Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Seja por acaso, ou porque sim, a História, para Tolstoi, não responde à questão de saber porque aconteceu a guerra, havendo uma lei natural que determina a vida das pessoas, embora estas, incapazes de admitir este inevitável processo, procurem representá-la como uma sucessão de escolhas livres, atribuindo a responsabilidade ao que acontece aos “grandes homens”, aos heróis, que vê como meros cidadãos, pois só quando se escrever a História de todos os homens, só aí se encontrará a força que a move.
Em qualquer caso, concorde-se ou não com Tolstoi, guerra e paz são parte de quem somos como seres humanos. Não vale a pena fazer de conta que não somos assim. São como o mal e o bem, as trevas e a luz, o caos e a clareza, a desordem e a ordem.
Há os instintos e impulsos que não controlamos conscientemente, há o falhanço humano, a evolução do nosso pensamento na direção errada, que fazem parte de nós, aos quais, para muitos, temos de estar ligados se quisermos ascender e conhecer aquilo que na realidade somos.
Há quem diga que não nos podemos elevar, ascender, transcender, sem ter os pés na lama, sem haver guerra e paz, sem conhecer o bem e o mal, sem incorporar tudo o que somos e compreendê-lo, havendo sempre uma repetição da História.
Sem esquecer que os grandes homens lideram, manipulam e movimentam vontades, mesmo que estas sejam manifestações de irracionalidades absolutas que jamais se saciam, como o demonstra a guerra, como um falhanço brutal e monstruoso de todos nós.
E tem havido sempre uma lei e ordem natural de reprodução temporal e espacial na História e na Guerra e Paz.
Para quando o banimento da guerra e a permanência da paz?
Como a árvore com as suas raízes na terra (o que somos) e as suas folhas no céu (que ansiamos e nos ultrapassa)?
Perante este falhanço da Humanidade, de que vale rezar se as nossas vozes não chegam ao céu?
As angústias, incompreensões e não respostas de Tolstoi, quanto à verdade histórica da guerra permanecem, como na sua obra monumental Guerra e Paz, cuja intemporalidade persiste, mesmo neste tempo de conflito bélico entre a Rússia e a Ucrânia, pois uma obra de arte vale sempre por si, independentemente da sua origem e das opções pessoais do seu autor.
O interesse pela História e pela verdade histórica era crucial para Tolstoi.
Só a História tinha a solução para o mistério de porque é que o que sucedia, sucedia como sucedia e não de outra maneira. Porque é que as coisas acontecem como acontecem e não de outro modo.
Tendo a Filosofia da História como banal e superficial, desconfiando do abstrato, da metafísica, do impalpável e do sobrenatural, tinha a experiência, o concreto, o empírico, o observável, o verificável, todo o espírito de investigação empírica, como a chave para a verdade histórica.
Só a História continha a verdade, quando baseada em acontecimentos concretos, na real experiência humana, em factos puros e duros reconhecíveis pelo intelecto normal, e não a História escrita pelos historiadores, que deseja ser algo que não é, não sendo uma ciência com conclusões exatas.
Mas ao reconhecer a natureza não científica da História, conclui ser inviável descobrir leis históricas autênticas e fiáveis que em conjugação de esforços com a observação empírica viabilizassem predizer o futuro (e a retrodicção do passado). O ser humano, usando os seus próprios recursos, é impotente para compreender e controlar o rumo dos acontecimentos, dada a existência de uma lei natural segundo a qual, e num grau não inferior ao da natureza, a vida dos seres humanos é determinada.
Não sendo, de facto, livres, mas não podendo viver sem a convicção de que o somos, conclui que se permitirmos que a vida humana seja governada pela razão, a probabilidade de uma vida espontânea envolvendo a consciência do livre-arbítrio é destruída. Desta oposição entre a ilusão do livre-arbítrio a as leis deterministas que comandam o mundo, surge um caos sem sentido onde a desordem da nossa vida é refletida na guerra, no seu grau mais extremo.
