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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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“Pára e pensa”. A Última Palavra

Hannah Arendt.jpg

 

Nunca tivemos tanto acesso à informação. Também nunca houve tantos meios de acesso, a ponto de aquilo que é um benefício poder tornar-se um verdadeiro desastre, como muitos especialistas chamam a atenção.

Por exemplo, no seu recente livro El arte de la felicidad, o médico e teólogo Alfred Sonnenfeld, escreve que nesta “era da distracção” corremos o risco de saltar de uma informação para outra sem reflectirmos nos conteúdos. Vivemos na sociedade do “ruído mental”, com bombardeamentos constantes de informações e publicidade, e tudo isto nos impõe um “estilo de vida no qual faltam a atenção e a concentração”. Se não houver capacidade de distanciamento, o risco é “perdermos as capacidades mais valiosas do pensamento humano: a criatividade, a reflexão e o pensamento crítico”. O neurocientista Michel Desmurget, no seu recente livro A fábrica de cretinos digitais, mostra inclusivamente que, por causa da cultura do ecrã e do dedar constante, se está a registar uma diminuição do Quociente de Inteligência (QI).

Aqui chegados, e perante a incapacidade de distinguir o essencial do superficial, impõe-se o apelo de Hannah Arendt: “Pára e pensa”. E há coisa mais essencial do que perguntas como estas: Donde vimos? Para onde vamos? O que é que verdadeiramente vale?  Qual o sentido da existência, Sentido último?

É do essencial que a Páscoa trata. E lá está Pascal: “Jesus estará em agonia até ao fim dos tempos; é preciso não dormir durante esse tempo.”

Na Paixão, estamos todos. Jesus não morreu vítima de Deus, que precisaria da sua morte para aplacar a Sua ira e assim poder reconciliar-se com a Humanidade. Pelo contrário, Jesus foi vítima da religião oficial e do poder imperial romano, porque a Sua mensagem, por palavras e obras - Deus é bom, Pai e Mãe de todos, a começar pelos mais pobres, abandonados, explorados, pecadores – punha em causa os seus interesses. Aí está o perigo do poder religioso e político, quando estão ao serviço da exploração. Lá estão os discípulos, que fugiram. Lá está Pedro, o amigo generoso, mas cobarde: bastou uma criada suspeitar que ele também era discípulo e logo negou; depois, arrependeu-se e chorou amargamente. Lá está Judas. Lá está Pilatos, que lavou as mãos. Lá está o cireneu, que ajuda. Lá estão os dois ladrões (talvez terroristas): um converteu-se, o outro continuou a blasfemar. Lá estão as mulheres, as únicas que não fugiram e acompanharam Jesus até à morte. E Jesus perdoou até àqueles que o matavam. E rezou aquela oração, uma pergunta que atravessa os séculos: “Meus Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?”. Mas continuou a confiar: “Pai, nas tuas mãos entrego o meus espírito”…

Jesus morreu na cruz, a morte horrenda que os romanos davam aos rebeldes e aos escravos. Aparentemente, foi o fim. O enigma histórico do cristianismo é que, pouco tempo depois, os discípulos voltaram a reunir-se e foram anunciar ao mundo que aquele crucificado é realmente o Messias, o Salvador. Fizeram a experiência avassaladora de fé, a começar por Maria Madalena, de que Jesus, que morreu para dar testemunho da Verdade e do Amor, está vivo em Deus para sempre, como desafio e esperança para todos. E deram a vida por essa fé, que chegou até nós.

Quando olhamos para a História, com todas as lutas, amores, sonhos, realizações, fracassos, esperanças, que a atravessam, ergue-se, do mais fundo, a pergunta: Foi tudo para nada? E há as vítimas inocentes que clamam por justiça, e quem pagará a dívida da História para com elas? Neste contexto, o agnóstico Jürgen Habermas, o maior filósofo vivo, escreveu, citando J. Glebe-Möller: “Se desejarmos manter a solidariedade com todos os outros, incluindo os mortos, temos de reclamar uma realidade que esteja para lá do aqui e agora e que possa vincular-nos também para lá da nossa morte com aqueles que, apesar da sua inocência, foram destruídos antes de nós. E a essa realidade a fé cristã chama Deus.”

A fé é um combate, como deu testemunho também o teólogo rebelde Hans Küng, ao aproximar-se do seu próprio fim – morreu em Abril de 2021. Confessou que uma das suas irmãs lhe perguntou com toda a seriedade: «Acreditas realmente na vida depois da morte?» E ele: «Sim”, respondi com convicção. Não porque tenha demonstrado racionalmente essa vida depois da morte, mas porque mantive a confiança racional em Deus e porque na confiança no Deus eterno também posso confiar na minha própria vida eterna. Devo ou não ter esperança em algo que seja a ultimidade de tudo? Uma vida eterna, um descanso eterno, uma felicidade eterna? Isso é problema da confiança, mas de modo nenhum de uma maneira irracional, mas de uma confiança responsável. É irracional a confiança em Deus? Não. A mim parece-me a coisa mais racional de tudo quanto o ser humano pode ser capaz. O que me parece absurdo é pensar que o ser humano morre para o nada. A passagem à morte e a própria morte são apenas estações a que se segue um novo futuro. A vida é mais forte do que a morte e o ser humano morre entrando na Realidade primeira e última, inconcebível e inabarcável, que não é o nada, mas sim a Realidade mais real. A vida transforma-se, não acaba. Eu defendo uma fé cristã em Deus e na vida eterna. Sem Deus, a fé na vida eterna não teria razões, careceria de fundamento. E vice-versa: a fé em Deus sem fé na vida eterna careceria de consequências, não teria um objectivo».

