Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Passam dois séculos sobre o nascimento do genial romancista Camilo Castelo Branco. Com uma obra riquíssima que ilustra a força e a diversidade da identidade da nossa cultura, podemos dizer que a sua leitura continua a ser indispensável.
Ao José Viale Moutinho, em solidariedade camiliana
Camilo Castelo Branco é um caso singular na literatura portuguesa. Foi o nosso primeiro profissional da escrita e assim se fez respeitar como um autor aclamado pelo público leitor. A sua produção literária, que continua a ser apreciada, chega aos nossos dias preservando a sua força essencial. Há uma considerável distância no tempo, mas no essencial é a compreensão do género humano que está em causa. É, assim, ilusório o debate clubístico entre os camilianistas e queirosianos. Estamos perante artistas da mesma arte, ambos com um nível excecional, mas dispondo de um perfil radicalmente diferente. Antes do mais, o percurso de vida do autor de Amor de Perdição é marcado por vicissitudes que o aproximam dos acontecimentos ocorridos em Portugal no dealbar do liberalismo constitucional, nas suas diferentes vertentes, resistência e incentivos, o que nos permite compreender quer as raízes profundas da sua inserção no país tradicional, quer o confronto com a lógica dos ambientes citadinos.
COMPREENDER QUEM SOMOS Camilo encarna, a um tempo, o país fiel às suas tradições e a sociedade que anseia modernizar-se. Veja-se como nos conflitos civis que abalaram profundamente os portugueses e no imaginário subjacente a tais contradições, Camilo faz opções genuínas, até divergentes, indo ao encontro de sentimentos profundos que procuram seguir não só uma continuidade histórica, mas também a consciência popular. Lembremo-nos das apreciações sobre o movimento da Maria da Fonte, verdadeiro levantamento de um conjunto de amazonas de tamancos, tornado vivo nas memórias do Padre Casimiro, no ano de 1846, onde uma certa saudade articula as componentes paradoxais desse estranho episódio, que constitui matéria-prima para um fecundo manancial romanesco. Dir-se-ia que a reminiscência miguelista, já enterrada há mais de uma década, renascia num outro tempo e num outro contexto, apesar da demarcação evidente, para reconstruir a sociedade nova de constitucionalismo liberal. E assim, concordamos com Hélia Correia quando nos diz que Maria da Fonte sobressai, aliás, no conjunto da sua obra pelo modo seguro, diríamos, convicto, diríamos sincero, com que o autor reúne os seus conhecimentos, as inflexões de estilo, as gradações de orador apaixonado que ora ironiza, ora vitupera, ora se indigna, para com este texto servir a causa do progresso, do liberalismo, do espírito científico” (Prefácio a Maria da Fonte, Ulmeiro, 1986, p. 14). E aí deparamo-nos com o formal desmentido da lenda que circulara, e que alimentara, de que Camilo fora lugar-tenente de Mac-Donell. Já quando lemos A Brasileira de Prazins deparamo-nos com os ingredientes fundamentais do panorama social, a consideração das contradições políticas e sociais, com a chegada de um falso D. Miguel e a exigência de reparar naquela sociedade um compromisso social que obrigaria a encontrar novos caminhos. E Camilo Castelo Branco é autor e consequência de tudo isso, e sente no íntimo de si os movimentos subterrâneos da comunidade, centrífugos e centrípetos, que constituem fundamento de um panorama narrativo inesgotável.
IRONIA E CONHECIMENTO HISTÓRICO Com ironia e profundo conhecimento histórico, Camilo Castelo Branco fala-nos de um tempo longo, apreensível nos pequenos pormenores. Veja-se na apreciação da obra histórica de Oliveira Martins, o caso do Mestre de Aviz, que não poderia ser marido legítimo de D. Filipa de Lencastre sem dispensa de votos de clérigo, de que apenas foi libertado quatro anos depois do casamento… Há misteriosas condicionantes que influenciam inesperadamente os acontecimentos. E o romancista conclui na análise da obra que “nesta História de Portugal há a largura dos grandes aspetos sociais dados a factos que pareciam pequenos e escurecidos em meio de outros mais característicos”. E o historiador generaliza luminosamente “com uma grande harmonia de plano organizador, agrupando factos desconexos talvez com a cronologia, mas moral e politicamente harmónicos. Em poucos traços essenciais resume-se um período de história, uma anedota, um caso despercebido e sem o selo de notável importância sociológica, tratado (…) consoante o modo familiar de Taine, abre-nos a porta da vida íntima de uma época”, juntando ironia e realismo. E se um crítico disse que a História se lia aprazivelmente como um romance, o certo é que tal não pode ser levado à conta de um demérito. Contudo, esta História lê-se devagar e atentamente, devendo ser melhor entendida e apreciada por aqueles que houvessem colhido uma imperfeita, senão falsa, compreensão da vida portuguesa no estudo das crónicas. E Camilo não se impressiona com as quebras eruditas, já que na obra no seu todo prevalece a argúcia crítica e a visão do conjunto e do fundamental. Se há lapsos seriam de influência nula e outras consultas, “com um grande e malogrado escrúpulo”, não dariam ao autor novos elementos relevantes. E assim descobrimos no genial romancista o leitor atento do poderoso cultor da História com compreensão do essencial das personagens e dos acontecimentos.
FIGURA FUNDAMENTAL Probo romancista, bibliógrafo irrepreensível, cultor da língua como poucos, leitor exemplar, comentador dos acontecimentos com sentido prospetivo, conhecedor da História do País e dos seus povos, Camilo Castelo Branco é um caso especial nas literaturas da língua portuguesa, digno de ser exemplo por tudo quanto nos deixou numa escrita viva e atraente, servida por uma panóplia ampla de personagens que caracterizam em termos dinâmicos a sociedade portuguesa, num panorama que abrange o Portugal antigo e o Portugal moderno em cada uma das suas especificidades. Eis a sua atualidade como referência fundamental da perenidade da arte e da literatura. Ao assinalar os dois séculos do nascimento do romancista de Seide e quando se encerram as comemorações do quinto centenário de Camões, é oportunidade para celebrarmos a língua que se projeta no mundo através de quantos fazem da palavra o meio por excelência para afirmação da liberdade, do respeito mútuo, do sentido solidário e de uma vontade emancipadora.
NOTA – O presente texto está desenvolvido no número 218 da revista Colóquio - Letras
O Dicionário Crítico da Revolução Liberal (1820-1834) coordenado por Rui Ramos, José Luís Cardoso, Nuno Gonçalo Monteiro e Isabel Corrêa da Silva (D. Quixote, 2025) vem preencher um espaço importante na historiografia portuguesa dos últimos duzentos anos.
O Dicionário Crítico da Revolução Liberal (1820-1834) coordenado por Rui Ramos, José Luís Cardoso, Nuno Gonçalo Monteiro e Isabel Corrêa da Silva (D. Quixote, 2025) preenche um espaço importante na historiografia portuguesa dos últimos duzentos anos, com a especial preocupação de revelar e esclarecer, de um modo plural e aberto, um período complexo da vida portuguesa. Sobre um período marcado por um intenso e controverso debate e por um choque ideológico muito aceso, com repercussões sociais, económicas e culturais muito evidentes, passamos com esta obra a poder contar com um conjunto significativo de ensaios e análises esclarecedoras sobre o sentido e alcance da implantação em Portugal do constitucionalismo moderno, na linha das três grandes revoluções liberais, inglesa, americana e francesa, que puseram termo ao Antigo Regime e ao absolutismo monárquico. No caso português, sentem-se os efeitos das guerras peninsulares, do Congresso de Viena e do início das independências da América do Sul.
