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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  
De 24 a 30 de março de 2025


Helder Macedo, Maria Filomena Molder e Adelino Cardoso publicam um notável conjunto de ensaios intitulados “Melancolia, Tristeza e Cura da Alma no Renascimento Português” glosando a obra de Filipe Elias Montalto “Arquipatologia” (1614).


Melancolia, Tristeza e Cura da Alma no Renascimento Português
de Adelino Cardoso, Helder Macedo e Maria Filomena Molder (Húmus, 2025), com a capa de António Dacosta, intitulada Melancolia II, é constituído por um conjunto de ensaios belíssimos que nos permitem encontrar as antigas raízes da cultura portuguesa, graças à evocação de autores fundamentais dos séculos XV, XVI e XVII. Partimos do texto de Filipe Elias Montalto, judeu português exilado, nascido em 1567 como cristão-novo, que publicou em 1614 Arquipatologia, composto por tratados clínicos sobre os mecanismos da mente, escritos em latim e recentemente traduzido para português. É uma obra de charneira que, na descrição de estados psíquicos frequentemente antecipa o que veio a ser retomado pela psicologia moderna, embora recorrendo a tratamentos derivados da antiga medicina galénica, mesmo quando põe em dúvida a sua pertinência. Falamos da melancolia como forma agravada de tristeza, com a presença de três autores portugueses de primeira relevância – D. Duarte, Bernardim Ribeiro e Francisco Sá de Miranda. Além destes, outros houve que merecem referência, como Luís de Camões, contemporâneo mais velho de Montalto, que, segundo os seus biógrafos tendo sido “na conversação muito fácil, alegre e dizidor, já sobre a idade deu algo tanto em melancólico”, ou como o cristão-novo e quase exato contemporâneo de Filipe Montalto, Francisco Rodrigues Lobo, cuja Corte na Aldeia, publicada pouco depois da Arquipatologia é uma ampla meditação sobre a melancolia individual amplificada na coletividade nacional.


O HUMOR MELANCÓLICO DE D. DUARTE
Mas D. Duarte merece uma atenção especial, numa análise pioneira do “humor merencório”, de que ele próprio padeceu e do modo como se curou. Como diz na dedicatória do Leal Conselheiro: “o entendimento é a nossa virtude mui principal”. E o certo é que o futuro rei pôde recuperar, por sua própria iniciativa, o gosto de viver e ficou “perfeitamente são, como se de tal sentimento nunca fora tocado”, mesmo sentindo-se na maturidade adquirida através desse penoso percurso “mais ledo do que era antes”. Já Bernardim Ribeiro e Sá de Miranda oferecem-nos dois poemas tornados clássicos na nossa literatura, que não podem ser esquecidos: do primeiro: “Entre mim mesmo e mim / não sei que se alevantou / que tão meu imigo sou”… E do segundo, temos as palavras com que todos nos deliciámos – “Comigo me desavim / sou posto em todo o perigo / não posso viver comigo / nem posso fugir de mim”… O criptojudaísmo do autor de Menina e Moça apresenta um modelo de criação, anunciador dos caminhos renascentistas, que não esquecem a raiz medieval, encontrando o mesmo “pecado da tristeza” de D. Duarte, com o trilhar do caminho da cura; enquanto o humanista cristão Sá de Miranda se aventura por domínios novos, avaliando as ambiguidades do conhecimento e a importância das mudanças e o “domínio da desrazão”. O espírito inovador valoriza, afinal, a devoção interior em contraste com a materialidade das obras, relacionando o entendimento com a liberdade, a equidade, a razão, a consciência e o conhecimento, mas também: o encantamento, o engano, o sentimento, a loucura, a ilusão e o cativeiro. E Paulo Tunhas apresenta-nos, de um modo pujante, as Condições de Descrer, ainda em Francisco Sá de Miranda – para quem a verdadeira liberdade seria o poder tudo sobre si. Fernando Gil entenderá essa autonomia individual, na sua ideia de convicção, como adesão a si do eu… E assim encontramos o seu ensaio notável sobre as “inevidências do eu”, publicado inicialmente, em 1998, com Helder Macedo em Viagens do Olhar. Retrospeção, visão e profecia no renascimento português (por nós referido no JL de 8.1.2025) onde refere que “a perda do amor por si é uma maneira de dizer que o sujeito perdeu a confiança. Não espera mais dar corpo ao desejo, que se des-realiza pouco a pouco, nem fazer-se ouvir e do silêncio nasce o mutismo e a mudez”. E Sá de Miranda apresenta-se como um poeta “absolutamente moderno”, bem para lá do doce stil nuovo que trouxe para Portugal. E é notável como encontramos num autor quinhentista intuições que só o tempo futuro viria a revelar e a desenvolver, onde há semelhanças com Montaigne, mas enquanto este descobre a unidade do sujeito, o português refere a  desunião do eu.


