Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
No âmbito da reflexão serena e fundamentada sobre os 900 Anos de Portugal, publicamos hoje um texto sobre as nossas raízes mais antigas, publicado há dias pelo “Observador”.
D. Afonso Henriques
Para compreendermos o período da formação de Portugal devemos não só ter presente as raízes antigas (de um complicado cadinho ou melting pot), nas quais geografia e história se associam, mas também a chave cronológica apresentada por José Mattoso para o momento crucial da formação da nacionalidade, onde encontramos seis períodos, ao longo dos quais vamos verificando a consolidação gradual da identidade política social e cultural portuguesa, enquanto realidade una e múltipla. No primeiro momento, 1096-1131, o poder condal começou a organizar-se à semelhança das monarquias com o estabelecimento de uma relação direta e estável com a aristocracia senhorial e as comunidades municipais, criando-se uma nova instância política que reunia os condados de Portucale e de Coimbra (tendo este último sido aliado dos reinos muçulmanos desde as invasões de Almançor – c. 938-1002; e governado pelo moçárabe Sisnando – Sisnando Davidis, falecido em 1091). Entre 1131 e 1190, D. Afonso Henriques, vencedor de D. Teresa em S. Mamede (1128), à frente dos barões portucalenses, estabeleceu a sua sede estratégica em Coimbra e ampliou o território português para mais do dobro, sofrendo, no entanto, a forte pressão das invasões almorávidas, na tentativa de recuperação dos territórios perdidos. De 1190 a 1223 houve a ocorrência da crise económica em resultado dos maus anos agrícolas, tendo D. Afonso II lançado medidas de centralização do poder real, com reforço da aliança aos concelhos, opondo-se à influência fragmentária do alto clero e da nobreza. Em relação ao período 1223-1248, houve uma fase muito difícil, pelas repercussões de uma nova crise económica e da peste, pela eclosão da guerra civil, caracterizada pela extrema fragilidade do poder de D. Sancho II e pelas contradições no seio da nobreza senhorial. Relativamente aos anos 1248-1279, D. Afonso III, o conde de Bolonha, emergiu fortalecido da guerra civil e prosseguiu, com muita determinação e sistematicamente, a ação centralizadora do Estado contra a afirmação dos senhores da terra e do clero - ao lado dos concelhos -, completando a conquista do território até ao Al-Gharb. Por fim, de 1279 a 1325, desenvolveu-se a ação de D. Diniz, desde a continuidade centralizadora do poder real e da fixação de fronteiras (Tratado de Alcanizes, de 1297) até ao reforço do poder militar e naval com a nomeação do genovês Manuel Pessanha como Almirante das Armadas, passando pela adoção da língua portuguesa na chancelaria, pela fundação da Universidade Portuguesa (o Estudo Geral), pela afirmação da influência do Direito Romano, pelo entendimento de que os habitantes do Reino são vassalos naturais do rei, sem intermediações (como defendera já Afonso X), pela proibição dos nobres armarem os cavaleiros vilãos dos concelhos ou ainda pela criação da Bolsa de Mercadores e pela intensificação do comércio com a Flandres, Inglaterra e França.
Através deste caminho, de afirmação muito segura do Reino, fica bem explícito o risco acrescido das missões cometidas aos Condes de Portucale na conquista e consolidação de posições, em confronto direto com as forças muçulmanas. E assim o Conde D. Henrique e os seus sucessores garantiram, através da reunião dos poderes locais, um fator de segurança e de continuidade com resultados positivos na consolidação do poder, de que beneficiaram os reinos cristãos, em contraste com as divisões e o descontentamento existentes sob o domínio almorávida… Importa lembrar, aliás, que a criação do condado portucalense destinou-se "não só a criar uma instância de comando militar capaz de fazer frente às investidas almorávidas, que se tornaram especialmente perigosas nos anos de 1093 e 1094, mas também a vencer a resistência regional à autoridade de Afonso VI. De facto, a entrega do condado a um francês protegido por Cluny e a nomeação de vários bispos franceses, logo de seguida, para as dioceses de Braga e de Coimbra, constituíram um conjunto de medidas com propósitos políticos intimamente relacionados entre si!". O sucesso militar e político do Conde veio, deste modo, a criar uma autoridade indiscutível que permitiu ao Reino de Portugal surgir ao lado de Leão e Castela e de Aragão como protagonista na segunda vaga das autonomias dos reinos cristãos. Recorde-se que a primeira tinha ocorrido entre 950 e 1050, tendo como atores fundamentais Castela, Aragão e Navarra.
Compreende-se a importância de o Norte Atlântico ser "a região por excelência do regime senhorial" e de as áreas mais montanhosas do Norte Interior e do Sul Mediterrânico coincidirem com a "implantação maciça das comunidades organizadas em concelhos". Afinal, a receita para o sucesso político de Henrique de Borgonha e dos reis portucalenses advém da arguta compreensão desta diferença e desta complementaridade. Há, de facto, uma "dialética constante entre os vetores da divergência e os movimentos da integração". E a integração acaba por prevalecer, por força das migrações, do progresso económico ou da organização social e do poder político. Eis como José Mattoso, com base numa investigação essencial que articula os diversos elementos já conhecidos, faz a ponte entre as duas influências portuguesas - superando, assim, o velho entendimento dos Nobiliários, sobretudo preocupados com o nexo gótico e com o predomínio exclusivo dos reinos cristãos. O Estado, que precedeu a Nação, progrediu para além desse entendimento - compreendendo os mais influentes monarcas portugueses a importância das diferenças sociais e étnicas, do moçarabismo, da fragmentação dos reinos taifas e do descontentamento crescente que ia germinando no sul.
O papel da guerra externa foi, assim, fundamental para a consolidação da nacionalidade. E o facto de o reino ser de fronteira pesou fortemente na relação exigente entre o estímulo e a resposta. Além disso, a expansão para sul permitiu resolver a conflitualidade entre os membros da nobreza, dando-lhes novos espaços de influência. Os excedentes demográficos de Entre-Douro-e-Minho puderam ser absorvidos e as importantes cidades conquistadas (nas quais avultam Santarém e Lisboa) tornaram-se centros económicos muito relevantes e novos mercados para a sociedade agrícola e comercial. O facto dos concelhos moçárabes (base do municipalismo, segundo Herculano) se terem deixado encabeçar por D. Afonso Henriques tornou-se, por outro lado, garantia de estabilidade e de uma boa defesa fronteiriça - baseadas na cedência ao rei de prerrogativas na justiça e no fisco, em troca de não terem de se submeter aos poderes senhoriais e da Igreja. Em bom rigor, o Estado nasceu, porém, apenas com Afonso II, e com o seu chanceler Julião, sendo ameaçado pela expansão senhorial do reinado de Sancho II, a que Afonso III pôs cobro. É a consciência nacional que surge, encontrando as suas fronteiras e os seus símbolos - que deixam de significar a identificação de um poder real, para representar a identidade dos portugueses… O método de Identificação de um País recusa as explicações tradicionais ou mitológicas. As características da "portugalidade" são vistas como fenómenos complexos que não podem resumir-se a um dilema estreito entre os que "tendem a estreitar os laços com a Europa" e os que projetam "Portugal para fora dela". Os traços da nossa identidade baseiam-se num equilíbrio ou numa síntese que exige a compreensão das diferentes raízes e de um percurso histórico longo e multifacetado.
«Novas Fases da Lua» de João de Melo (D. Quixote) é um diário dos anos de 2017 a 2024 (com exceção de 2020 e 2022) no qual encontramos o pulsar da vida cultural pela pena de um grande escritor.
