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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 24 a 30 de julho de 2023


Perante o hediondo ataque das tropas de Putin ao centro histórico de Odessa, que destruiu seriamente a Catedral ortodoxa da Transfiguração, recordamos a obra clássica de Berdiaeff (1874-1948) “Cinco Meditações sobre a Existência”, na tradução de Ana Hatherly (Guimarães ed., 1961).

 


O texto de Ana Hatherly sobre Nicolau Berdiaeff, filósofo e místico ucraniano, é bem ilustrativo do que muitas vezes se esquece quando vemos a violência cega não cuidar dos meios para atingir fins bárbaros. O filósofo “coloca o homem no centro do mundo mas como imagem e semelhança de Deus, aquele que considera o homem existente como um ser total, como um todo em si, mas cheio de contradições e de paradoxos. Estas contradições e esses paradoxos contribuem para o sentimento do sentido trágico da existência porque implicam o conflito a pessoa consigo própria e consequentemente com a pessoa dos outros. Antiracionalista na medida em que proclama a totalidade do homem, a inseparabilidade do pensamento das emoções, da vontade da afetividade, já que considera o homem como um todo indissociável e particular, ergue-se naturalmente contra tudo o que for limitar a liberdade da ação individual, contra toda a espécie de coisificação, de ‘objetivação’, na sua terminologia, contra tudo o que for submergir o sujeito no objeto, desde a objetivação do pensamento e das emoções à objetivação da siociedade quer religiosa quer política” (…) “A pessoa é social, é feita para viver no mundo mas só pode nele conviver, comunicar, comungar com a pessoa que não seja objeto mas sim ser espiritual à imagem e semelhança de Deus, mas ainda de um Deus objetivado, não socializado, não tornado coisda, pois que tudo se torna demoníaco sem o amor, mesmo a fé; e outro tanto acontece sem liberdade”.


A destruição da Catedral de Odessa, há dias, representa o contrário deste entendimento. Não é apenas um monumento, integrado, aliás, num centro urbano classificado pela UNESCO, que está em causa. É a dignidade humana que é atingida. E cabe perguntar: que loucura pode justificar uma tal cegueira? A noção de cultura e de património exige que o respeito da humanidade nunca possa ser esquecido. “A ideia mestra da minha vida (disse o filósofo ucraniano) é a ideia do homem, do seu rosto, da sua liberdade criadora e da sua predestinação criadora” (…) A Verdade implica a atividade do espírito do homem, o conhecimento da Verdade depende dos graus de comunidade que podem existir entre os homens, da sua comunhão do Espírito”. De facto, a destruição de um símbolo do conhecimento da Verdade representa a incapacidade de compreender o dever da humanidade de fazer da liberdade criadora um fator de paz e de respeito mútuo. Que querem os senhores da guerra? Destruir a humanidade pela recusa de qualquer capacidade criadora.


A Catedral da Transfiguração na cidade de Odessa foi encomendada pela Imperatriz Isabel da Rússia (1709-1762), filha de Pedro o Grande, entre 1743 e 1754, tendo sido fundada em 1794 e consagrada em 1808. Foi originalmente um pequeno edifício que se manteve até ao século XIX, tendo sido destruído por um incêndio em 1825. Transformou-se, no século XX na maior Catedral do Império Russo. A estrutura original foi, no entanto, demolida em 1936, tendo a última reconstrução decorrido entre 1999 e 2005.


O ícone representando a Mãe de Deus (Kasperovska) , padroeira de Odessa foi salvo entre os escombros. A Diretora-Geral da UNESCO, Audrey Azoulay, já condenou este ataque criminoso: “Estas terríveis destruições marcam uma nova escalada de violência contra o património cultural da Ucrânia. “Exorto a Federação da Rússia a tomar medidas tangíveis para cumprir as suas obrigações que dizem respeito ao direito internacional para preservação do património cultural”. Josep Borrell, chefe da diplomacia europeia foi claro: trata-se de um crime de guerra que atingiu bens do património da humanidade.  


