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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

  

 

A

Antonio Gamoneda, meu muito privilégio   


VII

 

Me llamo Maria

Quito el carmín

Entonces

La carga de ser,

La imposible costumbre de estar viva

Aparece

 

Sin máscara

Sólo, sólo

La verdad más profunda de mi vínculo

 

Y

 

Quiere salvarme

Quien me da de beber

La cicuta

 

Así

 

VIII

 

Me llamo Maria

Entre todos los caminos a mi alcance

Elegí

Los de la grande vista familiar

De los pájaros

 

Mi profunda lección de humildad

 

Y

 

Y por un momento inmenso

Sigo escribiendo

Mi casa de sed

 

Así


IX

 

Me llamo Maria

Jamás consumí la vida atada

A una cuerda

Soy cazadora del mar

Y las medusas

Juegan conmigo el juego ilícito

De un saber

 

Nadie Imposible

 

Y

 

Te doy las gracias

Piedra

Te empujaré costa encima

Mil veces

 

Así

 

X

 

Me llamo Maria

Intento la llamada

Y un día alguien

Cancelará mi nombre

Quisiera convocarlo para uno último brindis

 

Y

 

Al decir por dentro

Digo amor

Al decir versos

Digo por dentro

Al decir por fin en paz

Tu mirada-mundo

Al decir ostras

 

Escucho su música

 

Así

 

                                      

Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

  

 

A

Antonio Gamoneda, meu muito privilégio

 

V

 

Me llamo Maria

Todos nosotros somos

Tropas de asalto de una sola persona,

La historia es el recuento de la discordia

Que no termina nunca

Que sólo avanza a fuego y hierro

Y prospera gracias al conflicto

En la inmovilidad del corazón

En la melancolía

 

Qué rosa definitivamente enferma

 

Y

 

Pues que se guarde silencio

No se interrumpa

El último amor de Don Juan

 

Así

 

VI

 

Me llamo Maria

Me encanta retratarme con las panteras

Y volver del aire

Y abrir las páginas

 

De nuevos poetas

 

Y     

 

Pero tú oyes el grito

Y te desnudas em mis fuentes

La luz debajo de tu piel

Paloma ebria

 

Amé todas las perdidas

 

Así

 

Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

  

 

A

Antonio Gamoneda, meu muito privilégio 

 

III

 

Me llamo Maria

Me levanto, saludo

Enciendo las velas,

Me siento al piano

Que responde al nombre de Chopin

Pero

La exactitud de los dedos

No es nada más

Que

 

Obediencia

 

Y

 

Nada fija el instante

Que manda en todo

La flor indefensa

 

Cree que vale la pena

 

Así

 

IV

 

Me llamo Maria

Pregunto:

¿Todo lo que protege es también abismo?

En realidad, no lo sé

Pero todos ganamos nuestro diploma

No hay nadie que no tenga talento innato

Para la herida

 

Y

 

Nadie se salva

Dice el viejo poeta

Gran vitoria

 

De los sin dudas

 

Así

 

Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

  


A
Antonio Gamoneda, meu muito privilégio


I


Me llamo Maria

Mi ideal

Duerme como un niño

No obstante, de noche conversamos

En nuestra propria lengua inventada

De verdad

 

Más claridad es imposible

 

Y

 

El mar toma la playa por asalto

La sal coloniza la tierra

De repente el abrazo

De armisticio

 

Así

 

II

 

Me llamo Maria

Leo todo el tiempo

Aquí está el mundo y las parejas

En el aprendizaje de su arte

Primero flexible,

Después

 

Incorpóreo

 

Y

 

Sin embargo

Desde el fondo de la prisión

Náufrago

 

El futuro

 

Así

 

 Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA


Conheci Helena Almeida na sua casa da Rua Arco de São Mamede, era eu, colega da Joana, sua filha, numa escola que existia na mesma rua. Estudávamos ambas para o antigo 5º ano do liceu.


A casa da Helena Almeida era uma casa, tanto quanto memoro, rodeada por um largo espaço de terra. Um jardim? Entrava-se, e ao fundo do primeiro corredor, a sala de trabalho de Helena Almeida; à direita um outro corredor e igualmente ao fundo mas à esquerda, uma cozinha; ao lado uma sala de jantar com acesso a uma sala de estar de portas até ao chão. Muita luz. Lembro.