O diário de um escritor é sempre a revelação apetecível de um retrato do mundo através do testemunho de quem procura ir além das aparências e do prazo curto. João de Melo é um excelente cicerone, que nos conduz por caminhos muito sedutores que nos ajudam a compreender o tempo e as pessoas. A cada passo encontramos autores e acontecimentos que seguimos com um incontido prazer, pois além da sedução da escrita podemos usufruir de uma leitura qualificada da realidade cultural que nos cerca. Em 17 de fevereiro de 2019, ouvimos o autor: “Ponho-me a imaginar a minha biblioteca sem mim, ou seja, depois de mim. Todos estes livros têm a marca das minhas mãos, uma história silenciosa que um dia se calará comigo. Dói-me imaginar o destino que os levará a outros olhos e a mãos diferentes das minhas. Perder-se-ão as dedicatórias dos autores, a minha leitura deles, os milhares de livros lidos sobre os quais se apagará a luz e a gratidão dos meus olhos. Houve um tempo em que as bibliotecas representavam pequenos tesouros familiares que os filhos herdavam com proveito e alegria. Hoje ninguém quer bibliotecas particulares: todos os lugares estão cheios e saturados delas – acabarão num sótão ou numa cave escura e coberta de pó, ou nas mesas de rua dos vendilhões de livros em segunda mão, comprados a pataco como pechinchas de ocasião. (…) Toda a vida a comprar e trazer livros para casa, e depois este logro, esta inutilidade alheia”. Estamos aqui no coração deste diário, de modo a que possamos usufruir da essência da memória, para além do desaparecimento do tempo. Olhe-se a lembrança de “Ana Karénina”, aprendendo “com os mestres a simplicidade profunda, o segredo discreto do génio, a linguagem natural da literatura. A grande literatura faz-se com a paciência laboriosa do inventário, com atenção e rigor máximo no pormenor”. Eis como um livro se mistura com a vida do leitor, e a biblioteca é a grande representação do mundo em que cada um de nós se insere. Tolstoi torna-se, assim, nosso companheiro. E lembramos Vargas Llosa a ensinar-nos que “devemos organizar a vida como se fossemos viver indefinidamente. De maneira que a morte seja como um acidente”. Assim a literatura e os livros tornam-nos participantes de um tempo eterno… “A literatura mudou o curso dos meus dias. Deu-me no mundo um conhecimento bem mais vasto do que as minha origens. Nem eu sei que espécie de vertigem explica a minha necessidade vital de cultura, dos livros próprios e alheios, do que mim se irmana ao ler e amar os livros dos outros e de ser lido e amado por eles”. E assim nos deparamos com a fascinante leitura de “Astronomia” de Mário Cláudio, em que as personagens não têm nomes: são os Pais, os Tios, as Criadas, o Menino, o Rapaz e o Velho. Assim, o leitor descrê do teor pessoal da leitura e fixa-se na ficção biográfica. A realidade e a imaginação misturam-se, e entramos de pleno no mundo de uma realidade que nos faz assumir a transição entre o sonho e o mundo concreto, como sombra de várias sombras.
E de súbito encontramos a criada de Herculano, convencida de que o historiador era um preguiçoso, por levar os dias sentado a escrever. Assim convivia com essas sombras míticas, projetando-as para além do tempo. No diário os temas sucedem-se, e o memorialista depara-se num passeio ao Sol de Inverno com um bairro novo cujas ruas têm nomes de escritores. Rua Vitorino Nemésio é paralela à de Jorge de Sena, e perpendicular à Alameda António Sérgio. Numa bela metáfora, os habitantes das estantes de uma biblioteca ocupam os espaço público. Tudo a partir da recordação do “poeta preclaro e secreto no seu género miúdo, prosador de luxo em várias frentes de escrita”. Temos, pois, o genial autor de “Mau Tempo no Canal” e dos contos magistrais de “O mistério do Paço do Milhafre”. E a escrita do diário flui, rápida e apaixonante. Depois de Nemésio, vamos ter com Raul Brandão e as suas “Memórias”. “Vê-se quando se fixa em testemunhos de bastidores. Não faltam motivos de interesse a prenderem-me à leitura desta obra sintomática: lá está o prosador emérito, tão subtil como expressivo, com uma linguagem dúctil e surpreendente, que nunca nos deixa indiferentes. Às vezes diz mais uma frase isolada do que alguns de nós em longos e amargos parágrafos”. E não se esconde a admiração por Aquilino, o sábio criador verbal que remexer fundo na linguagem e traz a superfície a nova língua portuguesa”.
Lembrando o seu tempo em terras de Espanha, o cronista afirma: “Pudesse eu ter meios para tanto, vinha viver aqui, podendo em Barcelona ser português, espanhol e catalão, em simultâneo, desde sempre, para sempre”. Há um sentido especial de grandeza, na arquitetura e no urbanismo, que nos aproxima de sermos ibéricos. Eu conheci melhor João de Melo nas andanças da Educação. Tive grande gosto em contar com a sua colaboração numa ideia com virtualidade indiscutíveis – usufruir da experiência dos escritores e artistas em itinerância nas escolas. Diz-nos João de Melo: “Fui um professor seguro da sua competência e dos seus deveres. E dos seus afetos. Revi nos alunos não a minha juventude mas a deles num país a abrir-se a novas práticas pedagógicas, novos direitos no exercício da experiencia escolar e democrática. A vida dividiu-me entre a docência e a literatura. Passei a ser o ‘escritor da Escola’”. A escola primária da Achadinha não se esquece e as raízes estão sempre presentes, entre mil afetos. Essa ligação à terra e à casa que o viu nascer e crescer é muito forte. A cada passo vem essa recordação intensa. Mas o escritor não esquece a imposição consumista do público e a influência desse modismo nos editores. “As editoras pedem-nos romances, só romances e nada mais que romances. Instalou-se de tal ordem esta ditadura do gosto sobre a condição literária, que tudo parece adverso e exige coragem, afinco, resistência ao lado da pequena minoria que frequenta a chamada short story e ainda dela se orgulha. Como eu”. E ainda esta mentalidade resistente sente-se quando o autor se rebela quanto ao conselho de poupar por não adquirir livros em papal, em benefício de obras no império digital. João de Melo partilha connosco pertinentes reflexões sobre o mundo contemporâneo. Não esconde preocupações com as tergiversações do Presidente Trump, com as estranhas cumplicidade com Putin e com a evolução da China: “Converteu-se o PC em conquistador do capitalismo dos outros. Não se percebe o que vai lá dentro, que regime é o deles com o partido único, um regime pouco ou nada comunista que catapulta sobre nós um imperialismo económico, algo de obscuro que nos vem de longe e de cima, lá de um alto a que não chega o orgulho europeu de cada pais, e menos ainda a união da velha Europa”. O Médio Oriente é também motivo de atenção. “Em Gaza morre-se por tudo e por nada. Morrem crianças, mulheres e gente velha só por isso: por existirem”. Por outro lado, “Ninguém sabe até onde irá Putin na sua sanha antieuropeia. O déspota do Kremlin começo a ameaçar-nos com as suas bombas atómicas. E com uma terceira guerra mundial. Morre gente tão boa, dia a dia – e o escroque sempre tão cheio de saúde e de veneno”. O perigoso mundo continua a rodar e as perplexidades vão-se acumulando, ao ritmo de um diário… É tempo de atenção e cuidado.
No encerramento das comemorações do segundo centenário do nascimento de Camilo Castelo Branco (1825-1890), a sua memória deve ser recordada.
Camilo Castelo Branco é um caso singular na literatura portuguesa. Foi o nosso primeiro profissional da escrita e assim se fez respeitar como um autor aclamado pelo público leitor. A sua produção literária, que continua a ser apreciada, chega aos nossos dias preservando a sua força essencial. Há uma considerável distância no tempo, mas no essencial é a compreensão do género humano que está em causa. É, assim, ilusório o debate clubístico entre os camilianistas e queirosianos. Estamos perante artistas da mesma arte, ambos com um nível excecional, mas dispondo de um perfil radicalmente diferente. Antes do mais, o percurso de vida do autor de Amor de Perdição é marcado por vicissitudes que o aproximam dos acontecimentos ocorridos em Portugal no dealbar do liberalismo constitucional, nas suas diferentes vertentes, resistência e incentivos, o que nos permite compreender quer as raízes profundas da sua inserção no país tradicional, quer o confronto com a lógica dos ambientes citadinos.
