Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Conheci Helena Almeida na sua casa da Rua Arco de São Mamede, era eu, colega da Joana, sua filha, numa escola que existia na mesma rua. Estudávamos ambas para o antigo 5º ano do liceu.
A casa da Helena Almeida era uma casa, tanto quanto memoro, rodeada por um largo espaço de terra. Um jardim? Entrava-se, e ao fundo do primeiro corredor, a sala de trabalho de Helena Almeida; à direita um outro corredor e igualmente ao fundo mas à esquerda, uma cozinha; ao lado uma sala de jantar com acesso a uma sala de estar de portas até ao chão. Muita luz. Lembro.
Na cozinha, móveis de sacada de cristaleira, antigos, e uma chaminé de pedra. Havia um azulão, lindo, que cobria as portadas das janelas e outros espaços estratégicos da cozinha. Julgo. Ao meio, uma mesa de madeira, nela, duas canecas de chá e pergunta-me a Helena, a razão de eu tanto gostar do enorme quadro que estava na sala. Era ele pintado todo numa única cor de azul e apenas com o desenho de umas sapatilhas de bailado “tombadas” no canto direito do quadro. Assim o penso ainda hoje.
Respondi que era a mesma razão de gostar dos quadros que estavam no atelier, e dos quais saiam crinas ou caudas de cavalos na continuação dos desenhos o que os tornava vivos para mim…mas mais nada sabia dizer.
Sorriu e perguntou-me se eu gostaria de arte?
Pensei dizer-lhe tantas coisas se não me achasse uma miúda que não poderia falar muito com quem nos mostra os sonhos. Pensei falar-lhe no quadro do marido que estava na sala de jantar e que me parecia tratar-se de milhentos cubos pequeninos, e que eu queria espreita-los para ver o que tinham dentro e como se encostavam uns aos outros definitivamente, achava eu. Pensei dizer-lhe que gostava de a rever a andar com os arames agarrados aos sapatos para visualizar a ondulação do andar. Pensei dizer-lhe que me sentia muito, muito bem sempre que estava ali. Mas nada disse. Não fazia sentido atrever-me. Queria mesmo passar quase despercebida. Não incomodar. Era um privilégio quando a Helena me olhava e me sorria, nas vezes em que fui lá a casa e me sentei no atelier. Ela, a Helena Almeida era então a minha poesia total.
Um dia, deu-me alguns fios do quadro em que trabalhava e disse «Ficam nas tuas mãos. Bem entregues».
Corei.
Sair daquele espaço onde se passavam as interrogações todas, era o meu momento de trazer tudo ao mesmo tempo comigo depois de ter confirmado que existia um tudo.
Ainda hoje me envolvi com um guindaste de memória, e grata pela partilha dos círculos coloridos e insistentes que desde então me chegavam e partiam aos enxames, por ela, por Helena Almeida, deles deixei de duvidar ou de ter medo.
Através de outra pessoa ou através de uma coisa é mais fácil falar sobre a verdade de um eu interior.
‘...preciso eu mesma de achar, a minha própria forma’, Etty Hillesum, 4 de julho de 1941.
O diário de Etty (Esther) Hillesum (1914-1943) abre a importância da descoberta do mundo interior. O livro trás uma verdade: a vida dentro da obra coincide com a vida dentro do criador. E mostra a importância de uma constante interrogação interior na obra do artista. Etty queria ser escritora e, portanto, era importante para ela afirmar que corpo e alma são exatamente a mesma coisa. Tudo o que ela sentia por dentro era outra forma de viver. O processo dentro do seu corpo - pensamentos, desejos, conhecimento - também participa na construção de ser. Para criar e escrever o seu diário, Etty confia a sua alma e toda a sua vitalidade a um insignificante pedaço de papel. Só então os seus pensamentos poderão ser claros e os seus sentimentos profundos. Mas uma grande inibição e falta de confiança não permitiam que seus pensamentos saíssem completamente livres e fluídos - na maioria das vezes, eles ficavam presos dentro de si. Etty sempre sentiu que ainda havia algo encarcerado. E ela treinava todos os dias para olhar e ouvir o que havia dentro dela.
‘...há algo que continua profundamente encarcerado dentro de mim.’, Etty Hillesum, 9 março 1941
Algumas obras de arte revelam o interior oculto e infinito do artista que se encontra atrás de uma superfície e de uma pele. Alguns artistas desejam superar os limites do corpo (como pessoa e como objeto). Por isso a pintura pode passar a ser um objeto capaz de transportar, de transcender e de projetar.