Na cozinha, móveis de sacada de cristaleira, antigos, e uma chaminé de pedra. Havia um azulão, lindo, que cobria as portadas das janelas e outros espaços estratégicos da cozinha. Julgo. Ao meio, uma mesa de madeira, nela, duas canecas de chá e pergunta-me a Helena, a razão de eu tanto gostar do enorme quadro que estava na sala. Era ele pintado todo numa única cor de azul e apenas com o desenho de umas sapatilhas de bailado “tombadas” no canto direito do quadro. Assim o penso ainda hoje.


Respondi que era a mesma razão de gostar dos quadros que estavam no atelier, e dos quais saiam crinas ou caudas de cavalos na continuação dos desenhos o que os tornava vivos para mim…mas mais nada sabia dizer.


Sorriu e perguntou-me se eu gostaria de arte?


Pensei dizer-lhe tantas coisas se não me achasse uma miúda que não poderia falar muito com quem nos mostra os sonhos. Pensei falar-lhe no quadro do marido que estava na sala de jantar e que me parecia tratar-se de milhentos cubos pequeninos, e que eu queria espreita-los para ver o que tinham dentro e como se encostavam uns aos outros definitivamente, achava eu. Pensei dizer-lhe que gostava de a rever a andar com os arames agarrados aos sapatos para visualizar a ondulação do andar. Pensei dizer-lhe que me sentia muito, muito bem sempre que estava ali. Mas nada disse. Não fazia sentido atrever-me. Queria mesmo passar quase despercebida. Não incomodar. Era um privilégio quando a Helena me olhava e me sorria, nas vezes em que fui lá a casa e me sentei no atelier. Ela, a Helena Almeida era então a minha poesia total.


Um dia, deu-me alguns fios do quadro em que trabalhava e disse «Ficam nas tuas mãos. Bem entregues».


Corei.


Sair daquele espaço onde se passavam as interrogações todas, era o meu momento de trazer tudo ao mesmo tempo comigo depois de ter confirmado que existia um tudo.


Ainda hoje me envolvi com um guindaste de memória, e grata pela partilha dos círculos coloridos e insistentes que desde então me chegavam e partiam aos enxames, por ela, por Helena Almeida, deles deixei de duvidar ou de ter medo.

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

A tela como superfície a transcender.


Através de outra pessoa ou através de uma coisa é mais fácil falar sobre a verdade de um eu interior.


‘...preciso eu mesma de achar, a minha própria forma’, Etty Hillesum, 4 de julho de 1941.


O diário de Etty (Esther) Hillesum (1914-1943) abre a importância da descoberta do mundo interior. O livro trás uma verdade: a vida dentro da obra coincide com a vida dentro do criador. E mostra a importância de uma constante interrogação interior na obra do artista. Etty queria ser escritora e, portanto, era importante para ela afirmar que corpo e alma são exatamente a mesma coisa. Tudo o que ela sentia por dentro era outra forma de viver. O processo dentro do seu corpo - pensamentos, desejos, conhecimento - também participa na construção de ser. Para criar e escrever o seu diário, Etty confia a sua alma e toda a sua vitalidade a um insignificante pedaço de papel. Só então os seus pensamentos poderão ser claros e os seus sentimentos profundos. Mas uma grande inibição e falta de confiança não permitiam que seus pensamentos saíssem completamente livres e fluídos - na maioria das vezes, eles ficavam presos dentro de si. Etty sempre sentiu que ainda havia algo encarcerado. E ela treinava todos os dias para olhar e ouvir o que havia dentro dela.


‘...há algo que continua profundamente encarcerado dentro de mim.’
, Etty Hillesum, 9 março 1941


Algumas obras de arte revelam o interior oculto e infinito do artista que se encontra atrás de uma superfície e de uma pele. Alguns artistas desejam superar os limites do corpo (como pessoa e como objeto). Por isso a pintura pode passar a ser um objeto capaz de transportar, de transcender e de projetar.


A superfície de uma tela, pode ser: Alma em Agnes Martin; Personagem em Angela de la Cruz; Cor em Gothard Graubner; Corpo em Helena Almeida; e Espaço em Lucio Fontana.


Tela = Alma


There are two endless directions. In and out', Agnes


Os escritos de Agnes Martin (1912-2004) são muito profundos e claros em relação à ideia de que a alma é a única coisa de que um artista precisa para trabalhar. As pinturas de Agnes Martin estão relacionadas com a pureza da mente e com a "alma limpa". Para criar, o artista deve viver uma intensa experiência interior. Pode salvar-se se olhar para sua alma e a alma pode ser transportada para o objeto que se cria. Agnes, vivia quase como eremita no Novo México e acreditava que a alma ao ser independente da matéria deseja, por isso, libertar-se de qualquer corpo para que possa retornar à sua origem divina. A criação de uma alma visível na tela, acontece quando Agnes Martin utiliza retângulos, linhas horizontais, através do branco e do preto. As suas telas precisam de subjetividade e profundidade para serem interpretadas e compreendidas.


Tela = Carácter


Angela de la Cruz (1965) transforma as suas telas em personagens e sentimentos humanos - ora estão dobradas, rasgadas, quebradas, escondidas, curvadas, torcidas, colocadas nos cantos, no chão, na parede...


Angela de la Cruz estudou durante um período (1989-1996) em que a pintura triunfava e por isso desejava ultrapassar os limites físicos da estrutura e do material da tela tradicional.


Angela de la Cruz baseia o seu trabalho no legado da pintura modernista - abstração monocromática, superfícies planas, cores primárias e explora sobretudo a possibilidade das pinturas serem também objetos. Angela de la Cruz desconstrói a tela para, através da metáfora, representar o mundo real. A superfície é manipulada como se de uma personagem se tratasse. E assim, o objeto criado encarna qualidades antropomórficas, expressivas, alusivas e figurativas - corpos gordos perdem peso, telas esmagam-se umas contra as outras ou contra a parede, o tecido é arrancado, remendado, mutilado, morto, o nada.


Angela de la Cruz chama as suas telas de ‘cargo bodies’ - são peças performativas e são tão reais quanto as pessoas.


Tela = Cor


Na década de 1960, Gotthard Graubner (1930-2013) trouxe a possibilidade do volume da pintura se fundir com o espaço, como uma esponja colorida na água. A cor distribui-se e cobre todo o espaço da tela/almofada de maneira a enfatizar os cantos - a borda interna do retângulo da tela dá assim a impressão de um torso.


Graubner cria Farbraumkörper - os corpos do espaço e da cor. E por isso,se afirma uma forte intenção da cor em se tornar um corpo - pelo uso de esponjas e tecidos que succionam e absorvem a tinta. As esponjas são ainda recobertas por um tecido transparente (Perlon) que potencializa o efeito espacial da cor. Graubner criou a palavra Farbleib (corpo colorido) para representar a transferência entre o elemento que faz a obra e a própria obra. Os seus Körperbilder são retratos.


Para Graubner, a sua fórmula é: cor = transformação do organismo = pintura.


Embora a fixação na parede não seja necessária, pois o objeto também pode ser colocado como uma almofada numa superfície horizontal, Graubner gosta de pendurar os objetos para que o observador tenha uma conexão direta com seu centro de energia - o solar plexus.


Tela = Corpo


Helena Almeida (1934-2018) nos anos 1960 e 1970, vive na tela e trabalha o suporte da pintura como se fosse um corpo, o seu corpo.


As primeiras peças de Helena Almeida, de 1967-68, recusam o uso simples das duas dimensões, rejeitam a pintura ótica e sublinham as propriedades tácteis e plásticas (qualidades que vão para além de qualquer olhar). A matéria e a superfície da pintura são manipuladas como um objeto. Helena Almeida repensa a pintura a partir dos seus elementos estruturais e inverte a sua lógica convencional. A pintura (ainda que pendurada na parede) literalmente sai da tela - o seu interior e a sua dimensão oculta passam a ficar a descoberto, passam a ser o seu exterior. Posteriormente, Helena Almeida usa até as suas pernas, os seus braços, o seu rosto e todo o seu corpo para habitar a tela.


Tela = Espaço


The discovery of the Cosmos is that of a new dimension, it is the Infinite: thus I pierced this canvas, which is the basis of all the arts and I have created an infinite dimension...’, Lucio Fontana


Lucio Fontana (1899-1968) ao cortar a superfície das telas criou um conceito espacial - o universo da pintura foi transcendido. As perfurações tornaram-se irreparáveis. Os cortes representam um espaço filosófico - e o espaço para Fontana não é mais uma abstração. Ele afirma que a tela não é mais um veículo pictórico.


Fontana corta a tela em busca de porosidade, de interioridade, de penetrabilidade, de infinitude, de escape, de objetualidade.


Inesperadamente, Fontana afirma a ambivalência de uma obra de arte - não é somente pintura, nem escultura, nem instalação, nem ambiente ou tecnologia. Novas dimensões associam-se agora à tela - o infinito, a espiritualidade, a dor física, o terror de criar, a negação da mente, a ansiedade do incerto, a liberdade do corpo, a ampliação do desconhecido.


Os diários de Etty Hillesum fornecem o motivo para discutir a transcendência da superfície de uma pintura. Etty é uma escritora com um intenso mundo interior, mas que não consegue encontrar palavras para escrever. Por isso trago à luz pintores que com a mesma necessidade, transferem para a tela a sua alma, o seu carácter, o seu cor, corpo e espaço na esperança de criar um novo objeto com vida.

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Helena Almeida, o eu, o corpo e a obra.

 

‘Não ía contratar um modelo quando me tenho a mim no atelier. Além disso, eu é que sei quais são as posições em que me devo colocar ou quais as atitudes que devo assumir e como é que devo conceber o cenário. Faço o cenário e coloco-me nele exact89amente como eu quero e com a expressão que desejo. Mas não sou eu. É como se fosse outra pessoa, é, no fundo, a busca do outro, é o outro que lá está.’, Helena Almeida, 1996

 

Helena Almeida (1934-2018) habita, vive, veste e incorpora o espaço, a matéria e a superfície da pintura através da fotografia. O seu trabalho é muito pessoal, singular, único e irrepetível. A artista soube sabiamente introduzir, em permanência e em contínuo, o corpo na obra de arte.  E em cada trabalho, consegue sempre reunir e em simultâneo o eu, a obra e o outro.

 

Desde cedo, Helena Almeida sentiu a necessidade de abrir novas possiblidades à pintura. No início, a pintura abstracta muito a influenciou. Mas rapidamente, a pintura se tornou volume que saía para fora da tela. Desde logo, Helena Almeida desejava uma tela antropomórfica (ver aqui). A tela como uma pessoa, um eu, um objecto de projecção. E só a fotografia foi capaz de incluir toda a gente, todo o espaço e toda a matéria que fazem parte do processo de criação (o artista, o espectador, o atelier, a mesa, a cadeira, a tela, a folha, o pincel, a linha, a mancha).

 

‘Em pequena com cinco-seis anos, ia espreitar atrás dos quadros, das telas, para saber o que estava lá atrás, achava que devia haver qualquer coisa de obscuro nas costas.’, Helena Almeida, 2005

 

Lucio Fontana, ao fazer golpes na tela, deu a conhecer o lado oculto da tela– Helena Almeida dá a conhecer o outro lado da criação. Os seus desenhos e pinturas saiem literalmente de dentro do seu corpo. A tinta incorpora-se dentro da pintora – que ora a guarda no bolso ora a come. O corpo infiltra-se pelo atelier e o espaço adivinha-se dentro do corpo da pintora através de espelhos.

 

O eu e o corpo são materiais tal como a tela e a tinta e aproximam-se, mais do que nunca do espectador – que pode fazer parte integrante da obra e assim entrar nela (por exemplo, nos desenhos habitados a linha sai da fotografia e passa a pertencer a dois espaços, ao do artista e ao do espectador).

 

‘Eu estou a pintar para a frente para pôr o outro no meu espaço, no espaço do quadro, ao mesmo tempo que me coloco no espaço da pessoa que está a ver. Essa pessoa não está a ver nada.’, Helena Almeida, 2016

 

O corpo concreto e físico materializa uma forma pictórica de prolongar a obra e também é a obra que prolonga o corpo. O corpo de Helena Almeida é usado como um recipiente que entra e sai da pintura (tela/tinta/pincel), do desenho (folha/linha/caneta) e do espaço (paredes/chão/janela/cadeira/banco). E cada fotografia é uma intensidade, é um culminar analógico onde o acto de criar está exposto à vista de todos.

 

‘O trabalho nunca está completo, tem que se voltar a fazer. O que me interessa é sempre o mesmo: o espaço, a casa, o tecto, o canto, o chão; depois o espaço físico da tela, mas o que eu quero é tratar de emoções. São maneiras de contar uma história.’, Helena Almeida, 1997  

 

Ana Ruepp