Camilo encarna, a um tempo, o país fiel às suas tradições e a sociedade que anseia modernizar-se. Veja-se como nos conflitos civis que abalaram profundamente os portugueses e no imaginário subjacente a tais contradições, Camilo faz opções genuínas, até divergentes, indo ao encontro de sentimentos profundos que procuram seguir não só uma continuidade histórica, mas também a consciência popular. Lembremo-nos das apreciações sobre o movimento da Maria da Fonte, verdadeiro levantamento de um conjunto de amazonas de tamancos, tornado vivo nas memórias do Padre Casimiro, no ano de 1846, onde uma certa saudade articula as componentes paradoxais desse estranho episódio, que constitui matéria-prima para um fecundo manancial romanesco. Dir-se-ia que a reminiscência miguelista, já enterrada há mais de uma década, renascia num outro tempo e num outro contexto, apesar da demarcação evidente, para reconstruir a sociedade nova de constitucionalismo liberal. E assim, concordamos com Hélia Correia quando nos diz que Maria da Fonte sobressai, aliás, no conjunto da sua obra pelo modo seguro, diríamos, convicto, diríamos sincero, com que o autor reúne os seus conhecimentos, as inflexões de estilo, as gradações de orador apaixonado que ora ironiza, ora vitupera, ora se indigna, para com este texto servir a causa do progresso, do liberalismo, do espírito científico” (Prefácio a Maria da Fonte, Ulmeiro, 1986, p. 14). E aí deparamo-nos com o formal desmentido da lenda que circulara, e que alimentara, de que fora lugar-tenente de Mac-Donell. Já quando lemos A Brasileira de Prazins deparamos com os ingredientes fundamentais do panorama social, a consideração das contradições políticas e sociais, com a chegada de um falso D. Miguel e a exigência de reparar naquela sociedade um compromisso social que obrigaria a encontrar novos caminhos. E Camilo Castelo Branco é autor e consequência de tudo isso, e sente no íntimo de si os movimentos subterrâneos da comunidade, centrífugos e centrípetos, que constituem fundamento de um panorama narrativo inesgotável.
O romancista compreendia bem que não é possível entender o teatro humano sem referências históricas. Nesse sentido, quem melhor conhece Camilo sabe que era um bibliófilo com provas dadas e que o estudo da História foi sempre uma constante da sua vida intelectual. Por exemplo, Oliveira Martins tinha especial admiração por Camilo e considerava o parecer do romancista como marca de grande rigor, quer quanto ao conteúdo quer à formulação e ao idioma. Sabemos mesmo que no caso da História de Portugal o historiador procedeu a correções ou precisões a partir da opinião camiliana, já depois da publicação da primeira edição da obra. E o certo é que estamos perante um exímio leitor e um criterioso crítico. É exemplar o modo como presenciamos a integração dos textos na matéria e no período a que dizem respeito. O profissional da escrita surgia assim como um executor exímio da sua arte e um mestre artífice disponível para partilhar com outros que ele respeitasse os seus conhecimentos e as fontes de que dispusesse. A feitura da História de Portugal constitui exemplo sobre como o autor constrói as suas obras. Os elementos disponíveis que chegaram aos nossos dias não mostram a versão original da obra, que se terá perdido nas andanças tipográficas, mas permitem tomar contacto com uma cuidada e meticulosa intervenção do escritor, em especial na revisão e nos acrescentos a que procede. Como diz Eduardo Lourenço, dando sequência à leitura camiliana: «num século tendencialmente positivista, Oliveira Martins é ao mesmo tempo hiper-racionalista e intuicionista. Ou mesmo mitólogo. […] Sobretudo, num tempo genericamente eufórico e culturalmente humanista a ele propõe — a meio caminho entre Schopenhauer e Nietzsche — uma espécie de pessimismo não niilista, mas trágico pelo papel que confere aos indivíduos e em particular aos representativos — de responder à Fatalidade em termos de vontade e de energia, introduzindo assim o humano, mesmo se precário ou vão, no não humano». E o romancista afirma que “nesta História de Portugal há a largura dos grandes aspetos sociais dados a factos que pareciam pequenos e escurecidos em meio de outros mais característicos”. O historiador generaliza luminosamente “com uma grande harmonia de plano organizador, agrupando factos desconexos talvez com a cronologia, mas moral e politicamente harmónicos. Em poucos traços essenciais resume-se um período de história, uma anedota, um caso despercebido e sem o selo de notável importância sociológica, tratado (…) consoante o modo familiar de Taine, abre-nos a porta da vida íntima de uma época”, juntando ironia e realismo. E se um crítico disse que a História se lia aprazivelmente como um romance, o certo é que tal não pode ser levado à conta de um demérito. De facto, e esta História lê-se devagar e atentamente, devendo ser melhor entendida e apreciada por aqueles que houvessem colhido uma imperfeita, senão falsa, compreensão da vida portuguesa no estudo das crónicas. E Camilo não se impressiona com as quebras eruditas, já que na obra no seu todo prevalece a argúcia crítica e a visão do conjunto e do fundamental. E assim descobrimos no genial romancista o leitor atento do poderoso cultor da História com compreensão do essencial das personagens e dos acontecimentos. Camilo Castelo Branco está vivo na sua obra e no seu testemunho. Olha-nos ainda com intuição extraordinária, e não o esquecemos.
A Escritaria de Penafiel homenageia este ano Maria do Rosário Pedreira e a sua obra.
«Os meus livros são quase sempre terapêuticos. Quer os romances quer os livros de poesia correspondem sempre a momentos em que preciso tirar de dentro de mim coisas que me estão a fazer bem. O romance “Alguns Homens, duas Mulheres e Eu” (1993) correspondeu a uma morte na minha família, a primeira ‘importante’ e pesada. Acho que precisei escrever esse livro para poder falar dessa morte com outras pessoas, que também não eram capazes de falar. Um romance é uma coisa muito exigente. Como dizia uma famosa escritora, num romance os personagens levantam-se connosco de manhã e deitam-se connosco à noite. Eles não nos abandonam um único minuto do romance, enquanto estamos a escrever o romance. O mesmo não acontece com a poesia. Um poema pode-nos ocupar uma semana, mas nunca ocupará três anos”. Quem o diz é Maria do Rosário Pedreira dando-nos um sinal de sinceridade, de exigência e de rigor não só na criação literária, mas também numa espécie de cidadania cultural, que nos obriga a olhar a literatura como um modo de participar na emancipação da humanidade. De facto, quando se recria a vida participamos num esforço vital de nos assemelharmos ao Criador das religiões. Fazemos reviver o “Deus ex Machina” que nos coloca na situação singular de encararmos o mundo da vida não como um lugar de determinismos, mas como um horizonte de liberdade em que cada um de nós procura encenar condições para podermos ser melhor libertando-nos de um cego fatalismo.
Vivendo numa sociedade imperfeita, temos sempre a nosso cargo a tarefa de nos tornarmos melhores, através do respeito mútuo e da liberdade. O livre arbítrio é assim a matéria-prima do romancista mesmo que condene as suas personagens a seguir um qualquer determinismo. Com efeito, o romancista tem a possibilidade de recompor a realidade num diálogo entre ele, as pessoas que cria e o mundo que o cerca. Todos estes ingredientes estão sempre presentes na criação romanesca. Considerando o caso de Maria do Rosário Pedreira, a obra da poeta, da romancista, da ensaísta e da editora, ou seja, descobridora de novos talentos literários, liga-se intimamente à capacidade de desassossegar os espíritos em nome da atenção e da aprendizagem da vida. Ouvindo-a, cada passo, a autora apresenta uma coerente preocupação com o superar da mediocridade e da indiferença. Assim afirmou há pouco: “as redes sociais, como dizia Umberto Eco, deram voz a todos os imbecis e portanto hoje toda a gente acha que pode publicar um livro”. Ora, deste modo, torna-se fundamental considerar a necessidade de ultrapassar o corriqueiro. Para tanto, importa ler, e ler melhor. Só poderemos ser anões aos ombros de gigantes, se soubermos considerar a qualidade da diferença. Compreendemos que a leitura significa o contacto e o conhecimento de quem nos antecedeu – a memória significa entender o movimento da vida, o que recebemos e o que transformamos, naquilo que Edgar Morin considera ser a metamorfose como a ligação complexa entre a raiz e a utopia. Desde onde provimos até ao horizonte de exigência para sejamos melhores.