Guilherme d'Oliveira Martins

EDGAR MORIN E A GUERRA NA EUROPA

Edgar Morin e a Guerra na Europa.png

 

GUERRA NA UCRÂNIA – ESCALADA E QUEDA

CARTA ABERTA DE EDGAR MORIN

 

Vivemos uma paz armada com os nossos corpos instalados na paz e os nossos espíritos situados entre bombas e escombros. Atacamos um inimigo com palavras, e ele ataca-nos com ameaças, mas dormimos na nossa cama e não num abrigo. E, no entanto, participamos na verdadeira guerra, sem que tenhamos entrado, mas fazendo entrar nela armas e munições.

 

A guerra da Ucrânia internacionalizou-se progressivamente. À ajuda humanitária e depois alimentar às populações ucranianas vítimas da agressão russa, sucedeu a ajuda militar em armas, primeiro defensivas e depois contraofensivas, cuja qualidade e quantidade crescem principalmente com o contributo massivo dos Estados Unidos, acompanhados pela maior parte dos países da União Europeia.

 

A estratégia do exército russo é implacável. É filha do método de Jukov, da Segunda Guerra Mundial, com formidáveis bombardeamentos de artilharia, não só contra as tropas inimigas, mas também contra as cidades a tomar, com destruição completa pela artilharia pesada da capital do Reich, Berlim. Como acontece com qualquer exército vencedor, mas mais terrivelmente no caso do avanço soviético na Alemanha, as mortes e as violações multiplicaram-se. Soubemo-lo então, mas fomos impedidos de os denunciar, explicando-os como vingança dos enormes sofrimentos e mortes infligidos pela Alemanha nazi às populações soviéticas.

 

No tocante à Ucrânia, o povo senão irmão pelo menos parente próximo do povo russo, podemos perguntar-nos se as mortes e violações são devidas à desordem de algumas tropas, ao furor da derrota ou a uma vontade de aterrorizar.

 

Não sabemos ainda se a intenção primeira da agressão de Putin foi a de fazer cair toda a Ucrânia como um fruto maduro, decapitando-a desde os primeiros assaltos. Parece que a ambição atual sob o efeito da resistência ucraniana seja conquistar duradouramente as regiões maioritariamente russófonas do Donbass e o litoral do mar de Azov.

 

No momento em que escrevo (maio de 2022), a luta é intensa e incerta: a ofensiva russa é muito poderosa mas o exército ucraniano, no decurso da guerra desde 2014 contra os separatistas russófilos estabeleceu fortificações em profundidade e escalonadas, que travam consideravelmente os avanços russos ainda pouco decisivos.

 

O que parece provável daqui em diante, salvo um golpe de Estado no Kremlin, um golpe militar fatal ou ainda um golpe de teatro diplomático (cessar fogo, compromisso de paz), é que a guerra deve durar e intensificar-se com o contributo cada vez mais abundante de armas ocidentais e retaliações cada vez mais amplas da Rússia.

 

O carácter internacional da guerra da Ucrânia vai crescendo. É certo que o campo ocidental guiado pelos Estados Unidos declara não fazer guerra à Rússia. Mas a intervenção militar de apoio à Ucrânia é uma guerra indireta a que se junta uma guerra económica acrescentada pelo crescimento das sanções.

 

Estamos em plena escalada, sustentada por novos bombardeamentos, por novas acusações mútuas, por novas vagas de criminalização recíproca. A guerra indireta em que se tornou a guerra da Ucrânia pode a todo o momento alargar-se com bombardeamentos não acidentais em território russo ou europeu.

 

Nesse ponto Putin retomou o seu anúncio de uma resposta «rápida e avassaladora» se um certo limiar não precisado de hostilidade ou ingerência puder ameaçar a Rússia, criando condições para o uso de uma arma decisiva, desconhecida de todos os outros países, de que a Rússia seja a única possuidora.

 

Esta ameaça não é levada a sério pelos Estados Unidos e seus aliados, em virtude de um argumento racional, bem conhecido depois da guerra fria. Se a Rússia nos quer menorizar, a resposta imediata menorizá-la-ia. Este argumento racional não considera um possível carácter acidental e a possível irracionalidade. O possível carácter acidental seria o lançamento involuntário de um engenho nuclear sobre o inimigo potencial, o que deflagraria uma resposta nuclear imediata. A possível irracionalidade é a de um ditador cheio de raiva ou perturbado pelo delírio.

 

De todo o modo, é atualmente provável (sabendo-se que o improvável pode acontecer) que de derrapagem em derrapagem a guerra se alargue nos territórios europeus e se amplifique pelos misseis intercontinentais nos territórios russo e americano sem sequer poupar a Europa. Uma terceira guerra mundial, dum tipo novo, com utilização de armas nucleares táticas de alcance limitado, drones, ciberguerra com destruição de sistemas de comunicação que asseguram a vida das sociedades, seria a concretização lógica da ampliação da atual guerra internacionalizada.

 

Juntemos uma verificação importante: a guerra introduz nos países em conflito controlos, vigilâncias, eliminação de todas as opiniões diferentes da linha oficial e o desenvolvimento de propaganda de justificação permanente dos seus atos e de criminalização ontológica do inimigo. A Rússia de Putin era já um Estado autoritário às ordens de um ditador. A guerra agravou o controlo e a repressão, atingindo aqueles que não só se opunham à agressão, mas também àqueles que duvidavam dos seus fundamentos. Na Ucrânia a caça aos espiões e terroristas suscitou um controlo das populações, os excessos cometidos por algumas das suas tropas ou grupos são ocultados e, denunciando os desvios reais, a propaganda desenvolve-se contra um inimigo totalmente criminalizado. Em França, embora não beligerante e ainda com o conforto último da paz, só temos acesso às considerações mais enganadoras da Rússia de Putin e às imagens de destruição que esta causa.

 

Estamos na escalada da desumanidade e da destruição da humanidade, na escalada do simplismo e da destruição da complexidade. Mas, sobretudo, a escalada para a guerra mundializada significa o arrastamento da humanidade para o abismo. Poderemos escapar a esta lógica infernal?

 

A única possibilidade seria uma paz de compromisso que instaurasse e garantisse uma neutralidade na Ucrânia. O estatuto das regiões russófonas do Donbass poderia ser tratado por referendo. A Crimeia, região tártara em parte russificada, mereceria também um regime especial. Em suma, as condições de um compromisso, tão difícil de estabelecer, são claras. Mas a radicalização e a ampliação da guerra levam a recuar nas possibilidades positivas de modo indefinido. A situação geopolítica da Ucrânia e a sua riqueza económica em trigo, aço, carvão, metais raros atraem os grandes predadores, que são as duas superpotências. A inclinação da Ucrânia para ocidente, depois de Maidan, suscitou a agressão russa, e a agressão russa suscitou não apenas o apoio a uma nação vítima de invasão, mas a vontade de a integrar no mundo ocidental, o que correspondia de resto ao voto maioritário dos ucranianos.

 

A Ucrânia é mártir não somente da Rússia, mas do agravamento das relações conflituais entre os Estados Unidos e a Rússia e do alargamento da OTAN, ele mesmo inseparável das inquietudes suscitadas pela guerra russa na Chechénia e da sua intervenção militar na Geórgia.

 

O objetivo da Ucrânia não é apenas libertar-se da invasão russa, mas também libertar-se do antagonismo entre a Rússia e os Estados Unidos. Esta dupla libertação permitiria às nações da União Europeia libertarem-se igualmente desse conflito e procurarem ligar segurança e autonomia.

 

As sanções contra a Rússia, atingindo duramente não apenas o regime de Putin, mas também o povo russo, não se sabe até que ponto atingem igualmente os sancionadores, virando-se contra eles: não é apenas o seu abastecimento em energias e em alimentação que é ameaçado, é, sem dúvida, com a inflação aumentada e as restrições anunciadas, a sua economia e toda a sua vida social. Uma crise económica é sempre ela mesma geradora de regressões autoritárias e de instalação duradoura de sociedades submetidas.

 

A Rússia de Putin é um abominável regime autoritário. Mas não é semelhante à Alemanha de Hitler; o seu hegemonismo pan-eslavo não é, como foi o hitleriano, a vontade de colonizar a Europa e de escravizar povos racialmente inferiores. Toda a hitlerização de Putin é excessiva.

 

Estamos num mundo dominado pelos antagonismos entre superpotências e entregue aos delírios religiosos, étnicos, nacionalistas e racistas.  Por muito repugnantes que sejam as superpotências a títulos diversos o apaziguamento dos seus conflitos é uma condição sine qua non para evitar desastres generalizados. Devemos aspirar a um compromisso. A humanidade não seria salva, mas ganharia uma trégua e talvez uma esperança.

 

(Direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização do autor)
Foi publicado em “Ouest-France” em 18/03/2022