo que a posição da República Popular da China inclina-se para a limitação do recurso ao poder nuclear, importa criar condições para uma negociação séria que ponha termo à guerra. Referindo-se, deste modo, a uma rede de interesses bastante alargada, apesar das exigências imediatas parecerem diametralmente opostas, deve-se trabalhar para um compromisso que respeite princípios essenciais e que permita salvar a face das partes. O caminho parece ser muito estreito, mas a reflexão de Habermas merece especial atenção. Uma cultura humanista e uma civilização baseada na justiça têm de ser chamadas à ordem dia, até por uma questão de sobrevivência!
1. Quando olho para a tragédia que se abateu sobre a Ucrânia: bombas atrás de bombas, milhões de refugiados, valas comuns, mortos e mais mortos, crianças afogadas no pânico, mulheres sem palavras para chorar e gritar os horrores, hospitais, creches, escolas destruídos, ruinas, mais ruinas, um mundo a desabar, ameaças de guerra nuclear..., só poderia desejar, do fundo do coração, poder responder: Não, nunca mais haverá guerra. Mas sei que não é assim. Haverá sempre guerras, a não ser que se desse uma conversão radical da humanidade.
Neste sentido, há um texto que me foi enviado, cujo autor desconheço mas com o qual estou de acordo, até porque encontrou as palavras certas para descrever este mundo de loucura. Reza assim: “Nenhuma guerra tem a honestidade de confessar: ‘Eu mato para roubar’. As guerras invocam sempre motivos nobres: matam em nome da paz, em nome de Deus, em nome da civilização, em nome do progresso, em nome da democracia e, por causa das dúvidas de nenhuma destas mentiras ser suficiente, aí estão os meios de comunicação dispostos a inventar inimigos imaginários para justificar a transformação do mundo num grande manicómio e um imenso matadouro. Em Rei Lear, Shakespeare escreveu que neste mundo os loucos guiam os cegos, e, quatro séculos depois, os senhores do mundo são loucos enamorados da morte que transformaram o mundo num lugar onde a cada minuto morrem de fome ou doença curável dez crianças e a cada minuto se gastam três milhões de dólares, três milhões de dólares a cada minuto, na indústria militar, que é uma fábrica de morte. E as armas exigem guerras e as guerras exigem armas, e os cinco países que dominam as Nações Unidas, que têm direito de veto nas Nações Unidas, acabam também por ser os cinco principais produtores de armas. A gente pergunta: ‘Até quando? Até quando a paz do mundo estará nas mãos dos que fazem o negócio da guerra? Até quando continuaremos a acreditar que nascemos para o extermínio mútuo e que o extermínio mútuo é o nosso destino? Até quando?’ “.
2. O filósofo I. Kant escreveu que o ser humano se defronta com três impulsos fundamentais: o prazer, o poder e o ter. Por mim, penso que o mais forte é o poder enquanto domínio. De facto, o ser humano é carente e confronta-se com a morte, que o confronta com o nada. Através do poder, de poder em poder, cada vez com mais poder, alcançaria a omnipotência e mataria a morte.
Pascal, o grande Pascal, o matemático eminente, uns dos maiores de sempre, e também um dos maiores cristãos europeus de sempre, viu bem quando escreveu que a constituição do ser humano mora ali algures entre “le rien et l’infini” (o nada e o infinito). Por isso, a mais poderosa tentação, desde o início da humanidade, é a omnipotência. Embora se trate de uma estória mítica, ela diz o essencial: no Génesis, a serpente voltou-se para Eva e disse-lhe que, apesar da proibição por Deus, se comessem do fruto proibido, seriam como Deus, alcançariam a omnipotência. E deu a Adão, e ela também comeu. E aí estão as trágicas consequências: foram expulsos e, logo a seguir, Caim matou o irmão, Abel, inaugurando uma torrente de sangue sem fim.
Com o poder, vem o ter e cada vez mais teres, porque o desejo de ter é insaciável. E os teres precisam de ser aumentados sempre mais e defendidos, e aí estão a violência e a guerra, que, paradoxalmente, aumentam o poder e o ter. Neste nosso tempo, os gastos com novas armas rondam os dois milhões de milhões (2.000.000.000.000) de dólares, com a lógica de que as armas exigem guerras e as guerras exigem armas, também para gastar o armamento velho e produzir novas armas.
