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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

"O VENTO ASSOBIANDO NAS GRUAS"

  


Villa Regina, Fábrica Velha, Bairro dos Espelhos, Valmares e um mistério – eis as referências. Milene estava em casa por volta do meio-dia a ouvir os “Simple Minds” e tocaram à porta dois agentes da Guarda Nacional Republicana a perguntarem se ela sabia onde estava a avó Regina. E então tudo se precipitou. E uma pergunta terrível ficou por responder. Por que razão e como aconteceu tudo aquilo? “Tudo o que tinha a fazer era imaginar que todas essas coisas caladas se conjugavam para encobrir a noite de quinta-feira, de propósito para ela mesma não saber o que dizer aos tios”. A avó Regina morreu e ela estava só. O romance de Lídia Jorge constitui a base para o filme de Jeanne Waltz, no qual nos deparamos com belas imagens do Sotavento algarvio e o cenário da memória de uma antiga fábrica de conservas, num tempo em que tudo mudou intensamente com a chegada de novas pessoas, encontros e desencontros. E tornam-se evidentes dois mundos, à primeira vista irreconciliáveis, mas dentro do mistério que domina o curso dos acontecimentos, há por obra e graça talvez do acaso a presença sempre enigmática da jovem Milene Leandro, que temos de considerar singular na sua distância de tudo, cuja ingenuidade, lentidão e simplicidade de sentimentos e raciocínio vão, ao longo do romance, torná-la a principal protagonista, respondendo às interrogações fundamentais e revelando o essencial quanto ao destino da vida, sendo vítima da perversidade e da violência, mas capaz de ver o mundo com uma lucidez que os outros não vislumbram.


Parecendo não compreender, Milene é quem melhor entende o fio condutor da existência. E se há distância entre o romance e o filme, já que são duas realidades complementares e diferentes, é porque a literatura é mais adequada a revelar o drama e a força de Milene, em cada silêncio ou em cada palavra, que vêm do íntimo de si mesma. E é através das mãos de Milene que o leitor e o espectador entram na complexidade do tema, atualíssimo, do confronto entre nós e os outros, entre o mundo utilitarista e a procura da essência das coisas, entre supostas certezas e diferenças necessárias. E assim estamos perante um filme, executado com rigor e serena parcimónia, com o desenvolvimento de uma boa história, com bons desempenhos, mas que não dispensa a leitura do romance, que, esse sim, constitui a verdadeira chave para a compreensão da mensagem de Lídia Jorge, que é simultaneamente de uma dura análise do género humano, mas também de uma mensagem de abertura e de esperança, não baseada numa visão doce das coisas mas na adequada consideração do drama, sem a qual nos arriscamos a deixar à indiferença a  compreensão de que temos de recusar o medo dos outros e da incerteza. Afinal, o caso perante o qual nos encontramos associa um amor, um crime e um silêncio para sempre selado.


“O Vento assobiando nas Gruas” permite-nos compreender como o encontro de Milene (Rita Cabaço), esquecida pela família Leandro, com Antonino Mata (Milton Lopes), operador da grua, membro do extraordinário clã crioulo, viúvo com três filhos, é pleno de ensinamentos para os tempos de hoje. E, para além da grande representação de Milene, com um desempenho irrepreensível num papel difícil de uma personagem que vamos compreendendo melhor ao longo filme (como acontece no romance), merece referência a presença de Dino d’Santiago com o tema “Filho do Vento”, que bem representa a cultura cabo-verdiana do funaná, das mornas e coladeiras bem evidente na encenação que presenciamos. Milene, nos seus silêncios e repentes inesperados, permite-nos ver a vida, onde coexistem o bem e o mal, tantas vezes confundidos, obrigando-nos a ir ao encontro da forte e rica criação literária de Lídia Jorge, que tem aqui uma referência marcante na sua obra, felizmente tão fecunda. 


GOM

A VIDA DOS LIVROS

  
De 26 de fevereiro a 3 de março de 2024


O Museu Bordalo Pinheiro acaba de publicar Conversas Soltas – Guerra Junqueiro e Rafael Bordalo Pinheiro, de Mariana Roquette Teixeira e Pedro Bebiano Braga.


OBSERVADOR ATENTO
Observador atento da cultura portuguesa, José-Augusto França foi porventura o melhor analista da nossa realidade histórica na passagem do século XIX para o século XX. Ligando de forma natural a realidade artística e a evolução política pôde deixar-nos na sua abundante produção literária e científica um retrato rigoroso sobre um tempo contraditório e paradoxal – aparentemente decadente, mas de facto profícuo no sentido da tomada de consciência das nossas fragilidades e erros, em simultâneo com o entendimento crítico sobre a necessidade de recusar um qualquer fatalismo do atraso. Quando lemos os textos agrestes da Geração de Setenta, percebemos que a crítica sem dó nem piedade possui não as cores da desistência, mas o aguilhão da vontade de renascimento. Daí a ligação das gerações anteriores de Garrett e Herculano às gerações seguintes de “A Águia”, de Pascoaes e Cortesão, de “Orpheu” de Pessoa, Amadeo e Almada, e da “Seara Nova”, de Sérgio, Brandão e Proença. Afinal, os companheiros de Antero de Quental, de Eça, Ramalho, Oliveira Martins e Junqueiro constituíram a placa giratória que permitiu chegarmos onde estamos, à democracia europeia e universalista, onde desejamos continuar com a exigência crítica que Eduardo Lourenço nos indicou na sua psicanálise mítica em “O Labirinto da Saudade”.