UM CONFRONTO ATUAL Como facilmente se compreende, deparamo-nos com um intenso confronto entre a corrente liberal, que corresponde a uma opinião pública cosmopolita citadina e a uma corrente conservadora e tradicionalista de base mais rural, mas, mais do que isso, estamos perante uma contradição entre os interesses do Portugal europeu e da poderosa colónia brasileira, sobretudo depois de ter conquistado uma posição de supremacia estratégica, com a instalação da coroa no Rio de Janeiro, numa situação única entre as potências europeias. Se o modelo seguido foi o do fundamental Dicionário Crítico da Revolução Francesa coordenado por Mona Ozouf e François Furet, a verdade é que é possível encontrar na obra agora publicada a compreensão de relevantes especificidades que dão aos acontecimentos portugueses características próprias que permitem uma visão panorâmica da projeção do período relatado numa encruzilhada desde os períodos pré-pombalino e pombalino até à institucionalização do constitucionalismo liberal oitocentista. Nestas 1638 páginas, com 103 entradas e 59 autores, incluindo um exercício de comparatismo internacional, respeitante ao final do Antigo Regime, deparamo-nos com perspetivas várias que permitem abarcar um processo muito complexo pleno de hesitações e contradições, suscetível de análise sob diferentes perspetivas, uma vez que estamos perante acontecimentos que marcaram decisivamente a história dos últimos dois séculos. Se na historiografia nada pode ser definitivo, o importante é colocar em confronto as várias hipóteses de trabalho de modo a compreendermos a razão de ser dos acontecimentos. Como afirma Maria Lúcia Amaral: “Os homens que fizeram o pronunciamento de 1820 queriam que Portugal se dotasse de uma Constituição”, não a da velha ordem, mas “uma Constituição moderna, à francesa, semelhante à que já fora escrita em Cádis em 1812 e, sobretudo, semelhante a várias que já tinham sido escritas por influência das grandes ideias nascidas na Revolução de 1789”. Mas é preciso compreendermos que foi em plena guerra civil (1832-1834) que José Xavier Mouzinho da Silveira, ministro da Fazenda do governo do Duque de Bragança, “decretou a maior parte da legislação que atingiu os fundamentos do Antigo Regime: a abolição dos morgados de pequeno rendimento, a extinção do imposto da sisa, a reforma administrativa (pela qual se separou o poder judicial do poder administrativo e se definiu um modelo centralista de inspiração napoleónica da administração local), a erradicação de grande parte dos tribunais polisinodais, a extinção dos dízimos eclesiásticos e, por fim, a abolição dos ‘forais’, ‘bens da coroa’ e ‘lei mental, ou seja os direitos senhoriais e do regime da sua doação às grandes casas aristocráticas” (Rui Ramos e Nuno Gonçalo Monteiro). Seguir-se-ia a abolição das ordens religiosas e das corporações de ofícios, e assim as relações de poder e a cultura política sofreram profundas transformações como os mais importantes historiadores portugueses do século XIX reconheceram, apesar da persistência de uma sociedade de base rural e analfabeta. Apesar de tudo, “foram políticos liberais que, através da extensão do sufrágio eleitoral, envolveram a população em práticas políticas modernas” e foram autores como Garrett e Herculano que desenvolveram uma história erudita, o cânone literário e o estudo da cultura popular.
INSTITUIÇÕES QUE PREVALECEM No entanto, Oliveira Martins diria que “os liberais tinham tentado estabelecer as instituições representativas e mecanismos de mercado num país que não atingira ainda o ‘grau de desenvolvimento do saber, da ordem e da indústria’ que constituíam a base de ‘civilização’. (…) Era preciso, portanto, tornar o país finalmente ‘natural’, o que passava ‘por aumentar o nosso pecúlio científico e melhorar a nossa ferramenta industrial’: ‘carecemos de ser tão sábios e tão ricos como os melhores da Europa: não porque aí esteja o fim das nossas ambições, mas porque sem conseguir primeiro isso, jamais poderemos vê-las realizadas” (Rui Ramos). Daí a defesa de uma necessária atitude proativa e não fatalista. Importaria, pois, assumir uma lógica reformista como a defendida pela Vida Nova, em Política e Economia Nacional.
Ao longo dos diferentes ensaios integrantes do Dicionário, podemos entender não apenas as condicionantes que marcaram a Revolução Liberal, que são decisivos enquanto acontecimento de consequências muito significativas na história política até aos nossos dias, pelo paradigma democrático que definiu duradouramente. Saliente-se a importância do tema da instrução pública e da formação cívica dos cidadãos, estudado por Sérgio Campos Matos, de que Garrett estava bem consciente sobre como era difícil e lento emendar “o mal da má educação”, agravado pela ausência de um espírito nacional, na expressão do próprio poeta. Por outro lado, importa ainda lembrar o tema recorrente das Finanças Públicas, do défice orçamental e da dívida pública, analisado por José Luís Cardoso, que constitui desde sempre uma preocupação constante da monarquia constitucional e da legitimidade representativa, pedra de toque da sustentabilidade do regime, como foi salientado pelos constituintes de 1821 – tomando a nação a responsabilidade da dívida, de que os bens nacionais eram a respetiva hipoteca especial. Limitamo-nos a estes temas, num conjunto muito vasto e inesgotável.
A leitura da obra, seguindo os acontecimentos, os atores, as ideias, as instituições e dinâmicas sociais, os intérpretes, memorialistas e historiadores e as comparações internacionais, acompanha, de um modo esclarecedor e muito bem fundamentado, a evolução do Portugal Velho para o Portugal Novo, que Alexandre Herculano considerou, justamente, ser a maior mudança política e social ocorrida em Portugal desde a Idade Média. Assim, a leitura deste volume imponente permite-nos perceber melhor os múltiplos domínios em que se desdobrou a realidade portuguesa. Trata-se, insista-se, de um precioso vademecum indispensável para os estudiosos do Portugal moderno, que apresenta as pistas fundamentais de reflexão e análise de um riquíssimo período, que agora passa a dispor de um corpo de estudo apto a tornar acessível a compreensão de um tempo muito fecundo.
Damião de Góis é um verdadeiro símbolo do humanismo português. A sua vida e obra constituem exemplos de testemunhos fundamentais reveladores de uma personagem e de uma cultura abertas ao futuro e à necessidade de abrir perspetivas novas para o progresso dos povos e para uma melhor humanidade.
FIGURA FUNDAMENTAL Damião de Góis (1502-1574) é, de facto, um símbolo do humanismo universalista português. É um bom exemplo de quem, que em lugar de se deixar encerrar dentro dos nossos limites, dialogou com os grandes espíritos do seu tempo. Foi hóspede e confidente de Erasmo de Roterdão, foi desenhado por Albrecht Dürer (como aqui se reproduz). Foi historiador, epistológrafo, diplomata e viajante. Na corte de D. Manuel sofreu influência de Cataldo Sículo (1455-1517), precetor de príncipes portugueses, que o conduziu para o estudo dos clássicos greco-latinos, tendo conhecido as principais personalidades da política e cultura portuguesas do tempo. Nesses anos iniciais, conviveu com matemáticos, músicos, poetas e navegadores, com quem estava na vanguarda do conhecimento e da ação. Com o apoio decisivo do rei D. João III pôde libertar-se das suspeitas inquisitoriais, o que não aconteceu no tempo seguinte, desaparecido o rei, designadamente sob o poder do Cardeal-Rei. A sua biografia e a sua obra dão-lhe um lugar fundamental no panorama da cultura europeia. E quando hoje visitamos Alenquer, sentimos a presença positiva de Damião de Góis e a sua lição de abertura e liberdade. E ao falarmos de humanismo, lembramos a reflexão de Jaime Cortesão no tocante ao humanismo universalista, como raiz da primeira globalização e do Renascimento. O nosso cronista constitui um símbolo indiscutível deste momento glorioso da nossa História.