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 8 de abril de 2023

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


126. PELA NÃO-BANALIDADE DO MAL E DO BEM


Sendo por natureza o mal radical, não pode ao mesmo tempo ser banal. Classificar o mal como banal é perigoso, podendo dar a ideia de ser algo sem gravidade. Uma suposta banalidade do mal normaliza-o, havendo que o não vulgarizar, em paralelo com a não-banalidade do bem que também não pode ser banal, porque, de igual modo, radical.     


Tal conclusão, em jeito de síntese, vem a propósito da controvérsia gerada (que perdura) aquando da exibição do filme Hannah Arendt, de Margarethe Von Trotta, ao remeter para uma presumível atuação “banal” de Adolf Eichmann (AE) que, quando julgado, se defendeu alegando que se limitou a cumprir ordens sem saber ou sentir que agia mal, o que, numa perspetiva crítica, nos leva a concluir que os crimes contra a humanidade são obra de milhares ou milhões de seres humanos “normais” ou “vulgares”, com a cumplicidade de outros, num ambiente de generalizada indiferença, em que o acusado era um mero burocrata ou peça de toda a engrenagem conducente do Holocausto (argumento da obediência burocrática). 


O que é mais surpreendente ao sabermos que AE provou, em julgamento, ter conhecimento do imperativo categórico de Kant, tido como necessário, incondicional e não subordinado a nenhum fim, porquanto a imperfeição da vontade humana exige um princípio objetivo obrigante, expresso do seguinte modo: “Age apenas segundo aquela máxima que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”. 


A questão da “banalidade do mal”, fulcral no filme, é polémica, pois sendo o mal radical não pode ser banal, por remeter para interrogações não resolvidas sobre a capacidade e a liberdade de pensar, de julgar, de distinguir entre o bem e o mal, sendo tal expressão pedagogicamente infeliz, indesejável e insegura, colocando os verdadeiros criminosos e cúmplices numa situação aconchegante de “impossível escolha”. 


Tanto mais que se tratava de um mal banal não comum, causa de uma nova tipicidade criminal e legal, os crimes contra a humanidade.


Também não se pode falar em banalidade do bem, porque também per si radical, por confronto com a constatação de que no tempo nazi, em que viveu AE, houve quem não aceitasse ser um Eichmann, o que nos remete para a capacidade e liberdade de pensar e julgar, entre o bem e o mal, em tempos sombrios e de escuridão.   

 

18.11.22
Joaquim M. M. Patrício

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Escreve Sylvie Courtine-Denamy em Trois femmes dans de sombres temps (Edith Stein, Hannah Arendt, Simone Weil): Para Arendt, o perdão é um conceito com função importante: «Se não fôssemos perdoados, libertados das consequências do que fizemos, a nossa capacidade de agir seria como que encerrada num ato único do qual nunca mais nos poderíamos levantar; ficaríamos para sempre vítimas dessas consequências, tal como um aprendiz de feiticeiro que, à falta de fórmula mágica, não poderia quebrar o encanto». O perdão surge assim como libertação possível da irreversibilidade da ação, «quando não sabíamos, não podíamos saber o que fazíamos». É a Jesus de Nazaré que ela aqui se refere, a Ele ter sabido suster que o poder  de perdoar «não vem de Deus [...] mas deve, pelo contrário, trocar-se entre os homens que, só depois disso, poderão esperar ser também perdoados por Deus». As citações de Arendt aqui feitas por Courtine-Denamy são todas respigadas da versão francesa de "The Condition of Modern Man", publicada em 1961 e 1983, pela Calmann-Lévy (La Condition de homme moderne, tradução de G. Fradier, com prefácio de Paul Ricoeur). Mais adiante, observa: Por outras palavras, o perdão é libertador. Na verdade, só o amor pode perdoar, na medida em que «se desinteressa, a ponto de ser totalmente ausente do mundo, daquilo que possa ser a pessoa amada, das suas qualidades e dos seus defeitos, como dos seus êxitos, omissões ou transgressões». Eis porque é que o amor, sendo «estranho ao mundo» é, não só «a-político», mas «antipolítico». Temos, pois, de concluir que se Hannah Arendt muito perdoou a Heidegger, foi também por tê-lo amado muito. Está assim aqui resumido tudo o que, mutatis mutandis, eu te irei dizendo a seguir.

 