«Desde muito cedo que escrevo poesia (diz-nos a escritora) e, portanto, diria que é a minha forma presencial de comunicar as coisas que preciso tirar de dentro de mim. Devo dizer que me sinto muito mais criadora a partir do que me é dado, do que uma criadora a partir do zero». No entanto essa tábua rasa não existe. Daí recordar que a literatura em todos os tempos “fala basicamente de duas coisas: o amor e a morte”. Por isso, não seria precisa muita coragem para falar de amor, que engloba todos os desejos… Há um poema, em “Nenhum Nome Depois” (2004), que é bem revelador do grande mistério da comunicação poética de Maria do Rosário Pedreira – o encontro entre a memória e o desejo. Dir-se-ia que a solidão reclama o encontro impossível. “Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante / o sono – a ausência não te apaga como a bruma / sossega, ao entardecer, o gume das esquinas. Há nos / meus sonhos um território suspenso de toda a dor, / um país de verão onde não chegam as guinadas da morte e todas as conchas da praia trazem pérola. Aí / nos encontramos para dizermos um ao outro aquilo que pensámos ter, afinal, a vida toda para dizer; aí te / chamo, quando a luz me cega na lâmina do mar, com / lábios que se movem como serpentes, mas sem nenhum / ruído que envenene as palavras: pai, pai …”. É o grande enigma da memória que aqui se apresenta. A solidão e o amor reclamam que a impossibilidade do encontro dê origem à revelação pela palavra da grande ausência, pois “o pesadelo é a vida onde já não posso dizer o teu nome”.
Escritora multifacetada e fecunda, encontramo-la na literatura juvenil, que captou muitos novos leitores, mas também na pedagogia, até na divulgação científica, e em tudo o que os livros podem revelar. Aliás, ao ouvirmos as suas palavras cantadas na boca de Carlos do Carmo, de Aldina Duarte, de Ana Moura, de Carminho, de António Zambujo ou de Salvador Sobral, podemos entender que elas vão-nos ensinando sobre a essência lírica do fado de Lisboa, que com o tempo deixou de recordar desventuras, para poder ir ao encontro da lírica ancestral…
Esta semana, Ruben A. estará presente na Fundação Gulbenkian, com apoio do Centro Nacional de Cultura e da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa num debate que promete muito intitulado “O Incrível Ruben A.”
“A Torre da Barbela” (1ª edição, 1964) é uma obra-prima barroca desconcertante, no melhor sentido etimológico das palavras. O uso do verbo e do enredo é muito exigente e só um historiógrafo experimentado poderia ter lidado, como lidou, com o anacronismo com tanta inteligência e sem despropósito. Tudo começou na Casa de Esteiró (Caminha), com Maria do Patrocínio e José Manuel Villas-Boas, quando estes “contaram a história virtuosa de duas irmãs, da casa de Sestêlo, que, cansadas de uma longa vida de oração e prática de virtudes, resolveram pecar”. Pouco antes da morte, “confessaram ao Abade de Moutosa que não queriam entrar no Purgatório de almas lavadas”. Por que motivo? “Se assim o fizessem, seria grave ofensa às almas que lá estavam penando”. Pecar seria, afinal, um último ato de virtude – “só assim continuava no outro mundo o seu exemplo de modéstia e humildade”. Ruben A. pegou no tema, desenvolveu-o imaginosamente e criou uma trama fantasmagórica, onde a História pátria surge recontada num exercício onírico, a partir de conversas, comentários, encontros e desencontros de pessoas do reino dos mortos.
“Ao fim da tarde, antes do crepúsculo cantar as suas loas e sem se descortinar a realidade, apoderava-se da Barbela um sentido incógnito da existência”. A torre medieval era um antro de acontecimentos fantásticos. “Existissem ou não estrelas, fosse breu ou luar a jorros pelos campos marginais, o mundo abria-se dividindo o tempo”. Numa palavra, “os Barbelas realizavam-se vindos do sonho e da fantasia para os reais domínios da Torre”. E esse ressuscitar transfigurava a torre. “A procissão saía a pé ante pé dos túmulos de pedra, dos sarcófagos egípcios - trazidos por Dom Payo da Barbela, quando das suas incursões por terras do Prestes João – e também da vala comum”… Ah! Havia um “caseiro papagueando frases”, sobre esses distantes Barbelas, desde Dom Raymundo (que se crê tenha sido “o primeiro grande home da família da Torre”), coevo de Dom Afonso Henriques, seu primo colateral. São 350 páginas de imaginação delirante e de um humor muito fino, capazes de nos explicar limitações ancestrais. Cavaleiros verdadeiros e falsos, honra e prosápia, beatos e hereges, força e decadência, deparamo-nos com de tudo um pouco, até àquele limiar da aurora em que todo esse mundo tinha de regressar ao encanto da imobilidade. O Cavaleiro, Madeleine, Dom Raymundo, Frey Cyro, Dona Mafaldinha, Urraca, Dr. Mirinho… “Os Barbelas, ao aproximar do dia, a vidência da luz, apareciam também humanos na sua imortalidade noctívaga, no reino absoluto impenetrável das suas relações, eles tinha de voltar à morte”. E quem tenha querido passar o umbral proibido que separa a noite do dia, obteve a pena capital do esquecimento. “Desapareceram. A história do seu anonimato está por contar”. Quantos rumores nossos se ouvem na história dessa Torre…
Numa palavra, este debate promete muito, porque Ruben A. teve uma vida plena de reflexão e de ação persistentes sempre em prol da cultura como realidade viva e uma especial atenção ao património cultural, material e imaterial, natureza, paisagem, tecnologias e criação contemporânea. Longe de uma ideia retrospetiva, estamos perante um conceito aberto e dinâmico virado para o futuro, para que se preserve quem somos, donde vimos, para onde vamos.
«Nuno Júdice – O Prazer das Imagens» é uma exposição que tem lugar no Museu de Portimão com curadoria de José Gameiro, Manuela Júdice e Filipa Leal e evoca a relação entre o poeta os Museus e as grandes obras de arte. A mostra foi inaugurada no sábado dia 20 com a presença de Guilherme d’Oliveira Martins.
Graça Morais, Júlio Pomar, Jorge Martins, Rui Chafes, Manuel Amado, Duarte Belo e os franceses Bernard Cornu, Colette Deblé e Julie Ganzin, são alguns dos artistas presentes nesta exposição, que inclui poemas inéditos de Nuno Júdice e depoimentos do ator e encenador Luís Miguel Cintra ou de Donatien Grau, Conselheiro da Presidência do Museu do Louvre, para os programas contemporâneos. Igualmente serão exibidos os filmes - documentários “Eco, Nuno Júdice”, de Rita Féria e Teresa Júdice da Costa e “Nuno Júdice, 3”, do Arquivo-RTP, gravado no Programa “Com Todas as Letras”, de agosto de 1975 coordenado por Eduardo Prado Coelho, Manuel Alberto Valente e Manuel Costa Silva.
