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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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SEM DEUS, QUE FUTURO?

  


Concretamente nestes tempos de globalização, torna-se mais claro que não haverá paz entre as nações sem diálogo inter-religioso. Como não se cansou de repetir o teólogo Hans Kung: "Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso globo sem um ethos global, um ethos mundial".


O diálogo inter-religioso é mais do que simples tolerância religiosa, pois é exigência do próprio Absoluto a que todas as religiões estão referidas. Precisamos de todas as religiões para tentar dizer melhor, embora sempre na gaguez quase muda, o Mistério que sempre transcenderá o que dele possamos pensar e dizer. As religiões estão referidas ao Absoluto, mas não são o Absoluto. Neste sentido, o místico diria: Deus é "nada" de todas as religiões. Mestre Eckhart pedia a Deus que o libertasse de "Deus", isto é, dos seus conceitos, imagens e representações de Deus.


Deste diálogo fazem parte também os ateus, não os ateus vulgares, mas os ateus que sabem o que isso quer dizer, porque são eles quem constantemente pode colocar, tem colocado e coloca os crentes de sobreaviso quanto ao perigo da superstição, da idolatria e da desumanidade, que as religiões muitas vezes transportaram e transportam consigo.


Quando se pensa na coragem heróica necessária para, em tempos de hegemonia religiosa confessional e sabendo que se corria o risco da prisão, da morte no cadafalso e da “certeza" do inferno, ousar, em nome da dignidade humana, do respeito para com Deus, das exigências mínimas da razão, lutar contra a superstição e contra o ridículo clerical-eclesiástico, surge-nos do mais íntimo e fundo de nós o sentimento de veneração e de reconhecimento de "santidade" em relação a muitos daqueles que, a maior parte das vezes em sentido pejorativo, ficaram na história como críticos da religião e até ateus. Esses não são santos de nenhuma Igreja, mas são com certeza "santos" da Humanidade.


Impressiona que hoje o cristianismo, que é uma fonte de liberdade e de libertação – estou convicto de que é a maior na história da humanidade -, para muitos já não exerça fascínio. Surpreende que, frente a Deus, enquanto o Infinito é a verdade do finito, grande número de homens e mulheres se mantenham indiferentes ou até O recusem pura e simplesmente. Há múltiplas razões explicativas desta indiferença e recusa. Uma delas, que não será a menor, prende-se com a imagem de Deus transmitida pelos crentes. Muitas vezes o Deus que aparece é um Deus menor, triste, invejoso, impeditivo da liberdade, da autonomia, do novo, que envenena o amor, a alegria e a criação. Depois, os crentes teriam de cindir a vida: a vida propriamente dita e uns enclaves de beatice. Não se caminha livre, erguido, inteiro, autónomo, solidário, na busca, correndo riscos. Como homens e mulheres humanos, justos, criadores. Perante uma imagem de Deus que humilha e atemoriza, ergue-se então, como escreveu o filósofo Carlos Díaz, a tentação de "matar Deus com medo que Deus me mate a mim".


Hoje, a questão essencial é que se corre o risco de já nem sequer se colocar a questão de Deus, nem sequer como questão. Ora, não é o que já está a acontecer nesta nossa sociedade de imediatismo disperso, de hiperactividade, num tempo descontinuado?... Como escreveu Byung-Chul Han, no seu recente livro Vita Contemplativa, referindo-se a esta sociedade: “A actual crise religiosa não se pode simplesmente atribuir ao facto de termos perdido toda a fé em Deus ou determinadas crenças terem passado a inspirar-nos desconfiança. A um nível mais profundo, esta crise indica que estamos a perder cada vez mais capacidade contemplativa. A crescente compulsão para produzir e comunicar dificulta a permanência no contemplativo. A religião requer uma atenção especial. Malebranche refere-se à atenção como a oração natural da alma. Hoje, a alma já não ora. Pelo contrário, produz-se. É precisamente à sua hiperactividade que se deve a perda da experiência religiosa. A crise religiosa é uma crise de atenção.”