   Comove-me aquela evocação do dito de Jesus Cristo sobre a origem do poder de perdoar, que reside no coração das pessoas humanas quando estas se deixam habitar pelo amor de Deus que, no cristianismo, não pode existir marginalizado do amor dos outros, nossos próximos. Será que, cultivados por gerações sucessivas de "mestres"  (alguns deles lembrando a contrario o dito de Jesus : o mais pequeno entre todos vós, esse é o grande)  -  "mestres" esses mais inspirados pelo formalismo do rigor canónico, pelo resguardo da sua autoridade, ou pelo policiamento de adventícias "heresias", do que pela mensagem fulcral do cristianismo que é o mandamento do amor com toda a misericórdia de que ele é capaz  - , já não nos conseguimos libertar o infinito que desafia cada extensão do nosso coração, isto é, a primazia ética de saber "perdoar não apenas sete vezes, nem sete vezes sete, mas setenta e sete vezes sete"? O perdão não pode ostracizar, ele é, como tão bem nos conta a parábola do Filho Pródigo, cujo Pai sai ao seu encontro para lhe abençoar o regresso, acolhimento por excelência. Quando refletirmos sobre casos de divorciados recasados e muitos outros, é bom que o nosso pensarsentir seja, primeiro, acolhimento e reconciliação.  Quiçá essa reflexão também nos leve a reconsiderar a qualificação, como pecado, de divórcios e segundos casamentos. Até haverá casos em que sejam inevitáveis ou, mesmo, sejam a melhor solução para pais e crianças envolvidos. Parafraseando: "a instituição matrimonial é feita para o homem, não o homem para a instituição".  E, ao interrogarmo-nos sobre qualquer repúdio de homossexuais (que, ainda por cima, para quem esteja ao corrente das ciências de hoje, de modo algum podem ser considerados deficientes, diminuídos, psicopatas ou, menos ainda, pecadores por natureza), deveremos lembrar-nos do ser humano, nosso igual irmão em Cristo, e esquecer preconceitos culturais insustentáveis. E ninguém se esqueça de que nenhum de nós é juiz do outro, verdade que o Papa Francisco tem lembrado: Quem sou eu para julgar? Entristece-me muito deparar com tantas situações em que ministros ao serviço da Igreja de todos, se atêm à ideia de que o poder de perdoar lhes vem de Deus  -  que lhes entregou não só códigos ou regras definidoras dos pecados, como ainda tabelas de classificação destes e das respetivas penas aplicáveis, para que eles, e só eles, possam exercer, por delegação do Altíssimo Juiz, o poder de absolver ou condenar  -  e se esquecem de que perdoar, reconciliar, é o dever fundamental da nova lei de Cristo, de cumprimento a todos exigível, ao ponto de ser inaceitável uma oferta presente no altar, enquanto não me reconciliar com meu irmão. Na Igreja Apostólica, a confissão dos pecados e a determinação da pertinente penitência era comunitária, como ainda hoje se pratica nos capítulos das antigas ordens monásticas e religiosas. E o pecado que cada um anunciava ao perdão dos seus irmãos não era uma acusação escrupulosa, ou mais ou menos narcísica de um ato individual, mas a apresentação, à correção fraterna de cada igreja ou comunidade, de intenções consentidas, atos praticados ou omissos que, de um ou outro modo, pudessem ser ou tivessem sido atentatórios da caridade comunitária, isto é, da justiça como direito de todos e de cada um. Donde o lema: "Deus habita a caridade". 

 

   E porque o acolhimento é desígnio de Deus, a igreja não se fecha à chave [conclave, só cardeais para eleição do papa, o que diz muito sobre o clima de conspirações e intrigas, e as movimentações de influências que tiverem de ser controladas], mas é bom pastor aquele que deixa o rebanho no redil para ir lá longe buscar a ovelha transviada. Ou que, a exemplo de Jesus, acolhe La Traviata, a transviada. Conta-nos o Evangelho de Lucas (8, 36-50), em tradução de Frederico Lourenço:

 

   Convidou-o um dos fariseus para comer consigo e, entrando em casa do fariseu, tomou o seu lugar à mesa. E eis que certa mulher, conhecida naquela cidade como pecadora, ao saber que ele estava à mesa em casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com perfume. E colocando-se por detrás dele e chorando, começou a banhar-lhe os pés com lágrimas; secava-os com os cabelos e beijava os pés dele e ungia-os com perfume.

 

   Vendo isto, o fariseu que o convidara disse para consigo: «Se este homem fosse profeta, saberia quem e que tipo de mulher é esta que lhe está a tocar, porque é uma pecadora.»

 

   Então Jesus disse-lhe em resposta: «Simão, tenho uma coisa para te dizer.» Ele disse: «Fala, Mestre.»  «Dois devedores tinham um prestamista: um deles devia-lhe quinhentos denários e o outro cinquenta. Não tendo eles com que pagar, perdoou aos dois. Qual deles o amará mais?» Simão disse em resposta: «Aquele a quem perdoou mais dívida, creio eu.» Jesus disse-lhe: «Julgaste bem.» E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: «Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste água para os pés; ela, porém, banhou-me os pés com as suas lágrimas e secou-os com os seus cabelos. Não me deste um beijo; mas ela, desde que entrou, não deixou de beijar-me os pés. Não me ungiste a cabeça com azeite, e ela ungiu-me os pés com perfume. Por isso, digo-te que lhe estão perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas aquele, a quem pouco se perdoa, pouco ama.» Depois, disse à mulher: «Os teus pecados estão perdoados.»

 

   Começaram então os convivas a dizer entre si: «Quem é este que até perdoa os pecados?» E Jesus disse à mulher:

«A tua fé te salvou. Vai em paz.»

 

   À atenção e ao cuidado de qualquer pecador e de qualquer "mestre", entre os muitos que todos nós somos, deixo a nota observadora do professor Frederico Lourenço: «estão perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama» -a formulação da frase em grego (hai hamartíai hai pollaí) sustém a interpretação de que foram perdoados todos os pecados da mulher. O amor, como circunstância mitigadora do pecado («porque muito amou») - faz pensar em I Pedro48: «acima de tudo mantende entre vós um amor intensoporque o amor cobre a multidão dos pecados. Curiosa é a ideia de que aqueles que têm poucos pecados por perdoar são pessoas que pouco amam. Nesta última frase, o tempo verbal é o presente; no caso do amor da pecadora, é o aoristo (égapêsen: amou pontualmente no passado); e no caso dos pecados perdoados, temos o perfeito, permitindo a tradução «os teus pecados foram e continuam perdoados», em virtude da força semântica do perfeito grego como resultado presente de uma ação passada.

 

   Esta afirmação de que «os teus pecados foram e continuam perdoados» parece apontar para um amor misericordioso sempre ativo e sem repouso, uma vocação à conversão que, como diria Hannah Arendt, nos liberta das consequências do que fizemos e restaura a nossa capacidade de agir. O repúdio da pena de morte fundamenta-se no respeito da vida até às suas próprias capacidades de renovação, a misericórdia do Deus dos vivos não se seca, não é juíza impositora de sentenças e penas, é, sempre e só, um apelo à metanoia... Escrevo-te a 21 de setembro, dia de festejar São Mateus, o cobrador de impostos e a sua pessoa nova que seguirá Jesus como seu apóstolo. E leio um passo do Evangelho do seu homónimo (nada, em verdade, nos permite identificar o apóstolo com o evangelista), trecho que está em Mateus, 9, 11-13:

 

   E os fariseus disseram aos discípulos dele: «Porque razão come o vosso mestre com cobradores de impostos e com pecadores?» Jesus, porém, ouviu e disse: «Os saudáveis não têm necessidade de um médico, mas sim os doentes. Mas ide e aprendei o que é isto: quero misericórdia e não sacrifício. Não vim chamar os justos, mas sim os pecadores».

 

   Aqui chegada esta carta, sei que deixarei para outras o quase tudo que tenho ainda para te dizer. Porque, na verdade, não é fácil agir com justiça, nem superar a nossa perplexidade, sempre que nos deparamos com o dilema que contrapõe o rigor do juízo à misericórdia do pensarsentir. E bem sabemos que não há vida social possível sem ordenamento jurídico, nem direitos de todos e cada um sem justiça.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

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   Minha Princesa de mim:

 

   Nunca entendi bem como funciona esta minha teimosia em procurar salvar-me de sentidos pensamentos que me afligem, partindo em busca das respetivas raízes, ou do solo em que medram. Como se o antídoto de qualquer mal fosse ir ao seu encontro, ao fundo do seu porquê. Mas tampouco é vício masoquista, quem como tu me conhece bem sabe que je suis plutôt bon vivant ou, como tantas vezes me disse, rindo muito, a nossa tia Bertha Eugenia: Camilo, tu es un jouisseur! Vejo-a agora, quase trinta anos depois, a vir comigo a uns five o´clock tea, no Plaza, em Manhattan, ao som de violinos que ressuscitavam música vienense que lhe encantara a mocidade. Viera visitar-nos, ao nosso posto estadunidense, airosa e contente, elegante e esperta, flor de oitenta e dois anos, viajando, viúva sozinha, desde Bruxelas. Viria a morrer dez anos mais tarde, aos noventa e dois, em Gerardsbergen, onde ainda a visitei muitas vezes, quando fazia escala em Bruxelas em viagens do Japão a Portugal. Apesar do ou por causa do seu fervoroso catolicismo, aquela Senhora tinha, como sua irmã mais velha, minha Mãe, uma alegria contagiosa e um otimismo que inspirava confiança... era de boa companhia.


   Voltando às minhas interrogações, aquela citação final da Hannah Arendt na minha carta anterior (Sempre acreditei que somos o que vivemos) foi-me soprada pela leitura de um livro que te recomendo: Trois femmes dans de sombres temps (Edith Stein, Hannah Arendt, Simone Weil), três filósofas judias, duas alemãs e uma francesa de origem alsaciana, meditadas por outra filósofa (francesa), Sylvie Courtine-Denamy, na Bibliothèque de l´Évolution de l´Humanité (Albin Michel, Paris, 1997). Logo no prólogo, a autora, além da citada frase da carta de Arendt a Mary McCarthy, lembra-nos que a designação "os tempos sombrios" (1933-1943) se deve a Bertold Brecht, num poema onde, dirigindo-se «aos que nascerão depois de nós», lhes implorava indulgência para com esta geração que não tinha sabido «preparar o terreno para um mundo de amizade». Têm-me surgido, como fantasmas, tentações de referência, de factos e acontecimentos hodiernos, a situações de tensão, afrontamentos e reviravoltas, daqueles tempos, nesses anos em que a confusão dos espíritos foi levando a melhor sobre o amor do próximo... Desde a Guerra de Espanha, em que até padres católicos se odiaram uns aos outros, até à França de Vichy que, vencida pelo invasor nazi, se defendia dizendo "Hitler plutôt que le Front Populaire!", ou do pacto germano-soviético à conferência de Yalta... Traduzo um trecho de Les Grands Cimetières sous la lune, de Georges Bernanos:

 

   Parece-vos natural que Deus não tenha abençoado a sageza do mundo, a tal que confere honras, fortuna, riquezas. Esqueceis que, no decurso dos séculos, os homens consideraram a conquista desses bens, fosse pela força, pela injustiça ou pela manha, como legítima, sendo a posse assim obtida um favor do Altíssimo. A maioria dos grandes reis de Israel, a começar por Salomão, tinham do poder uma ideia comparável à que presentemente tem o Dr. Rosenberg. Será, aliás, precisamente por isso que os povos totalitários eliminarão fatalmente os seus judeus, já que cada um deles acredita que é eleito, e não há, no mundo, lugar para dois povos eleitos. Um facto, um simples facto, deveria abrir-vos os olhos: o sacrifício do fraco, do inocente, por muito tempo foi tido como o mais agradável a Deus. Por toda a parte, em qualquer idade, por milhares de séculos, a ideia de oração, de graça, de purificação, de perdão, esteve ligada à imagem repugnante de animais degolados por padres fumegando sangue lustral...

 

   [O Dr. Alfredo Rosenberg (1893-1946), autor de O Mito do século XX, foi um dos principais teorizadores do nazismo, ficando ainda famoso por ter organizado, durante a 2ª Grande Guerra, o saque de museus, bibliotecas e coleções privadas nos países ocupados. Mas talvez tenha escrito a sua mais negra folha de serviços enquanto Ministro dos Territórios de Leste, em 1941, ordenando execuções e deportações em massa, com o fito de germanizar a Ucrânia. Aprisionado em 1945, foi julgado em Nuremberga e executado em 1946.] 

 

   Seguindo o fio duma meada que, desde há algum tempo, trago na cabeça (terei começado pelo conceito de Tianxiá, e talvez lá regresse), retomo reflexões de Trois femmes dans de sombres temps, em que a autora vai analisando pensamentos de Hannah Arendt : Do carácter decididamente planetário e sem precedentes dos acontecimentos contemporâneos, Étienne Gilson [que foi meu professor], no seu Les Métamorphoses de la Cité de Dieu [Lovaina, 1952], conclui pelo necessário estabelecimento duma «sociedade universal», o que pressupõe a adesão de todas as nações a um princípio que a todas transcenderia. Não estaremos, assim, pergunta Hannah Arendt, a condenar-nos à alternativa do domínio global do totalitarismo ou à sociedade universal promovida pelo cristianismo? Em ambos os casos se ameaça a liberdade política, que só é possível no exercício de uma pluralidade de «princípios de vida e de pensamento» [Cahiers de Philosophie]. Não estaremos confrontados com a hipótese que ela encara em O que é a política? para demonstrar a perda irreparável de mundo que uma guerra total determinaria : «Se tivesse de acontecer que, na sequência de uma enorme catástrofe, só um povo sobrevivesse no mundo, e se tivesse de acontecer que todos os seus membros percebessem e compreendessem o mundo a partir duma única perspetiva, vivendo em consenso pleno, o mundo, no sentido histórico-político, caminharia para a sua perda, e esses homens privados de mundo, e que seriam os únicos sobreviventes sobre a terra , não teriam mais afinidades connosco do que essas tribos privadas de mundo e de relações que a humanidade europeia encontrou quando descobriu novos continentes, e que foram reconquistadas pelo mundo dos homens ou exterminadas sem que se desse conta de que pertenciam igualmente à humanidade».

 

   Certo é que, em tempo de invasiva globalização (pensei esta expressão e dou-me bem com ela), ninguém escapa à interrogação do destino do mundo, caminho de todos e de cada um, e acerca de se isso poderá ter governo e como. Esse epifenómeno da egocultura americana, vulgarmente chamada "american dream", que dá pelo nome de Donald Trump, poderá julgar que a grandeza dos EUA, como potência superior, quiçá hegemónica, será a chave do fado e da ordem mundial. Mas, não só a confusão das gentes que compõem o seu eleitorado, e cujo único denominador comum é uma pungente debilidade das respetivas visões do mundo, é incapaz de ultrapassar critérios sectários desfasados do tempo hodierno, como tampouco saberá produzir um discurso compreensível, racional e sentidamente aceitável pelos restantes cidadãos estadunidenses e outras muitas e variegadas gentes. E não será assim tão só em resultado de pouca instrução e fraca cultura do espírito, nem apenas pela exposição quotidiana de mentes sem educação do espírito crítico às ilusões mediáticas de notícias ou anúncios falsos, sejam esses de motivação política, publicitária ou outra. Pois também a falta de mais propostas livres e promotoras de consciência humanista é fruto do "quero, posso e mando" dos grandes interesses político-económicos, da omnipresença quase omnipotente do seu "marketing" nas orientações dos comportamentos dos indivíduos. Mesmo aqueles que se tomam por independentes, modernos, informados e cultos, são certamente enformados nas suas opções de dietas, passeios, leituras e lazeres, para já não entrarmos por questões políticas e outras de fora da sua vida estritamente privada. Basta falar com qualquer quarentão ou cinquentão (a média idade nas sociedades de "afluência"), para encontrar gente bem convencida de si e suas artes, mas que, afinal, tal como logo recorre à informação imediatamente disponível no computador ou no iphone, também não tem tempo nem esforço para refletir e exercitar espírito crítico. Menos ainda para sequer entender a força humanizante da contemplação. Seja de que lado estiverem quanto ao aquecimento global, às fontes de energia ou à alimentação sadia. Uns e outros vão beber às respetivas fontes, ou seja, ali onde se acham intelectualmente corretos. Eça de Queiroz dizia que a cultura, em Portugal, se importava de França, pelo paquete. No mercado contemporâneo, além do pronto a vestir e do take away, compra-se, na tv ou na net, o pronto a pensar, a opinar, a ter razão, a nos orientarmos pelo melhor, desde a ideia política ao passeio de domingo... mas o individualista sentimento de si é tão marcante que cada qual vê o mundo e os outros a girar à sua volta - por vezes quase como automobilista a identificar-se com a potência do seu carro - e se perde íntima comunhão com o mistério ontológico de tudo, essa oração essencial, tal como, infelizmente, se vai fugindo dessoutra força centrípeta que é a solidariedade humana.  

 

   Voltando atrás, Princesa de mim, reencontro essa ideia de povo eleito ou, mais simples e assustadoramente (evocando o conceito "arendtiano" de banalidade do mal), esse sentimento de superioridade atribuível à raça, à religião, à linhagem, à instrução, etc... Quem assim se reclama de direitos especiais, incluindo o de governar os outros, até se esquece dessa profecia de Pablo Neruda (cito de cor, a ideia está certa, a fórmula, creio, próxima) de que "podemos ser livres nas escolhas, mas seremos sempre escravos das consequências delas"... Mas, pergunto, não estaremos nós a enveredar, cada vez mais, pela senda da liberdade condicionada? [ou, desde já, da robotização?]

 

   Aliás, esse dito do Neruda (que, mais do que comunista, foi poeta), também qualquer filósofo o poderá relembrar ao debater a crise atual da democracia nas sociedades em regime liberal-capitalista. Na verdade, a justíssima opção da livre concorrência como garantia da igualdade das oportunidades, da melhoria da qualidade dos bens e dos serviços, da distribuição da riqueza criada por critérios de justiça e mérito, acabou por ser geradora da sua própria Némesis : o esquecimento ou laxismo da responsabilidade política de devidamente assegurar as condições necessárias a uma economia humanista (quem se lembra ainda do movimento Économie et Humanisme do padre Lebret, dominicano francês, que em Portugal só teve algum acolhimento pela geração hoje conhecida como "os vencidos do catolicismo", na roda da Moraes Editores do António Alçada Baptista?). Para resguardarmos a nossa humanidade, não será necessário aprendermos a limitar os excessos de acumulação, anonimização e intervenção política e social do capital (designadamente nos meios de informação) , tal como a submeter a promoção e publicidade das ofertas de bens, serviços e lucros financeiros a critérios de transparência e de responsabilização ativa, célere e rigorosíssima dos infratores? Infelizmente, desembocamos em praças onde inconfidências e desastres podem trazer a público enganos magoados e fados mais tristes de famílias espoliadas pela ganância de "empresários" e "financeiros", estes mesmos continuando a safar-se. Mais e pior: sem pejo, por aí continuam a acenar com ilusões.   

 

   Quanto ao concerto das nações, nesta etapa da globalização, também vai espreitando, em busca da recuperação do sonho russo (tzarista e soviético) de ser primeiro entre os seus pares, Vladimir Putin. Aposta, como o colega Trump, no reforço de um poderio financeiro assente em empreendimentos só viáveis pela acumulação de capital, pela concentração de poucos comandantes dos demais agentes económicos. E, externamente, vai fazendo apostas... Muitas vezes me mói o toutiço a questão de como Hannah Arendt tão bem percebeu a essência totalitária partilhada pelo nazismo e pelo estalinismo - que tanto escândalo bem pensante provocou - sem que outros tivessem depois entendido como, mutatis mutandis, o sonho capitalista americano e o economicismo estatal soviético, no campo do exercício político, respondiam à mesma  vontade de poder... hoje tão aproveitada pela nova velha China que, não só mas também, por via de um prosseguido vanguardismo tecnológico, se vai aproximando da meta de maior potência económica e financeira. É assim compreensível a reserva de muitos analistas políticos e filósofos relativamente à reactualização do conceito de Tianxiá: harmonia de todos os que estão debaixo do mesmo Céu, ou - além disso, mas também, parafraseando Orwell e evocando a antiga designação de Celeste Império - sendo uns mais celestes do que os outros?

 

   Pois, na verdade, tal como o sonho americano desenhou o direito universal ao enriquecimento dos indivíduos, também a dado passo acordou para a necessidade (como fator e como fatalidade) de assegurar externamente as condições políticas e militares da sua prepotência económica. Os poderosos regimes ditos comunistas, inversamente, concluíram que um possível proeminente lugar no mundo não poderia ser-lhes garantido apenas por forças armadas, repressão de povos, controlo das vidas, desde a natalidade até ao usufruto de bens e ao livre exercício do pensarsentir. Pareceu-lhes, assim, imprescindível a criação de músculo económico e financeiro e a procura de novos modos de imposição do poder estatal, incluindo as formas mais subtis, por via, privilegiadamente, da informática... estaremos todos destinados a ser robôs? 

 

   Se releres passadas cartas minhas, Princesa, perceberás porque me comoveu profundamente a notícia de recentes reencontros de membros sulistas e nortenhos de famílias coreanas, e me valeu o recolhimento de umas horas a da morte do israelita Uri Avnery, num hospital de Telavive, aos 94 anos. Quando só contava 10 de vida, refugiara-se na Palestina sob administração britânica, acompanhando seus pais, escapando à perseguição nazi. Era então alemão, chamava-se Helmut Ostermann, e aos 15 já era membro do movimento sionista Irgun, que mais tarde abandonaria, para se tornar num defensor intransigente da paz, do reconhecimento de dois estados palestinos (um dos quais judeu). Até hoje, lutou sempre contra a ocupação ilegítima de territórios por Israel e, pouco antes de morrer, ainda se pronunciava contra a lei que quer impor o conceito de Israel como pátria histórica do povo judeu.

 

   E, neste último domingo de agosto, é de coração sentido que dizemos a Deus a John McCain, herói de guerra, ferido e feito prisioneiro no Vietnam, político humanista, defensor da dignidade humana, que não se cansava de lembrar que, apesar das torturas sofridas, a guerra lhe tinha ensinado a amar e procurar a paz... Serão pois bem sinceras as condolências do seu guarda de cárcere vietnamita, ao dizer hoje como chora a sua morte.

 

   A dedicação de tanta outra gente a causas e serviços de solidariedade humana, a causas de justiça e de paz, de proteção e exaltação da natureza e da vida, de recuperação de doentes, de superação de desvantagens físicas ou mentais, de reinserção social e consciencialização da sua própria dignidade humana de presos e marginalizados, é o espelho maior em que a nossa humanidade se deveria rever... Então, porque será que, a toda a hora e momento, nos envolvem em notícias torpes, acusações e ataques ad hominem, ou ilusões de luxo e de luxúria?

 

   Talvez se ganhe mais esperança em comungar no batimento incessante do coração de gente sempre viva. Sobretudo se, nos sinais dos tempos, além de maus agouros, soubermos encontrar, e amar mais, sinais das promessas de Deus.

 

   Camilo Maria

   

Camilo Martins de Oliveira

 

LONDON LETTERS

 

‘This England’ and, The Liberal Brexit, 2018

 

Very good, indeed. A minha amada revista This England celebra 50 anos sobre o shakespeareano  acto fundacional de Mr Roy Faiers (1927-2016). And― not decent behaviour at all, I am afraid. No melhor pano das charities cai a nódoa, com aguaceiro de falhas morais na Oxfam.

Chérie! L'avis d'un sot est quelque fois bon à suivre. Nas euronegociações, London e Brussels endurecem o idioma diplomático. Downing Street avança para um road show no reino, com série de discursos pelos Top Ministers sobre the way ahead. RH Boris Johnson expõe a visão unificadora da Liberal Brexit. — Well. Adam's ale is the best brew. O Prince Harry of Wales e a noiva Meghan visitam uma surpreendida e acolhedora Scotland. Já a PM Theresa May viaja até Belfast e RH Jeremy Corbyn ruma a Glasgow. Germany tem finalmente governo, cinco meses depois das eleições federais. O Israeli Prime Minister Mr Benjamin Netanyahu é acusado de suborno e fraude. A New Yorker revela as espantosas telas oficiais dos exs US President Barack Obama e da First Lady Michelle, ela posando num elusivo azul e ele sentado numa cadeira flutuando em verde manto floral.

Freezing weather at Central London. Nada melhor, pois, que granjeados English tea and cookies. Com este tema surge This England há 50 anos. Tal qual a sua “little sister“ Evergreen, bem longe das ruas parisienses, esta é uma revista única e tão afável quanto a singela tira com que, na Spring 1968, se apresenta em bancas e tapetes ‒ “as refreshing as a pot of tea.” O manifesto editorial logo a posiciona entre o mercado mediático e o campo literário. Visa celebrar a cultura, os usos e os costumes sob a bandeira de St George. Dizendo do ser humano que escreve, Mr Roy Faiers, a pena do fundador firma marcas no chão: “We shall not be slick or sensational. There will be no world scoop articles, no glamour pictures, no fierce controversies. Instead we set out deliberately to produce a wholesome, straightforward and gentle magazine that loves its own dear land, and the people who have sprung from its soil. Instead of politics we shall bring you the poetry of the English countryside in words and pictures. Instead of bigotry we shall portray the beauty of our towns and villages. Instead of prejudice there will be pride in the ancient traditions, the surviving crafts, the legends, the life, the splendour and peace of this England.” O apelo telúrico conjuga aqui o leque dos “traditional principles of goodness, decency and common sense” com as velhas artes gráficas, entre o verbo elegante, a bela fotografia e a ilustração rápida. Esta é uma publicação produzida em Cheltenham para leitores e assinantes apaixonados, “For all who love our green and pleasant land.” Na capa da Golden Jubilee Edition, a quaternária traz imagem de marca: Sissinghurst, o castelo no Kent do casal Sir Harold Nicolson e Lady Vita Sackville-West, com as características Elizabethan Towers e o seu White Garden. Pelas páginas interiores canta ainda Mrs Dorothy Coe: “England. / Oh, my England. / I’m coming back to you. / I’ll see you in the Springtime. Watch / For me!”

Em debate semanal colorido quanto this sweet land of mist and green, a Prime Minister assinala na House of Commons diverso aniversário mas com idêntica fibra pictural. A intervenção governamental ocorre entrecruzada com declarações duras para com os Brits do EU Negotiator. Um cada vez mais nervoso Monsieur Michel Barnier tece advertências, veicula críticas, e ameaça descartar o biénio de transição acordado bilateralmente em December 2017. É His Master voice. Tudo em modos tais, porém, que, cá por casa, evoca usual e deliciosa tirada de um antigo professor: ’Voz grossa, argumento fraco!’ O Brexit Secretary RH David Davis sai a terreiro, notando a atitude “discourteous and unwise.” Ora, já nas PMQ’s é Mrs Theresa May confrontada com as velas da assinatura do Maastrich Treaty ‒ do qual o reino fez opt-out do “social chapter.” A Tory Leader é linear na resposta para a Other Union sobre o que está sobre a mesa: “The United Kingdom is leaving the European Union. That means that we are leaving the single market and the customs union. If we were a full member of the customs union, we would not be able to do trade deals around the rest of the world. And we are going to have an independent trade policy and do those deals.” Preparam os Brexiteers a chegada à World Trade Organization? Estarão os 27 a fazer contas aos efeitos da fatura tarifária nas balanças externas? E onde anda o racional da comunidade europeia de ideais e interesses?

Nota final sobre um livro com informação preciosa sobre um período sombrio da história comum. Em September 1940, nos Pyrenees, guardas fronteiriços recusam a passagem de France para Spain a um refugiado judeu alemão. Mr Walter Benjamin suicida-se na circunstância. Cerca de três semanas mais tarde, em Paris, sete anos após escapar da Nazi Germany e em vésperas de rumar a Lisboa com destino aos USA, Mrs Hannah Arendt (1905-75) comunica a triste notícia a outro amigo do filósofo berlinense.

Mr Gershom Scholem (1897-982) lê sabido cri de coeur: “Jews are dying in Europe and are being buried like dogs.” Ela é a jornalista que, em 1962, de Jerusalem, reporta o julgamento do SS-Obersturmbannführer Otto Adolf Eichmann disserta sobre a banalidade do mal e desperta a humanidade para o risco da demissão da consciência; Ele é o arqueológo do misticismo cabalístico e autor indispensável na visitação a Zohar, Book of Splendor. Unidos no debate do Holocaust, o Zionism separa-os nas correntes da Diaspora e de Israel. A relação epistolar entre os dois pensadores é agora editada em inglês pela Prof Marie Luise Knott, na University of Chicago Press, com tradução por Mr Anthony David entre as cartas e os documentos. The Correspondence of Hannah Arendt and Gershom Scholem condensa ideias que atravessam clivagens políticas contemporâneas (atenção, straussianos!) e dá pistas para aclarar uma controvérsia em torno da natureza diabólica do poder, à sombra de mão humana que coorganiza os guettos, as mass deportations e os death camps durante a II World War (1939-45). Vale também para ponderar sobre a geopolítica do espectador imparcial — Umm. Do never forget that dark human observation of Master Will in The Tempest: — “Hell is empty and all the devils are here."