3. O poder fascina de tal modo que até há bem pouco tempo se cantava nas igrejas a Deus como “Senhor Deus dos exércitos” — aliás, ainda há um bispo das forças armadas, mas não um bispo da saúde e da cultura...— e a maior traição da Igreja foi ter-se transformado numa instituição de poder.
Jesus tem duas advertências essenciais. “Não podeis servir a Deus e a Dinheiro”. Ele conhecia bem a importância do dinheiro — não passou a maior parte da vida a trabalhar? —, mas não se pode adorar Dinheiro (com maiúscula). Significativamente, os Evangelhos foram escritos em grego, mas mantiveram duas palavras em aramaico, a língua materna de Jesus: Abbá, Paizinho (era com esta ternura que Jesus se dirigia a Deus) e Mammôn, a deusa do dinheiro. Mammôn tem o radical mn, que significa confiar. A revelação de Jesus é que Deus é bom, Pai e Mãe de todos, e realmente não é possível confiar, entregar-se confiadamente a Deus e ao mesmo tempo confiar, entregar-se confiadamente a Dinheiro como salvador.
Jesus também disse: “Eu sou Senhor e Mestre”, mas “vim para servir, não para ser servido”; “quem quiser ser o primeiro seja servidor”. Deus é omnipotente? Sim, tem todo o poder, mas não enquanto dominação mas Força infinita de criar.
O latim pode ser iluminante. Mestre tem na sua origem magister, com base em magis, que significa mais, de tal modo que o mestre é o que está acima, o maior, em contraposição com ministro, que vem de minister, com base em minus, menos, e que é o servente, o que serve. (Quantos ministros — também os ministros da Igreja — se lembram que devem ser os que servem, os serventes?). E isso nada tem que ver com ser incompetente. O exemplo é Jesus: ele é o verdadeiro Mestre e Senhor, mas é servidor. Assim, todos devem levar o mais longe possível os seus dons, não para dominar, mas para a maior realização de todos.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 15 de outubro de 2022
Qualquer Estado pelo mero facto de ser maior territorialmente, mais forte, ter uma mentalidade imperial e reclamar zonas de influência, não tem o direito de agredir outro, violando o Direito Internacional.
Após a invasão, indicia-se poder desaparecer a função de estado tampão da Ucrânia para a Rússia. O país agredido quer ficar do lado europeu ocidental. O país agressor quer que fique do lado russo.
Quando há choques geopolíticos importantes, a Europa reage. Com o fim da segunda guerra mundial e o começo da guerra fria, reagiu com a integração europeia e a criação de dois blocos, um a oeste (ocidental) e outro a leste (comunista). Com o fim da guerra fria, reagiu com o alargamento a leste, através da União Europeia e da Nato. E reagiu, agora, com a aplicação de sanções ao invasor e a promessa de adesão da Ucrânia à União Europeia, bem como com ajuda humanitária e militar (esta última maioritariamente dependente dos Estados Unidos), juntamente com aliados de outros continentes: Canadá, Singapura, Coreia do Sul, Taiwan, Japão, Austrália e Nova Zelândia.
Em qualquer caso, a Rússia sempre foi um país com raízes europeias, em termos de cultura e mentalidade, apesar de ser um país euroasiático do ponto de vista geográfico.
Mas o desejo de ter nas relações internacionais um papel digno da sua dimensão territorial e poderio militar, em conjugação com a convicção de ter uma cultura específica suscetível de se universalizar, uma especificidade, excecionalidade e universalidade russa, faz com que tenha uma mentalidade imperial, que tem por justificada em termos históricos e culturalmente.
Vejamos, numa sucinta síntese, as correntes fundamentais do pensamento filosófico e político russo, incluindo as tidas como subjacentes à atual invasão da Ucrânia.
Desde início do século XIX o pensamento russo divide-se em dois movimentos marcantes e opostos: o ocidentalismo e os eslavofilismo, englobando este os pan-eslavistas e os nacionalistas russos.
Para os ocidentalistas a Rússia, desde Pedro, O Grande, tem a vocação de ser parte integrante da Europa e a obrigação de recuperar o atraso que a distancia do eurocentrismo ocidental, o que implica o abandono da arbitrariedade imperial, da limitação ou proibição das liberdades e direitos fundamentais, da identidade ortodoxa da igreja russa e do nacionalismo, tendo como representantes Piotr Chaadaev, Aleksandr Herzen e Vissarion Belinski.
