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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


178. VÍTIMAS “INDIGNAS” E “DIGNAS”


Há pessoas que têm opiniões cruéis sobre as vítimas de países cujas políticas ou líderes não aprovam, distinguindo entre vítimas “dignas” e “indignas”.       


As “indignas” são as que “estavam a pedir isso”. Ou que “estavam a jeito”. 


É inaceitável que alguém não tenha empatia e haja ausência de solidariedade, por exemplo, pelas vítimas dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, dos atos de terrorismo e crimes de guerra cometidos na Ucrânia e Médio Oriente, pelo atentado extremista contra civis, em Moscovo, em 22 de março de 2024.   


Aquando do ataque de Nova Iorque, com milhares de mortos, houve quem fosse a favor, aceitando a vingança muçulmana, pois os Estados Unidos “estavam a pedi-lo”, o que foi tido como uma resposta a guerras de um intruso poder dominante em várias zonas do globo, agora atacado no seu solo.


Também há quem pense que os assassinatos de civis em Bucha, Mariupol e outras regiões da Ucrânia, são um mal menor ou “vítimas indignas” de um conflito entre a Ucrânia e a Federação Russa, em que não há agressor nem invasão, ou se desculpa quem agrediu, porque outros também agrediram.


De igual modo não há equidistância quando não se expressa a mesma dor ou preocupação perante vítimas civis israelitas, cristãs, árabes, palestinianas, ou quaisquer outras, assassinadas em igualdade de circunstâncias, apenas para nos vingarmos, por razões meramente ideológicas ou preconceitos, do antiamericanismo, do alegado imperialismo americano, da russofobia, do falado imperialismo russo (ou outro), por antissemitismo e sionismo em relação aos judeus, por indiferença ou ódio pelos mais fracos. Ou mesmo por simples simpatia, por convicção ou não, de que os mais pobres ou oprimidos (eternos bons selvagens?) têm sempre razão sendo, nessa perspetiva, mais “dignos”.


Há que saber distinguir os momentos em que se impõe exprimir condoimento, consternação, humanidade, misericórdia e solidariedade para com todas as vítimas, iguais na sua dignidade, dos momentos em que é necessário contextualizar para tentar explicar.


Há ocasiões em que é insensível atribuir a morte desumana daquelas pessoas à mera política externa dos Estados Unidos, da Rússia, da Ucrânia, de Israel, dos países árabes, ou a quem quer que seja, no seu sentido mais lato e abstrato, e não aos seus autores e perpetradores, sob pena de agravarmos a mágoa e o ressentimento, desculpabilizarmos o terrorismo e fazermos a apologia, mesmo que inconscientemente, da existência de vítimas “indignas” e “dignas”.     


Tem que haver lugar para a neutralidade quando se justifica, não podendo haver vítimas “dignas” e “indignas”, dado que não pode haver precedentes morais para o horror, a violência pela violência e porque os outros fizeram igual ou pior. 


07.06.24
Joaquim M. M. Patrício

DOIS ESTADOS. E JERUSALÉM?

  


Segundo as Nações Unidas neste ano de 2024 há — imagine-se! — 64 conflitos armados no mundo É o horror pura e simplesmente.


A opinião pública estará sobretudo voltada para os conflitos na Ucrânia e em Gaza. Deixo aí, com repetições, uma breve reflexão concentrada no confronto entre palestinianos e judeus, pois está a ser  objecto da atenção pública, também por causa das intervenções recentes do Papa Francisco em Verona e do bispo José Ornelas em Fátima. Sem esquecer, evidentemente, que o ataque terrorista do Hamas no passado  dia 7 de Outubro é pura e simplesmente inqualificável. Não há realmente palavras para aquele horror monstruoso.


No passado dia 13 de Maio, no final da Missa que encerrou a peregrinação internacional, o bispo José Ornelas pediu “paz para a Ucrânia, naquela cruel guerra que já dura há tanto tempo. Paz para a Terra de Jesus, a Palestina, onde mais de 35 mil pessoas já perderam a vida e a maioria, escândalo dos escândalos, são crianças”; e disse também: “o pior de tudo, o que não se pode permitir, é proibir que chegue a ajuda alimentar necessária para mais de um milhão de pessoas que estão a morrer de fome. Daqui, da Cova da Iria, apelo, apelamos para a paz. É inconcebível para um coração humano que isto esteja a acontecer no mundo.”


No passado dia 18, em Verona, Francisco participou num acontecimento verdadeiramente profético, a anunciar que é possível o milagre da paz.  Subiram ao palco e disseram: “Papa Francisco, sou Maoz Inon, sou de Israel e os meus pais foram assassinados no dia 7 de Outubro pelo Hamas; Papa Francisco, chamo-me Aziz Sarah, sou palestiniano e o meu irmão foi morto pelo exército israelita. Somos empresários e acreditamos que a paz é a coisa maior que podemos conseguir”, e apelaram à paz.  As dezenas de milhares de pessoas que enchiam o anfiteatro romano  de Verona ficaram suspensas num suspiro emocionado, a ansiar pela paz. A multidão aplaudiu de pé. O Papa agradeceu: “Tiveram a coragem de se abraçar, um testemunho não só de paz mas também de um projecto de futuro.” Abraçaram-se os três, no meio de aplausos e de lágrimas dos presentes.


Francisco tem sido incansável no apelo à paz, nomeadamente na Palestina, com a posição que sempre tem mantido, aliás na linha da diplomacia tradicional do Vaticano quanto aos dois Estados e ao estatuto  especial de Jerusalém, cidade santa para judeus, cristão e muçulmanos.


Neste espírito, relembro, por exemplo, uma Carta de Francisco ao Grande Imã de Al-Azhar, no Egipto, Amehd el-Tayeb: “A Santa Sé não deixará de recordar com urgência a necessidade de que se reate o diálogo entre israelitas e palestinianos em ordem a uma solução negociada, encaminhada para a coexistência pacífica de dois Estados dentro das fronteiras entre eles acordadas e reconhecidas internacionalmente, no pleno respeito pela natureza peculiar de Jerusalém, cujo significado está para lá de qualquer consideração sobre questões territoriais. Só um estatuto especial, também garantido internacionalmente, poderá preservar a sua identidade, a vocação única de lugar de paz a que apelam os Lugares Santos e o seu valor universal, permitindo um futuro de reconciliação e esperança para toda a região. Esta é a única aspiração de quem se professa autenticamente crente e não se cansa de implorar com a oração um futuro de fraternidade para todos.”