 

St James, 13th February 2018

Very sincerely yours,

V.

OLHAR E VER

Hannah Arendt.JPG
Hannah Arendt

 

17. PRECONCEITO E PLURALIDADE - I

 

Sob o título Was ist Politik?, reuniu Úrsula Ludz, em 1993, textos (alguns deles inéditos) que Hannah Arendt escreveu em 1953/54 e entre 1956 e 1959. Posteriormente, em 2005, Jerome Kohn estabeleceu uma versão em língua inglesa, publicada nos EUA com o título The Promise of Politics, que serviu de base à edição francesa (colecção L´Ordre Philosophique, Seuil, novembro de 2014) de Qu´est-ce que la Politique?, aonde fui buscar as citações aqui transcritas de passos de Hannah Arendt, que passo a citar : A política assenta no facto da pluralidade dos homens. Deus criou o homem; os homens são um produto humano, terreno, um produto da natureza humana. É porque a filosofia e a teologia tratam sempre de o homem - é porque todas as suas declarações continuariam sendo aplicáveis, mesmo que houvesse só um homem, ou só dois, ou só homens idênticos - que elas não encontraram uma resposta filosoficamente pertinente à questão: o que é a política? Mais grave ainda : para todo o pensamento científico só o homem existe  -  na biologia como na psicologia, na filosofia como na teologia... Mas... A política trata da existência comum e mútua de seres diferentes. Os homens organizam-se politicamente em função de certos pontos comuns essenciais, no seio ou a partir  de um caos absoluto de diferenças...   ...O homem, tal como a filosofia ou a teologia o conhecem, não existe  ou não se realiza, em política, a não ser na igualdade dos direitos que os seres mais diferentes mutuamente se garantam. Garantindo e assim concedendo voluntariamente um mesmo direito a nível jurídico, reconhece-se que a pluralidade dos homens, que só a si mesmos devem essa pluralidade, deve a sua existência à criação de o homem. Refiro-me, portanto, a Hannah Arendt, e aos pensamentos que dela evoco, como inspiração do que pensossinto e ora digo. Não pretendo expor ou seguir o seu discurso e propósito, reconheço uma dívida e desenvolvo umas ideias e interrogações. Não com propósito político ou religioso, mas, simplesmente, ético. Pelo meio desta introdução, ainda recordo que a pensadora germano-americana contestava o fundamento dos corpos políticos na família, posto que, no modelo familiar, os diferentes laços de parentesco são considerados, por um lado, como o meio de religar entre eles os seres mais diferentes e , pelo outro, como o que permite que grupos de indivíduos  parecidos entre si se diferenciem e se  oponham uns aos outros... (Ocorre-me aqui Fernando Pessoa: Coração oposto ao mundo, como a família é verdade...) Como adiante veremos, através de casos e exemplos, pessoalmente penso que, na política enquanto sabedoria e prática da organização e funcionamento das sociedades civis, em si e entre elas, tal como na família enquanto conceito de união primária de pessoas, ou na igreja enquanto assembleia que testemunha uma mesma fé, há certamente  necessidade de um princípio fundador. Mas este não pode ser um conjunto de preconceitos - como monolitos históricos que teremos de carregar - mas antes deverá ser sempre  uma concórdia voluntariamente assumida, e em que não se confunda o principal com o acessório, nem se tome o prestígio do passado como norma imutável em vez de exemplo considerável no tempo e nos modos. Não nos esqueçamos de que o princípio eius religio cujus regio resolveu afinal décadas de sangrentas e estultas guerras religiosas entre irmãos europeus e cristãos, nem de que o fraco entendimento de máximas como o meu reino não é deste mundo ou ainda dai a César o que é de César prolongou confusões e conflitos em volta da afirmação do modo do poder político... E muito menos olvidaremos que, na raiz de qualquer totalitarismo está, precisamente, a pretensão de impor um modelo de o homem, que apagasse a diferença entre os homens. Dito isto, os preconceitos, não só são necessários, mas inevitáveis. Escreve Arendt: Porque os preconceitos que partilhamos, que para nós são evidências, e podemos lançar na conversa sem longas explicações preliminares, têm eles próprios uma dimensão política no sentido lato do termo - um elemento inerente aos assuntos humanos que constituem o espaço em que quotidianamente nos movemos...   ... Pois nenhum homem pode viver sem preconceitos : não só porque homem algum teria suficiente inteligência ou discernimento para ajuizar a custas suas tudo o que no decurso da vida exige um juízo, mas também porque tal ausência de preconceitos obrigaria a uma vigilância sobre-humana... ...Essa renúncia, essa substituição do juízo pelos preconceitos só se torna perigosa se ganhar o domínio político, onde, de modo geral, não nos podemos mover sem juízos, já que o pensamento político assenta essencialmente na faculdade de ajuizar. Uma das razões da eficácia e do perigo dos preconceitos reside em que eles guardam sempre um fragmento do passado. Olhando-os de perto, reconhecemos um preconceito autêntico pelo juízo anteriormente estabelecido que ele esconde, juízo originariamente assente, de modo legítimo e adequado, numa experiência, e tornado preconceito porque se arrastou pelo tempo sem exame nem revisão...  ... Por isso, não só poderá antecipar-se ao juízo e entrevá-lo, como, ao tornar impossível o juízo, torna também impossível qualquer verdadeira experiência do presente.

 

Camilo Martins de Oliveira