Espíritos eminentes preveniram para os perigos, sendo urgente preparar-se para o pior. Václav Havel, o grande dramaturgo e político, pouco tempo antes de morrer, surpreendeu muitos ao declarar que “estamos a viver na primeira civilização global” e “também vivemos na primeira civilização ateia, numa civilização que perdeu a ligação com o infinito e a eternidade”, temendo, também por isso, que caminhe para a catástrofe.” Karl Rahner, talvez o maior teólogo católico do século XX - tive o privilégio de tê-lo como professor -, perguntava: O que aconteceria, se a simples palavra “Deus” deixasse de existir? E respondia: “A morte absoluta da palavra ‘Deus’, uma morte que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não ouvido por ninguém, de que o Homem morreu”. Neste domínio, o perigo maior provém de a questão de Deus já não ser sequer questão. Como escreveu o historiador Georges Minois, o mundo parece encontrar-se hoje perante um facto decisivo e mesmo único: se, independentemente da sua resposta positiva ou negativa, o Homem já não vir pura e simplesmente necessidade de colocar a questão de Deus, isso significa que, pela primeira vez na sua história, a humanidade sucumbe à imediatidade, a uma visão fragmentária do aqui e agora e "abdica da sua procura de sentido".


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 22 de junho de 2024

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

    Nestes dias de início de Quaresma, tenho sido chamado a ler e reler as bem aventuranças, as obras de misericórdia e outros recados de Jesus acerca do bem e do mal, sobretudo dos atos em que se reconhece o amor, este sim, como a lei de Cristo. O Reino de Deus é dos pobres, dos que têm fome e sede de bem, dos que procuram construir a paz pela justiça, pela generosidade e pela misericórdia. No dies irae, os chamados serão os que socorreram, deram de comer e de beber, acolheram e abrigaram, visitaram e consolaram, percorreram caminhos difíceis em busca dos que se tinham perdido ou desviado, lembraram aos humanos a vocação do Pai, para que nenhum deles ficasse de fora da grande reunião... O perdão que, no Pai Nosso, a Deus pedimos tem como condição perdoarmos quem nos ofendeu... Já há tempos te escrevi, Princesa de mim, que sempre pensei na parábola do filho pródigo como se o próprio Deus, ao abraçar-me, pedisse perdão comigo. Mesmo no Antigo Testamento, os textos a que, em sentido lato, chamo proféticos falam-nos de aliança, faltas e reconciliação. E muito me lembro desse passo do evangelho de Mateus (6, 14), logo a seguir ao "não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal"... Diz assim: Sim, se desculpardes aos homens as suas faltas, também o vosso Pai celeste vos desculpará; mas se não os desculpardes, tampouco o vosso Pai desculpará as vossas faltas. Como recordo S. Marcos (11, 25): E quando estiverdes de pé, em oração, se tiverdes algo contra o vosso irmão, desculpai-o, para que o vosso Pai que está nos céus vos desculpe também das vossas ofensas. A religião que Jesus prega é interior, vive no segredo dos corações. Os atos rituais visíveis são meras manifestações - por vezes podendo ser enganadoras, hipócritas - de uma pertença ou filiação religiosa. Por isso, a segunda condição da oração agradável a Deus, logo depois da sine qua non que é a disponibilidade para o perdão, é o retiro:  E quando rezardes, não façais como os hipócritas, que gostam de se exibir nas sinagogas e nas ruas, para serem vistos. Em verdade vos digo que receberam já a sua recompensa. Quanto a ti, quando rezares, retira-te no teu quarto, fecha a porta e reza a teu Pai em segredo. E teu Pai, que está no segredo e te vê, recompensar-te-á. Mas tal oração, que é como uma entrega à presença invisível do Pai, tem outra face, nascida desse silêncio e dessa comunhão: o amor do próximo. No seu Jesus (Piper-Verlag, München, 2012), Hans Küng escreve luminosamente, sob o título de Aquele que justamente precisa de mim: Jesus não se interessa muito pelo amor universal, teórico ou poético. Para ele, amar não é, em primeiro lugar, ter palavras, sensações, sentimentos. Para ele, amar é, antes de mais, agir com força e coragem. Exige um amor prático, logo concreto. À pergunta sobre o amor, torna-se-nos, desde logo, necessário dar uma segunda resposta, mais precisa: para Jesus, o amor não significa apenas o amor dos homens, mas essencialmente o amor do próximo...   ... É no amor do próximo que se verifica o amor de Deus. Mais ainda: o amor do próximo é a exata medida do amor de Deus. Só amo Deus pelo quanto amar o meu próximo