PECADO DA TRISTEZA EM SÁ DE MIRANDA
Adelino Cardoso apresenta nas suas considerações uma revelação importante sobre o pioneirismo renascentista do pensamento dos portugueses, atentos às ideias novas e às preocupações humanas em torno do eu, considerando a melancolia “como compleição estudiosa, inquieta e fantasiosa” na Arquipatologia de Filipe de Montalto. Aos ouvidos do leitor contemporâneo sentimos algo de pertinente e familiar quando ouvimos Montalto a aconselhar-nos a contrariar a “desrazão”: «Evite a ira, a tristeza e os desgostos, oriente a vida para a alegria e a tranquilidade do ânimo, oiça frequentemente o canto e a música instrumental, tire proveito das fábulas e dos jogos tradicionais. Afaste as imaginações prolongadas sobre a doença”. E, por momentos, compreendemos como D. Duarte, Bernardim, Sá de Miranda se houveram com o “pecado da tristeza”. E Maria Filomena Molder ajuda-nos a compreender como esses caminhos puderam ser trilhados, pondo-nos a ouvir Bernardim na Écloga de Pérsio e Fauno – “como pode repousar / quem traz a morte consigo?” e a recordar a fala de Bruno Huca na peça concerto Da Felicidade (de Cristina Carvalhal de João Henriques):Proponho um brinde à melancolia a esse pequeno distanciamento da vida confrontado a nascente e sul pelo alvéolo do desejo a fazer caminho. Limitado a poente pelo aborrecimento, com o intuito de se encontrar o norte”.  A melancolia surpreende os pontos cardeais, desde o tédio até ao chamamento do norte, podendo falar-se de cura neste “intuito de encontrar o norte”. O ensaio merece leitura atenta e ponderada. E eis que se confrontam Heraclito e as suas lágrimas e Demócrito e o seu riso, a propósito da Elegia a uma Senhora muito lida em nome de um seu servidor de Sá de Miranda. “Estas seriam as desventuras / que Heraclito chorava em vida andando, /e Demócrito ria por loucuras, / com muitas outras que fazem grão brando, / mas haviam de ser as principais / dos que perdendo vão-se outrem buscando”. Não se vislumbra aqui, porém, preferência do poeta por Heraclito. As lágrimas e o riso são tomados como modos de resistir ao desacerto do mundo e como forma de avaliação crítica… Os sentimentos coexistem. E Maria Filomena Molder revela-nos num remate esclarecedor: “Do que gosto em Sá de Miranda e Bernardim Ribeiro? Dos meios reduzidos, das palavras que se repetem incessantemente (…), do ritmo criado pelo espaço que as circunda e que elas engendram, dos precipícios que se abrem profundos em cada verso da evitação do desperdício, das obscuridades francas. Tudo bons condimentos para alimentar  saudade, a mágoa e o luto e não ser submergido por eles”.    


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

  
De 13 a 19 de janeiro de 2025


Ao atribuir a Helder Macedo o Prémio Vasco Graça Moura de Cidadania Cultural, o júri afirmou que o poeta, romancista, ensaísta, crítico, e professor, apresenta um percurso exemplar no campo da cidadania.

 


O PRIMADO DA LIBERDADE
“Vivendo em Moçambique, desde a sua juventude afirmou-se como uma consciência livre, considerando a liberdade como abrangendo a criação literária e artística, mas também o reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e independência. Exilado em Londres a partir de 1960 foi colaborador da BBC e lecionou no King’s College onde ensinou Língua e Cultura Portuguesas, afirmando-se como prestigiado investigador. Após a Revolução de 25 de Abril exerceu em Portugal importantes funções na área cultural, tendo prosseguido, a par da criação literária e ensaística, uma ação persistente na cultura e educação em prol da língua portuguesa no mundo». A cidadania cultural constitui um modo de afirmação da liberdade e da justiça social como consequência natural da dignidade humana. A defesa dos direitos fundamentais e do Estado de Direito constitui, assim, uma experiência orientada para o respeito mútuo e para um saber de experiências feito centrado não em abstrações, mas na consideração de valores éticos enraizados na vida e numa prática dialógica em que eu e o outro se completam naturalmente.


UM PERCURSO DE RARA COERÊNCIA
Quando seguimos o percurso de Helder Macedo, verificamos que o intelectual faz da sua ação algo de coerente e complementar, como acontece quando lemos o romance Partes de África (1991), onde a fronteira entre os acontecimentos e a invenção é propositadamente ténue para que melhor se compreenda a importância da memória como verdadeiro artífice da História. À infância em Moçambique, segue-se a adolescência passada em Lisboa, tendo frequentado a Faculdade de Direito em finais de cinquenta. O primeiro livro de poesia Vesperal é de 1957 e foi saudado por Jorge de Sena como dos mais perfeitos “que por esse tempo se publicaram”, como domínio da expressão e do ritmo. Participa então no Grupo do Café Gelo, ainda que numa atitude de original independência, sempre crítica da situação e do conformismo político. Foi coorganizador com António Salvado das Folhas de Poesia (1956-58). Crítico do regime, exila-se em Londres, com Suzette Morgado de Aguiar, onde entre 1960 e 1971 colabora com a BBC. Aí encontra Luís de Sousa Rebelo, que desempenhou em Londres um papel fundamental na afirmação da cultura portuguesa, numa perspetiva aberta e livre. Em termos académicos Helder Macedo prefere obter as necessárias qualificações académicas, estudando Bernardim Ribeiro e Cesário Verde, e prosseguindo uma carreira docente ativamente portuguesa no King’s College. A primeira tese de doutoramento que orientou será sobre Herberto Helder.


Organiza Antologias de poesia portuguesa em língua inglesa (em 1973 e 1978, esta com E. M. de Melo e Castro). Funda a revista Portuguese Studies, que será premiada nos Estados Unidos (1987) e dirige o departamento do King’s College que inclui os estudos brasileiros e se expande para abranger estudos africanos e História – com muitos alunos que exerceriam cargos docentes relevantes em escolas e universidades inglesas, americanas e portuguesas. Após a revolução portuguesa de 1974 regressou a Portugal, quando, na sua expressão, deixou de ter de haver para os portugueses o “lá fora”. Foi assim diretor-geral dos Espetáculos (1975), Secretário de Estado da Cultura (1979). Em 1976, organizara a importante antologia Camões Some Poems (com Jonathan Griffin e Jorge de Sena). E entre 1981-82 foi professor visitante na Universidade de Harvard, tendo ainda lecionado em França, e no Brasil, nas Universidades de Campinas, S. Paulo e Federal do Rio de Janeiro. Regressado a Inglaterra foi titular da cátedra Camões no King’s College (1982-2004), função que acumulou com a de diretor do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, até 1991, sendo hoje Emmeritus Professor. Dirigiu ainda a revista da Associação Internacional de Lusitanistas. Em 1998 publicou Pedro e Paula, romance que é saudado positivamente pela crítica e em 2005 obtém o Prémio do Pen Club português pelo romance Sem Nome, dando à estampa ainda Tão Longo Amor Tão Curta a Vida (2013).


EM PROL DA LÍNGUA PORTUGUESA
Além de vasta produção poética, o grande ensaísta produziu textos fundamentais sobre o “Cancioneiro de Amigo”, a “Menina e Moça”, obtendo neste caso o prémio da Academia das Ciências (1977), e ainda sobre Camões e Cesário Verde, sendo autor com o seu amigo de infância Fernando Gil do notabilíssimo Viagens do Olhar: Retrospeção, Visão e Profecia no Renascimento Português, em 1998, que obteria os Prémios da Associação Portuguesa de Críticos Literários e do Pen Club português. Pode dizer-se que esta obra é indispensável (ainda para mais neste ano de Camões) para podermos ter uma visão de conjunto da cultura da língua portuguesa, na sua dimensão universalista. E assim se abrange: o efeito-Lusíadas, a sobrerrealidade do olhar em Camões, a poética da verdade na obra maior da nossa cultura, a História como profecia em Fernão Lopes e nos Príncipes da Ínclita Geração, as Crónicas portuguesas do século XVI, os enganos do olhar, Sá de Miranda e as ambiguidades do conhecimento, os modos do amor ausente nos mistérios do romance de Bernardim e nas suas obscuras transparências – por entre convergências e dissidências -, o apetite e a razão em Camões, envolvendo a distinção entre nacionalismo e pastoralismo, e culminando com dois estudos magníficos sobre o Padre António Vieira – desde o silogismo da Profecia á interrogação sobre dedução ou abdução no futuro tornado presente, culminando na consideração da profecia bíblica na Apologia das Coisas Profetizadas. O diálogo entre o filósofo Fernando Gil e o mestre da História Literária Helder Macedo – com uma bela incursão de Luís de Sousa Rebelo pelos cronistas - produz uma obra fascinante e inesgotável, tendo como centro irradiante Camões, em ligação com o extraordinário Imperador da Língua Portuguesa…


De facto, “o Renascimento português levanta problemas particulares, como sejam a viagem, o novo, o encontro com a diferença e como a pensar. As crónicas de viagem e de império constituem a sua expressão mais direta e aparente, e a sua importância fica devidamente assinalada no estudo que lhe consagra Luís de Sousa Rebelo. (…) Ver claramente visto põe simultaneamente o problema de ver o que ‘lá está’ e de como o que lá estivesse poderia ser visto. Este interrogar do exterior ia a par com modos novos de lidar consigo e com os outros”. Estamos, assim, no coração de um pensamento que se transforma. “As metamorfoses do eu através do amor” constituem, com efeito, temas que conduzem estas “viagens do olhar”. Ligando as considerações de Bernardim, Sá de Miranda, Fernão Lopes e Camões, descobrimos que a originalidade da posição do contributo português, culmina no Quinto Império, que é mais do que um sonho próprio uma ideia de refundação da humanidade. “Com efeito, os textos de Vieira mostram claramente que, menos do que Portugal, é antes o futuro do homem que se trata. (…) A evidência é ao mesmo tempo fundadora e insustentável: no amor como na profecia, na fundamentação da nação como nos fundamentos do eu” – como afirmam magistralmente os autores. E assim encontramos uma forte via racional no nosso Renascimento, que matiza o sentimento…  E eis como temos aqui uma marca de cidadania em que a cultura compreende a complexidade da vida, para além do sonho.


Guilherme d'Oliveira Martins

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