CULTURA MARCANTE Sobre a nossa cultura, António José Saraiva falou da característica singular de “estar-se onde não se está”, o que levaria os portugueses a serem religiosos e heréticos; ortodoxos, mas heterodoxos; emigrantes mas não apenas colonizadores (por força da miscigenação); aventureiros, mas radicados (como na Diáspora); pobres mas generosos; e atrasados, mas crentes num destino. De Gil Vicente a António José da Silva, o Judeu, de Garrett a Camilo e Eça de Queiroz encontramos a exigência crítica como contraponto à indiferença ou ao conformismo. Quanto ao designado por Unamuno “país de suicidas”, esse não seria senão uma manifestação de inconformismo e de combate à passividade e à irrelevância. O Padre Manuel Antunes, lembrado por Miguel Real, afirmou: “Reencontrar o antigo, por vezes mesmo o mais antigo para criar algo de novo (…). A nossa história multissecular de Povo independente é feita de espaços de continuidade e de espaços de rutura, de períodos de deterioração e de períodos de recuperação, de anos de sonolência e de momentos de crítico despertar, de estados de descrença e de instantes largos de esperança quase tão ampla como o universo” … Uma história antiga, com raízes culturais múltiplas, encontro entre vontade e destino – tudo se somando numa Ibéria em que a nossa “maritimidade” se contrapõe à “continentalidade” de Espanha, projetando nos dois símbolos contrapostos – Fernão Mendes Pinto, como personagem múltipla no mundo, e D. Quixote, como imaginação e sonho. A multiplicidade da aventura da “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto sublima-se na vontade do povo que Herculano encontra como explicação da independência e da unidade. O Brasil é a imagem grandiosa da frente marítima europeia de Portugal projetada no mundo, enquanto as Espanhas projetam-se na América segundo uma pluralidade de influências. E a literatura ibérica representa uma mudança poderosa – em que o descobrimento se associa à necessidade de diálogo e de melhores conhecimentos.
UM ESPÍRITO AVANÇADO Segundo Eduardo Lourenço, faltou uma mentalidade europeia desde a segunda metade do século XVI. Por isso, Antero nos ensinou a não nos escondermos no nosso passado (o Messias de Portugal é o seu próprio passado). Graças à sua amizade com Dom João III este ajuda-o e envia-o para Antuérpia, na Flandres, como secretário da feitoria portuguesa, um estabelecimento comercial, a partir do qual o norte da Europa podia aceder aosprodutos vindos das colónias portuguesas em África, na Ásia e na América do Sul. Em 1532, inscreveu-se na Universidade de Lovaina, uma das mais eruditas da Europa. Entretanto, conhecera Martinho Lutero e estivera na corte de Frederico I da Dinamarca. Em 1548, foi nomeado guarda-mor da Torre do Tombo, substituindo Fernão de Pina e exercendo o cargo durante mais de vinte anos, até 1571. O Cardeal D. Henrique encomenda-lhe a crónica do rei Dom Manuel, em virtude de o guarda-mor ter vivido na corte, estando em boa posição para relatar os factos. Damião de Góis desenvolveu o trabalho de acordo com os valores renascentistas, fiel à verdade. As crónicas foram publicadas em vários volumes. Depois de denúncia à Inquisição, diversos elementos da sua própria família foram interrogados, e o próprio foi preso e transferido para o Mosteiro da Batalha. Com 69 anos, foi libertado e viveu na sua casa em Alenquer até morrer,em circunstâncias misteriosas, em 1574, sendo enterrado na capela local.
Maria Teresa Horta é uma referência fundamental da moderna literatura da língua portuguesa.
Ao assinalar os cinquenta anos da Revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974, o Presidente da República de França destacou o caso da publicação das “Novas Cartas Portuguesas” como um exemplo de combate cívico pela liberdade cidadã, homenageando as suas autoras Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. É significativo que seja uma referência da literatura e da liberdade criadora a identificar o que Samuel Huntington designou como o início da Terceira Vaga da democratização. Quando Maria Teresa Horta nos deixa, essa recordação ganha especial importância, uma vez que a História portuguesa, desde as suas origens, foi marcada por referências literárias – lembrando-nos dos trovadores na génese da nação e da língua que nos define e projeta globalmente pelo mundo até Camões. E o certo é que as “Novas Cartas Portuguesas” significam um grito de alerta em nome da liberdade do pensamento e da defesa intransigente da dignidade humana, considerando a igual consideração e respeito de todos.
Conheci bem as três autoras dessa obra emblemática. Maria Teresa Horta foi uma amiga a que me ligam laços de mútua admiração que nunca poderei esquecer. Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa foram próximas colaboradoras no Ministério da Educação, a quem devo testemunhos vivos de entrega à ideia generosa e necessária de fazer da Educação um fator de emancipação cidadã, de cosmopolitismo e de partilha de responsabilidades. Concordo com Helena Vasconcelos que Maria Teresa é uma “autora ímpar”, assentando a sua singularidade em vários fatores, “nos quais se incluem uma linguagem inconfundível, fluida e apaixonada, um imaginário riquíssimo, uma vasta cultura humanista – de raízes clássicas – e uma capacidade invejável de escrever continuamente, sem limites nem amarras, reinventando em cada linha as mais profundas e inefáveis questões que desafiam – e angustiam – a humanidade” (Público, 5.2.2025). Foi sempre assim que a encontrei. Era inconformada e inconformista, rebelde e iconoclasta, mas quase paradoxalmente profundamente consciente das raízes e da importância da dimensão histórica da vida. Quando Patrícia Reis encontrou a palavra “desobediente” para dar título à sua biografia deu, propositadamente, apenas um traço da sua extraordinária personalidade, mas quando fechamos o livro, ao terminar a leitura entusiasta e motivadora, percebemos que é apenas um começo aquilo de que se trata, porque, ao longo da vida, facilmente percebemos que estamos perante uma personalidade multifacetada capaz da determinação e da extrema coragem (demonstrada em vários momentos da vida, perante a violência absurda do Estado policial), mas também de uma extrema sensibilidade e doçura, bem evidentes na sua poesia. O jornalismo atraiu-a desde muito cedo. Gostava do acontecimento e da tensão do contraditório – e desde cedo foi uma cinéfila militante. Foi a primeira mulher a liderar um Cineclube, o ABC. “A Capital” e o “Diário de Notícias” estão no seu currículo, bem como os textos dispersos nos “Diário de Lisboa”, “República”, “O Século”, e naturalmente o “JL”. Na revista “Mulheres” entrevistou Maria de Lourdes Pintasilgo, Marguerite Yourcenar, Marguerite Duras e Maria Betânia. Na Faculdade de Letras foi amiga inseparável de Fiama Hasse Pais Brandão. “Espelho Inicial” foi o primeiro livro, graças a António Ramos Rosa, com a capa de Manuel Baptista, antes deste partir com uma bolsa da Gulbenkian para Paris. O livro suscita comentário positivo de João Gaspar Simões: elogiando a originalidade e dizendo que era uma nova voz a surgir no meio literário português. Em 1961 participa na “Poesia 61” com Gastão Cruz, Luiza Nerto Jorge, Fiama e Casimiro de Brito, com “Tatuagem”. Gastão Cruz dirá: “A novidade da poesia de Maria Teresa Horta manifesta-se (…) em vários planos e setores: o da linguagem e da construção do poema; o social e político; o sexual”. Pouco depois conhece Leonor Cunha Leão, a alma dos Guimarães Editores. Era a primeira mulher editora em Portugal que publicava Agustina Bessa-Luís, que convida Teresa para publicar na coleção “Poesia e Verdade”. Conhece escritores como Sophia de Mello Breyner, Yvette Centeno, Ana Hatherly; mas também David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Alexandre O’Neill, José Carlos Ary dos Santos, Pedro Tamen e António Gedeão. Maria Teresa Horta entrava nos meios literários com uma marca própria que o tempo irá revelar em toda a sua riqueza e maturidade, para além de qualquer lógica puramente circunstancial.