ZÉ POVINHO, CLARO… 
Em julho de 1903, Rafael Bordalo Pinheiro representou na figura emblemática de Zé Povinho a descrição da nossa História: «deitando-se na fuga de D. João VI, levantando-se em 1820 e em 1836, deitando-se na paz de Gramido imposta pelas potências vizinhas chamadas por D. Maria II contra a Maria da Fonte, levantando-se aquando do Ultimatum, deitando-se depois numa ‘soneca real’, à sombra de uma seca ‘árvore da Liberdade’, donde sobre ele, defeca o passarão do juiz Veiga das perseguições à imprensa… Porque, diz a legenda, o Zé Povinho ‘nunca se levanta que não se deite’». Zé Povinho é o símbolo de que somos da autoria do nosso mais célebre caricaturista. E J.-A. França diz-nos certeiramente: “Duas culturas (…) podem ser supostas, num país sujeito à centralização pombalina e jacobina do Terreiro do Paço, Praça do Comércio com século e meio de perenidade política, económica e social. Nela o Zé Povinho, rural urbanizado à força, em trajo e espertezas, em certa medida, ditas saloias, alfacinha por não poder ser outra coisa, necessariamente frutificou, para além do espaço de vida do seu criador, numa multiplicação de vidas menores”. No fundo, o Zé Povinho resume a evolução cíclica da nossa realidade – entre a albarda e o manguito. E há sempre a predisposição para largar uma em nome da soberana negação, como resposta direta, sem nostalgias nem saudades – “Queres fiado?...”. As duas culturas são incindíveis. Bordalo Pinheiro definiu, afinal, como os seus contemporâneos de 1870, o patriotismo prospetivo para não nos deixarmos arrastar pela indiferença ou pela sonolência. Tratou-se do apelo severo à vontade crítica. Zé Povinho está sempre pronto a levantar-se e a atirar os aparelhos ao ar. E Ramalho não esconde: “um dia virá em que ele mude de figura e mude também de nome, para, em vez de se chamar Zé Povinho, se chamar simplesmente Povo”.


CONVERSAS SOLTAS
O Museu Bordalo Pinheiro acaba de publicar Conversas Soltas – Guerra Junqueiro e Rafael Bordalo Pinheiro, de Mariana Roquette Teixeira e Pedro Bebiano Braga. Aí podemos encontrar a ilustração do que acabamos de dizer. «“Poeta exímio e cavaqueador inimitável” – foi assim que Rafael Bordalo Pinheiro descreveu o amigo Guerra Junqueiro quando o visitou na sua casa em Viana do Castelo, em 1887». E nos “Pontos nos ii” publicou uma vista do interior da casa do poeta, onde são evidentes as loiças, os móveis e as obras de arte do colecionador. Mas o momento-chave deste encontro entre Bordalo e Junqueiro está no episódio relatado por Luís Oliveira Guimarães, ocorrido pouco depois das Conferências Democráticas de 1871 e da célebre publicação do álbum humorístico “A Berlinda”. “Uma noite, Bordalo entrou no Martinho (do Rossio), abancou à mesa de Junqueiro, onde já abancara Guilherme de Azevedo e, quando os dois menos esperavam, segredou-lhes: - Vocês querem reformar as instituições? – Não queremos outra coisa – responderam ambos. – Pois então vamos fazer um jornal de caricaturas. Vocês escrevem, eu desenho… - Está dito.”. Falamos da “Lanterna Mágica” (1875) da autoria de Gil Vaz, sendo Gil, Guilherme de Azevedo e Vaz, Guerra Junqueiro. Foi, no entanto, muito fugaz esta experiência, apenas de maio a julho. Mas o sucesso não se fez esperar, o que levou a que a folha se tornasse diária no último mês de publicação. A partida súbita de Bordalo Pinheiro para o Brasil, para colaborar em “O Mosquito” do Rio de Janeiro, interrompeu a empresa. Iriam ser precisos quinze anos para que Junqueiro e Bordalo voltassem a colaborar, quando no fragor patriótico do Ultimatum, o poeta pediu ao desenhador duas ilustrações para o seu “Marcha do Ódio”, sobre um velho cavaleiro, que é Portugal, que encontra a morte num combate injusto e desigual. A publicação fez-se, e ainda no ano de 1890, os “Pontos nos ii” imprimem “O Caçador Simão”, violenta crítica de Guerra Junqueiro à inação de D. Carlos, inicialmente dado á estampa em “A Província” e “O Globo”. Ainda no mesmo ano, Bordalo publicaria com destaque duas intervenções parlamentares do poeta, as derradeiras como deputado progressista. Recorde-se, porém, que Junqueiro já fora especialmente invocado nos “Pontos nos ii” aquando da publicação de “A Velhice do Padre Eterno” (1885). E na correspondência entre ambos, nota-se ainda a tentativa de reunir textos significativos do grande amigo, quase esquecido, Guilherme de Azevedo, falecido em 1882, companheiro na “Lanterna”, o celebrado Rialto do “Álbum das Glórias”. Infelizmente tal não passou de projeto.