A superfície de uma tela, pode ser: Alma em Agnes Martin; Personagem em Angela de la Cruz; Cor em Gothard Graubner; Corpo em Helena Almeida; e Espaço em Lucio Fontana.
Tela = Alma
‘There are two endless directions. In and out', Agnes
Os escritos de Agnes Martin (1912-2004) são muito profundos e claros em relação à ideia de que a alma é a única coisa de que um artista precisa para trabalhar. As pinturas de Agnes Martin estão relacionadas com a pureza da mente e com a "alma limpa". Para criar, o artista deve viver uma intensa experiência interior. Pode salvar-se se olhar para sua alma e a alma pode ser transportada para o objeto que se cria. Agnes, vivia quase como eremita no Novo México e acreditava que a alma ao ser independente da matéria deseja, por isso, libertar-se de qualquer corpo para que possa retornar à sua origem divina. A criação de uma alma visível na tela, acontece quando Agnes Martin utiliza retângulos, linhas horizontais, através do branco e do preto. As suas telas precisam de subjetividade e profundidade para serem interpretadas e compreendidas.
Tela = Carácter
Angela de la Cruz (1965) transforma as suas telas em personagens e sentimentos humanos - ora estão dobradas, rasgadas, quebradas, escondidas, curvadas, torcidas, colocadas nos cantos, no chão, na parede...
Angela de la Cruz estudou durante um período (1989-1996) em que a pintura triunfava e por isso desejava ultrapassar os limites físicos da estrutura e do material da tela tradicional.
Angela de la Cruz baseia o seu trabalho no legado da pintura modernista - abstração monocromática, superfícies planas, cores primárias e explora sobretudo a possibilidade das pinturas serem também objetos. Angela de la Cruz desconstrói a tela para, através da metáfora, representar o mundo real. A superfície é manipulada como se de uma personagem se tratasse. E assim, o objeto criado encarna qualidades antropomórficas, expressivas, alusivas e figurativas - corpos gordos perdem peso, telas esmagam-se umas contra as outras ou contra a parede, o tecido é arrancado, remendado, mutilado, morto, o nada.
Angela de la Cruz chama as suas telas de ‘cargo bodies’ - são peças performativas e são tão reais quanto as pessoas.
Tela = Cor
Na década de 1960, Gotthard Graubner (1930-2013) trouxe a possibilidade do volume da pintura se fundir com o espaço, como uma esponja colorida na água. A cor distribui-se e cobre todo o espaço da tela/almofada de maneira a enfatizar os cantos - a borda interna do retângulo da tela dá assim a impressão de um torso.
Graubner cria Farbraumkörper - os corpos do espaço e da cor. E por isso,se afirma uma forte intenção da cor em se tornar um corpo - pelo uso de esponjas e tecidos que succionam e absorvem a tinta. As esponjas são ainda recobertas por um tecido transparente (Perlon) que potencializa o efeito espacial da cor. Graubner criou a palavra Farbleib (corpo colorido) para representar a transferência entre o elemento que faz a obra e a própria obra. Os seus Körperbilder são retratos.
Para Graubner, a sua fórmula é: cor = transformação do organismo = pintura.
Embora a fixação na parede não seja necessária, pois o objeto também pode ser colocado como uma almofada numa superfície horizontal, Graubner gosta de pendurar os objetos para que o observador tenha uma conexão direta com seu centro de energia - o solar plexus.
Tela = Corpo
Helena Almeida (1934-2018) nos anos 1960 e 1970, vive na tela e trabalha o suporte da pintura como se fosse um corpo, o seu corpo.
As primeiras peças de Helena Almeida, de 1967-68, recusam o uso simples das duas dimensões, rejeitam a pintura ótica e sublinham as propriedades tácteis e plásticas (qualidades que vão para além de qualquer olhar). A matéria e a superfície da pintura são manipuladas como um objeto. Helena Almeida repensa a pintura a partir dos seus elementos estruturais e inverte a sua lógica convencional. A pintura (ainda que pendurada na parede) literalmente sai da tela - o seu interior e a sua dimensão oculta passam a ficar a descoberto, passam a ser o seu exterior. Posteriormente, Helena Almeida usa até as suas pernas, os seus braços, o seu rosto e todo o seu corpo para habitar a tela.