Os eslavófilos consideram a cultura europeia-ocidental decadente, fonte de declínio espiritual e moral, promovendo como ideal um arquétipo nacional que reúne as virtudes de um povo russo essencialmente agrícola, bom, gentil e pacífico, baseado numa visão religiosa do mundo apoiada na fé ortodoxa e na verdade da “via russa”, encontrando em si forças para a modernização, tornando-se um exemplo de referência para o Ocidente. São eslavófilos Alexis Khomiakov, Konstantin Aksakov, Ivan Kireievski, Ivan Aksakov, Mikhail Katkov, Iuri Samarin e Fiodor Dostoiévski.
Esta visão orgânica, doméstica, idealista e romântica dos primeiros eslavófilos promovia o apoliticismo, em que o czar era tido mais como um pai, que uma autoridade formal. Daí que, entre outros, Khomiakov visse a missão do povo russo na vida suprema do espírito, e não na vida política, impossibilitando associar esta visão inicial a uma política estatal e imperial.
O dualismo entre ocidentalistas e eslavófilos estruturou para sempre o espaço intelectual russo, evoluindo, adaptando-se e reinventando-se, inclusive nas elites culturais e políticas da União Soviética, onde a nível intelectual teve, entre os dissidentes, um Sakharov ocidentalista, em oposição ao eslavófilo Soljenítsin.
À filosofia especulativa e romântica dos primeiros eslavófilos, sucedeu um sistema filosófico mais positivista de filósofos e pensadores russos de segunda geração, nacionalistas e anti-ocidentalistas, tidos como inspiradores e mentores decisivos da atual política russa que subjaz à invasão da Ucrânia, a que aludiremos no próximo texto.
A quem é que, perante as imagens de horror desta guerra na Ucrânia ditada por um megalómeno humilhado e insensato — mortes incontáveis, a tragédia de valas comuns, milhões de deslocados e refugiados, mulheres, crianças, idosos em total desamparo, na falta de tudo, quando nada é poupado à destruição: maternidades, escolas, hospitais —, não vieram já as lágrimas aos olhos?
O Papa Francisco não se cansa de clamar contra a guerra e apelar à paz: “Em nome de Deus peço-vos : parem este massacre!” “Um massacre sem sentido” e de “uma crueldade inumana e blasfema”. Por ocasião da celebração da Páscoa ortodoxa, no fim de semana passado, ele, a ONU, o Conselho Mundial das Igrejas apelaram a um cessar-fogo, também para abrir a possibilidade de corredores humanitários, mas não foram ouvidos. Quero sublinhar que, atendendo às celebrações pascais, o arcebispo de Munique, cardeal Reinhard Marx, foi particularmente duro na saudação pascal. Chamou “perversos” aos líderes religiosos que, como o Patriarca de Moscovo, Kirill, apoiam a guerra na Ucrânia, lamentou que ao longo da História “os cristãos tenham usado a violência sob o sinal da cruz”, algo que se repete hoje “na guerra actual, com cristãos baptizados a matar outros cristãos e receebendo o apoio de líderes das suas Igrejas”. A Igreja “deve erguer-se como um lugar de não violência, e a cruz como sinal da violência sofrida e superada.” Chamou “ditador” a Putin: “a Páscoa é a rebelião de Deus contra todas as forças da violência e da morte. A vitória da vida sobre a morte não pode ser detida, nem sequer com as armas de Putin e outros ditadores”.
Francisco confessa numa entrevista a “La Nación” que “está disposto a fazer tudo para deter a guerra — o Vaticano nunca descansa” — e acaba de publicar um livro precisamente com o título Contra a guerra. A coragem de construir a paz. Ficam aí algumas ideias fundamentais, a partir de Religión Digital.
Começa por lembrar como há um ano, na sua peregrinação ao martirizado Iraque, pôde constatar directamente o desastre causado pela guerra, a violência fratricida, o terrorismo, viu os escombros dos edifícios e as feridas dos corações. Também viu sementes de esperança. E “nunca teria imaginado que um ano depois rebentaria um conflito na Europa.”