Ao regressar de Portimão de um encontro fugaz com tantos amigos, recordo o poema “Estrelas”, publicado em Pedro Lembrando Inês, que exprime um sentimento de gratidão para com o Algarve, a saudosa terra que Nuno definia como o lugar que afirma as pequenas marcas do seu carácter único. “Desfaço nas mãos, os figos / fugazes de setembro, enquanto o seu leite / escorre pelas folhas verdes que / os envolvem. Esses figos, que me traziam / em cestos de vime, eram mel na boca / que os saboreava. Secos iam parar / aos frascos fechados para o inverno, de onde / os tirava para meter no bolso, / antes de sair. ‘O que tens aí?’, perguntavas-me. E /eu passava-te para a mão um desses figos, e via / como o abrias, chupando os seus grânulos, / e passeando na boca a amêndoa que / o recheava. Onde estarás ?, pergunto. Poderia / ainda hoje partilhar, contigo, um / desses figos do inverno? Ou o seu leite secou, / nos cantos dos lábios, roubando-te / as palavras, e o húmido murmúrio / do amor?”. Num tema aparentemente tão simples, está toda a grandeza do poeta e da sua atenção. Nuno Júdice seguiu o melhor lirismo, que vem dos trovadores, que se desenvolve nos grandes cancioneiros e culmina na herança inesgotável de Camões e em tudo quanto se lhe seguiu. Um pormenor do quotidiano, o figo, maduro e seco, e o diálogo da amizade e do amor são ingredientes indispensáveis à compreensão da vida. António Carlos Cortez publicou Um Canto na Espessura dos Textos – Leituras da Poesia de Nuno Júdice (D. Quixote, 2024). Encontramos aí a expressão viva, do que para o poeta é mais do que um balanço ou do que uma homenagem. Trata-se da demonstração da relevância de uma figura maior da nossa literatura, em confronto com os nossos maiores. Afinal, a justa projeção internacional que Nuno Júdice alcançou corresponde a muito mais do que uma afirmação individual, tratando-se de uma fecunda manifestação da cultura da língua portuguesa além-fronteiras.
UMA POESIA BEM VIVA! Ouvimos o discurso direto do poeta: “Quando começo um poema nunca sei para onde estou a ser conduzido. Há muitas formas de encontrar linha de desenvolvimento, umas vezes lógica, outras mais contraditória ou paradoxal, mas o que é comum é o modo como o poema se fecha a si próprio, quase sempre de uma forma inesperada que surpreende através de várias formas, desde a ironia até esse encontro como o que posso chamar uma transcendência que obriga a ler o poema e a reinterpretá-lo. O que importa é a surpresa no final, que subverte ou transforma o que vinha antes”. De facto, para o autor não pode haver Poesia sem passado e sem memória. Todavia, a memória não vem apenas da experiência pessoal, mas de uma poesia perene, dos poemas lidos, das situações próprias, mas também da partilha de experiências. E então a memória reinventa-se, como na genial lição de Eduardo Lourenço, na revisitação de Fernando Pessoa sobre a falsa influência de Walt Whitman na “Ode Triunfal” e a verdadeira repercussão do americano em Caeiro, numa inversão de termos, que reinventa a unidade da criação poética de Pessoa…
“O título é a última coisa que aparece quando estou a compor um livro (diz ainda Nuno). Tem de conter em simultâneo uma síntese, mas também a forma como vou distinguir um livro de outro, encontrando essa ‘personalidade’ que o distingue”. E se falamos de passado e de memória, importa enfatizar o necessário diálogo com as diversas artes. As experiências de Berna e de Paris, presentes nesta mostra, permitiram ao poeta desenvolver uma relação forte com a pintura, os museus, os artistas com quem conviveu, os livros de arte que escreveu, de Manuel Amado a Graça Morais, de Jorge Martins a Júlio Pomar, que conferiram à poesia de Nuno Júdice um lado visual, que se tornou paradigmático. Como disse ainda: “Não há poesia sem imagem, tal como não há poesia sem ideia (embora no meu caso a filosofia seja algo mais interrogativo do que explicativo)”. No fundo, para Eduardo Prado Coelho, estamos perante um poeta da imaginação, não se considerando neorromântico nem surrealizante. É verdade que há, sem dúvida, a imaginação, mas também “uma razão que inscreve essa imaginação não num plano delirante (…), mas numa dimensão que vai buscar uma lógica nem sempre previsível no início do poema para criar uma surpresa e uma transformação na forma de ver a realidade”.
O CULTO DA PALAVRA POÉTICA “Desde o início que o poema longo faz parte da minha poesia. Isso deve-se à leitura de Campos, de Caeiro, de um Eliot ou de um Pound, mas também de poetas franceses como Saint-John Perse. E resulta de uma necessidade que, nesses anos 60, senti de transformar a escrita poética numa forma de narrativa, ou conto (o Jorge Luís Borges é essencial nesse processo)”. Há aí, assim, a rejeição da poesia formalista, que se empobrece e esgota no processo da sua invenção… Nesse ponto Antero de Quental e Fernando Pessoa têm um papel fundamental. Antero reconcilia-o com o soneto, e reforça a força da ideia e do pensamento que sempre atraiu Nuno Júdice. Pessoa transforma a poesia em ficção e o final de Antero corresponde a uma transformação ficcional “naquele banco onde se suicida de uma forma perfeitamente encenada”. Deste modo, “memória, imaginação e ficção são partes essenciais da criação poética, mas se na sua origem não se encontra uma experiência, uma relação próxima com a realidade, o poema soa a vazio, a falso”. E o certo é que a poesia se torna não só uma forma de resistência, mas também de sobrevivência. E Nuno Júdice considera-se beneficiário de um privilégio – “nasci em Portugal e o país pese a essa tendência masoquista da nossa ‘inteligência’ para nos autodestruir, é uma exceção que permite respirar um pouco melhor quando olhamos o mundo. E tem uma grande história literária e paisagens e espaços únicos”… Essa é a natureza viva que constitui matéria-prima de um autor de exceção, cuja descoberta é ainda inesgotável.
“Igualdade – O Que é e Porque é tão importante” de Thomas Piketty e Michael J. Sandel (Presença, 2025). Os autores interrogam-se sobre o que poderemos fazer neste tempo de instabilidade política e crise ambiental. Com efeito, deveremos dar prioridade ao reformismo social.
A democracia afirma-se pela capacidade de corresponder aos valores e interesses dos cidadãos livre e iguais em dignidade e direitos. O reformismo não significa cair na tentação de construir a sociedade concebida na mente de Júpiter, mas compreender a importância do método gradualista, baseado na vontade determinada em sermos melhores. Como Estado de Direito, a sociedade tem de se basear no primado da lei, na legitimidade do voto, na separação de poderes, no exercício do bem comum e na justiça como horizonte de valor. As reformas são necessárias, devendo basear-se na confiança e na coesão. Por isso, mais do que movimentos súbitos ou gestos espetaculares, exigem um trabalho persistente que permita ver longe e largo, evitando que os ciclos eleitorais correspondam a gestos avulsos, a hesitações e a mudanças reversíveis. As principais reformas são duráveis e sujeitas a aperfeiçoamentos constantes, e não devem submeter-se a lógicas redutoras ou economicistas.
Para um Estado Antigo como o português os cuidados devem ser redobrados, lembrando-nos da lição do cronista Diogo do Couto que assinalava dois erros comuns – o querer mudar tudo quando se chega e a incapacidade de concretizar mudanças coerentes por falta de planeamento, de continuidade e de capacidade de organização. A lógica de limitar os meios disponíveis tem efeitos nefastos, do mesmo modo que a tentação da autossuficiência e a recusa do espírito de equipa e da partilha de responsabilidades. De facto, a experiência é madre de todas as cousas, pelo que o reformismo é necessário, como mobilização de energias e como criação de um movimento capaz de melhorar o funcionamento das coisas. “A política não é a arte do possível. É a arte de tornar possível o necessário”. A afirmação do Presidente Fernando Henrique Cardoso merece ser recordada. Lembramo-nos do Plano Real no Brasil há cerca de trinta anos e verificamos que os resultados positivos só se tornaram duráveis pela preparação cuidada, pelo planeamento rigoroso, pela reunião dos melhores e pela criação de um discurso mobilizador do cidadão comum. O reformismo para ser real necessita de objetivos e metas, do mesmo modo que não deve ser autoelogioso antes de produzir resultados. Assim como o Plano Real só poderia ter sucesso se todos entendessem que era uma questão de sobrevivência, qualquer reforma é mais importante pelos resultados do que pelas intenções. Daí a recusa do improviso e da tentação das soluções milagrosas. Há naturalmente nuvens e incertezas no horizonte, mas fica uma lição fundamental, reformismo e democracia têm de se ligar intimamente como um desígnio nacional.