Em 1971, a publicação de “Minha Senhora de Mim”, nas Publicações Dom Quixote, sob a direção de Snu Abecassis, abre um processo de denuncia da ausência de liberdade de expressão, que se soma à participação de Maria Teresa Horta na “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica” de Natália Correia. Segue-se a apresentação e proibição das “Novas Cartas Portuguesas” apenas vem confirmar a ausência de “abertura política”, que contribuiria para acelerar o processo que culminaria na Revolução de Abril. Inspiradas nas “Cartas Portuguesas” de Mariana Alcoforado (1640-1723) o método epistolar, conduzido pelas três escritoras, vai tornar claro como se acumulam fatores de bloqueamento relativamente à evolução democrática no tocante aos direitos fundamentais, em especial das mulheres, com repercussões em toda a sociedade, no sistema judicial, na pressão migratória, na violência do regime ou na guerra colonial… Estamos perante uma obra reveladora da exigência de abertura política e social, como questão de sobrevivência. Não estamos perante um epifenómeno, mas de um problema crucial. Na obra de Maria Teresa Horta encontramo-nos, assim, num momento decisivo, que no entanto revela, no conjunto da sua obra, um percurso que conduzirá à afirmação de uma identidade cultural emancipadora e aberta, servida por uma literatura segura e aberta, reconhecida desde o início internacionalmente por Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Iris Murdoch ou Doris Lessing… Deste modo, a obra de Maria Teresa culminará numa obra-prima, o romance biográfico “As Luzes de Leonor”, revelador a um tempo da importância da Marquesa de Alorna e da interpretação atualista do seu pensamento iluminista, lido à luz da contemporaneidade, com inteligência e sentido humanista. “Não sei o que em mim é memória ou recriação. E nesse meu engenho de poeta, julgo-me no inventar dos versos, postos mais na intimidade do peito e bem menos no alento do corpo e seu fogo; e nele mal se reacende a chama logo me apresto a apagá-la, faço-o sem o menor regozijo, desejando eu pelo contrário ateá-la. Mas a razão sempre se encarrega de me lembrar quanto o coração está debilitado, a ponto de me levar a esquecer como o bem e o mal se assemelham, tal como o mar e o rio que na sua branda fusão na mesma foz se misturam”.
A leitura da Crónica dos Feitos da Guiné de Gomes Eanes de Zurara constitui oportunidade única para a compreensão do papel histórico desempenhado pelo Infante D. Henrique e pelos Filhos de D. João I.
«E TAMBÉM AS MEMÓRIAS GLORIOSAS…» Se há figura na História portuguesa rodeada de uma aura especial, essa é a do Infante D. Henrique (1394-1460). São riquíssimas a sua experiência e a influência que exerceu no seu tempo e no século seguinte. Uns glorificam-no, outros apoucam-no e talvez todos estejam algo fora da verdadeira consideração. Sobre os mistérios existentes, basta lembrarmo-nos do debate sobre a vera efígie do Infante. A mais próxima imagem de quem teria sido Henrique é a que está no pórtico sul do Mosteiro dos Jerónimos, no entanto são as representações da «Crónica dos Feitos da Guiné» de Zurara, que se encontra na Biblioteca Nacional de Paris, e a dos Painéis ditos de S. Vicente, de Nuno Gonçalves, no Museu Nacional de Arte Antiga, que nos permitem identificar facilmente Henrique, o Navegador. De facto, o Infante tornou-se quase um mito, apesar de ser uma das figuras históricas portuguesas sobre quem é possível definir com maior rigor um percurso de coerência e de vontade. A decisão da exploração da costa de África, e tudo o que se lhe seguiu, é algo que merece cuidada análise – correspondente à ponderação de decisões e acontecimentos que têm tudo menos de acaso. A conquista de Ceuta (1415) permitiu a compreensão das dificuldades colocadas, a Portugal e à Península Ibérica, na entrada do Mediterrâneo e no comércio com o Levante. As cinco razões da «Crónica dos Feitos da Guiné» de Gomes Eanes de Zurara têm de ser lidas em estreita ligação com as fortes condicionantes económicas, políticas e territoriais: (a) a vontade de conhecer as novas terras; (b) as razões comerciais para a troca de produtos; (c) o poderio dos “mouros daquela terra d’África”, muito maior do que comummente se pensava”; (d) o saber se haveria rei cristão naquelas paragens; (e) a expansão da fé cristã.
O PAPEL DE HENRIQUE, O NAVEGADOR Sobretudo, pouco se entenderá deste movimento se não invocarmos a profunda crise económica e social sentida em Portugal e na Europa no último quartel do século XIV, ainda sob efeitos da peste negra, que obrigou à procura de alternativas. Se o Infante não é uma figura isolada, o certo é que tem uma quota-parte fundamental no planeamento e na administração de um reino que não poderia nem queria ficar confinado ao território peninsular, às limitações mediterrânicas e às ameaças dos mouros, árabes e otomanos. D. Henrique foi marcante e cioso dos seus domínios, era duque de Viseu, senhor da Covilhã, governador da Ordem Militar de Cristo, senhor dos arquipélagos da Madeira e dos Açores e do barlavento algarvio, mas também detentor do monopólio das saboarias, da pesca do atum, da produção do pastel ou da pesca do coral.