 

   Por todas estas - e outras - meditações, fui vivendo a minha fé cristã como vocação, isto é, como resposta a um misterioso apelo a ir descobrindo o Deus que se esconde e me chama desde o coração de tudo. Caminho no escuro, mas vou-me lembrando de que, afinal - como tantas vezes, Princesa, te repeti -  tudo é graça, sobretudo essa visão do rosto - quiçá imaginário em traços desenhados, mas tão humano e próximo do meu coração - do Deus que acredito incarnado em Jesus Cristo. Nem me canso de perseguir, por muitas leituras de escritores em várias línguas e de diversas confissões, os retratos múltiplos do chamado "Jesus histórico", eu que, desde muito novo, tanto me fixei na figura joanina do Verbo princípio de todas as coisas, que veio habitar connosco, para que, conhecendo-o, acreditássemos no Pai, aprendêssemos o amor, o vivêssemos, e assim fosse completa a nossa alegria. Várias vezes te confessei que, da muita literatura em diferentes línguas dos povos do mundo que fui lendo ao longo da vida, o prólogo do Evangelho de S. João é, muito provavelmente, o texto que mais intimamente me marcou: como se, em vez de ter ficado com um Z de Zorro na testa, ter o V, ferido pelo Verbo, no coração. Toda a minha religião se pode resumir nessa vocação que me deixou essa leitura e o desenvolvimento dela na primeira carta do mesmo João. Apesar do rigor ou maior veracidade de calendários, datas, personagens e ambientes da vida de Jesus, em cotejo com os relatos dos sinópticos, estes falam-nos mais do judeu que ele era, do ser humano, e serão, assim, campo mais propício à reconstituição do Jesus histórico como ser real. O Jesus Cristo de S. João, o "meu", é mais teológico e místico, menos terrenal, chama-me mais a compreender o mundo e a vida com um olhar novo, e assim também me ilumina a leitura dos sinópticos, onde muitos episódios, afinal, apontam para esse escândalo, para alguns, metanoia para muitos, que é a relativização da Lei e do Templo que Jesus, judeu piedoso, traz : a Lei não é um fim em si, nem encerra todas as vias para Deus, o sábado é feito para o homem, não o homem para o sábado; servir o homem, assisti-lo, tem prioridade sobre a observância da lei; a devoção ao templo, o culto, a liturgia, tudo isso vem depois da reconciliação com os outros e do serviço que lhes devemos.   

 