Questionando-se porque acontece a guerra, não encontra resposta, podendo ser tantas as causas que acabam por não ser nenhumas. Sucede por acaso ou porque sim, tendo como errada a ideia dos historiadores que têm este facto ou aquele evento como causa principal da guerra, defendendo que a História só dirá a verdade quando não se limite aos grandes homens, tidos como carneiros que o pastor engorda para o abate, pois a verdade sobre a condição humana está nos que têm a humildade de reconhecer a sua irrelevância e insignificância, sem vaidades nem ressentimentos.
Na esteira de Schopenhauer, o ser humano sofre em demasia porque espera demasiado, é infeliz porque é eternamente insatisfeito, incessantemente ambicioso porque sobrevaloriza as suas capacidades de um modo fantasioso e, acima de tudo, tem o propósito insensato de querer observar e estabelecer uma ordem a partir da convicção desesperada de que deve existir uma ordem, mesmo que o caos em que vivemos o contrarie, como a guerra, densa e intensamente, o exemplifica.
As guerras matam e dilaceram as sociedades. Suscitam situações limite. Leão Tolstoi em “Guerra e Paz” (publicado entre 1865 e 1869, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Presença, 2005) analisa o fenómeno de um modo único. A vida e a morte coexistem em cada momento, o heroísmo e a cobardia confundem-se, o instinto de sobrevivência mistura-se com a racionalidade. Tolstoi (1828-1910) compreendeu bem que apenas poderia representar a sociedade ameaçada através de um combate de vida ou de morte… “O historiador apenas se ocupa do resultado adquirido, o artista ocupa-se do facto em si mesmo”. A vontade e o destino, a liberdade e a necessidade lutam entre si. O General Inverno soma a sua força ao método da terra queimada. E o czar Alexandre I torna-se o braço da Providência. O príncipe André Bolkonski morre na sequência de Borodino. É o símbolo heroico e trágico. O conde Pedro Bezukhov assume todas as dúvidas e contradições da transição e casa com Natasha, símbolo da vida – que encontrara e perdera o amor na pessoa de André. Os ideais da revolução francesa confrontam-se com a sociedade tradicional russa. É a Europa em carne viva e prevalece a voz da terra e do sangue. Borodino é o canto do cisne para o Imperador Bonaparte. Napoleão encontra os dias do seu fim nas cidades e nas estepes da Rússia, num combate contra poderosos fantasmas. O destino e a vontade encontram-se e desencontram-se. “O ato humano aparece como uma mistura de liberdade e de necessidade”. Fatalidade? “A história não tem por objeto a vontade do homem, mas a ideia que fazemos dela”. Pedro começa por acreditar na força da liberdade humana, genuinamente, mas o tempo vai levá-lo a desenganar-se. E esse percurso é comum ao do Conde de Tolstoi, que fala da lei psicológica, “que compele o homem que realiza o ato menos livre possível a imaginar imediatamente toda uma série de deduções retrospetivas destinadas a provar a si próprio que é livre”. No fundo, Tolstoi não se limita a relatar-nos um acontecimento romanesco. Talvez haja quem leia “Guerra e Paz” como “A História da Guerra do Peloponeso” de Tucídides. Mas falta a paixão que sentimos por Natasha, quando ansiamos pelo seu reencontro com André, já no leito de morte, na presença silenciosa da princesa Maria… “A inteligência humana não compreende a continuidade absoluta do movimento” – diz-nos Tolstoi. “Enquanto Aquiles percorre a distância que o separa da tartaruga, esta ter-se-lhe-á adiantado a décima parte desse espaço e quando Aquiles tiver percorrido essa décima parte, a tartaruga ter-se-lhe-á adiantado a centésima e assim por diante até ao infinito”. Bezukhov não renuncia a procurar uma explicação para tudo, quer ver com olhos de ver, compreende a importância das contradições e das perguntas sem resposta. A sua aparente distração significa essa procura. Trata-se de distinguir o percurso do ponteiro do meu relógio e o badalar dos sinos da igreja vizinha – são fenómenos distintos, mas sincrónicos. O movimento não sofre interrupção e a História tem de compreender a que leis obedece tal movimento… Rostov, Bezukhov, Bolkonski tecem as teias em que o imperador, o czar e os seus estados-maiores vão agir, numa aparente liberdade plena com capacidade para contrariar a necessidade, sem as terem, verdadeiramente. “O poder não é mais do que uma palavra, cujo significado nos é desconhecido”.