Há, no entanto, uma notável complementaridade no seio da chamada Ínclita Geração, os Altos Infantes. A figura do Pai, D. João I, é a de um autêntico refundador do Reino, na sequência de D. Afonso Henriques e D. Dinis, cada um a seu modo, sendo criador de uma realidade política nova ligada à grande frente marítima atlântica, mas também às influências mediterrânicas. Se cuidarmos da análise dos acontecimentos, depressa descobrimos que os filhos do Rei da Boa Memória, D. Duarte (o Leal Conselheiro), D. Pedro das Sete Partidas e D. Henrique articulam inteligentemente ações. A leitura da célebre carta de Bruges, enviada por D. Pedro a D. Duarte, ainda príncipe herdeiro, além de nos revelar a defesa do que mais tarde se designaria como fixação por contraponto ao transporte, apresenta-nos o que poderíamos designar como um projeto nacional – com uma Administração moderna, uma economia adequada à inovação, uma universidade capaz de seguir o que de mais avançado outras faziam e uma procura de novos modos de funcionar e agir. Está, aliás, por esclarecer inteiramente qual a influência das informações de D. Pedro, recolhidas no périplo europeu e nas navegações promovidas por D. Henrique na costa africana. O certo é que quer o “Livro das Maravilhas do Mundo” de Marco Polo quer um misterioso mapa de Fra Mauro devem ser lembrados – não que tenham definido um plano para a Índia, que só o Príncipe Perfeito assumirá, mas como a necessidade de procurar, como diz Zurara, uma aliança estável para favorecer o comércio com o Levante. Não seria ainda a Índia o objetivo, mas D. Henrique estaria a pensar na Terra Santa, preocupado com o seu próprio poder e a sua influência, com a sua vocação de cruzado do novo tempo. A atitude perante o desastre de Tânger e o cativeiro de D. Fernando deve ser lida a esta luz. E, se dúvidas houvesse, basta lembrarmo-nos de que, mais tarde, Afonso de Albuquerque persistiria na ideia da libertação da Terra Santa.
UM PAPEL DECISIVO Dotado de uma inteligência superior, D. Henrique ligava razões diversas – políticas, económicas, sociais e religiosas, à luz do seu tempo. Importa, pois, reconhecer o significado da articulação de vontades e inteligências e da sua extraordinária capacidade para seduzir e para convencer. E não poderemos esquecer ainda a influência europeia de D. Isabel de Borgonha, casada com Filipe, o Bom, e mãe de Carlos o Temerário. Segundo João Paulo Oliveira e Costa, despojado do mito, D. Henrique não é apenas o Navegador, é o príncipe preocupado com o seu senhorio e com a sua influência política e um cortesão que sabia influenciar e enlear as demais figuras da corte, através de uma simpatia que o colocou sempre acima das divergências que dividiam os membros da família real. O Infante moveu-se intensamente em todo o reino, e os períodos de maior frequência nas deslocações, «coincidem com a sua mais intensa ação expansionista: 1437-1441 e 1443-1445. Em ambos os períodos, correu de Lagos a Viseu, cidades gémeas no seu entender. Na primeira, assistia à partida e chegada das embarcações e à repartição das mercadorias; em Viseu, de ordinário, arrecadava o quinto e demais frações que lhe cabiam. Aquando do conflito trágico, que culminou na Batalha de Alfarrobeira (1449), D. Henrique procura contemporizar, sem sucesso, mas é sob a sua influência que o corpo de D. Pedro irá para a Batalha, não podendo esquecer-se que, com interferência do Rei, ver-se-á reconhecido pelo Papa como diretor das navegações, conquistas, ocupações e apropriações de todas as terras, portos, ilhas e mares do continente africano e mesmo dos ainda a ocupar da Guiné para sul sem fixação de quaisquer limites («per totam Guineam et ultra»). Regressar à leitura da História não pode significar nem saudosismo, nem ilusão ou descanso nas glórias passadas, mas sim responsabilidade e compreensão das situações diferentes dos vários tempos. Longe da ideia de acaso ou de improviso nas memórias gloriosas do que se trata é de olhar para diante em cada tempo, com conhecimento e audácia.
Luís de Camões (1524-1580), cujo centenário comemoramos foi um verdadeiro intérprete de Portugal, assim o procuramos demonstrar.
UM CENTENÁRIO QUE REFLETE Em 1880, por ocasião do terceiro centenário da morte de Camões, houve uma onda de entusiasmo que percorreu o país. Contudo o jovem Oliveira Martins, como os seus companheiros de geração, pondo-se de sobreaviso relativamente a todas as ilusões, afirmava: “Nós que abusamos demais das glórias conquistadas por nossos avós, supondo que elas bastam para nos justiçarem a fraqueza e os vícios, devemos considerar o Centenário como um incitamento a melhor vida; um Confiteor e não um Glória. Penitenciemo-nos, pois. Se o Centenário ficar como expressão nova de uma bazófia velha, melhor fora não se ter feito”. Esse foi, no entanto, um momento alto na tomada de consciência cívica. De facto, “o melhor modo de consagrar os heróis é repetir-lhes as façanhas. (…) São o carácter, a virtude, o heroísmo, que valem decerto mais que todas as luminárias”, e lembrava o historiador que as festas de Atenas só foram maiores depois da tomada pelos romanos, porque as celebrações póstumas são nostálgicas. E assim na década de noventa, passado o entusiasmo imediato este ardeu como a palha e “Os Lusíadas” voltaram a ser apenas uma saudade, dissipada a esperança de um momento. “A crítica tornava a exercer o seu papel de consoladora e mitigante, nas horas de desalento em que sentimos os braços quebrados para a ação. Camões tornava a pertencer à história de um passado extinto”, enquanto se varria para longe “a imagem desenhada nos horizontes luminosos de um dia”. Muitas e muito boas obras puderam, porém, enriquecer a literatura camoniana, salientando-se os estudos do visconde de Juromenha, de Teófilo Braga, bem como as traduções de Storck e de Burton, bem como, em paralelo, a edição da obra de Garcia de Orta e sobre a «Flora” de “Os Lusíadas”» pelo conde de Ficalho ou a edição de Sá de Miranda da autoria de Carolina Michaelis de Vasconcelos.
UMA HISTÓRA PRESENTE Depois de o historiador ter escrito, quando estava em Espanha, em meio de charnecas bravias da Mancha, a dirigir as minas de Santa Eufémia, «Os Lusíadas: Ensaio sobre Camões e a sua obras, em relação à sociedade portuguesa e ao movimento da Renascença» (Porto 1872), refundiu-a quase vinte anos depois num notável trabalho de releitura, dado à estampa em 1891 - “Camões – Os Lusíadas e a Renascença em Portugal”, com uma estrutura semelhante à anterior mas com uma maturidade que demonstra bem a compleição cultural e literária do pensador e do artista da História - sem alterar “nem os lineamentos primitivos, nem o tom juvenilmente exuberante que lhe encontrava no estilo”. E o certo é que no fecho do prólogo da nova edição podemos ler uma afirmação que traduz bem o espírito de quem, ciente da decadência que se vivia, considerava que haveria razões para uma exigência de redenção, baseada num trabalho necessário de preparação do futuro: “Neste acabar de século, por tantos lados semelhante ao fim fúnebre do século XVI, quando morreram Camões e Portugal, o vivo desejo da minha alma é que, se efetivamente, está morta a esperança inteira e temos de abandonar a ideia de voltarmos a ser alguém digno de nome vivo sobre a terra, este livro seja como um ramo de goivos deposto no altar do poeta que, morrendo com a pátria, lhe cantou o glorioso passado, legando-nos o testamento de um futuro não cumprido”.
Importava, no fundo, compreender a circunstância que rodeara em 1572 a publicação de “Os Lusíadas” – porque “as grandes eras poéticas nunca são as da plena expansão enérgica das sociedades”. De facto, o poema épico foi publicado quando a pátria agonizante estava debruçada sobre a cova de Alcácer Quibir. E também Virgílio escreveu na época clássica de Augusto «quando Roma, terminada a época da sua expansão e grandeza, buscava nas instituições imperiais e na “imensa majestade da paz” o triclínio dourado e cómodo para ir passando os séculos da sua digestão apoplética. A incomparável epopeia virgiliana exprime, na sua perfeição, no seu rigor, no seu saber artístico, esse meigo descair de um sol que não dardeja mais os raios fulgurantes do meridiano, com uns longes de cansaço anunciando a doença».
ESPÍRITO DA RENASCENÇA E no caso português, o espírito da Renascença centra-se no seguinte: “Toda a energia deste povo cristaliza em três atos: o imperialismo político, as descobertas e conquistas e o absolutismo religioso”. Na “História da Civilização Ibérica”, Oliveira Martins encontrará, a um tempo, as causas de decadência dos povos peninsulares e as características próprias de uma experiência crucial na história da humanidade. Fomos, assim, os romanos da Renascença, como dirá Camões, ao invocar a proteção de Vénus (“Afeiçoada à gente Lusitana, / Por quantas qualidades via nela / Da antiga tão amada sua Romana” – Canto I). E partilhando o idealismo espiritualista, capaz de exigência crítica, “Camões não é só o épico português da força e da fé, nem o épico da ciência e do comércio; é também um vate do pensamento filosófico moderno”. E deste modo “por um ato de vontade coletiva, Portugal quis ser e foi uma imitação de Roma” – e essa é uma chave que a visão camoniana consagra. “E esse ato de vontade, semente da sua energia heroica, deu fisionomia própria a um pequeno povo que primeiro vivera indistinto entre os vários reinos da Espanha, apenas porventura caracterizado diferencialmente pelo lirismo da sua alma céltica, igual em todo o caso dos dois lados do Mondego, mais igual ainda em ambas as margens do Minho”. E a bela Vénus diz da língua portuguesa que, ao ouvi-la, “com pouca corrupção crê que é a latina” (Canto I). Por outro lado, reforçando essa semelhança heroica, “o foro português, à semelhança do romano, não era o atestado de uma ascendência consanguínea, mas sim o batismo em uma fé que não distinguia nacionalidades, nem origens naturais de raça, ou de religião”. E aqui temos o carácter paradoxal da herança camoniana que a geração de 1870 deseja que funcione como um desafio de vontade – cientes das vicissitudes várias e dos fumos da Índia de que Albuquerque falava. “É por isso que os Lusíadas, escritos em letra de ouro, sobre a candura de um mármore são (na expressão do historiado) o epitáfio de Portugal e o Testamento de um povo. Como Israel, com os seus cativeiros sucessivos, o português, abraçado à sua bíblia e enlevado no sonho messiânico do sebastianismo, amassado com lágrimas, balbuciará as estrofes de Camões sempre que vir apontar no céu uma aurora fugaz de renascimento, e sempre que contemple melancolicamente o crepúsculo saudoso do seu passado perdido”. No Portugal oitocentista, o épico apresentava-se como intérprete da história pátria num sentido profético, não com pendor fatalista, mas como futuro de esperança.
Ourém homenageou Luandino Vieira, um dos seus mais ilustres conterrâneos, natural de Lagoa do Furadouro, para surpresa de alguns, já que a celebridade do escritor angolano e até o seu pseudónimo se devem à ligação íntima que estabeleceu com a cidade de Luanda. Tratou-se de uma iniciativa plena de significado, e foi com emoção que pudemos usufruir dos trabalhos realizados pelos estudantes das escolas sobre a obra do escritor. Ficou mais uma vez demonstrado como a atividade educativa pode desempenhar um papel fundamental não apenas na troca e difusão de conhecimentos, mas também na mobilização das comunidades no desenvolvimento da educação para a cidadania, pela construção de uma escola de cidadãos, como pretenderam os melhores pedagogos, de Maria Montessori ou John Dewey até aos nossos Luísa e António Sérgio. Que melhor promoção da cultura senão através da leitura participada? As bibliotecas escolares estão, assim, no centro de qualquer vida cultural. E deste modo pudemos reler com os olhos de sempre a obra de Luandino Vieira, designadamente “Luuanda”, através da sensibilidade de alunos e professores de Ourém.
Graças à iniciativa de Agripina Carriço Vieira, foi possível mobilizar o Município de Ourém e o Instituto Politécnico de Tomar numa importante reflexão sobre a vida e o exemplo do escritor luso-angolano. E Roberto Vecchi visitou os “Papeis da Prisão” como testemunhos vivos da revelação do que Eduardo Lourenço designou como o “nosso impensado”, a resistência e o combate pela liberdade. A força da cultura da nossa língua evidencia-se em tal determinação. E nessa reflexão, José Luís Pires Laranjeira, Lívia Apa, Tânia Macedo e Francisco Topa abriram horizontes sobre a vitalidade cultural de quando no livro “Luuanda” os casos se passaram “no musseque Sambizanga nesta nossa terra de Luanda”. E eis que podemos descobrir o que Carmen Tindó Secco afirmou sobre o facto, “de um modo próprio e genial”, de Luandino ter recriado “a língua portuguesa para refletir a oralidade angolana”. Vem à memória “Sagarana”, o inesquecível livro de contos de João Guimarães Rosa, cujo espírito renovador se projeta na escrita de “Luuanda”. E assim seguimos as três narrativas capitulares: “Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos”, “A estória do ladrão e do papagaio” e “A estória da galinha e do ovo”, que tanto entusiasmaram os jovens leitores de hoje, surpreendidos pelo inesperado da criatividade vivida entre o português e o quimbundo, língua viva dos musseques. Como afirma Margarida Calafate Ribeiro: esta obra “ganhou um lugar tanto na história portuguesa como na angolana como um momento chave de enfrentamento”.
Quando Luandino Vieira recusou receber o Prémio Camões em 2006, fê-lo com o argumento que não tinha então uma ação continuada no mundo literário. Contudo fica claro que a sua presença na cultura da língua portuguesa é marcante como demonstrou o Grande Prémio de Novelística atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores em 1965, que originou a perseguição política e o brutal fecho da instituição presidida por Jacinto do Prado Coelho. O júri constituído por Alexandre Pinheiro Torres, Augusto Abelaira, Fernanda Botelho, João Gaspar Simões e Manuel da Fonseca reconheceu de forma pioneira uma obra muito importante na moderna literatura portuguesa, daí que o Prémio Camões caiba com inteira justiça a Luandino Vieira, numa análise global de tudo o que nos deixa.
Recentemente terminado o Sínodo da Igreja Católica debruçou-se sobre o papel das mulheres e chegou a conclusões que podem prenunciar um caminho renovador, a que devemos estar atentos.
UMA LEITURA CUIDADA É fundamental estar atento às conclusões do Sínodo da Igreja Católica no tocante ao papel das mulheres. Torna-se necessário fazer uma leitura cuidada do que aí se disse. É verdade que se poderia ter ido mais longe, mas numa instituição bimilenária é indispensável dar passos seguros, sem esquecer a audácia e a coragem. Se virmos bem, tudo aqui está dito, e não podemos esquecer que a sociedade humana compreende que a dignidade da pessoa humana, no sentido universalista, tem de abranger todos de um modo aberto e paritário. Releia-se, por isso, o texto fundamental do Sínodo, que deve estar bem presente: «Em virtude do Batismo, homens e mulheres gozam de igual dignidade no Povo de Deus. No entanto, as mulheres continuam a encontrar obstáculos para obter um reconhecimento mais pleno dos seus carismas, da sua vocação e do seu lugar nos vários sectores da vida da Igreja, em detrimento do serviço à missão comum».