Referi aqui muitas vezes que desde o início do seu pontificado Francisco falou da Terceira Guerra Mundial em curso, mas “aos pedaços, por partes”. O que é facto é que essas partes se foram tornando cada vez maiores e ligando-se entre si. Neste momento há muitas guerras espalhadas pelo mundo, que causam “imensa dor, vítimas inocentes, especialmente crianças”, milhões de pessoas obrigadas a deixar a sua terra, as suas casas, as suas cidades destruídas. Mas essas guerras esquecemo-las, pois andamos distraídos e elas passam-se longe. “Até que, de repente, a guerra rebentou perto de nós. A Ucrânia foi atacada e invadida. E, no conflito, os mais atingidos são, desgraçadamente, muitos civis inocentes, muitas mulheres, muitas crianças e muitos idosos”, obrigados a viver em bunkers para proteger-se das bombas ou com as famílias separadas, pois, enquanto as mães e as avós atravessam fronteiras à procura de refúgio, os maridos, pais e avós ficam para combater.
Perante as imagens terríveis de horror que nos chegam todos os dias, “não podemos fazer outra coisa que não seja gritar: ‘Parem!’ A guerra não é a solução, a guerra é uma loucura, a guerra é um monstro, a guerra é um cancro que se autoalimenta devorando tudo. Mais: a guerra é um sacrilégio, que causa estragos no mais precioso que há sobre a terra: a vida humana, a inocência dos mais pequenos, a beleza da criação.” “Sim, a guerra é um sacrilégio”.
Pela enésima vez estamos perante a barbárie, porque perdemos a memória: esquecemos a História, esquecemos o que nos disseram os nossos avós, os nossos pais. “Se tivéssemos memória, não gastaríamos dezenas, centenas de milhares de milhões para nos equiparmos com armamentos cada vez mais sofisticados, para aumentar o mercado e o tráfico de armas que acabam por matar crianças, mulheres, anciãos. 1981 mil milhões de dólares por ano, segundo os cálculos de um importante centro de investigação de Estocolmo.”
Se tivéssemos memória, “saberíamos que a guerra, antes de chegar à frente de combate, tem de ser parada nos corações. É necessário o diálogo, a negociação, a escuta, a habilidade e criatividade diplomática, uma política com visão de futuro capaz de construir um novo sistema de convivência que já não se baseie nas armas, no poder das armas, na dissuasão.” Toda a guerra “representa não só uma derrota da política, mas também uma vergonhosa rendição perante as forças do mal.”
Acrescenta: em 2019, em Hiroshima, “cidade símbolo da Segunda Guerra Mundial, cujos habitantes foram massacrados, com os de Nagasaki, pelas bombas nucleares, reafirmei que o uso da energia atómica com fins bélicos é, hoje mais do que nunca, um crime. O uso da energia atómica com fins bélicos é imoral, como o é a posse de armas atómicas. Quem podia imaginar que menos de três anos depois, o espectro da guerra nuclear pairaria sobre a Europa? Assim, passo a passo, avançamos para a catástrofe. Pouco a pouco, o mundo corre o risco de transformar-se no cenário de uma única Terceira Guerra Mundial. Avançamos para ela como se fosse inelutável. Pelo contrário, devemos, todos juntos, repetir, com força: ‘Não, não é inelutável’. A guerra não é inelutável!”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 30 de abril de 2022
O pacifismo, ao defender a paz como bem supremo, faz o seu percurso ideológico e político desenvolvendo-se, no seu sentido mais restrito, ao recusar o uso de meios violentos contra toda a criação ou a espécie humana (ecologistas), quer no mais amplo, ao incluir as doutrinas defensoras da conciliação internacional, na base de organizações e de políticas como a SDN, a ONU, a DUDH, a Ostpolitik e o desanuviamento.
Baseia-se numa antropologia tida essencialmente como otimista, onde predomina a paz, tendo como base filosófica a Paz Perpétua de Kant e a ideia de que o homem é naturalmente bom.
É uma ideia culturalmente e espiritualmente revolucionária em termos civilizacionais, que não tem qualquer tipo de reflexo de uma ordem natural das coisas, o que é demonstrado pela repetição da História ao longo dos tempos, não justificando o otimismo excessivo do pacifismo.
Com efeito, ao lado do aprofundamento da globalização, integração regional e aumento da cooperação, materialização e positivação do conceito de complementaridade de ação das organizações internacionais, reapareceram violentas e agressivas afirmações de nacionalismos e violações dos direitos humanos. Algumas das mais recentes nos Balcãs (ex-Jugoslávia), no Ruanda-Burundi e Síria. E, atualmente, com a invasão da Ucrânia, após duas guerras mundiais com epicentro europeu, contrariando quem tinha tal factualidade como uma regressão improvável.
É a antropologia pessimista que tem por fundamento filosófico a teoria de Thomas Hobbes de que o Homem é mau, é um lobo para o Homem, defendida pelos belicistas, dada a inevitabilidade da guerra que acompanha, em permanência, o ser humano, adaptada pelos realistas para quem o Estado é o único ator internacional válido relacionando-se com os outros (Estados) movido pelo interesse nacional, maximizando o poder, se necessário o militar, através da guerra, sendo esta boa se for um meio para atingir os fins.
Tem havido sempre uma repetição da História, quanto a guerra e paz.
O desejável seria nunca haver repetição da guerra, havendo sempre paz.
Movimentos generalizados da opinião pública a favor da paz são louváveis, mas há obstáculos à sua realização, como o terrorismo, tensões religiosas, intolerâncias étnicas, xenofobia, racismo, supremacias imperialistas ou outras, fazendo esquecer os esforços da paz, sem excluir o poder como fim ilimitado, sustentado pelo puro domínio e ganância do poder pelo poder.
É a guerra e paz e a repetição da História.
O que não justifica que nos conformemos com a repetição da guerra, pois a paz é decorrência inelutável do progresso espiritual da Humanidade, árdua tarefa, que vem de há muito, não sendo, para muitos, uma mera utopia.
A guerra é uma forma de dominação do homem pelo homem.
Sempre assim foi, por mais que se aperfeiçoe a “arte” da guerra.
Muitos inventos que contribuíram e contribuem para o nosso bem-estar e saúde, foram colocados ao serviço da guerra, como armas ofensivas e defensivas, usando técnicas de engenharia, de geometria, matemática, biologia, física, química, entre outras.
A relação humana com as coisas tem-se regido pela lógica do progresso, numa evolução linear e permanente, melhorando gradual e constantemente, sem regressão técnica a médio ou a longo prazo. Ninguém troca meios de transporte tecnologicamente mais funcionais e evoluídos por transportes mais antigos. Não há regressão científica, técnica, informática ou eletrónica. É uma tendência universal comprovada pela nossa História e Geografia ao longo dos tempos, que também é extensiva ao progresso técnico e científico da “arte” de fazer a guerra.
Porém, se bem que a guerra do século XX e XXI seja mais mortífera que a de séculos anteriores, há nela uma temporalidade sempre repetitiva da sua natureza desumana, hedionda e monstruosa, em que a selvajaria e a banalidade do mal se diferenciam por confronto entre o que é “selvagem” e “civilizado”. Por contraste entre o tempo cumulativo do desenvolvimento técnico-científico, civilizacional e de inovação permanente, em benefício do bem comum, e o tempo repetitivo e sem solução, até hoje, da guerra, em que o “progresso” bélico é um mito porque barbárie, crueldade, império do mal e retrocesso civilizacional.
Sendo a guerra um meio de dominação do homem pelo homem, a noção de progresso é uma ilusão, um mito, ao invés do sentido detetável na história da técnica, dado que a guerra, por si e em si, é regressão, por mais sofisticado que seja o progresso dos meios bélicos que a sustentam.
De uma visão dos acontecimentos mundiais pode concluir-se que para os pequenos choques produzidos pelas mais variadas causas, têm sido suficientes negociações e processos de solução pacífica, o que, como sempre, apenas vale como panaceia para todos os males, dado que os Estados mais poderosos têm procurado a sua vitória em progressos bélicos e guerras totais de consequências imprevisíveis.
Da guerra por terra, mar e ar, evoluiu-se para a nuclear e, na era digital, para a cibernética, dando-lhe caraterísticas evolutivas de permanência.
A paz atual, como as anteriores, é sempre precária. Para a segurança da humanidade é insuficiente uma organização mundial como a ONU, a força militar, a imposição dos estadistas e a diplomacia.
Apenas uma consciente e empenhada educação dos povos, dirigida por atalhos de uma política sábia de garantias e de liberdade, pode produzir, através de gerações e de uma opinião publica influente e resistente, a ansiada paz.
No curto prazo, o ideal seria subscrever e aplicar o Projeto para tornar a paz perpétua na Europa, do abade francês de Saint-Pierre, em que defendia a pacificação europeia, através de uma instância política, acima das nações, assegurando o governo da paz e uma sociedade harmonizada. Mais tarde, Kant recupera esse propósito com o Projeto para a Paz Perpétua, prescrevendo a guerra como inimigo número um da humanidade, tendo como imperativo que os Estados se associassem numa organização de fins pacíficos, assente numa aliança federal de Estados livres de competência resolutiva para conflitos internacionais, colocando a guerra fora do Direito. Apesar de ser em nome dessa cooperação baseada em imperativos morais e jurídicos restritivos da ação dos Estados que se inspirou o presidente Wilson, isso não impediu que após a primeira grande guerra se agudizassem os ressentimentos e se chegasse à segunda guerra mundial. O que não exclui o sonho de uma organização internacional universal em que o Direito supere a força privada e estadual.
Embora guerra e paz sempre existissem, a paz efetiva é decorrência inelutável do progresso espiritual da humanidade, sendo a guerra odienta, mesmo que justa.
1. Depois de uma invasão injustificável e uma uma guerra cruel, com milhões de deslocados e refugiados, crianças traumatizadas para sempre, prédios arrasados, o que fica para trás, após a retirada russa de perto de Kiev, nomeadamente em Butcha, é de uma atrocidade de pesadelo: corpos de civis com as mãos atadas e assassinados, valas com cadáveres ao abandono, mulheres violadas, num cenário de tragédia indescritível. Não há palavras. E alguém beneficia com estas atrocidades? Aqui, veio-me à mente um livrinho famoso. O seu autor: Carlo M. Cipolla (1922-2000), historiador da economia O seu título: As leis fundamentais da estupidez humana, de que fica aí uma resumo.
2. Para estabelecer as leis fundamentais da estupidez, é preciso, primeiro, definir quem é o estúpido. Quando temos um indivíduo que faz algo que nos causa uma perda, mas lhe traz um ganho a ele, estamos a lidar com um bandido. Quando alguém age de tal maneira que todos os interessados são beneficiados, temos uma pessoa inteligente. Ora, o nosso quotidiano está cheio de incidentes que nos fazem "perder dinheiro, e/ou tempo, e/ou energia, e/ou o nosso apetite, a nossa alegria e a nossa saúde", por causa de uma criatura ridícula que "nada tem a ganhar e que realmente nada ganha em causar-nos embaraços, dificuldades e mal". Ninguém percebe por que razão alguém procede assim. "Na verdade, não há explicação ou, melhor, há só uma explicação: o indivíduo em questão é estúpido."
Cá está a primeira lei: "Cada um subestima sempre inevitavelmente o número de indivíduos estúpidos que existem no mundo." Já a Bíblia constata: o seu número é infinito.
Os estúpidos estão em todos os grupos, pois "a probabilidade de tal indivíduo ser estúpido é independente de todas as outras características desse indivíduo": segunda lei.
A terceira lei corresponde à própria definição do estúpido: "É estúpido aquele que desencadeia uma perda para outro indivíduo ou para um grupo de outros indivíduos, embora não tire ele mesmo nenhum benefício e eventualmente até inflija perdas a si próprio." A maioria dos estúpidos persevera na sua vontade de causar males e perdas aos outros, sem tirar daí nenhum proveito. Mas há aqueles que não só não tiram ganho como, desse modo, se prejudicam a si próprios: são atingidos pela "super-estupidez".
É desastroso associar-se aos estúpidos. A quarta lei diz: "Os não estúpidos subestimam sempre o poder destruidor dos estúpidos. Em concreto, os não estúpidos esquecem incessantemente que em todos os tempos, em todos os lugares e em todas as circunstâncias tratar com e/ou associar-se com gente estúpida se revela inevitavelmente um erro custoso." A situação é perigosa e temível, porque quem é racional e razoável tem dificuldade em imaginar e compreender comportamentos irracionais como os do estúpido. Schiller escreveu: "Contra a estupidez mesmo os deuses lutam em vão."