A quem se admire com este pedido de um “estatuto especial garantido internacionalmente” para Jerusalém, em ordem a preservar a paz, aconselho que relembre o acordo das Nações Unidas sobre esta temática, e a quem quiser aprofundar a questão, a leitura de duas obras monumentais do teólogo Hans Küng: O Judaísmo, O Islão.


Como é sabido e repito, em 29 de Novembro de 1947, por maioria sólida e com o beneplácito dos Estados Unidos e da antiga União Soviética, as Nações Unidas aprovaram a divisão da Palestina em dois Estados: um Estado árabe e um Estado judaico, com fronteiras claras, a união económica entre os dois e a internacionalização de Jerusalém sob administração das Nações Unidas. Note-se que, apesar de a população árabe ser quase o dobro, os judeus, que então possuíam 10% do território, ficariam com 55% da Palestina.


O mundo árabe rejeitou a divisão e são conhecidas as guerras sucessivamente travadas. Mas, à distância, mesmo admitindo a injustiça da partilha e as suas consequências — é preciso pensar na fuga e na expulsão dos palestinianos —, considera-se que a recusa árabe foi “um erro fatal” (Hans Küng). Aliás, isso é reconhecido hoje também pelos palestinianos, pois acabaram por perder a criação de um Estado próprio soberano pelo qual lutam.


Como se tornou claro, a guerra não gera a paz, que só pode chegar mediante o diálogo, a diplomacia, cedências mútuas, com dois pressupostos fundamentais: o reconhecimento pelos Estados árabes e pelos palestinianos do Estado de Israel e o reconhecimento por parte de Israel de um Estado palestiniano viável, independente, soberano. E Jerusalém?


Como já aqui escrevi, na continuação de Küng, o conflito do Médio Oriente é sobretudo político. Mas não haverá paz enquanto os membros das três religiões monoteístas, que se reclamam de Abraão, se não tornarem activos, impedindo o fanatismo religioso. Com base nos seus livros sagrados — Bíblia hebraica, Novo Testamento, Alcorão —, judeus, cristãos e muçulmanos devem reconhecer-se mutuamente e lutar pela paz. Esta é a mensagem de Roma para Jerusalém.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 25 de maio de 2024

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


173. A DESTRUIÇÃO DA PAZ E A NATURALIZAÇÃO DA GUERRA


A mera ameaça ou a intenção de usar armas nucleares é imoral, dado ser ilícito o simples intuito de fazer mal? A dialética da guerra e da paz, idealizada para conflitos armados convencionais, pode ser aplicável à nova realidade da era nuclear? Abolindo, limitando ou reduzindo as armas nucleares, estaremos a abolir, limitar ou reduzir a guerra ou a escolher outro modo de morrer? Ou a “docilizar” a guerra com o fim de a usar como como instrumento da política?


A guerra ou uma paz qualquer nunca foram a melhor solução para resolver os conflitos, dado só interessar uma paz verdadeira, capaz de justificar uma guerra justa. 


No mundo de hoje a guerra coexiste com o armamento nuclear. Desta inevitabilidade e da coexistência entre o pacifismo impressionável e utópico, por um lado, e o belicismo total e monstruoso, por outro, pode resultar uma série de hediondas consequências. Para as evitar poderia abolir-se a guerra, proibir-se ou destruir as armas nucleares, confiar no lado bom da natureza humana e organizar o mundo ao seu jeito. Porque inviáveis estas soluções, surgiu a teoria da dissuasão. 


Esta doutrina desanuviou, por algum tempo, tentou travar a corrida aos armamentos e falhou, não podendo ser tida como uma solução final, tendo aumentado o ritmo e a intensidade, com nove potências nucleares e outras à espera de oportunidade.


Como sabemos, já houve o lançamento de bombas atómicas. Hiroshima e Nagasaki não são páginas brilhantes da história da humanidade. São atos que nos envergonham e introduziram uma nova escala e dimensão dos conflitos humanos.


Elisabeth Anscombe (filósofa), sustentou que uma pessoa é responsável pelas consequências intencionais e não intencionais do seu ato quando previsíveis e evitáveis, pelo que, segundo ela, a autorização para o lançamento das bombas foi moralmente criminosa, censurando e condenando o presidente americano Harry Truman. 


Sucede que a maioria dos conflitos tem como origem um conflito de interesses, o que aumenta, no mundo real, o risco de um novo conflito nuclear de consequências mais suicidas, em que não haverá vencedores nem vencidos, sendo um genocídio (na melhor das hipóteses) ou o fim do mundo/humanidade (na pior previsão).   


O conflito bélico, uma vez iniciado, não é tido, para os realistas, como um ato falhado, em que a força da razão e do diálogo foi substituída pela razão da força, dado isto ser doutrina de pacifistas e de filósofos bem-pensantes, colocando-se contra a realidade da vida em sociedade.     


Para uns, a única esperança é o pacifismo, para outros, o equilíbrio das armas,  sobressaindo o dever de sobrevivência das espécies, incluindo a humana, havendo que esforçar-nos, na nossa imperfeição, por controlar ou influenciar a definição dos fins e meios para alcançar um rumo exequível entre a utopia e a realidade, sem esquecer que “a bomba atómica mudou tudo, exceto a natureza do homem” (Albert Einstein).


03.05.24
Joaquim M. M. Patrício

POEMA

AS CRIANÇAS DE GAZA
NO CENTRO DA PARTE MÍNIMA UM DEUS-BICICLETA
 


Que significado, que significado forma o mundo?

Que mensagem para além da aberração?

As asas malignas obcecadas pela não misericórdia

uivam

num voo negro

até ao fosso onde caberemos todos para uma outra sequência irreconhecível.

*

Só um deus-bicicleta

é desejo único das crianças de Gaza,

perfeita relação que conhecem entre tudo e tudo.

*

O redemoinho de escombros esconde ainda o corpo do menino que estrebuchava sob as pedras e sob o peso das terras lamacentas enquanto gritava esperançado:

«Tira isto da cabeça que eu saio sozinho. Tenho o mealheiro ao meu lado. Tenho 300 shekels para comprar uma bicicleta»

Às dores de o puxarem, chorava e ria este menino.

*

E pergunta-se:

que figura tem uma flor numa maca?

*


E quanto sentido exímio o dormir de uma criança.

*

E reza o rebanho dos pequeninos à náusea da sabedoria dos grandes:



Que venha ter connosco o regresso de meu pai. Que ele sabe o caminho e sabe que provavelmente nos perdemos. E ela, a nossa mãe, embora não nos diga nada há vários dias, está aqui. Conheço-a eu muito bem e ela a mim, tenho os meus irmãos todos comigo.

Não podes ajudar-me a encontrar alguém?

A figura não responde.

*

Bicicleta é o nome do amor que salva.

Bicicleta é um anjo de asas brancas.

Um deus-bicicleta é a única e enorme possibilidade.


Teresa Bracinha Vieira

PERANTE O HORROR, O SILÊNCIO DE DEUS

  


Actualmente, porque, com a televisão, temos acesso às imagens, talvez seja sobretudo perante os horrores das guerras que se pode ficar estarrecido perante o silêncio de Deus. São bombardeamentos que não deixam pedra sobre pedra, que matam indiscriminadamente homens, mulheres, crianças, e ficamos esmagados sobretudo pela dor, o clamor, as lágrimas, a desorientação das crianças inocentes. Onde está Deus?


Joseph Ratzinger, chamado aos 17 anos para o serviço militar do Reich, foi desertor e prisioneiro dos americanos. Já Papa Bento XVI, como já aqui escrevi,  esteve em Auschwitz e fez um discurso dramático e deveras emocionante: "Tomar a palavra neste lugar de horror, de crimes contra Deus e contra o ser humano sem precedentes na História, é quase impossível, e é particularmente difícil e deprimente para um cristão, para um Papa que procede da Alemanha. Num lugar como este faltam as palavras; no fundo, só há espaço para um atónito silêncio, um silêncio que é um grito interior para Deus: Porque te calaste? Porque quiseste tolerar tudo isto? Onde estava Deus nesses dias? Porque se calou?”


Perante o horror do mundo e todos os mortos e todas as vítimas — ah!, as vítimas inocentes —  e o aparente silêncio de Deus, percebemos a tentação do ateísmo. E até poderá tratar-se de um ateísmo moral, um ateísmo ad majorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus, como se, perante o horror, a justificação de Deus fosse não existir. É-se ateu por causa de Deus, que é preciso recusar por causa da moral: um mundo com tanta dor, tantas injustiças, tanto sofrimento de inocentes, tanto cinismo brutal do poder, como pode ser criação de um Deus bom? Mas a quem recusa Deus assalta-o outra pergunta: se Deus não existe, donde vem o bem e a nossa revolta, desde a raiz de nós, contra o mal e a morte, clamando por justiça e salvação para as vítimas inocentes? Porque, sem Deus, afundamo-nos no nada e anula-se, em última análise, a própria diferença entre bem e mal. Por isso, segundo Jürgen Habermas, para mim o maior filósofo vivo, agnóstico, o que mais nos inquieta é “a irreversibilidade dos sofrimentos do passado — a injustiça contra as pessoas inocentes vítimas de maus tratos, aviltamento e assassinato — sem que o poder humano possa repará-los”, acrescentando:  “A esperança perdida da ressurreição” sente-se como um grande vazio.”


Há uma pergunta decisiva — para Max Horkheimer, da Escola Crítica de Frankfurt, a que Habermas também está ligado, é mesmo “a pergunta fundamental de Filosofia” —: o que podem esperar as incontáveis vítimas inocentes da História? Quem lhes fará justiça? As vítimas inocentes clamam, e um grito sem fim, ensurdecedor, percorre a História. Há uma dívida incontável para com essas vítimas. Quem a pagará?


Max Horkheimer e Theodor Adorno, principais representantes da Escola Crítica, com quem Bento XVI entrou em diálogo na sua encíclica sobre a esperança, “Salvos em Esperança”, viveram filosoficamente a inconsolável “tristeza metafísica” da impossibilidade de fazer justiça às vítimas da História. De facto, mesmo supondo, no quadro do marxismo e da ideia do progresso moderno, que algum dia fosse possível a edificação de uma sociedade finalmente justa, transparente e reconciliada, ela não poderia ser feliz. A razão é simples: ou essa sociedade se lembrava de todas as vítimas do passado, que não participam dela, e então seria atravessada pela infelicidade, ou não se interessava por essas vítimas, e então não era humana, porque não solidária.


Adorno e Horkeimer exprimiram uma filosofia em tenaz: por um lado, não podiam acreditar num Deus justo e bom; por outro, há uma verdade da religião, apesar de todas as suas traições  no conluio com o poder e os vencedores: a religião “no bom sentido” é, segundo Horkheimer “o anelo inesgotável, sustentado contra a realidade fáctica, de que esta mude, que acabe o desterro e chegue a justiça”. Não se trata de um desejo egoísta, mas da esperança contrafáctica de que a realidade dominante da injustiça não tenha a última palavra. Daí, “o anelo do totalmente Outro”, o “anelo da justiça universal cumprida”, “a esperança de que a injustiça que atravessa a História não permaneça, não tenha a última palavra.”


Esta esperança tem de traduzir-se numa práxis solidária tal que, como disse de modo incisivo Kant, “a práxis tem de ser tal que não se possa pensar que não existe um Além.” Nesta práxis, está implicado o pensamento do Absoluto, como exigência moral e como anelo de que o finito e o mundo da injustiça não sejam a ultimidade e o definitivo. Também neste sentido, Adorno escreveu que “o pensamento que não se decapita desemboca na Transcendência”. Neste domínio, a única filosofia legítima seria “o intento de contemplar todas as coisas como aparecem à luz da redenção”. A pergunta pela esperança truncada das vítimas, que acusam o mundo da história dos vencedores, obriga a pensar para lá dos limites da imanência, colocando a pergunta pelo Absoluto enquanto pergunta pela justiça universal.


No seu diálogo com a Escola Crítica de Frankfurt, Bento XVI reconheceu que a necessidade individual da realização plena e da imortalidade do amor já é “um motivo importante para crer que o ser humano está feito para a eternidade”, “mas só o reconhecimento de que a injustiça da História não pode de modo nenhum ter a última palavras” convence da necessidade da ressurreição dor mortos e da vida eterna. 

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 4 de novembro de 2023

A VIDA DOS LIVROS

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  De 24 a 30 de abril de 2023

 

As notícias da guerra da Ucrânia sobre o património cultural
são motivo de grande preocupação.

 

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EFEITOS DEVASTADORES DA GUERRA

Cerca de 250 monumentos já foram ou completamente destruídos ou danificados desde o início da guerra, a 24 de fevereiro de 2022. Segundo a UNESCO, verificaram-se graves danos nos locais de valor cultural do país, correspondendo os prejuízos a estragos irreparáveis. A diretora-geral Audrey Azoulay, estima que serão necessários 6,3 mil milhões de euros para recuperar os valores culturais materiais afetados na Ucrânia se se considerarem os níveis de qualidade próximos dos que existiam antes do início do conflito. Nesse sentido, a diretora-geral manifestou disponibilidade da organização para ajudar as autoridades ucranianas a elaborar um plano de reconstrução nacional para o património cultural do Estado soberano que é a Ucrânia. Deve ficar claro que os objetivos essenciais da UNESCO se relacionam com a Cultura da Paz, que constitui um fator fundamental para a salvaguarda da Carta das Nações Unidas e das finalidades originais da organização, que permitam realizar progressos efetivos nos domínios da educação, da ciência, da cultura e da livre circulação de ideias. Trata-se de contribuir para o desenvolvimento económico e social das nações e para a realização de uma cultura centrada na dignidade humana, em especial nos países e regiões em dificuldades, lembrando em especial desde as situações extremas de guerra às da pobreza, fome e destruição. Se lembrarmos a fórmula do preâmbulo do Ato Constitutivo da UNESCO, temos em vista o objetivo da “prosperidade comum da humanidade”. A construção, a prevenção e a manutenção da paz, bem como a proteção dos direitos humanos, têm, assim, uma essencial componente cultural, que não pode ser menosprezada. Por isso, segundo os fundadores da UNESCO, a manutenção da paz deveria ser uma obrigação superior a todas as outras, à qual se deveria subordinar toda a sua ação. Daí a importância fundamental da cooperação internacional, da compreensão mútua entre as nações, da solidariedade humana, da educação orientada para a liberdade, a igualdade e a justiça, bem como da ciência centrada no saber e na experiência, no saber fazer e da cultura assente no respeito dos outros e das diferenças, no exemplo e no cuidado.

 

A UNESCO E A GUERRA

A Ucrânia conta atualmente com sete bens culturais e um natural, declarados como Património da Humanidade pela UNESCO. Todos estão diretamente ameaçados, devendo referir-se, como temos lembrado, a Catedral de Santa Sofia de Kiev, o conjunto de edificações monásticas e o Mosteiro de Petchersk, símbolos da Nova Constantinopla, de um valor cultural e espiritual incalculável (inscrito em 1990); bem como o conjunto e a malha urbana medieval do Centro Histórico de Lviv, além das construções barrocas da cidade (inscrito em 1998 e 2008); dezasseis Tserkvas de madeira na região dos Cárpatos, em territórios da Polónia e Ucrânia, templos da igreja ortodoxa tradicional (inscritos em 2013); o Arco Geodésico do astrónomo Friedrich Georg Wilhelm Struve (realizado entre 1816 e 1855), abrangendo dez países, desde o Báltico ao Mar Negro (inscrito em 2005); a Residência dos Metropolitas da Bucóvina e da Dalmácia em Tchernivtsi, junto da Roménia e da Moldávia, do arquiteto checo Josef Hlavka, reflexo da política de tolerância religiosa do Império Austro-húngaro (inscrito em 2011); a Cidade Antiga de Quersoneso na Crimeia, que corresponde aos restos da cidade fundada pelos gregos dóricos no século V a.C. no norte do Mar Negro, importante centro vinícola animado pelos povos grego, romano e bizantino com referências até ao século XV (inscrito em 2013), além do Centro Histórico de Odessa (inscrito com caráter de urgência em 2023); e, no domínio natural, as Florestas Primárias de faias dos Cárpatos, abrangendo 12 países (inscrito em 2007). No caso de Odessa, foi seguido um procedimento excecional, que permitiu a integração em janeiro de 2023 na lista da UNESCO, tendo a diretora geral afirmado: “Odessa, cidade livre, cidade-mundo, porto lendário que marcou o cinema, a literatura, as artes, passa a estar colocado sob a proteção reforçada da comunidade internacional”. Perante a situação de guerra, esta inscrição corresponde à determinação da UNESCO no sentido de garantir que a cidade, afetada por muitos distúrbios mundiais, seja preservada de novas destruições. Paralelamente ao processo de inscrição, a UNESCO pôs em prática medidas de urgência visando assegurar a reparação dos danos infligidos no Museu de Belas-Artes de Odessa e no Museu de Arte Moderna. A organização forneceu os equipamentos necessários para inventariação de cerca de mil obras e da coleção documental dos Arquivos de Estado de Odessa, além de material de proteção para as obras ao ar livre. Estas medidas fazem parte de uma ação global da UNESCO na Ucrânia que já mobilizou 18 milhões de dólares em favor da educação, cultura, ciência e comunicação. Recorde-se que a Ucrânia é membro do Conselho da Europa e é signatária da Convenção-Quadro sobre o valor do Património Cultural para a sociedade contemporânea, assinada em Faro em 2005, entrada em vigor em junho de 2011. A Ucrânia assinou a Convenção em outubro de 2007, tendo sido a mesma ratificada em janeiro de 2014 e entrado em vigor em maio de 2014.

 

PATRIMÓNIO EM PERIGO

Considerando o património em perigo ou parcialmente afetado, refira-se o Centro Histórico de Chernigov, perto de Kiev e a Catedral da Transfiguração do século XI. Há a lamentar a destruição confirmada e irreversível do museu de Ivankiv, a noroeste de Kiev, com 25 obras da Maria Prymachenko (1908-1997), artista popular ucraniana, admirada por Pablo Picasso. Algumas obras deste acervo foram salvas por um cidadão local, com risco da própria vida. Representantes da UNESCO e autoridades ucranianas decidiram colocar Escudos Azuis nos bens ameaçados na zona do conflito, segundo a Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, assinada na Haia (1954). O Comité Internacional do Escudo Azul (Blue Shield ou Bouclier Bleu) foi fundado em 1996 pelo ICOM, ICOMOS, Conselho Internacional dos Arquivos e Federação Internacional dos Bibliotecários, com o fim de assegurar a proteção do património cultural ameaçado por guerras e catástrofes naturais. Invocar a situação dramática em que nos encontramos na Europa, num momento de guerra, de total incerteza, que podemos designar, como faz o Papa Francisco, como uma terceira guerra mundial em pedaços, significa pôr sobre a mesa os valores éticos que chamem a cultura, a arte e a humanidade à ordem do dia enquanto memória e património cultural como realidades vivas. Há demasiada indiferença, muito egoísmo e esquecimento. Precisamos de estabelecer comunicações entre os seres humanos, uma circulação de culturas e a possibilidade de imaginar, ou seja, de ver longe e largo, em nome da paz.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

  

De 13 a 19 de março de 2023


Jürgen Habermas acaba de publicar uma importante reflexão sobre a Guerra e a Paz na Europa.

 
REFLEXÃO SÉRIA E NECESSÁRIA
Jürgen Habermas procede a uma reflexão séria e necessária sobre o perigoso momento que vivemos. A guerra da Ucrânia, às portas da Europa, obriga à consideração de diversos dilemas de difícil resposta, com milhares de vidas humanas sacrificadas todos os dias, que continuam a aumentar com o decurso do tempo. Importa, assim, agir, até para que não se cometam erros irreversíveis, que imediatamente podem resultar da natural preocupação de chegar a uma solução urgente que possa calar as armas, mas que poderão conduzir a prazo ao recrudescer mais intenso e trágico de um conflito de proporções e consequências imprevisíveis. Daí a necessidade de haver cabeça fria e nervos de aço, a fim de que os objetivos de curto prazo sejam pensados à luz de soluções de longo termo, que preparem o pós-guerra, que salvaguardem o respeito dos princípios da Carta das Nações Unidas e que permitam um equilíbrio durável no centro e leste da Europa. De facto, os acontecimentos de 1989 e a queda do muro de Berlim não permitiram a criação de um “modus vivendi” duradouro que integrasse a Federação Russa na balança da Europa e do Mundo, numa lógica de multipolaridade e com respeito e salvaguarda de uma cultura de paz. E essa é a urgência que agora se exige. O texto de Habermas, publicado no “Süddeutsche Zeitung” (15.2), procede à consideração da necessidade de não permitir que haja no terreno de guerra factos consumados, que abram caminho à violação de direitos fundamentais e à condenação irreversível de muitas vidas humanas inocentes. Partimos do reconhecimento «da importância do destino doloroso duma população que depois de vários séculos de dominação estrangeira – polaca, russa, mas também austríaca – apenas adquiriu a sua independência e a sua soberania depois da queda a União Soviética. Entre todas as nações europeias que registam um atraso de reconhecimento, a Ucrânia é agora aquela onde tal se manifesta mais claramente. Estamos, sem dúvida, ainda perante uma nação em concretização». Contudo os partidários do apoio à Ucrânia vêem-se divididos quanto ao momento e às condições considerados oportunos para as negociações de paz. Uma parte considera prioritária a exigência do governo ucraniano que reclama um apoio militar sem limites para vencer a Rússia e restaurar a integridade territorial do país, incluindo a Crimeia, enquanto a outra parte deseja forçar as tentativas para instaurar um cessar-fogo, a fim de se iniciarem negociações que possam evitar uma possível derrota, ao menos com o restabelecimento da situação anterior a 23 de fevereiro de 2022. Na análise de Habermas há referências marcantes: como afirmou o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Lituânia Gabrielius Landsbergis, “torna-se necessário ultrapassar o medo de querer vencer a Rússia”, devendo acrescentar-se que tal não pode ser visto de modo puramente voluntarista. Apesar das hesitações, a posição do chanceler alemão Olaf Scholz de apoio à Ucrânia está condicionada pela distinção entre o apoio a uma causa e a entrada efetiva na guerra.  Urge, assim, considerar que a posição do governo alemão deve ser acompanhada por uma reflexão pública sobre o difícil caminho que deve conduzir a negociações. E Habermas junta-se a esta atitude, porque considera ser justo dizer que “a Ucrânia não deve perder a guerra”. Daí que a situação obrigue a negociações de carácter preventivo, para impedir que uma guerra longa faça mais mortos e destruições e para que não cheguemos no fim das contas a uma escolha dramática entre um envolvimento direto na guerra ou o abandono da Ucrânia à sua sorte.  Urge, porém, impedir o desenvolvimento de um conflito, em termos semelhantes ao que ocorreu na primeira guerra mundial, com a agravante de agora termos potências nucleares. Há, no entanto, dois aspetos que obrigam a uma complexa reflexão – de facto, quando se fala em “não permitir que a Ucrânia perca a guerra” tal não significa “derrotar a Federação Russa”. Importa, sim, falar de um dever político de apoiar o direito da Ucrânia no combate corajoso contra a agressão lançada, de modo criminoso, pela Rússia em violação do direito internacional, contra a existência e a independência de um Estado soberano reconhecido pelas Nações Unidas.


DE NOVO COMO EM VERDUN
A que se assiste neste momento em Bakhmout no norte do Donbass? A um combate bárbaro com perdas muito importantes dos dois lados, à semelhança do que ocorreu na primeira guerra mundial em Verdun (de fevereiro a dezembro de 1916), na mais longa e mortífera batalha na guerra das trincheiras. Não podemos assistir indiferentes. “Nas guerras - diz Habermas – a vontade de vencer o adversário é acompanhada pelo desejo de terminar com a morte e a destruição. Mas na medida em que as devastações aumentam pelo poder das armas, a importância relativa das tais prioridades inverte-se”. É essa a tragédia a que assistimos. Não podemos esquecer, porém, que no fim da segunda guerra mundial a violência teve ser pacificada por meios políticos e jurídicos e por novas formas de regulação de conflitos. A Carta das Nações Unidas de 1945 e o Tribunal Internacional de Justiça da Haia revolucionaram o direito internacional, prevendo a regulação de conflitos internacionais por meios pacíficos. Ora, é à luz de tais princípios que tem de se afirmar que “a Ucrânia não deve perder a guerra”. De facto, esta guerra desencadeada por Vladimir Putin significa um recuo civilizacional, que suscita um dilema, já que regressamos à velha perspetiva amigo-inimigo que as Nações Unidas procuraram superar, mas a verdade é que não há sinais de que Putin deseje optar pela lógica da razão. A lógica multilateral tem de ser privilegiada. “E, de um modo geral, esta guerra chama a atenção para a necessidade urgente de uma regulamentação em toda a região da Europa central e oriental que ultrapasse os objetos do litígio dos atuais beligerantes”. Desde os acordos de desarmamento às condições económicas globais, importa encarar com clareza os diferentes aspetos em causa. E se os Estados Unidos estão disponíveis para participar em negociações globais, do mesmo modo que a posição da República Popular da China inclina-se para a limitação do recurso ao poder nuclear, importa criar condições para uma negociação séria que ponha termo à guerra.  Referindo-se, deste modo, a uma rede de interesses bastante alargada, apesar das exigências imediatas parecerem diametralmente opostas, deve-se trabalhar para um compromisso que respeite princípios essenciais e que permita salvar a face das partes. O caminho parece ser muito estreito, mas a reflexão de Habermas merece especial atenção. Uma cultura humanista e uma civilização baseada na justiça têm de ser chamadas à ordem dia, até por uma questão de sobrevivência!        

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

HAVERÁ SEMPRE GUERRAS?

  


1. Quando olho para a tragédia que se abateu sobre a Ucrânia: bombas atrás de bombas, milhões de refugiados, valas comuns, mortos e mais mortos, crianças afogadas no pânico, mulheres sem palavras para chorar e gritar os horrores, hospitais, creches, escolas destruídos, ruinas, mais ruinas, um mundo a desabar, ameaças de guerra nuclear..., só poderia desejar, do fundo do coração, poder responder: Não, nunca mais haverá guerra. Mas sei que não é assim. Haverá sempre guerras, a não ser que se desse uma conversão radical da humanidade.


Neste sentido, há um texto que me foi enviado, cujo autor desconheço mas com o qual estou de acordo, até porque encontrou as palavras certas para descrever este mundo de loucura. Reza assim: “Nenhuma guerra tem a honestidade de confessar: ‘Eu mato para roubar’. As guerras invocam sempre motivos nobres: matam em nome da paz, em nome de Deus, em nome da civilização, em nome do progresso, em nome da democracia e, por causa das dúvidas de nenhuma destas mentiras ser suficiente, aí estão os meios de comunicação dispostos a inventar inimigos imaginários para justificar a transformação do mundo num grande manicómio e um imenso matadouro. Em Rei Lear, Shakespeare escreveu que neste mundo os loucos guiam os cegos, e, quatro séculos depois, os senhores do mundo são loucos enamorados da morte que transformaram o mundo num lugar onde a cada minuto morrem de fome ou doença curável dez crianças e a cada minuto se gastam três milhões de dólares, três milhões de dólares a cada minuto, na indústria militar, que é uma fábrica de morte. E as armas exigem guerras e as guerras exigem armas, e os cinco países que dominam as Nações Unidas, que têm direito de veto nas Nações Unidas, acabam também por ser os cinco principais produtores de armas. A gente pergunta: ‘Até quando? Até quando a paz do mundo estará nas mãos dos que fazem o negócio da guerra? Até quando continuaremos a acreditar que nascemos para o extermínio mútuo e que o extermínio mútuo é o nosso destino? Até quando?’ “.


2. O filósofo I. Kant escreveu que o ser humano se defronta com três impulsos fundamentais: o prazer, o poder e o ter. Por mim, penso que o mais forte é o poder enquanto domínio. De facto, o ser humano é carente e confronta-se com a morte, que o confronta com o nada. Através do poder, de poder em poder, cada vez com mais poder, alcançaria a omnipotência e mataria a morte.


Pascal, o grande Pascal, o matemático eminente, uns dos maiores de sempre, e também um dos maiores cristãos europeus de sempre, viu bem quando escreveu que a constituição do ser humano mora ali algures entre “le rien et l’infini” (o nada e o infinito). Por isso, a mais poderosa tentação, desde o início da humanidade, é a omnipotência. Embora se trate de uma estória mítica, ela diz o essencial: no Génesis, a serpente voltou-se para Eva e disse-lhe que, apesar da proibição por Deus, se comessem do fruto proibido, seriam como Deus, alcançariam a omnipotência. E deu a Adão, e ela também comeu. E aí estão as trágicas consequências: foram expulsos e, logo a seguir, Caim matou o irmão, Abel, inaugurando uma torrente de sangue sem fim.


Com o poder, vem o ter e cada vez mais teres, porque o desejo de ter é insaciável. E os teres precisam de ser aumentados sempre mais e defendidos, e aí estão a violência e a guerra, que, paradoxalmente, aumentam o poder e o ter. Neste nosso tempo, os gastos com novas armas rondam os dois milhões de milhões (2.000.000.000.000) de dólares, com a lógica de que as armas exigem guerras e as guerras exigem armas, também para gastar o armamento velho e produzir novas armas.


3. O poder fascina de tal modo que até há bem pouco tempo se cantava nas igrejas a Deus como “Senhor Deus dos exércitos” — aliás, ainda há um bispo das forças armadas, mas não um bispo da saúde e da cultura...— e a maior traição da Igreja foi ter-se transformado numa instituição de poder.


Jesus tem duas advertências essenciais. “Não podeis servir a Deus e a Dinheiro”. Ele conhecia bem a importância do dinheiro — não passou a maior parte da  vida a trabalhar? —, mas não se pode adorar Dinheiro (com maiúscula). Significativamente, os Evangelhos foram escritos em grego, mas mantiveram duas palavras em aramaico, a língua materna de Jesus: Abbá, Paizinho (era com esta ternura que Jesus se dirigia a Deus) e Mammôn, a deusa do dinheiro. Mammôn tem o radical mn, que significa confiar. A revelação de Jesus é que Deus é bom, Pai e Mãe de todos, e realmente não é possível confiar, entregar-se confiadamente a Deus e ao mesmo tempo confiar, entregar-se confiadamente a Dinheiro como salvador.


Jesus também disse: “Eu sou Senhor e Mestre”, mas “vim para servir, não para ser servido”; “quem quiser ser o primeiro seja servidor”. Deus é omnipotente? Sim, tem todo o poder, mas não enquanto dominação mas Força infinita de criar.


O latim pode ser iluminante. Mestre tem na sua origem magister, com base em magis, que significa mais, de tal modo que o mestre é o que está acima, o maior, em contraposição com ministro, que vem de minister, com base em minus, menos, e que é o servente, o que serve. (Quantos ministros — também os ministros da Igreja — se lembram que devem ser os que servem, os serventes?). E isso nada tem que ver com ser incompetente. O exemplo é Jesus: ele é o verdadeiro Mestre e Senhor, mas é servidor. Assim, todos devem levar o mais longe possível os seus dons, não para dominar, mas para a maior realização de todos.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 15 de outubro de 2022

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


116. MUNDIVISÕES EUROPEIAS E RUSSAS


Qualquer Estado pelo mero facto de ser maior territorialmente, mais forte, ter uma mentalidade imperial e reclamar zonas de influência, não tem o direito de agredir outro, violando o Direito Internacional.    


Após a invasão, indicia-se poder desaparecer a função de estado tampão da Ucrânia para a Rússia. O país agredido quer ficar do lado europeu ocidental. O país agressor quer que fique do lado russo.


Quando há choques geopolíticos importantes, a Europa reage. Com o fim da segunda guerra mundial e o começo da guerra fria, reagiu com a integração europeia e a criação de dois blocos, um a oeste (ocidental) e outro a leste (comunista). Com o fim da guerra fria, reagiu com o alargamento a leste, através da União Europeia e da Nato. E reagiu, agora, com a aplicação de sanções ao invasor e a promessa de adesão da Ucrânia à União Europeia, bem como com ajuda humanitária e militar (esta última maioritariamente dependente dos Estados Unidos), juntamente com aliados de outros continentes: Canadá, Singapura, Coreia do Sul, Taiwan, Japão, Austrália e Nova Zelândia.


Em qualquer caso, a Rússia sempre foi um país com raízes europeias, em termos de cultura e mentalidade, apesar de ser um país euroasiático do ponto de vista geográfico.


Mas o desejo de ter nas relações internacionais um papel digno da sua dimensão territorial e poderio militar, em conjugação com a convicção de ter uma cultura específica suscetível de se universalizar, uma especificidade, excecionalidade e universalidade russa, faz com que tenha uma mentalidade imperial, que tem por justificada em termos históricos e culturalmente.   


Vejamos, numa sucinta síntese, as correntes fundamentais do pensamento filosófico e político russo, incluindo as tidas como subjacentes à atual invasão da Ucrânia.


Desde início do século XIX o pensamento russo divide-se em dois movimentos marcantes e opostos: o ocidentalismo e os eslavofilismo, englobando este os pan-eslavistas e os nacionalistas russos.


Para os ocidentalistas a Rússia, desde Pedro, O Grande, tem a vocação de ser parte integrante da Europa e a obrigação de recuperar o atraso que a distancia do  eurocentrismo ocidental, o que implica o abandono da arbitrariedade imperial, da limitação ou proibição das liberdades e direitos fundamentais, da identidade ortodoxa da igreja russa e do nacionalismo, tendo como representantes Piotr Chaadaev, Aleksandr Herzen e Vissarion Belinski.       


Os eslavófilos consideram a cultura europeia-ocidental decadente, fonte de declínio espiritual e moral, promovendo como ideal um arquétipo nacional que reúne as virtudes de um povo russo essencialmente agrícola, bom, gentil e pacífico, baseado numa visão religiosa do mundo apoiada na fé ortodoxa e na verdade da “via russa”, encontrando em si forças para a modernização, tornando-se um exemplo de referência para o Ocidente. São eslavófilos Alexis Khomiakov, Konstantin Aksakov, Ivan Kireievski, Ivan Aksakov, Mikhail Katkov, Iuri Samarin e Fiodor Dostoiévski.     


Esta visão orgânica, doméstica, idealista e romântica dos primeiros eslavófilos promovia o apoliticismo, em que o czar era tido mais como um pai, que uma autoridade formal. Daí que, entre outros, Khomiakov visse a missão do povo russo na vida suprema do espírito, e não na vida política, impossibilitando associar esta visão inicial a uma política estatal e imperial.


O dualismo entre ocidentalistas e eslavófilos estruturou para sempre o espaço intelectual russo, evoluindo, adaptando-se e reinventando-se, inclusive nas elites culturais e políticas da União Soviética, onde a nível intelectual teve, entre os dissidentes, um Sakharov ocidentalista, em oposição ao eslavófilo Soljenítsin.     


À filosofia especulativa e romântica dos primeiros eslavófilos, sucedeu um sistema filosófico mais positivista de filósofos e pensadores russos de segunda geração, nacionalistas e anti-ocidentalistas, tidos como inspiradores e mentores decisivos da atual política russa que subjaz à invasão da Ucrânia, a que aludiremos no próximo texto.

 

29.07.2022
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CONTRA A GUERRA. A CORAGEM DE CONSTRUIR A PAZ

  

 

A quem é que, perante as imagens de horror desta guerra na Ucrânia ditada por um megalómeno humilhado e insensato — mortes incontáveis, a tragédia de valas comuns, milhões de deslocados e refugiados, mulheres, crianças, idosos em total desamparo, na falta de tudo, quando nada é poupado à destruição: maternidades, escolas, hospitais —, não vieram já as lágrimas aos olhos?  


O Papa Francisco não se cansa de clamar contra a guerra e apelar à paz: “Em nome de Deus peço-vos : parem este massacre!” “Um massacre sem sentido” e de “uma crueldade inumana e blasfema”. Por ocasião da celebração da Páscoa ortodoxa, no fim de semana passado, ele, a ONU, o Conselho Mundial das Igrejas apelaram a um cessar-fogo, também para abrir a possibilidade de corredores humanitários, mas não foram ouvidos. Quero sublinhar que, atendendo às celebrações pascais, o arcebispo de Munique, cardeal Reinhard Marx, foi particularmente duro na saudação pascal. Chamou “perversos” aos líderes religiosos que, como o Patriarca de Moscovo, Kirill, apoiam a guerra na Ucrânia, lamentou que ao longo da História “os cristãos tenham usado a violência sob o sinal da cruz”, algo que se repete hoje “na guerra actual, com cristãos baptizados a matar outros cristãos e receebendo o apoio de líderes das suas Igrejas”. A Igreja “deve erguer-se como um lugar de não violência, e a cruz como sinal da violência sofrida e superada.” Chamou “ditador” a Putin: “a Páscoa é a rebelião de Deus contra todas as forças da violência e da morte. A vitória da vida sobre a morte não pode ser detida, nem sequer com as armas de Putin e outros ditadores”.


Francisco confessa numa entrevista a “La Nación” que “está disposto a fazer tudo para deter a guerra — o Vaticano nunca descansa” — e acaba de publicar um livro precisamente com o título Contra a guerra. A coragem de construir a paz. Ficam aí algumas ideias fundamentais, a partir de Religión Digital.


Começa por lembrar como há um ano, na sua peregrinação ao martirizado Iraque, pôde constatar directamente o desastre causado pela guerra, a violência fratricida, o terrorismo, viu os escombros dos edifícios e as feridas dos corações. Também viu sementes de esperança. E “nunca teria imaginado que um ano depois rebentaria um conflito na Europa.”


Referi aqui muitas vezes que desde o início do seu pontificado Francisco falou da Terceira Guerra Mundial em curso, mas “aos pedaços, por partes”. O que é facto é que essas partes se foram tornando cada vez maiores e ligando-se entre si. Neste momento há muitas guerras espalhadas pelo mundo, que causam “imensa dor, vítimas inocentes, especialmente crianças”, milhões de pessoas obrigadas a deixar a sua terra, as suas casas, as suas cidades destruídas. Mas essas guerras esquecemo-las, pois andamos distraídos e elas passam-se longe. “Até que, de repente, a guerra rebentou perto de nós. A Ucrânia foi atacada e invadida. E, no conflito, os mais atingidos são, desgraçadamente, muitos civis inocentes, muitas mulheres, muitas crianças e muitos idosos”, obrigados a viver em bunkers para proteger-se das bombas ou com as famílias separadas, pois, enquanto as mães e as avós atravessam fronteiras à procura de refúgio, os maridos, pais e avós ficam para combater.


Perante as imagens terríveis de horror que nos chegam todos os dias, “não podemos fazer outra coisa que não seja gritar: ‘Parem!’ A guerra não é a solução, a guerra é uma loucura, a guerra é um monstro, a guerra é um cancro que se autoalimenta devorando tudo. Mais: a guerra é um sacrilégio, que causa estragos no mais precioso que há sobre a terra: a vida humana, a inocência dos mais pequenos, a beleza da criação.” “Sim, a guerra é um sacrilégio”.


Pela enésima vez estamos perante a barbárie, porque perdemos a memória: esquecemos a História, esquecemos o que nos disseram os nossos avós, os nossos pais. “Se tivéssemos memória, não gastaríamos dezenas, centenas de milhares de milhões para nos equiparmos com armamentos cada vez mais sofisticados, para aumentar o mercado e o tráfico de armas que acabam por matar crianças, mulheres, anciãos. 1981 mil milhões de dólares por ano, segundo os cálculos  de um importante centro de investigação de Estocolmo.”


Se tivéssemos memória, “saberíamos que a guerra, antes de chegar à frente de combate, tem de ser parada nos corações. É necessário o diálogo, a negociação, a escuta, a habilidade e criatividade diplomática, uma política com visão de futuro capaz de construir um novo sistema de convivência que já não se baseie nas armas, no poder das armas, na dissuasão.” Toda a guerra “representa não só uma derrota da política, mas também uma vergonhosa rendição perante as forças do mal.”


Acrescenta: em 2019, em Hiroshima, “cidade símbolo da Segunda Guerra Mundial, cujos habitantes foram massacrados, com os de Nagasaki, pelas bombas nucleares, reafirmei que o uso da energia atómica com fins bélicos é, hoje mais do que nunca, um crime. O uso da energia atómica com fins bélicos é imoral, como o é a posse de armas atómicas. Quem podia imaginar que menos de três anos depois, o espectro da guerra nuclear pairaria sobre a Europa? Assim, passo a passo, avançamos para a catástrofe. Pouco a pouco, o mundo corre o risco de transformar-se no cenário de uma única Terceira Guerra Mundial. Avançamos para ela como se fosse inelutável. Pelo contrário, devemos, todos juntos, repetir, com força: ‘Não, não é inelutável’. A guerra não é inelutável!”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 30 de abril de 2022