Sem tergiversações, sigamos diretamente o texto aprovado. Não pode haver qualquer ilusão sobre qual o sentido das Escrituras nesta matéria. De facto, «as Escrituras atestam o papel de primeiro plano de muitas mulheres na história da salvação. A uma mulher, Maria de Magdala, foi confiado o primeiro anúncio da Ressurreição; no dia de Pentecostes, Maria, a Mãe de Jesus, estava presente no Cenáculo, juntamente com muitas outras mulheres que tinham seguido o Senhor. É importante que as passagens relevantes da Escritura encontrem lugar apropriado nos lecionários litúrgicos. Alguns momentos cruciais da história da Igreja confirmam o contributo essencial das mulheres movidas pelo Espírito. As mulheres constituem a maioria daqueles que frequentam as igrejas e são frequentemente as primeiras testemunhas da fé nas famílias. São ativas na vida das pequenas comunidades cristãs e nas paróquias; dirigem escolas, hospitais e centros de acolhimento; lideram iniciativas de reconciliação e de promoção da dignidade humana e da justiça social. As mulheres contribuem para a investigação teológica e estão presentes em posições de responsabilidade nas instituições ligadas à Igreja, na Cúria diocesana e na Cúria Romana. Há mulheres que exercem cargos de autoridade ou são responsáveis pela comunidade».
A PRIMEIRA PREFEITA COM DICASTÉRIO ATRIBUÍDO Há, deste modo, um sinal muito importante que acaba de ser dado: pela primeira vez na história da Igreja Católica, uma mulher foi nomeada Prefeita do Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica. Trata-se da irmã Simona Brambilla, religiosa das Missionárias da Consolata, doutorada em Psicologia pela Universidade Gregoriana. Quando Emmanuel Mounier afirmou que “a mulher também é pessoa”, houve quem considerasse a afirmação como óbvia ou supérflua, mas a verdade é que ainda hoje estamos confrontados com incompreensões e dúvidas incompreensíveis a esse respeito, o que obriga a tirarmos as devidas consequências.
Até hoje, a Igreja Católica reconheceu 36 doutores, entre os quais quatro mulheres: Teresa de Ávila (1515-1582), Catarina de Sena (1347-1380), Teresa de Lisieux (1873-1897)e, por último, a monja beneditina Hildegarda de Bingen (1098-1179). Poderemos falar, certamente no futuro próximo, ainda da Santa Teresa Benedita da Cruz, a filósofa reconhecida mundialmente com uma importante obra publicada, Edith Stein (1891-1942). E quando lemos os contributos teológicos destas mulheres compreendemos bem a força da sua fé e da sua reflexão em termos de extraordinária relevância. Demonstram, afinal, como o tempo confirmará por certo, a exigência do reconhecimento da dignidade humana com todas as suas consequências. Daí o Sínodo convidar a uma plena concretização «de todas as oportunidades já previstas no direito vigente relativamente ao papel das mulheres, particularmente nos lugares onde estas continuam por cumprir. Não há razões que impeçam as mulheres de assumir funções de liderança na Igreja: não se pode impedir o que vem do Espírito Santo. A questão do acesso das mulheres ao ministério diaconal também permanece em aberto. É necessário prosseguir o discernimento a este respeito. A Assembleia convida também a prestar maior atenção à linguagem e às imagens utilizadas na pregação, no ensino, na catequese e na redação dos documentos oficiais da Igreja, dando mais espaço ao contributo de mulheres santas, teólogas e místicas».
SINAL PROMETEDOR Se temos agora um sinal prometedor, somos chamados à coragem e ao uso coerente da sabedoria. Daí a importância de uma leitura atenta de um texto notável onde está tudo dito, importando tirar consequências. Eis o desafio fundamental: partir de cada uma destas considerações, para podermos com determinação avançar no reconhecimento da dignidade humana para todos nas suas justas consequências. Como afirmou o Papa Francisco, “penso em todas as mulheres: agradeço-lhes pelo seu compromisso em construir uma sociedade mais humana, por meio da sua capacidade de compreender a realidade com um olhar criativo e um coração terno”.
As Raízes Culturais de Portugal e da Europa serão tema do próximo curso do CNC. Os Roteiros Culturais estarão na ordem do dia e nada melhor do que começarmos por Ulisses e a sua viagem mítica de Troia até Ítaca…
(Ilustração de Jaime Martins Barata)
QUE ITINERÁRIOS CULTURAIS? Quando Claudio Magris escreveu “Danúbio” deu-nos o paradigma dos Itinerários Culturais que constituem base para a compreensão das raízes e da diversidade do património cultural material e imaterial – monumentos, geografia, tradições, costumes e criação contemporânea. Num tempo de mal-estar e de grande incerteza, torna-se necessário regressar ao conhecimento da História, única forma de prevenir a repetição de erros antigos, tantas vezes devidos à pura ignorância e à tentação de reconstruir o mundo à luz de uma visão unilateral e fechada, tributária de uma conceção avessa ao diálogo entre culturas e à ideia de civilização. O mundo contemporâneo defronta-se com as noções de globalização e de complexidade, das quais importa tirar conclusões orientadas pela demarcação quer do absolutismo quer do relativismo nos valores éticos. Apenas o conceito de pluralismo, aliado ao respeito mútuo, à partilha de responsabilidades e a um verdadeiro intercâmbio de entendimentos diferentes quanto às raízes culturais, permitirá superarmos aquilo que Hermann Broch designou como “sonambulismo” e vazio de valores. Longe da tentação da procura de um lugar onde ninguém se possa encontrar, sob a ilusão de que assim se respeitariam as diferenças, importa garantir um consenso de sobreposição democrático que permita a todos sentirem-se em casa, enriquecendo-se mutuamente. Daí a importância da ideia de roteiro cultural, no qual se possa assegurar o encontro das diferenças e a complementaridade entre raízes múltiplas.
PORQUÊ ULISSES? Lembremo-nos do paradigma de Ulisses e da sua viagem de Troia para Ítaca. Aí temos, num registo imaginário, o encontro das diferenças, e uma aprendizagem do inesperado pela experiência. E recorde-se que o projeto de Claudio Magris de seguir o caminho do Danúbio das nascentes até à foz, começou com um desafio centrado no projeto “Arquitetura da Viagem. Os Hotéis: História e Utopia”. Sim, História e Utopia encontram-se na ideia de viagem, uma vez que os acontecimentos históricos ocorrem sem repetição e dependem das circunstâncias concretas e do modo como os viajantes respondem aos diferentes desafios, enquanto a utopia leva à consideração de um horizonte de vários possíveis, que a cada passo nos confronta. Os dois polos coexistem e confrontam-se e a ideia de que o acontecimento é nosso mestre interior resulta dessa ligação. Que era o “Grand Tour”, praticado por várias gerações das elites europeias, príncipes e mercadores, intelectuais e aventureiros, senão a imersão total nesse confronto da aprendizagem entre a realidade e o sonho? Ruskin encontrou esse paradoxo entre realidade e imaginação na cidade de Veneza, já que a República Sereníssima simboliza essa misteriosa relação entre a cidade e a sua sombra – “um fantasma na areia do mar, tão frágil, tão silenciosa, tão despojada de tudo exceto da sua beleza, que por vezes, ao contemplarmos o seu lânguido reflexo na laguna, nos perguntamos quase como se fosse uma miragem, qual a cidade, qual a sua sombra”.