O tempo e a reflexão, o conhecimento e a sabedoria têm de caminhar juntos com método, antevisão, respeito mútuo, transparência, pluralismo e rigorosa avaliação dos resultados obtidos. Não me cabe nesta tribuna julgar de antemão soluções propostas que exigirão sempre o balanceamento do plano proposto e dos resultados obtidos. É, no entanto, importante que o espírito de reforma, qualquer que seja, obedeça a um plano estratégico, nunca a meras ideias gerais ou impressões. Não devem, pois, ser feitos julgamentos superficiais apenas baseados em ideias vagas. Aí o erro equivale-se. A ponderação de uma reforma obriga a conhecerem-se as razões e os fundamentos, bem como as condições práticas para a sua realização. Um velho mestre de Direito dizia-me que da discrição e da rigorosa ponderação dos meios depende o sucesso da reforma. Uma reforma no papel sem realização será sempre uma ilusão. Poderia dar outros exemplos, falo apenas de dois domínios: a ciência e a tecnologia e a cultura. Lembro a ação do meu amigo saudoso José Mariano Gago e os resultados reconhecidos internacionalmente. Sei que se estivesse connosco não lhe ouviríamos nenhuma consideração imponderada. Esperaria para ver e sobretudo contribuiria para que a evolução fosse positiva no tocante a melhorar a política científica, nacional e internacionalmente. Sei qual era o seu método e foi este que permitiu um balanço tão positivo da Fundação para a Ciência e Tecnologia, da sua evolução e das suas perspetivas presentes e futuras, em articulação com a inovação e a vida económica.
Já no tocante ao Plano de Leitura Pública e à Rede de Bibliotecas Escolares uso a mesma metodologia. Importa compreender o extraordinário trabalho realizado e os resultados obtidos, que não poderão ser esquecidos ou menosprezados. Não se esqueça que, à semelhança do que ocorre no domínio científico, o caso português é reconhecido internacionalmente como exemplar. As bibliotecas escolares, que bem conheço, são referências de estabilidade e de articulação da escola, da família e da comunidade. Quem conhece estes extraordinários centros de recursos sabe que é a Escola do Século XXI que aí se desenvolve, em termos que constituem motivos sérios de orgulho entre nós. Longe de qualquer ideia de conservação, falamos de verdadeira aproximação das comunidades escolares, em lugar de qualquer estatismo ou burocracia. Por isso, tem de haver uma especial cautela no sentido de evitar a centralização por congregação de várias entidades que poderão pôr em causa a autonomia e a proximidade entre a escola e a comunidade educativa. Longe da abstração, do que falamos é da metáfora da biblioteca como símbolo da sociedade criativa, livre e responsável. Os livros, os novos instrumentos de comunicação e de conhecimento, a consideração do património cultural como realidade viva (de que é exemplo a Convenção de Faro, em que Portugal foi e é pioneiro no Conselho da Europa) constituem fatores essenciais de modernização e desenvolvimento. Não importa dizer muito mais, quando se pretende valorizar um são espírito reformista, que a sociedade portuguesa tem de desenvolver, distinguindo o que une e o que distingue, havendo que separar o durável e o passageiro, o que é transversal e o que é marginal. Há um novo tempo que se abre e que apenas terá resultados positivos se o reformismo se não confundir com certezas ou com ressentimentos que apenas geram a incapacidade de avançar. É nesta perspetiva que Picketty e Sandel apresentam a necessidade de compatibilizar a liberdade e a igualdade.
Mário Cláudio acaba de publicar “Cruzeiros de Inverno” (D. Quixote) que acompanha os dias finais de três personagens, procurando, de modo impressivo, revelar-nos as razões que acompanharam tais destinos.
Carlos Loureiro Relvas foi o segundo filho de José Relvas, o político republicano que proclamou em 5 de outubro de 1910 o novo regime da varanda dos Paços do Concelho de Lisboa. Nasceu na Golegã em janeiro de 1884 e frequentou em Leipzig o Curso Superior de Piano, vindo a tornar-se um intérprete dotado com um futuro promissor. A partir de 1911 acompanharia seu pai na gestão agrícola da Quinta dos Patudos, deixando assim a carreira de pianista profissional. A célebre Casa de Alpiarça está marcada, assim, pela sua fatídica presença, que constitui a base da primeira novela deste livro, uma vez que foi aí que o protagonista pôs termo á sua vida em condições misteriosas. “Sentado ao lado do pai, mas cada qual à sua secretária, Carlos Loureiro Relvas trilhava, com a segurança possível, a correspondente fortuna, o caminho da gestão de propriedades. Despachava além disso as diligências de que o progenitor o incumbia no respeitante à compra, à venda, ou à troca das antigualhas da prestigiosa coleção”. No entanto, isso era muito pouco, numa sucessão de gerações célebres: Carlos, avô e notável fotógrafo, o grande agricultor; o pai, o ícone da República nascente, diplomata celebrado, sombra que desejava marcar o futuro do filho. Sente-se a pressão paternal, algo doentia, sobre o jovem ex-pianista. Teria de arrumar-se e um casamento arranjado haveria de garantir a continuidade da dinastia. No espírito do jovem, porém, ouvem-se os acordes dramáticos da “Gôndola Negra” de Liszt. Todavia, “com o casamento previsto do ex-pianista o compositor ficaria liquidado, cadáver dentro de um piano silencioso, convertido em múmia que proferiria a sua maldição pelo abandono a que fora votada”. A correspondência de Carlos com o capitão Francisco Almeida Moreira revela o drama íntimo e a incompletude. E a catástrofe de 14 de dezembro de 1919, o tiro fatal que lhe atingiu o coração, deixou um nebuloso enigma. “A bala não lhe atravessou a têmpora, a punir o cérebro que pensara demais, mas varou-lhe o coração, a ordenar a fuga a um destino de contínuas palpitações”…
O segundo relato, traz-nos a memória de uma mulher extraordinária, cujo nome está assinalado na frontaria da casa da Calçada dos Caetanos onde viveu e morreu, que alberga um número extraordinário de recordações célebres, como não há mais em Lisboa. A “Menina Sentada” constitui o centro desta obra de Mário Cláudio. Ofélia Marques é o símbolo. Se Carlos Loureiro Relvas não foi indiferente aos “Ballets Russes”, que alguns viram com distância, a jovem artista participou ativamente nesse movimento imparável de renovação da Arte que invadiu a Europa e de que “Orpheu” fez parte integrante. Quando se descobre o conjunto da obra de sua autoria, desde as referências infantis até ao humor acutilante, passando pelos autorretratos, pela feminilidade sensual, além de um especial afeto pelos gatos, apercebemo-nos de uma sensibilidade única. Foi pioneira na frequência da Universidade e a sua relação com Bernardo Marques constitui uma referência no segundo modernismo. Na vizinhança de Fernanda de Castro e de António Ferro, aí existiu o “Soviete dos Caetanos”, como ficou conhecido esse ponto de irradiação cultural. No local de tantas alegrias e cumplicidades, ocorreria a morte trágica da menina artista, cujas ilustrações povoavam o “Panorama” e as revistas femininas, como a “Eva”, mas também as publicações infantis, como o “Abecezinho”. Chamada à pressa numa manhã habitual, a amiga subiu a escada sobressaltada e compreendeu o drama sem o entender: “Alguns dos gatos que a finada estremecia, e a que devotava cuidados patentemente maternais, enroscavam-se à volta da senhora imóvel (…) Fernanda de Castro tomou sentido do frasco desarrolhado, e do copo com um fundo de líquido, na mesinha-de-cabeceira e apropriou-se da droga com um rápido gesto, de quase cleptómana…” O médico legista escreveria na certidão de óbito, motivo da morte: ingestão de excesso de barbitúricos. Quando usufruímos dos desenhos gentis de Ofélia e Bernardo Marques não adivinhamos esse final pungente. Contudo, desde que o casal se separara, já Fernanda de Castro notava naquele segundo andar um clima de luto. Morta a artista, seguimos o relato do romancista de uma tentativa de reunir o seu espólio. E adivinha-se a própria existência de Ofélia. “A pintora divide-se assim entre as amigas do piso de baixo, frequentando-lhes as reuniões com fidelidade que roça a tristeza, e o grupo dos companheiros de Bernardo Marques, movendo-se num gregarismo menos difuso, e mais saudável. Proíbe-se de lhe relatar as surpreendentes extravagâncias, e as delícias imprevistas, dos encontros do andar inferior”. Aquele gineceu constituído por cultoras das letras e artes era um lugar de culto da poesia… Ofélia não se recompôs da separação de Bernardo, havia mil recordações e o vazio da maternidade. O tempo era inexorável. Um dia acreditou vislumbrar a mulher com quem Bernardo se casara. Todavia, “a outra não reparou, e de volta a casa, recomposta já, Ofélia subiu devagar os degraus, entreouvindo a recitação das estrofes, e o tinido das chávenas, nos aposentos da poetisa. Uma das gatas parira entretanto, e a pintora ajoelhou, a dispensar à bichana os cuidados, e a agradecer a Deus a preciosa dádiva”. Na noite fatal, numa manhã gelada de Dezembro, deixou duas cartas, uma para a irmã, recomendando-lhe os gatos, e a outra para o Bernardo de outros tempos: “Neste momento quero viver vinte anos atrás, se a imaginação me não atraiçoar”.