Como consequência, temos a quinta lei: "O indivíduo estúpido é o tipo de indivíduo mais perigoso." O corolário desta lei é: "O indivíduo estúpido é mais perigoso do que o bandido." De facto, se a sociedade fosse constituída por bandidos, apenas estagnaria: a economia limitar-se-ia a enormes transferências de riquezas e de bem-estar a favor dos que assim agem, mas de tal modo que, se todos os membros da sociedade agissem dessa maneira, a sociedade no seu conjunto e os indivíduos encontrar-se-iam numa "situação perfeitamente estável, excluindo toda a mudança". Porém, quando entram em jogo os estúpidos, tudo muda: uma vez que causam perdas aos outros, sem ganhos pessoais, "a sociedade no seu conjunto empobrece".
A capacidade devastadora do estúpido está ligada, evidentemente, à posição de poder que ocupa. "Entre os burocratas, os generais, os políticos e os chefes de Estado, é fácil encontrar exemplos impressionantes de indivíduos fundamentalmente estúpidos, cuja capacidade de prejudicar é ou tornou-se muito mais temível devido à posição de poder que ocupam ou ocupavam. E também não se deve esquecer os altos dignitários da Igreja." É assim o mundo.
3. Ao ler Igreja, lembrei-me do Papa Francisco, esse cristão que é uma bênção para a Igreja e para o mundo. Ele, atravessado pela angústia dos migrantes e da guerra “sacrílega”, como a caracteriza, da Ucrânia, visitou no fim de semana passado a ilha de Malta, manifestando, mais uma vez, a sua predilecção pelas periferias — “é preciso ir à periferia para ver o mundo como é”, diz.
Já na ida de Roma para Malta, tinha manifestado a sua disponibilidade para ir a Kiev: “Uma visita a Kiev está em cima da mesa”. Já de regresso, na habitual conferência de imprensa, agradeceu as notícias sobre os horrores de Butcha, que desconhecia, e declarou: “A guerra é cruel, desumana. Estou disposto a fazer tudo o que possa ser feito. A Santa Sé está a fazer a sua parte diplomática: o Cardeal Parolin, Monsenhor Gallagher estão a fazer tudo. Por razões de prudência, não se pode publicar tudo, mas estamos a levar o nosso trabalho até ao limite. Entre as várias possibilidades, está a viagem. Digo com sinceridade: há sempre disponibilidade para partir. Está em cima da mesa. É uma das propostas, mas não sei se é possível e se será conveniente. Tudo está no ar. Há algum tempo que também pensei num encontro com o Patriarca Ortodoxo de Moscovo. Estamos a trabalhar no sentido de concretizá-lo.”
Desgraçadamente, digo eu, o Patriarca Cirilo está ao lado de Putin.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 9 de abril de 2022
Infelizmente, a primeira guerra mundial foi um laboratório de ensaios e de experimentalismos que abriram a possibilidade para a ocorrência de uma guerra mais global e total, com inovação nuclear. O conflito de 1939-45 foi o evoluir, para pior, da primeira grande guerra. Se a Liga das Nações foi o precedente direto e imediato das Nações Unidas (ONU), o Genocídio Arménio foi o precedente do Holocausto Nazi, o mesmo sucedendo com a morte em série e o terror crescente, letal e mortífero dos fabricantes do terror absoluto da segunda grande guerra, exacerbando o modelo, por confronto com a primeira.
A 31 de julho de 1947, data do encerramento de contas, a Sociedade das Nações deixou legalmente de existir, após a transferência dos seus bens para a ONU.
Os governos tencionavam tirar ensinamentos da falência da SDN. Uma das razões a que se atribui a sua ineficácia era a igualdade fictícia entre grandes e pequenos, pois todos os seus membros tinham direitos idênticos, mesmo que houvesse entre eles uma flagrante disparidade. Passa a usar-se a distinção entre os “Grandes” (em número de cinco), tidos como representantes e detentores das responsabilidades mundiais, e os outros. Os Grandes terão assento permanente no órgão essencial que é o Conselho de Segurança da ONU, onde têm direito de veto. Os outros serão rotativamente representados no CS e elegerão determinado número de membros para completar os cinco “Grandes”.
Ao objetivo primordial da manutenção da paz da Carta das Nações Unidas, mesmo com o apoio de uma força armada internacional (os Capacetes Azuis), junta-se a defesa dos direitos humanos, baseada no princípio da dignidade da pessoa humana, que os dois conflitos mundiais demonstrariam, entretanto, a urgência em fixar e tutelar.
Mas a ONU, com o seu estatuto, só pode cumprir plenamente a sua função desde que os “Grandes” do CS se concertem. Trata-se de uma política maquiavélica, realista e coativa de quem tem mais força e poder, iludindo o legislado, estando o Direito mais atrasado em legislação, força coativa e sancionatória, com inerentes consequências na temática sobre o direito na guerra.
Desde as objeções à existência do direito internacional, passando pelas doutrinas subjetivistas, objetivistas, pluralistas ou monistas, incluindo a doutrina da autolimitação, do direito estatal externo, dos direitos fundamentais estaduais, do consentimento das nações, da solidariedade social, da opinião dominante ou doutrinas jusnaturalistas, conclui-se sempre que ainda não há um direito universal, que não abrange a globalização, nem a guerra ou defesa da paz, em termos de coação.
Não existindo um Direito Universal com a mesma eficácia e modelo que há dentro de cada Estado, não há um Direito Universal, tipo Direito Internacional Público Universal, nem um Direito na guerra, coagindo e sancionando o direito à guerra em favor da paz.
Com a chegada e o fim da primeira grande guerra, dadas as suas extensas inovações tecnológicas e grande carga ideológica, a doutrina da guerra justa foi não apenas revista, mas igualmente renovada, estimulando a criação de estruturas internacionais adequadas e capazes de conferir maior eficácia àquela ideia de guerra. Assim surgiu, finda a primeira grande guerra, a Sociedade das Nações, destinada a promover a cooperação internacional e a garantir a paz e a segurança.
Surgia a primeira organização internacional universal da natureza política, com o fim geral relacionado com a garantia e manutenção da cooperação, segurança e paz.
Segundo o artigo 16.º da SDN, é agressão a todos os outros Estados, a guerra ilícita, exercida por um Estado-membro devendo, em tais circunstâncias, ser adotadas sanções económicas contra o agressor, cabendo ao Conselho recrutar forças militares terrestres, navais e aéreas para uma resposta e repulsa coletiva.
O artigo 8.º, por sua vez, estabelecia que os seus membros reconheciam a manutenção da paz e exigiam “a redução dos armamentos nacionais ao mínimo compatível com a segurança nacional e com a execução das obrigações internacionais imposta por uma ação comum”.
Foi assim que, finda a primeira guerra mundial, e após um período caraterizado por inovações tecnológicas e cargas ideológicas, se estimulou a criação de estruturas internacionais vocacionadas para conferirem eficácia prática à ideia de guerra justa, cuja doutrina seria revista e renovada, com o contributo da Liga ou Sociedade das Nações, precursora da Organização das Nações Unidas. Substituiu-se o sistema eclesiástico medieval, concebido e aplicado pela Igreja, pela estrutura secular contemporânea, dando-se lugar a uma organização internacional constituída por nações.
Rejeitada a guerra para qualquer fim, surge como caraterística essencial da nova doutrina da guerra justa saber o que é imprescindível como justa causa para fazer a guerra. Se só é justa a guerra defensiva em resposta a uma agressão, impõe-se uma definição de agressão. Já não era a agressão em si mesma que preocupava, mas distinguir entre a justiça e a injustiça do fim a alcançar, dado que a “agressão” podia ser um meio legítimo para atingir um fim justo: a justiça.
Passou-se a querer subordinar a paz à justiça, dado que os Estados e povos se viram coagidos a rever a sua eventual aversão ao uso da força, quando confrontados com violações dos direitos humanos, nomeadamente na sequência das duas grandes guerras do século XX. Houve um retorno, adaptado e atualizado, a uma posição intermédia da boa ou justa causa da guerra, nas suas origens medievais. O que não significa que a guerra seja necessariamente imprescindível, ou que se anteponha à paz, uma vez que as guerras nunca foram nem são a melhor solução. Só que a paz a defender só pode ser a que serve a justiça, porque só ela justifica a guerra justa em sua defesa.