Nos percursos culturais, importa revelar as referências históricas, mitos, lugares e acontecimentos, origens e raízes. Trata-se de peregrinar ao encontro da memória, ilustrando a aventura com o que é digno de interesse e atenção. Montaigne, Stendhal, Goethe, Chateaubriand, Thoreau, Júlio Verne, George Sand, Magris, Canetti, André Gide, Bruce Chatwin ensinaram-nos a construir uma síntese entre história, geografia, literatura, filosofia, política, economia e artes. As Viagens Extraordinárias de Verne envolvem, por isso, a realidade e o fantástico, os mundos conhecidos e desconhecidos. Em A Volta ao Mundo em Oitenta Dias faz-se a divulgação do novo sistema horário universal e da linha internacional de mudança de data, que salvará a aposta de Phileas Fogg. Em Da Terra à Lua antecipa-se o que apenas em 1969 se concretizará. E com Miguel Strogoff, o correio do czar revela-nos todo o mistério do maior império de sempre.
A VIAGEM MODELAR Comecemos por Ulisses, o grande viajante mítico, perdido entre a saudade de Ítaca e o perigo das viagens. Trata-se da história do “herói de mil estratagemas que tanto vagueou, depois de ter destruído a cidadela sagrada de Troia, que viu cidades e conheceu costumes de muitos homens e que no mar padeceu mil tormentos, quando lutava pela vida e pelo regresso dos seus companheiros”. Ulisses levará dez anos a chegar à sua terra natal, depois da guerra de Troia, que durara outra década. Encontramo-lo cativo da bela ninfa Calipso, que o libertará, ao fim de sete anos, pela intervenção de Atena. Depois de novo naufrágio, o herói alcança a praia de Esquéria, lar dos Feaces, hábeis construtores de navios, sendo recebido por Nausícaa, que lhe dá hospitalidade e o ajuda, em contrapartida do relato das suas aventuras desde a partida de Troia. Aí recorda a aventurosa estada na Ciclopia, onde se vira confrontado pelos Ciclopes e pelo ameaçador Polifemo, contra quem teve de usar a proverbial astúcia, cegando o único olho que o monstro tinha, o que causaria a ira de Poseidon. A viagem envolveu ainda o encontro com Éolo e Circe, as previsões de Tirésias, e a ida à última fronteira dos Oceanos, ao limiar dos infernos e ao reino dos mortos. Nas tempestades entre Cila e Caríbdis perde alguns dos seus companheiros e, ao passar pela ilha das sereias protege-se, evitando deixar-se seduzir pelos cantos encantatórios, conseguindo regressar à luz e à alegria, não sem que sofresse ainda as vicissitudes na ilha do Sol, antes de regressar a Ítaca, para junto de Penélope e seu filho Telémaco, vencendo os pretendentes oportunistas que procuravam suceder-lhe no poder e influência. Temos aqui o exemplo supremo de uma viagem iniciática, que influenciou obras tão diferentes como a Eneida de Virgílio, Os Lusíadas de Camões ou Ulisses de James Joyce.
Referindo os itinerários que se tornaram modelos, importa seguir o Livro de Marco Polo, que relata a experiência do veneziano na Rota da Seda, que passa por Samarcanda e chega a Pequim e vai até ao contorno da Ásia, da Índia e do Golfo Pérsico, até aos lugares do domínio futuro do Império de Alexandre o Grande no Levante Mediterrânico. E eis como chegamos ao itinerário do nosso Infante D. Pedro das Sete Partidas, Duque de Coimbra e de Treviso, no Veneto, o mesmo que trouxe para a corte portuguesa o Livro das Maravilhas de Marco Polo. E assim o conhecimento do Império Romano-Germânico leva-nos à redescoberta do Mediterrâneo, lembrando a viagem Ibn Batuta, o extraordinário visitante que foi até ao fim do mundo. E interrogamo-nos sobre o encontro dos portugueses com Génova, Veneza e Roma, na génese do Plano da Índia do Príncipe Perfeito e na demanda do Preste João, encontrando-nos com Pero da Covilhã e Afonso de Paiva no Cairo até ao mar Arábico, culminando na Etiópia. E como não evocar os grandes cientistas portugueses e o seu decisivo contributo para a humanidade – Pedro Nunes, Garcia de Horta e D. João de Castro, com a demonstração de como o saber de experiências feito nos deu o conhecimento do mundo?
Na varanda de casa de seus pais no Rossio, aquando do desfile de celebração da descoberta do caminho marítimo para a Índia (maio de 1898), José Maria Eça de Queiroz foi surpreendido por uma sentida ovação dos populares presentes na circunstância. Lembrei-me desse episódio quando assisti à cerimónia de concessão de honras de Panteão Nacional em memória do grande romancista da língua portuguesa, cuja importância ultrapassa em muito a nossa dimensão geográfica. Na manifestação espontânea de outrora, que muito sensibilizou o escritor, está simbolizada a justiça da homenagem de agora. Estavam então e agora representados cidadãos comuns, leitores, admiradores e amantes da língua comum, e nesse sentido o Panteão constitui um lugar de culto cívico que sai mais prestigiado pela chegada de um dos nossos imortais.
Citou o Presidente da República um trecho da carta datada de Paris em 28 de janeiro de 1890, dirigida a Oliveira Martins, que constitui um testemunho simbólico, onde sentimos ainda como Eça de Queiroz não seria indiferente a este reconhecimento. Daí a ligação das duas ocasiões – a do aplauso popular e a da confissão do mestre. A propósito de umas eventuais intrigas sobre o consulado de Paris, com epicentro no famigerado visconde de Faria, Eça pedia ao seu amigo que cuidasse de garantir a continuidade no consulado da cidade-luz, porém acrescentava: “Isto não quer dizer que eu não tenha desejo de recolher à minha Pátria; mas isso é difícil, por questões orçamentais, e a ficar na carreira, então desejo ficar em Paris. Se Vocês, todavia, homens poderosos, pudessem arranjar aí um nicho ao vosso amigo há tantos anos exilado, teríeis feito obra amiga e santa! Era necessário, porém, descobrir o nicho! E depois, arranjar do nosso bom amigo, o Rei, que eu fosse plantado no nicho! E dizer que, se eu, tivesse nascido dos Pirenéus para cá, e dado romances ao Petit Journal possuiria talvez 60.000 francos de renda”… Havia, no fundo, uma ligação íntima ao torrão natal e à nossa gente. E falando nas Notas Contemporâneas a propósito da demanda artificial de grandes homens que havia em França, Eça reconhecia que em qualquer escolha “a demonstração fica sujeita a dúvidas, a contestações, a protestos. Fica sobretudo incompreendida pela multidão”. Contudo, na distinção dos melhores, havia a exceção de Vítor Hugo, “pelo menos, é um grande homem – que não necessita demonstração”. E é disso que se trata no caso do nosso grande romancista.
Ele, melhor que ninguém, usou da ironia para distinguir o trigo do joio, e isso não se esquece quando se fala dos melhores, sabendo-se que a sociedade envolve todos, incluindo as respetivas caricaturas, os Acácios, os Pachecos e os Abranhos, dos quais não se conhecia obra, mas apenas inefável talento. O contexto da carta era o do Ultimato inglês, na sequência do Mapa Cor-de-Rosa, momento dramático da vida nacional, e a Eça parecia-lhe que o País acordava estremunhado e olhava em redor procurando um caminho. E Eça de Queiroz foi uma personalidade atenta, que, com espírito positivo, desejava que Portugal singrasse. A atualidade queiroziana está assim na sua obra, que importa ler e reler, e no retrato crítico e rigoroso da sociedade com os seus defeitos e qualidades que importa apurar, para sermos melhores.