Hécate é a divindade grega dos mistérios e do submundo. Os cães são seus fieis servidores. A terceira novela está envolta de incerteza. Um velho Ministro, de existência real, está preso de um amor impossível, de alguém irremediavelmente condenado por uma doença fatal. O destino marca-o definitivamente. Apesar de ter sido influente, com um lugar indiscutível na História, com os louros de abrir o país ao mundo, vê-se no exílio perseguido pelos fantasmas de um labéu infamante e de um destino cruel. “Derrubou-o então a notícia da morte da noiva eterna, ocorrida na assética arrecadação de corpos para que alguém a despachara”. Isso condenou-o definitivamente à ausência de um sentido. E não há forças que permitam reerguer-se. Um quadro de Chagall fixa a atenção do antigo Ministro, “Les Amoureux de la Tour Eiffel”, que inspirará o seu ato final. Lançado no vazio, “saudoso do anjo impossível, bate no pavimento como demónio que jamais ganhará o Paraíso”.
Ler Teixeira de Pascoaes nos dia de hoje é lembrar que o século XX português é ricamente multifacetado. Se Fernando Pessoa se tornou um símbolo, a verdade é que apenas é possível compreender a essência do português lendo os dois e confrontando-os com Raul Proença. Só uma visão de conjunto permite encarar a cultura portuguesa como plural e aberta, buscando o seu sentido universalista.
Voltamos a encontrar Teixeira de Pascoaes como o inesgotável poeta que soube unir a lírica e a tragédia, como disse Unamuno. Nascido a 2 de novembro de 1877, dia marcado pelos astros, na freguesia de São Gonçalo de Amarante, morreu a 14 de dezembro de 1952 no Solar de Pascoaes em Gatão. Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos era filho de Carlota Guedes Monteiro e de João Pereira Teixeira de Vasconcelos, deputado às Cortes por Amarante e agricultor de boa fazenda, inesgotável conversador e conhecedor profundo das raízes culturais da língua e do povo. O filho era "homem cabisbaixo, sisudo, com uns olhos tristes e espantados", que fez o curso oficial no Liceu de Amarante, onde teve os seus primeiros versos publicados no "Flor do Tâmega", partindo em 1896 com 18 anos, para Coimbra, para cursar Direito. Ainda vivendo nas margens do Tâmega, com 17 anos, publicou no Porto "Embriões" (1895). E em 1896, já a estudar em Coimbra, editou "Bello", "Sempre" e "Terra Proibida", onde Jacinto do Prado Coelho nota “a imaginação do abstrato, o sentimento religioso das coisas, que tornariam inconfundível a sua poesia”. Convive com Augusto Gil, Afonso Lopes Vieira, Fausto Guedes Teixeira e João Lúcio, mas não vive a boémia coimbrã, já que, segundo Jacinto do Prado Coelho, «o verdadeiro amor de Pascoaes dirigia-se à natureza, ao silêncio, ao mistério, aos fantasmas. O mundo fantástico era o seu mundo." Em Amarante, começa a exercer advocacia, sem entusiasmo. Em 1906, abre escritório na Cidade do Porto, onde conhece Leonardo Coimbra, Raul Brandão, Jaime Cortesão e António Patrício. Em 1911, é nomeado juiz substituto na comarca de Amarante, cargo que abandonará, refugiando-se na Casa de Pascoaes, lugar de eleição, buscando uma vida solitária e sem sobressaltos, em sintonia com a Natureza, escolhendo "só ser poeta". Depois de 5 de outubro de 1910, com a proclamação da República, participou ativamente na ideia de ressuscitar a Pátria, preferindo a ideia de Renascença, arrancando-a do túmulo da obscuridade física e moral “em que os corpos definharam e as almas amorteceram”. Assim, Pascoaes dirigirá a revista "A Águia," entre 1912 e 1916, à frente de um grupo de intelectuais portuenses, sob a bandeira da “Renascença Portuguesa”, no qual se distinguem António Carneiro, Leonardo Coimbra, Jaime Cortesão, Álvaro Pinto e Mário Beirão. Debate com Raul Proença a natureza do projeto, e opta por uma ideia centrada no sentimento, enquanto o seu interlocutor aposta numa lógica prospetiva. A ideia de saudosismo, de uma saudade feita de lembrança e desejo, tornava-se urgente, até porque havia sido agravada pela humilhação do Ultimato inglês de 11 de janeiro de 1890. De algum modo, Pascoaes é um herdeiro da Geração de 70, na sensibilidade final de Junqueiro, procurando dar ao progresso geral da humanidade e da natureza uma orientação natural e positiva através da História, elevando à contemporaneidade o culto da saudade e da sua essência espiritual, como encontra arreigado na literatura lusitana, desde os trovadores, de D. Duarte ou de Bernardim, mas também de Francisco Manuel e Garrett.
O saudosismo não é, porém, marca única de Pascoaes. Veja-se, por isso, a relação do poeta de Amarante com os seus contemporâneos, segundo Onésimo Teotónio de Almeida. «Fernando Pessoa viu em Pascoaes uma “gravidez do Divino” e adotou várias facetas da sua visão ao elaborar o projeto da Mensagem». E António Sérgio distinguiu em Pascoaes sempre o poeta das ideias mítico-filosóficas. Tratando-o sempre com dignidade. Quase quarenta anos após a polémica do saudosismo, a Academia de Coimbra homenageou Teixeira de Pascoaes através de um volume reunindo poemas e estudos sobre o autor de Marânus. O organizador do volume, Joaquim de Montezuma de Carvalho, convidou António Sérgio a participar e este acedeu prontamente, para não faltar numa homenagem “tão justa”. Se tinha levantado reparos ao nacionalismo estético-psicológico-político, criou-se a lenda de Sérgio ser adverso “a um eloquentíssimo poeta que sempre admirei e amei”. A intelectualidade portuguesa rodeava Sérgio, e nos seus ensinamentos bebia inspiração para a almejada transformação da mentalidade do país. Se não custava a Sérgio ser magnânimo, não seria obrigatório que o fosse. As verdadeiras razões da sua participação na homenagem são-nos, todavia, fornecidas pelo próprio António Sérgio em curtos mas lapidares parágrafos. Sérgio considera que o maior defeito do nacionalismo estético de Pascoaes é ser muito injusto para o próprio poeta, por esbater nele o que há de mais “valioso e intrínseco”, algo mesmo excecional na poesia portuguesa, profundamente marcada pela melancolia. Em contracorrente, Pascoaes é “o mais romântico de todos os escritores portugueses na modalidade mais nórdica que o alto romantismo assumiu”. Além disso, a sua poesia é “um protesto contra o Deus demiúrgico, contra a Divindade criadora do Testamento Antigo”. “As dores de quem sente, Pascoaes transfere-as por imaginação para o conjunto das coisas que espontaneamente humaniza”, o que é também invulgar na nossa lírica. “Em tal grau se dá nele a transmigração para as coisas, que nos poemas mais íntimos, de mais autêntico lirismo, ele se esquece dos homens como seres individuais e distintos, como mais próximos do poeta, reduzindo-os a elementos do grande ambiente físico, que é a personagem capital da sua obra poética; e de aí o aparecimento deste verso estranho, à primeira vista inumano: “as pessoas são nada, e as coisas tudo”. O supostamente positivista Sérgio “revela a sua idiososincrásica luminosidade, separando de modo clarividente o que se analisa à luz da razão, do pertencente a esferas íntimas do espírito humano, sempre conservando a serenidade e o discernimento necessários para reconhecer a diferença” – como salienta Onésimo T. Almeida (A Saudade e os Saudosistas – Uma Revisitação da Polémica entre António Sérgio e Teixeira de Pascoaes, Via Atlântica, nº7, outubro 2004). Lembremo-nos da profunda admiração que devotou a Pascoaes Mário Cesariny de Vasconcelos. Segundo António Cândido Franco: Foi o perfil tolerante e dialogante europeu mais atento aos valores humanos que aos valores da técnica que muito contribuiu para o interesse que o livro “S. Paulo” despertou em países como a Alemanha, a Suíça, a Áustria ou a Holanda. É ainda esse perfil seco mas sábio, negativo mas aberto ao diálogo, que faz muito do interesse que o livro continua hoje a ter, e com ele a de toda a portentosa estirpe que a inaugurou”.
A Rota de Al Mutamid invoca o grande poeta de língua árabe, nascido em Beja, rei da Taifa de Sevilha, que estabeleceu em Silves um centro cultural da maior relevância, conhecido pelos contemporâneos como Bagdad do ocidente.
Maomé ibne Abade Almutâmide foi o terceiro e último dos reis abádidas que governaram a taifa de Sevilha no século XI e um dos poetas mais importantes de Al Andalus, tendo ficado conhecido como o "rei-poeta". Nascido em Beja, em dezembro de 1039 (Rabi Alual de 431, no calendário islâmico), foi o segundo filho de Almutadide, originalmente batizado com o nome de seu avô, Abu Alcacime Maomé, e com o título honorífico Almoaíde Bilá. Com cerca de 12 anos, foi nomeado governador de Silves (Chilb) por seu pai. Aí, conheceu o poeta Abenamar, com quem criou uma forte relação de amizade e afeto, ambos dedicando vários poemas um ao outro. No entanto, a atenção de Abu Alcácime mudaria ao conhecer a escrava Rumaiquia (E'etemad al-Rumaikiyya), que, segundo a lenda, o encantou ao terminar um verso que Abenamar não tinha sido capaz de completar. Imediatamente, adquiriu a bela escrava ao seu senhor e, pouco tempo depois, casou com ela, a única mulher legítima do seu harém, algo que afetou a sua relação com Abenamar. A influência de Abenamar e Rumaiquia na vida do filho preocupou bastante Almutadide, que acabou por forçar Abenamar a fugir do reino. Já Rumaiquia foi aceite depois de ser chamada a Sevilha e de aparecer perante o rei com o seu neto Abde.
Em 1069, por morte do seu pai, Abu Alcácime sobe ao trono, adotando o nome "Almutâmide", e uma das primeiras coisas que fez foi nomear Abenamar governador de Silves, designando-o por morte de Ibn Zaidune, ministro de seu pai, vizir do reino. Na década seguinte, Almutâmide viu morrer o seu filho mais velho, Abde, governador de Córdova sendo a cidade incorporada na coroa de Sevilha em 1070. Foi nesta cidade que Abde acabaria por morrer na batalha contra os exércitos de Almamude de Toledo. No início da década de 1080, com o aumento do território cristão, o Al Andalus entrou em declínio, em grande parte devido à intensificação das pressões existentes sobre as Taifas e a exigência de tributos cada vez mais elevados por Afonso VI de Leão. Em 1082, Almutâmide terá tentado pagar a Afonso VI em moeda falsa, tendo crucificado o seu enviado, o judeu Ibn Salibe, quando este protestou. Por vingança, Afonso VI invadiu Sevilha. A situação agravou-se quando Almutâmide foi traído por Abenamar, que, ao conquistar Múrcia, cortou relações com o rei de Sevilha e tentou tornar-se autónomo. A sua posição tornou-se, porém, insustentável, tendo sido aprisionado em Sevilha e morto por ordem do próprio Almutâmide.
Com a conquista de Toledo por Afonso VI em 1085, os reis muçulmanos pediram apoio aos Almorávidas do norte de África tendo em vista das Taifas ameaçadas pela reconquista cristã. O emir dos Almorávidas, Iúçufe Ibn Taxufine viajou com as suas tropas para Al Andalus, ajudando Almutâmide e os outros reis muçulmanos a derrotar os cristãos em 1086 na Batalha de Zalaca. Taxufine voltou ao seu reino posteriormente. Os reinos muçulmanos viram no apoio de Taxufine uma oportunidade para se libertarem da pressão cristã e voltaram a pedir a sua ajuda para a tomada de Aledo, dois anos depois. No entanto, a operação militar não foi bem sucedida, e o exército de Afonso VI venceu, consolidando a sua posição, sobretudo considerando a divisão existente entre os reinos taifas. Finalmente, em 1090, Taxufine voltou a Al Andalus, desta vez não se aliando com os reis das taifas, mas tentando conquistá-los, beneficiando da sua fragmentação. Almutâmide demorou até se aperceber do que estava em causa, tendo inclusive felicitado Taxufine após a sua conquista da Taifa de Granada. Contudo, em 1091, o emir Almorávida chegou a Sevilha. Almutâmide ainda terá pedido apoio a Afonso VI, mas em vão, por ter sido derrotado e feito prisioneiro e desterrado para Agmate perto de Marraquexe, onde passaria os últimos quatro anos da sua vida aprisionado e dedicado à atividade poética, morrendo em 1095.
A poesia de Almutâmide integra-se na poesia árabe, no estilo clássico da qasîda, e revela um perfeito domínio do idioma e de utilização de todas as suas potencialidades. Filho e neto de poetas, educado numa corte de intelectuais e de literatos, provavelmente do grande Ibn Zaîdun, o então jovem príncipe encontra cedo uma voz própria. A linguagem que usa é simples e direta, com a expressão exata que se adequa à expressão dos sentimentos, afastando-se do mero jogo formal ou retórico da poesia. Pelo seu tom confessional e autêntico, os seus poemas constituem um espelho da sua própria vida e, se a sensualidade e o amor são temas tão fortes nas diversas fases da sua vida, no entanto, no final quase desaparece, valorizando uma dimensão mais espiritualizada e contemplativa da vida, em que a poesia é mais elegíaca. No belo poema "Evocação de Silves", compara a beleza de uma donzela com a curva de uma pulseira e descreve a alegria e a melancolia da sua existência. Adalberto Alves publicou na Assírio e Alvim “Al Mu’tamid Poeta do Destino”, onde se revela uma personalidade epicurista, multifacetada e rica, que alia o prazer da vida e uma sensibilidade muito fina, em que o destino marca uma complementaridade entre o prazer e a vontade. Oiçamo-lo: “Solta a alegria! Que fique desatada! Esquece a ânsia que rói o coração. Tanta doença foi assim curada! A vida é uma presa, vai-te a ela! Pois é bem curta a sua duração”.
A Rota Almutâmide é um itinerário cultural e turístico que liga Lisboa a Granada, passando por Silves e Tavira e por terras do al-Andalus, destacando o legado comum dos períodos muçulmanos em Portugal e Espanha, com ênfase para a herança cultural, monumental e para a figura do rei poeta Almutâmide. A rota é estruturada em dois ramos e é um projeto para promover o turismo e a cultura através de uma narrativa partilhada sobre o património cultural.