Tela = Espaço
‘The discovery of the Cosmos is that of a new dimension, it is the Infinite: thus I pierced this canvas, which is the basis of all the arts and I have created an infinite dimension...’, Lucio Fontana
Lucio Fontana (1899-1968) ao cortar a superfície das telas criou um conceito espacial - o universo da pintura foi transcendido. As perfurações tornaram-se irreparáveis. Os cortes representam um espaço filosófico - e o espaço para Fontana não é mais uma abstração. Ele afirma que a tela não é mais um veículo pictórico.
Fontana corta a tela em busca de porosidade, de interioridade, de penetrabilidade, de infinitude, de escape, de objetualidade.
Inesperadamente, Fontana afirma a ambivalência de uma obra de arte - não é somente pintura, nem escultura, nem instalação, nem ambiente ou tecnologia. Novas dimensões associam-se agora à tela - o infinito, a espiritualidade, a dor física, o terror de criar, a negação da mente, a ansiedade do incerto, a liberdade do corpo, a ampliação do desconhecido.
Os diários de Etty Hillesum fornecem o motivo para discutir a transcendência da superfície de uma pintura. Etty é uma escritora com um intenso mundo interior, mas que não consegue encontrar palavras para escrever. Por isso trago à luz pintores que com a mesma necessidade, transferem para a tela a sua alma, o seu carácter, o seu cor, corpo e espaço na esperança de criar um novo objeto com vida.
‘Não ía contratar um modelo quando me tenho a mim no atelier. Além disso, eu é que sei quais são as posições em que me devo colocar ou quais as atitudes que devo assumir e como é que devo conceber o cenário. Faço o cenário e coloco-me nele exact89amente como eu quero e com a expressão que desejo. Mas não sou eu. É como se fosse outra pessoa, é, no fundo, a busca do outro, é o outro que lá está.’, Helena Almeida, 1996
Helena Almeida (1934-2018) habita, vive, veste e incorpora o espaço, a matéria e a superfície da pintura através da fotografia. O seu trabalho é muito pessoal, singular, único e irrepetível. A artista soube sabiamente introduzir, em permanência e em contínuo, o corpo na obra de arte. E em cada trabalho, consegue sempre reunir e em simultâneo o eu, a obra e o outro.
Desde cedo, Helena Almeida sentiu a necessidade de abrir novas possiblidades à pintura. No início, a pintura abstracta muito a influenciou. Mas rapidamente, a pintura se tornou volume que saía para fora da tela. Desde logo, Helena Almeida desejava uma tela antropomórfica (ver aqui). A tela como uma pessoa, um eu, um objecto de projecção. E só a fotografia foi capaz de incluir toda a gente, todo o espaço e toda a matéria que fazem parte do processo de criação (o artista, o espectador, o atelier, a mesa, a cadeira, a tela, a folha, o pincel, a linha, a mancha).
‘Em pequena com cinco-seis anos, ia espreitar atrás dos quadros, das telas, para saber o que estava lá atrás, achava que devia haver qualquer coisa de obscuro nas costas.’, Helena Almeida, 2005
Lucio Fontana, ao fazer golpes na tela, deu a conhecer o lado oculto da tela– Helena Almeida dá a conhecer o outro lado da criação. Os seus desenhos e pinturas saiem literalmente de dentro do seu corpo. A tinta incorpora-se dentro da pintora – que ora a guarda no bolso ora a come. O corpo infiltra-se pelo atelier e o espaço adivinha-se dentro do corpo da pintora através de espelhos.
O eu e o corpo são materiais tal como a tela e a tinta e aproximam-se, mais do que nunca do espectador – que pode fazer parte integrante da obra e assim entrar nela (por exemplo, nos desenhos habitados a linha sai da fotografia e passa a pertencer a dois espaços, ao do artista e ao do espectador).
‘Eu estou a pintar para a frente para pôr o outro no meu espaço, no espaço do quadro, ao mesmo tempo que me coloco no espaço da pessoa que está a ver. Essa pessoa não está a ver nada.’, Helena Almeida, 2016
O corpo concreto e físico materializa uma forma pictórica de prolongar a obra e também é a obra que prolonga o corpo. O corpo de Helena Almeida é usado como um recipiente que entra e sai da pintura (tela/tinta/pincel), do desenho (folha/linha/caneta) e do espaço (paredes/chão/janela/cadeira/banco). E cada fotografia é uma intensidade, é um culminar analógico onde o acto de criar está exposto à vista de todos.
‘O trabalho nunca está completo, tem que se voltar a fazer. O que me interessa é sempre o mesmo: o espaço, a casa, o tecto, o canto, o chão; depois o espaço físico da tela, mas o que eu quero é tratar de emoções. São maneiras de contar uma história.’, Helena Almeida, 1997