    Por outro lado, Princesa, quero ainda deixar-te claro que não me assusta nem indigna qualquer trabalho de investigação histórica, arqueológica, exegética, hermenêutica, acerca dos textos e circunstâncias da vida de Jesus e dos relatos dela, nem misturo trabalho sério e pesquisa científica com invenções de escritores sensacionalistas. Tal como não confundo a perspetiva da fé com a análise racional de factos e documentos. Surgem hoje, com frequência, publicações de trabalhos de pesquisa e teses várias acerca, por exemplo, de textos bíblicos, sua datação, identificação dos seus autores e redatores, circunscrição dos momentos e ambientes históricos e culturais em que foram escritos... Isto é: mesmo para um crente, o suporte material e a perspetivação cultural de qualquer texto pode e deve ser objeto de análise disciplinar objetiva e rigorosa. O que, pelo prisma da minha fé e exercício espiritual, Deus me diz passa-se noutra zona, nessa intimidade em que cada um de nós ouve e se pode abrir à aparição do desafio de Deus... Assim, o magistério da Igreja justifica-se enquanto lembrança, memória da vocação universal de Deus, pelo que, parece-me, deverá procurar que a boa nova da alegria do amor, com o que este implica de entendimento e compaixão, reciprocidade e dádiva, acolhimento e perdão, não seja esquecida e, menos ainda, encoberta por monolitismos dogmáticos e seus discursos. Sobretudo será aconselhável que os pertinentes pregadores entendam os sinais dos tempos, o movimento e mudança do mundo e das culturas, as circunstâncias diversas em que todos e cada um de nós nasce e medra, se interroga, hesita, erra e sofre, mas afinal sempre procura ser feliz.

 

   Comecei esta carta com outras ideias para te contar, mas termino aqui. Deixo para próximas umas reflexões: sobre o pensamento teológico como instrumento do entendimento religioso do mundo; sobre um direito canónico que teima em enquadrar e regular o presente e o futuro por normas datadas, talvez adaptadas a circunstâncias históricas e culturais já desvanecidas ; sobre o escândalo de uma excomunhão de divorciados recasados (tantas vezes vítimas de abandono, sevícias e injustiças perpetradas pelos seus (EX)-cônjuges canónicos) dos sacramentos administrados por uma igreja em que, todavia, muitos bispos têm consentido que permaneçam ou retomem serviço padres pedófilos renitentes, enquanto excluem do ministério eclesial padres que assumem, livre e cristãmente, a paternidade de filhos e suas responsabilidades familiares.

 

    Repara, Princesa de mim, que eu não contesto a opção da abstinência sexual como caminho de realização do amor. Conheço inúmeros exemplos de monges e monjas, freiras e frades de olhar claro e sorriso aberto que assim vão descobrindo a plenitude dos seus corações, e eu mesmo, quando tentei igual caminho, admirava até leigos casados, como Raïssa e Jacques Maritain, que, convertidos, acabaram por acordar que a sua metanoia também se manifestasse numa união tão só espiritual do seu casal. Só que - eis os factos - não somos todos assim, nem da mesma força. Quiçá por bem: deserto estaria o mundo se o prazer da carne não nos incitasse à reprodução da espécie, e nem sabemos até que ponto o "ódio ao sexo" não o terá, afinal, descontextualizado, atirando-o para fora da alegria responsável, para a zona do prazer "irresistível"... Basta vermos publicidades na TV e ouvirmos os curas falarem de contraceção.

 

   Já o Santo Papa João XXIII dizia - ouvi-o por relato fidedigno de testemunhas presenciais de um encontro em que estavam também portugueses: «Deixem a decisão sobre a pílula aos casais...» Na verdade, há sexo e sexo, há atos manifestos de amor, como os há de agressão e violência, há gozo pelo prazer e alegria pelo encontro. Jesus Cristo não fala de sexo, muito menos legislou sobre ele. A obsessão clerical com o tema, além de ter outras raízes obscuras, algumas certamente para serem olhadas psicanaliticamente, surge primeiro e num ambiente de ansiedade milenarista, logo já no século I, quando primitivas comunidades cristãs esperavam o fim deste mundo e a vinda do Reino de Deus. Mas esse reino não veio, nem no tempo da vida terrena de Jesus, nem depois dele... ...talvez porque tenha ainda de ser construído connosco como fermento que leveda, ou grão de mostarda que se enterra e virá ser uma grande árvore, à sombra da qual, sem distinção, virão descansar além das aves do céu, os pastores e as ovelhas tresmalhadas que eles incansavelmente vão procurar para que recolham à bênção do rebanho. A vocação cristã é a amoris laetitia, a alegria do encontro e da reconciliação. Está no oposto da exclusão, recusa-a.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira