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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ANTOLOGIA

  


PROCURA DE HARMONIA…
por Camilo Martins de Oliveira


Minha Princesa de mim:


Onde li eu, sobre a música de Haydn, que nela nascia a harmonia, não de receita, mas como procura? Ou fui eu que o disse ou alguém o terá dito por mim... Ocorre-me agora essa reflexão, quando silenciosamente contemplo este jardim japonês. Voltei a Kyoto, a Primavera vai-se alongando, as pétalas de "sakura" vão-se espreguiçando pelo ar, como se dissessem "é tarde!", efémeras traviatas dançando ao sopro musical de brisas que as afagam e logo apagam, varrendo o chão em que adormecem. Este ano, a Primavera das cores teima e atrasa a vinda das chuvas que anunciam o Verão verde e húmido, respirando a terra... Hei de ir a Horiyuji, ao templo da cor escura do tempo, feito de madeiras milenárias, firmado no cinzento negro das lajes, levantado entre o verde poderoso da natureza que transpira para o céu a humildade dos homens... Pois é de humildade feita a harmonia das artes nipónicas. Da tigela de barro do artesão ao gesto caligráfico do erudito, procura-se, humildemente, essa respiração por dentro da natureza, em que o tempo de cada gesto seja, na alma, o tempo eterno do mundo. Circular, incessantemente retornando, ao ritmo das estações que obedecem aos astros, e levam a vida na morte e trazem a morte na vida. O que, para nós, é um destino escatologicamente realizável é, para eles, a repetição tentativa da harmonia inicial das coisas. A harmonia que se procura não é ordem, é a da coexistência necessária (diríamos nós: de tudo em todos) das forças díspares, e até antagónicas, que sustentam e constroem, de um caos que desconhecemos, um universo que ainda não vemos em plenitude. Reconheço que, ao dizer-te isso, me afasto da minha meditação japonesa e tenho a alma cheia da visão de uma missa sobre o mundo, da escatologia cosmo-genética de Teilhard de Chardin. Mas volto os olhos para este "meu" jardim japonês: é do estilo "Tsukiyama", uma espécie de microcosmo cultivado e arranjado, à volta e sobre um manto de água, como se fosse um mar semeado de ilhas, correntes e bosques. Poderia ser um "Karensansui", calvo e seco, em que a água se representa por pedrinhas ou areias penteadas em ondas, como nos jardins "Zen"... Assim também, na elaborada cerimónia do chá, a razão da natureza ensina a humildade. Não só pela porta de entrada na "chashitsu" (a sala da cerimónia do chá), chamada "nijiriguchi", com apenas 67 cm de altura e 60 de largura, de forma a impedir o ingresso de armas, armaduras e vestidos de espavento... nem porque se deixa o calçado lá fora. Mas porque ali se procura o ideal estético do "wabé", como despojamento "zen", simples e calmo. Ora este também se traduzirá na beleza, limpa de adornos, dos utensílios que servem uma cerimónia litúrgica que aliás, dizem, o grande mestre Sen no Rikyu, foi buscar aos ritos dos jesuítas portugueses no século XVI. A "chawan" (tijela ou chávena,sem asas nem pegas) é objeto de apreço, antes de muitas se term tornado objecto de preço. Ao rodá-la e mirá-la nas nossas mãos, antes e depois de a levar à boca, contemplamos a natureza que ela encerra nos quatro elementos que a conjugaram (ar, fogo, terra e água) e aqui nos serve o chá em sinal de igualdade e partilha entre os homens. Na "chashitsu", durante o "sadô" ou "cha no yu" (a cerimónia do chá) somos todos iguais e estamos em harmonia com a natureza. Há ainda, nessa comunhão natural (quiçá telúrica até, em país de vulcões, terramotos e outras erosões)  - que é um esteio tão vivo na tradição da cultura japonesa, mesmo em tempos modernos de motores e eletrónica  -  outros aspetos do pensamento e sensibilidade das gentes que se revelam pela visão estética: a economia de desenho e materiais na construção de utensílios, móveis e edifícios, por exemplo: o "design" japonês já no tempo medievo preconizava, com elegância fina e forte intuição abstrativa, o que, entre nós, seria, já no século XX "art-déco" e abstracionismo. Tal como, na viragem do século XIX para o nosso, os desenhos florais japoneses, nas artes decorativas, influenciaram as nossas "artes novas", e as gravuras japonesas os nossos cartazes. Mas o que, para o europeu, seria, quase sempre, um artifício, era, para o japonês, a estética enquanto sensação, sentido, percebimento, comunhão da natureza. Estética não é só, acho eu, a conceção da harmonia de um objeto ou superfície material, ou de um seguimento de sons... de acordo com leis que concebemos com a intenção de organizar ou reformar a natureza que se reproduz ou copia. A emoção estética - e afinal será isso que a arte procura - é, antes de tudo mais, o ato de contemplação, do artista, do artesão que, pela obra que a materializa, se comunica. Esteta, no seu grego de origem, é o que sente, o que percebe. Será, pois, o que está do lado inicial - que ele não começou - ou do lado final - que não se esgota aí  -  duma comunicação. Que é partilha. O artista que se exprime, no fundo se si, quer partilhar. Um percurso pela história da arte europeia, ajudar-nos-ia a entender o processo genético daquilo a que atualmente chamamos a liberdade de expressão artística. Receio que estejamos a enveredar por um processo autista, como se os "círculos de artistas" entrassem num remoinho. "Mutatis mutandis", lembra-me a decadência escolástica da nossa filosofia medieval ou o especiosismo maneirista no tratamento de tantos temas pela oficialidade católica... A "fuga para a frente" é, muitas vezes, o enrodilhar-se sobre si. Essas "descobertas", em sucessivas efemérides, de compositores e artistas plásticos contemporâneos, já não têm os pés no chão da natureza e dos homens, tal como certos pietismos e pretensões doutrinais da Igreja já não têm assento nas almas. Se eu chegasse ao fim deste século XX, talvez ainda visse o esplendor do barroco e da renascença nas salas de concertos, como sacramento da natureza num mundo de ruído automóvel e industrial, de poluição eletrónica, sonora e visual. Pois é sempre paradoxal a condição humana: como poderia eu discernir por aí o triunfo da vulgaridade na cultura das massas, se por aí também não encontrasse os contempladores de deuses?" Há, entre muitas outras cartas do Marquês de Sarolea à Princesa de... (isto lembra-me o título de um filme de que o João Bénard da Costa gostava muito: "Madame de..." não era?) uma, sobretudo, por onde deambula, através do Japão, um prazer estético incontido...


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 24.05.13 neste blogue

SEMANA MUNDIAL DA HARMONIA INTER-RELIGIOSA

 

Foi em 2010, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Antes de iniciar a sua conferência, Jorge Sampaio chamou-me. Para me pedir que não me esquecesse de escrever um texto sobre a Semana Mundial da Harmonia Inter-Religiosa.


Também para relembrar o  empenho de Jorge Sampaio no diálogo das civilizações, das culturas, das religiões, retomo o texto de então com pequenas alterações.


Era a primeira vez que se celebrava, de 1 a 7 de Fevereiro (2011), a Semana Mundial da Harmonia Inter-Religiosa, na sequência de uma Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, tomada por unanimidade no dia 20 de Outubro de 2010 e proclamando a primeira semana de Fevereiro de cada ano a "World Interfaith Harmony Week" (Semana Mundial da Harmonia Inter-Religiosa), semana da harmonia entre todas as religiões, fés e crenças.


A Assembleia Geral fê-lo, lembrando várias resoluções e declarações suas anteriores, todas no sentido da promoção de uma cultura da paz e não-violência, compreensão, harmonia e cooperação inter-religiosa e intercultural, diálogo entre as civilizações, eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação com base na religião ou na crença, louvando múltiplas iniciativas a nível global, regional e local para a mútua compreensão e harmonia inter-religiosa, e reconhecendo, por um lado, a necessidade imperiosa do diálogo entre os diferentes credos e religiões em ordem a uma maior compreensão mútua, harmonia e cooperação entre os povos, e, por outro, que os imperativos morais de todas as religiões, convicções e credos fazem apelo à paz, à tolerância e ao mútuo entendimento.


A Assembleia Geral reafirma que a compreensão mútua e o diálogo inter-religioso "constituem dimensões importantes de uma cultura de paz" e encoraja todos os Estados a apoiar a difusão da mensagem da harmonia e boa vontade inter-religiosa em todas as igrejas, mesquitas, sinagogas, templos e outros lugares de culto durante esta semana, "fundada no amor de Deus e do amor ao próximo ou no amor do bem e do próximo, cada um segundo as suas próprias tradições ou convicções religiosas".


Na sua mensagem de 1 de Dezembro de 2010 sobre esta Semana, Jorge Sampaio, alto-representante das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações, depois de declarar que a Aliança procura reduzir tensões criadas por divisões culturais que ameaçam a estabilidade e a paz das e entre as comunidades e sociedades, e, por conseguinte, apoiar os esforços dos Estados, da sociedade civil e de outros actores na construção de bases de confiança e respeito entre as diversas comunidades, incluindo as religiões, saudou com entusiasmo esta Resolução das Nações Unidas. "O seu objectivo é abrangente e inclusivo, vinculando as pessoas de todas as religiões, fés e crenças." Por isso, convidava os membros da Aliança das Civilizações, as organizações da sociedade civil, comunidades religiosas, escolas, universidades a informar-se sobre a iniciativa e a promovê-la.


Penso que o diálogo inter-religioso tem, como aqui tenho sublinhado, vários pressupostos. O primeiro diz que, antes de sermos religiosos ou não, somos seres humanos: une-nos a humanidade comum. Outro pressuposto essencial tem a ver com a laicidade —separação da(s) Igreja(s) e do Estado — e o fim da leitura literal dos textos sagrados das religiões.


Os pilares desse diálogo poderiam sintetizar-se assim: 1. Embora não sejam igualmente verdadeiras, todas as religiões são “reveladas” e contêm verdade. 2. Nenhuma tem a verdade toda, pois todas estão referidas ao Absoluto, mas nenhuma o possui. 3. O fundamentalismo é fruto da ignorância ou da ânsia pelo poder totalitário. De facto, quem é o ser humano, finito, para ter a pretensão de possuir o Fundamento? 4. O diálogo inter-religioso impõe-se pela própria dinâmica religiosa: se nenhuma religião possui a verdade toda, devem todas dialogar e exercer a autocrítica. 5. Os ateus que sabem o que isso quer dizer podem dar um contributo fundamental, já que mais facilmente se apercebem da superstição e inumanidade que as religiões podem transportar.


Há muito tempo que o famoso teólogo Hans Küng tinha prevenido: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (atitude ética) global, um ethos mundial.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 2 de outubro de 2021