Em 1892, “O António Maria” publica, a propósito da saída de “Os Simples” uma significativa homenagem a Junqueiro, representado com uma coroa de louros numa pose glorificadora, quando o poeta afirmou: “Engana-se quem entre ‘Os Simples’ e ‘A Velhice do Padre Eterno’ descobrir porventura contradições. Este lirismo é o reverso daquela sátira”. Contudo, a última homenagem de Rafael Bordalo Pinheiro ao seu amigo Junqueiro ocorreu a propósito da publicação do poema “Oração ao Pão” em “A Paródia” (1902). É uma homenagem tocante, na qual o poeta surge como semeador de trigo e de palavras, vestido de mujique (como o mestre Tolstoi), trazendo um turíbulo aceso, donde saem nuvens de incenso. E J.-A, França refere a grande seriedade emotiva da caricatura, marcada pela palavra “Oremus!”. A caricatura é um verdadeiro testamento. Raul Brandão referir-se-á a “um pregador socialista-tolstoiano, um santo cavador, de barba negra e inculta”. E Bordalo Pinheiro não esconde a amizade profunda e a admiração pelo artista, que tão bem compreendeu o humor e o picaresco e que tanto o apoiou no projeto da Fábrica das Caldas da Rainha.     


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

  

De 19 a 25 de fevereiro de 2024


"Du personnalisme au fédéralisme européen - en Hommage à Denis de Rougemont", Centre Européen de la Culture, Genève, 1989, é um livro oportuno no momento em que duas guerras às portas da Europa exigem o reforço do projeto europeu.


MARE NOSTRUM, EUROPA NOSTRA
Nos quarenta anos da morte de Denis de Rougemont, lembramos que a Europa que herdámos nasceu em volta do Mediterrâneo e depois tornou-se continental ao longo dos séculos. As guerras civis europeias do século XX, com projeção mundial e resultados trágicos, levaram a que, sobretudo depois de 1945, tenha havido um forte movimento pan-europeu, que o Congresso de Haia de 1948 procurou projetar e desenvolver como um sobressalto cívico e um fator preventivo de futuras guerras e conflitos desregulados. Denis de Rougemont, no Centro Europeu de Cultura, de Genebra, foi um dos principais protagonistas dessa ação intelectual, que passou pela descoberta de autores e correntes de pensamento europeístas. Milan Kundera disse um dia que o europeu poderia ser definido como aquele que tem nostalgia da Europa. Tendo afirmado que na Idade Média a unidade europeia era baseada na religião e na Idade Moderna na cultura, perguntava qual seria o fator atual de unidade? Não há homogeneidade nem uma nação europeia, mas um caleidoscópio heterogéneo, pleno de complementaridades. No entanto, vista de fora, a Europa tem uma personalidade, muitas vezes olhada com desconfiança. Na célebre conferência de Genebra de setembro de 1946, Karl Jaspers procurou dar resposta a este intrincado problema. O pensador falou então de Liberdade, de História e de Ciência como marcas da personalidade europeia. “Se queremos citar nomes, a Europa é a Bíblia e a Antiguidade. (…) A Europa está nas suas catedrais, nos seus palácios, nas suas ruínas, é Jerusalém, Atenas, Roma, Paris, Oxford, Genebra, Weimar. A Europa é a democracia de Atenas, da Roma republicana, dos suíços e dos holandeses, dos anglo-saxões…”. Sentimos, no íntimo de nós a Europa como lugar de múltiplas diferenças, que trazem consigo a audácia da liberdade. A Liberdade (para Jaspers) significava inquietude e agitação, vitória da vontade sobre o arbitrário. A consciência trágica liga-se, assim, à esperança cristã, e o diálogo entre culturas torna-se busca de uma consciência de si. A História é a lógica sequência da Liberdade – situando o que é real e o que é possível, a partir da pessoa humana, num caminho inesgotável. A Ciência, por fim, parte da ideia de que o saber nos torna mais livres, pelo sentido crítico, pela experiência e pelo uso equilibrado da razão.


NOME PREMONITÓRIO
O adjetivo “Eurôpos” significa o que é largo e espaçoso. Como pessoa, “Eurôpé” quer significar aquela que tem grandes olhos – que permitem ver longe. Há afinidades evidentes com Eurídice. O rapto da formosa Europa por Zeus, transformado em touro, é a alusão mítica referenciada quando falamos da designação do velho continente. Uma princesa da Ásia trazida para a Grécia liga a civilização fenícia à cretense. Em 1948, o Congresso Europeu de Haia deu o sinal: haveria que usar um novo método na reconstrução da Europa e do mundo, depois da catástrofe da guerra. E a declaração de Paris de Schuman (9.5.1950) consagraria o objetivo defendido pelos intelectuais na capital holandesa. É neste contexto que se insere a obra de Denis de Rougemont, empenhado em lançar as bases desse novo método, baseado na descentralização e na subsidiariedade. As pessoas e os cidadãos devem, assim, ser a base de uma nova construção, não centrada na perspetiva nacional e nos egoísmos agressivos ou protecionistas, mas na procura de uma via pacífica e funcionalista, baseada na economia e na sociedade. Não se trataria de criar um Estado Europeu nem uma nação europeia, mas de construir uma solidariedade de facto e de direito, centrada no pluralismo e nas diferenças, numa palavra, unidade na diversidade. Daí a importância da procura das raízes comuns, não em nome da harmonização, mas sim de uma realidade complexa. Fernand Braudel, o historiador da economia, falou do carácter pioneiro e necessário do projeto europeu. Mas perguntava: “A unidade política da Europa poderá fazer-se hoje não pela violência, mas pela vontade comum dos parceiros? O programa desenha-se, levanta entusiasmos evidentes, mas também sérias dificuldades”. E o historiador lança os alertas necessários, uma vez que a construção europeia depressa se tornou menos um projeto político de cidadania, para ser uma mera adição de preceitos técnicos e de burocracias. “É inquietante verificar que a Europa, ideal cultural a promover, venha em último lugar na lista dos programas em causa. Não há uma preocupação nem com uma mística, nem com uma ideologia, nem com as águas falsamente acalmadas da Revolução ou do socialismo, nem com as águas-vivas da fé religiosa. Ora a Europa não existirá se não se apoiar nas velhas forças que a fizeram, que a trabalham ainda profundamente, numa palavra se negligenciarmos os humanismos vivos. (…) Europa dos povos, um belo programa, mas que está por formular”. Mais do que invocarmos os grandes idealistas, somos chamados a dar um salto desde os ideais até à realidade. E quando recordamos Denis de Rougemont ou Altiero Spinelli, não podemos esquecer os funcionalistas (como Jean Monnet) e os políticos europeus (como De Gasperi, Schuman, Delors e Mário Soares). A Europa do futuro constrói-se com mais política, com melhores instituições, com Estados de Direito e Uniões de Direito. Longe da tentação de construir instituições artificiais (que se tornam perigosamente reversíveis). Do que se trata é de superar os egoísmos nacionais pela salvaguarda sã das diferenças culturais (os Estados-nações não podem ser esquecidos, mas têm de subsistir, compreendendo que se tornaram, a um tempo, grandes e pequenos de mais). No fundo, é a dignidade da pessoa que está em causa, como sempre insistiu Alexandre Marc, um militante europeu centrado na liberdade e na dignidade humana. Do que se trata, pois, não é de criar uma identidade europeia, mas de entender a complexidade do pluralismo e das diferenças “Com um pouco de nervo político (diz o filósofo alemão Jürgen Habermas), a crise da moeda comum pode acabar por produzir aquilo que alguns esperavam em tempos da política externa comum – a consciência, por cima das fronteiras nacionais, de compartilhar um destino comum europeu”.


Guilherme d'Oliveira Martins
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A CORAGEM DE APOIAR AS ARTES


Foi António Pedro quem disse que “a Arte só o pode ser como exercício da liberdade”. A afirmação parece natural, mas precisa de ser vivida segundo esse sério entendimento. Por isso, o apoio às artes exige determinação e um sentido apurado, que permita conciliar o gosto e a apreciação do valor. Para tanto não há receitas nem lógicas utilitaristas. É um domínio de incerteza, de intuição e de capacidade de correr riscos. A experiência portuguesa dos anos cinquenta do século passado merece ser recordada. A abertura em 1952 da Galeria de Março, dirigida por José-Augusto França, no princípio com Fernando Lemos, merece referência, já que se tratou de uma aventura cultural, mais do que comercial. O seu nascimento veio na sequência do êxito da exposição de 52 de Lemos, Fernando Azevedo e Vespeira e a sua importância deveu-se a uma atitude eclética assumida, acolhendo os artistas que a procurassem, apenas com a exigência da qualidade – indo do neorrealismo (Júlio Pomar e Lima de Freitas) ao surrealismo (António Pedro, Dacosta, Cândido e F. Lemos), até ao abstracionismo (Lanhas, Jorge Oliveira, Edgar Pillet). E a função cultural ficou claramente demonstrada pela exposição de Almada Negreiros, que remeteu para Amadeo, de quem então apenas se falava, e tinha um único quadro, e chamando a atenção para Maria Helena Vieira da Silva.


Era, no entanto, um tempo ingrato, no qual “tentar vender pintura era como procurar vender frigoríficos no polo Norte: as pessoas não precisavam”, como disse J.-A. França no “Comércio do Porto” em 1956. Falando de galerias, lembramos a abertura da “Pórtico”, onde se lançaram alguns jovens, que iriam das Belas-Artes (ou do Centro Nacional de Cultura) até Paris, como o grupo KWY, como Lourdes Castro, R. Bertholo, José Escada e Costa Pinheiro. Havia salas de exposição, mais do que verdadeiras galerias, sendo difícil a formação de um mercado. Skapinakis considerava em 1959 ser tarde para fabricar “marchands”, dos quais desconfiava. Dez anos depois, surgiria o tal mercado, algo precipitadamente. Mas o tema da internacionalização entrava na ordem do dia. Enquanto Mário Dionísio criticava, num inquérito, a saída de artistas e o facto de pensarem como se estivessem em Paris, Roma, Londres ou Nova Iorque; mas José-Augusto França apostava na abertura de horizontes; “os nossos pintores têm de pertencer (à Europa) ou morrem” e Bernardo Marques desenha em 1958 uma deliciosa caricatura onde França aponta o destino de Paris para um animado e numeroso grupo de artistas. É exatamente o período em que as bolsas distribuídas pela Fundação Calouste Gulbenkian vão começar a ter um papel decisivo, merecendo referência a generosa proteção de Vieira da Silva em Paris. Aliás, esta internacionalização foi antecedida por Fernando Lemos na ida para o Brasil em 1953. E o papel catalisador da Gulbenkian permitiu uma visão panorâmica do estado das artes plásticas em Portugal, proporcionando aos artistas oportunidade para estabelecer contacto com o público.


Há dias, deixou-nos Maria da Graça Carmona e Costa. Foi exemplo do apoio inteligente, conhecedor e generoso às artes e à cultura. Justas foram as homenagens que se ouviram de diversos horizontes. Apaixonada pelas artes plásticas, contactou, desde o final dos anos 1960, destacadas personalidades da arte portuguesa, como Almada Negreiros, José-Augusto França ou Rui Mário Gonçalves. Iniciou a sua atividade na Galeria Quadrum, de Dulce d’Agro, nos Coruchéus. No final dos anos 1980, fundou o gabinete Giefarte, a que sucederia, em 1997, a Fundação Carmona e Costa, para dinamizar iniciativas de arte contemporânea portuguesa, como exposições, conferências, edição de livros e catálogos, ou bolsas de estudos como as destinadas a alunos do Ar. Co – Centro de Arte e Comunicação Visual de Lisboa. E para saber o essencial, percorra-se a exposição “Álbum de Família”, no MATT, com curadoria de João Pinharanda. Para não esquecer.


GOM

A VIDA DOS LIVROS

  

De 8 a 14 de janeiro de 2024


Maria Archer (1899-1982) foi uma escritora multifacetada. Como romancista enalteceu os direitos da mulher, como cronista e ensaísta deu-nos um retrato da África e do mundo do seu tempo, temas que merecem leitura nos nossos dias.


AUDÁCIA E ENERGIA
João Gaspar Simões afirmou em 1930 sobre Maria Archer: «Não conheço outra escritora portuguesa que à audácia dos temas e das ideias alie uma expressão tão enérgica e pessoal. O seu estilo respira força e solidez.» Pode dizer-se que se trata de um juízo justo, sobretudo quando tomamos contacto com a rica e diversificada obra de uma escritora, que infelizmente é muito pouco conhecida na nossa República das Letras. Contudo, sempre que alguém regressa à sua obra escrita é invariável o espanto e a admiração. 


Maria Archer nasceu em Lisboa a 4 de janeiro de 1899. Foi a primeira de seis irmãos e começou cedo, a viajar com os pais e a acompanhá-los - Ilha de Moçambique (1910-13) e Guiné-Bissau (1916-18). Uma vez que terminou tarde a instrução primária, por decisão própria, podemos considerá-la autodidata. Em 1921, vive em Faro com a família e aí casa com Alberto Passos, indo viver para o Ibo – Moçambique. Cinco anos depois regressam a Faro e de seguida vão para Vila Real, tendo o casamento durado apenas dez anos. Em 1932, parte para Angola, ao encontro de seus pais. Em Luanda, publica o seu primeiro livro - Três Mulheres (1935) – com o apoio de Pinto Quartin. Escreve para os jornais e vê-se confrontada com a incompreensão da própria família, designadamente aquando da publicação do romance Aristocratas (1945), uma vez que os elementos autobiográficos chocam os mais próximos de si. Em 1943, escreve com Branca de Gonta Colaço Memórias da Linha de Cascais. E no mesmo ano publica uma apresentação sobre os Parques Infantis, a convite de Fernanda de Castro. Participa em várias conferências, em Lisboa e no Porto, e faz várias entrevistas como jornalista. Em 1955, parte para o Brasil, por considerar a censura como intolerável. Os livros Ida e Volta duma Caixa de Cigarros (1938) e Casa Sem Pão (1947) tinham sido proibidos. Conhecedora da situação africana, desde muito cedo compreende a tendência para a emancipação dos povos coloniais, no que se aproxima de Henrique Galvão, quer nas preocupações culturais, quer nas políticas. Acompanha, por isso, o julgamento do antigo fundador da Emissora Nacional, tornado crítico da política de Salazar em Angola, que decorreu no Tribunal Militar de Santa Clara. Defensora dos direitos das mulheres tem na sua escrita a afirmação clara da exigência do necessário reconhecimento de uma igualdade substancial, deixando na sua obra a marca indelével da afirmação da democracia.


ENTENDER O FEMININO
Maria Archer é, de facto, uma das mais dotadas escritoras portuguesas do século XX. Soube entender o feminino até ao âmago, como nenhuma outra, o feminino nos seus sonhos, nos seus anseios e denunciar corajosamente a teia dos preconceitos absurdos que pendiam sobre as mulheres, sobretudo as que procuravam lutar pela sua dignidade. Em Ela é Apenas Mulher (1944) fica evidenciado não apenas uma capacidade extraordinária para definir quadros narrativos, mas também para retratar as personagens, em especial as femininas. A figura de Biluca Morgado, a protagonista de Nada lhe Será Perdoado (1953), é bem o símbolo do sofrimento de uma mulher ao pretender seguir, depois do divórcio, o seu próprio caminho de liberdade e dignidade... Já no Brasil e apesar da chantagem do regime, sobre o seu relato do julgamento de Galvão, publicará Os Últimos Dias do Fascismo Português (1959), que causará brado, pela natureza das acusações relativamente à política de Salazar. No Brasil, apesar da doença e da míngua de meios de vida, escreveu bastante para diversos jornais, nomeadamente para O Estado de S. PauloSemana Portuguesa Portugal Democrático. São desse período as seguintes obras: Terras onde se Fala PortuguêsÁfrica sem LuzBrasil, Fronteira da África. A obra de Maria Archer foi bastante diversificada, designadamente em periódicos, como Correio do Sul, Diário de Lisboa, Eva, Fradique, Ilustração, Ler, O Mundo Português, Portugal Democrático, Seara Nova, Sol e Estado de S. Paulo.


De 1935 a 1944 foi sobretudo novelista ou contista. De 1944 a 1955 chega à maturidade na sua produção literária, revelando-se perspicaz observadora e narradora dos problemas que atingem a mulher dessa época. A partir de 1956, temos a fase da resistência no Brasil com a publicação de vários artigos no Portugal Democrático e do livro referido sobre o julgamento de Henrique Galvão. Há coerência nos ensaios e estudos sobre África e os costumes dos seus povos (13 obras), nos quais se sente um sentido emancipador que envolve a necessidade da autodeterminação colonial.  A obra de Maria Archer traduz-se na publicação de trinta livros, três dos quais chegaram à terceira edição e cinco tiveram três, o que prova a apreciação positiva do público leitor, em especial das mulheres. Todos reconhecem um valor especial na literatura feminina do início do séc. XX, envolvendo novela, romance, ensaio e literatura de viagens. Escreveu, também, 5 peças de teatro, um romance de aventuras infantis e dois ensaios para que o público mais jovem aprendesse a História de forma lúdica. Como premonitoriamente reconheceu Gaspar Simões, foi na forma audaciosa como retratou a mulher portuguesa e os seus problemas familiares e sociais que se tornou uma referência essencial na literatura do séc. XX. Ainda no Brasil, em 1974, apesar de enfraquecida, continuou o seu combate na afirmação da democracia, em 1977 foi internada em São Paulo, donde regressou a Portugal em abril de 1979. Permaneceu em Lisboa até à morte em 23 de janeiro de 1982, há quarenta e dois anos.


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

"CORAÇÃO" DE EDMONDO DE AMICIS

  


O Risorgimento italiano tem raízes muito antigas. Dante, Petrarca e Maquiavel fazem parte de um longo caminho que culminou na unificação de Itália. Entre 1815 e 1870 confrontam-se os partidários da Casa de Saboia e do rei da Sardenha e os companheiros de Mazzini e Garibaldi. A saga contada por Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) em Il Gattopardo, imortalizada por Visconti, desenha-nos o pano de fundo. A guerra patriótica contra o Império austríaco, os ecos da Primavera dos Povos de 1848, a proclamação do reino de Itália e a anexação dos Estados Pontifícios marcam um tempo que mudou o panorama europeu. Napoleão dividira a Itália em vários reinos e o Congresso de Viena deixaria a península subalternizada ao Império Austro-húngaro. O reino da Sardenha, com o conde Cavour, economicamente moderno, tornou-se a locomotiva do novo Estado, associada ao Risorgimento letterario, que criou uma nação a partir da língua e do génio poético presentes na grande Comédia de Dante, tornada divina. A história é conhecida e até chegou a Portugal, com o trágico exílio de Carlos Aberto e a sucessão em seu filho Vítor Manuel II, pai da nossa Rainha D. Maria Pia.

 

Além dos clássicos, o escritor moderno que muito contribuiu para a formação da consciência italiana foi Edmondo de Amicis (1846-1908), autor de Coração, uma obra sublime. Todos os jovens italianos desde 1886 até à geração de Umberto Eco formaram-se a ler o livro de Amicis, talvez demasiado cheio de bons sentimentos, mas indiscutivelmente marcante para a formação de uma consciência cívica liberal e democrática. A obra relata, pela voz de Henrique, um ano letivo dos alunos da Terceira Classe de uma Escola, onde se lia em cada mês uma verdadeira parábola sobre a liberdade, a generosidade, o respeito, o exemplo, o altruísmo e a salvaguarda das diferenças. O Coração, que eu li integralmente, com grande prazer, e que os meus pais me ajudaram a ler, numa experiência inesquecível com meus irmãos, foi adotado como leitura obrigatória nas escolas de Itália no final do século XIX. Daí a influência que exerceu em diversas gerações também na Europa democrática. Longe do nacionalismo que envenenou a mentalidade europeia – lembramos a carta em que se diz: “Eu amo a minha terra porque a minha mãe nela nasceu; porque o sangue que me corre nas veias é o mesmo sangue; porque na minha terra estão sepultados os mortos que a minha mãe chora e meu pai venera”. A cidade, a língua, os livros que me educam, o grande povo no meio do qual vivo, a bela natureza que me cerca, tudo pertence à ideia de pátria. E as histórias contadas pelo mestre-escola ilustram a entrega e a generosidade, a abertura e a autonomia pessoal – como nos casos do pequeno patriota paduano, do pequeno vigia lombardo, do tamborzinho, da viagem dos Apeninos aos Andes – ou do sacrifício do pequeno escrevente florentino – que nas altas horas da noite ajudava às escondidas seu pai a realizar um trabalho árduo e repetitivo que compunha o ganha-pão familiar. “Cursava a quarta classe. Era um gracioso florentino de doze anos, negro de cabelos e alvo de rosto; filho mais velho de um empregado dos caminhos de ferro que, tendo muita família e pouco ordenado, vivia com dificuldades”. O filho, às escondidas, decidiu ajudar o pai a escrever endereços em cintas para enviar revistas a assinantes. Mas se o trabalho singrava, o pai não compreendia por que razão o aproveitamento do filho se ressentia, até que descobriu que tal era fruto do cansaço pela generosidade… Escritor dotadíssimo, de Amicis dá-nos exemplos de cidadania viva. A verdade é que, em vez de um discurso abstrato, há valores exemplares. Mas além dos contos mensais, há pequenos exemplos na relação entre os companheiros da turma (perante uma dificuldade, uma doença, um acidente ou uma morte) que demonstram a importância do respeito mútuo, do cuidado e da solidariedade. Eis como um livro se torna influente.   


GOM

A VIDA DOS LIVROS

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    De 1 a 7 de janeiro de 2024

 

Recordo o pintor e crítico de arte Fernando de Azevedo, nascido no ano de 1923, em Vila Nova de Gaia, cofundador, com Marcelino Vespeira, António Domingues, João Moniz Pereira, Mário Cesariny de Vasconcelos, Alexandre O’Neill e José-Augusto França, do Grupo Surrealista de Lisboa (1947-49).

 

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O «SOBREREALISMO» EM AÇÃO

Neste ano de vários centenários, que nos leva a concluir como foi fértil 1923 numa antecipação ao “baby boom” do fim da outra grande guerra que sucedeu ao mal terminado conflito de 1914-18, referimos alguém que merece lembrança como artista que soube refletir sobre as grandes tendências do seu tempo, marcando pela sua presença e intervenção. A afirmação do Grupo Surrealista de Lisboa marcou a transição do pensamento social e político dos anos trinta e quarenta do século XX para a procura de novos caminhos no pós-guerra em que a liberdade e a valorização existencial abriram perspetivas inovadoras de diversidade e sentido crítico. O grupo assumiu o inconformismo sistemático, começando por romper com Cândido Costa Pinto, que tinha tido um papel simbólico importante no contacto com o patriarca do surrealismo André Breton. E a razão da rutura foi a participação daquele numa mostra organizada pelo SNI, organismo do Estado Novo, “quartel-general da demagogia a cores”. Como dizia a nota de rutura: “O super-realismo tem de seguir a linha da não transigência com as posições equívocas”.

A primeira iniciativa do grupo foi a realização de uma exposição, em 1949, no ateliê da travessa da Trindade, com a participação de António Pedro, onde se incluíam dois Cadavre Exquis, um de Vespeira e Fernando Azevedo e outro, de grandes dimensões, de António Domingues, Fernando Azevedo, António Pedro, Vespeira e Moniz Pereira. Fernando Azevedo teve, assim, uma participação muito ativa desde o início. A exposição seria, aliás, motivo de grande agitação e de ameaças policiais, até porque a primeira proposta de capa do catálogo inseria-se na campanha presidencial de Norton de Matos. “Depois de 22 anos de medo ainda seremos capazes de um ato de Liberdade – é absolutamente indispensável votar contra o Fascismo”. A censura não poderia, porém, autorizar esse texto e a capa seria substituída à última da hora por outra de cor branca riscada à mão por dois traços de lápis azul. Fernando Azevedo era um dos participantes mais ativos. O pintor tinha-se formado na Escola de Artes Decorativas António Arroio, inscrevendo-se depois na Escola de Belas Artes de Lisboa, que acabaria por abandonar, recusando as sombras do academismo. Começou por pintar dentro das orientações do Surrealismo, no entanto o seu percurso caracterizou-se pela evolução para o Abstracionismo. Tinha exposto pela primeira vez em 1943, com Vespeira e Júlio Pomar, acompanhando o início do movimento neorrealista em 1945-46, mas logo no ano seguinte foi cofundador do referido Grupo Surrealista (com objetivos demarcados dos do neorrealismo). Depois da exposição de 1949, que seria a única exposição do grupo, os seus membros consideraram não ter condições para continuar. Em 1952, participa na exposição realizada na Casa Jalco, em Lisboa, dedicada ao precursor do surrealismo em Portugal António Pedro - «Uma exposição de óleo, fotografia, guache, desenho, ocultação, colagem, linóleo, constituída por três «Primeiras exposições Individuais» de Fernando de Azevedo, Fernando de Lemos e Vespeira. No projeto “Unicórnio…, Pentacórnio, de 1951 a 1956, Azevedo é, com Jorge de Sena, José Blanc de Portugal, Eduardo Lourenço e o organizador José-Augusto França, totalista, ao participar em todos os cinco números, com um texto exemplar sobre o Surrealismo no Tricórnio.

 

TOTALIDADE E AUTENTICIDADE

O Surrealismo proclamava, pela pena de Fernando de Azevedo, a procura da totalidade e autenticidade do ser, através da entrega aos modos de erupção do inconsciente: o sonho, a trouvaille, a alucinação, a associação livre, a loucura, a magia, a alquimia, a mediunidade, o mundo infantil e o mundo da imaginação primitiva, mítica, artística, sonâmbula e automática”. Deste modo, o pintor assumiu uma criação pictórica de importância notável (“ocultações”) e uma frenética e persistente reflexão, em ligação com a participação em inúmeras exposições coletivas, tendo recebido um 1º Prémio de Pintura na II Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, em 1961. Desde a 1947 desenvolve atividade não apenas como artista, mas também como crítico (no “Mundo Literário” e em “Horizonte”); publicando, ao longo da sua vida, textos na imprensa, em catálogos, livros e revistas da especialidade, com destaque para na Revista “Colóquio-Artes” (editada pela Fundação Calouste Gulbenkian entre 1971 e 1996), da qual foi Consultor Artístico, e de facto grande impulsionador ao lado do seu amigo José-Augusto França e com Rui Mário Gonçalves. “Sabe hoje o pintor que a realidade exterior e a realidade interior têm dois perfis dados pela mesma linha comum” – afirmou o artista logo no início dos anos cinquenta, definindo com clareza os dois lados em que se assumia em si a vocação de cultor do “desejo partilhado e inadiável de liberdade”. E é esta coerência irrepreensível que encontramos no seu percurso de intelectual comprometido. Nessa missão de intérprete da arte como pensamento inconformista, ocupou sucessivamente os cargos de Assessor da Direção, Diretor-Adjunto (1989-92) e Diretor (1992-94) do Serviço de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian. E ainda exerceu a presidência da Direção da Gravura – Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses entre 1972 e 1974. Foi vice-presidente e presidente da Secção Portuguesa da AICA (1977-1979 e 1987-1994). Foi presidente da Sociedade Nacional de Belas Artes entre 1979 e 2002.

Leonor Nazaré tem razão ao afirmar que Fernando de Azevedo foi figura central do surrealismo português “tendo empregado o seu entusiasmo e a sua criatividade artística na ação cívica e no preenchimento desse programa que se queria liberto de constrangimentos estéticos referenciais e políticos – em dissidência com os neorrealistas, com quem o grupo inicia o percurso artístico, mas de quem depois se separa”. Afinal, o artista soube sempre a importância de manter uma tribuna que era simultaneamente um modo de pôr em diálogo a receção e a criação.  “A escrita abre um espaço próprio ao pensamento sobre as obras e os artistas (como insiste Leonor Nazaré), e esse espaço aberto lhe assegurava conceitos, razões, poesia, intuição e verdadeira relação com a arte, do ponto de vista da receção que quis manter ativo a par do ponto de vista da criação”. Arte e compromisso são as duas faces do pintor e do ensaísta, em busca de um caminho em que coubesse a medida do homem e não a sua imitação…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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