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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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HENRY FONDA NÃO É O PAI DE JANE FONDA

 

Henry Fonda não é o pai de Jane Fonda. Ou seja, é. Mas como se verá, ser ou não ser nem sempre é a questão.

 

Conheci primeiro Jane Fonda, colorida brilhante, plástica. Trocámos olhares lúbricos e ter-lhe-ei roubado algumas carícias. Não a aqueci nem a arrefeci e, “Barbarella” esquecida, passou-me. Coisas de adolescente. Eu não melhorei com a idade, ela muito.

 

Henry Fonda, conheci-o mais tarde. Apresentou-mo o João Bénard numa sessão da Gulbenkian. A mim e a mais 1.500 pessoas, em sala cheia, inquieta, emocionada.

 

É traumático conhecer pessoas em auditórios escuros como breu. Ainda por cima, Henry Fonda entrou na sala com os 35 anos de 1940, desenhado por um chiaroscuro que logo nos abria os olhos para a honestidade magoada do olhar dele. “The Grapes of Wrath” era o filme e, como o livro original de Steinbeck, em português “As Vinhas da Ira”.

 

Nesse dia, Henry Fonda chamava-se Tom Joad e, apesar da ira que tutelava o filme, transpirava a decência dos justos. Via-se nele uma beleza inclassificável. Nem apolínea, nem dionisíaca. Os deuses, mesmo os gregos, não eram para ali chamados. Henry Fonda oferecia uma beleza humana, modesta, um modo de erguer o corpo na vertical, sem arrogância ou pose.

 

O corpo direito, a barba de dois dias a cobrir-lhe o rosto, sem disfarçar a cicatriz numa das faces, uns olhos divididos entre a angústia e a esperança, Henry Fonda era Tom Joad e não era apenas Tom Joad. Era o povo.

 

Eu julgava que já conhecia o povo. Descobri que o tinha visto, sim, mas conhecê-lo foi ali. “The Grapes of Wrath” retrata tempos de crise. Mostra uma família rural que perdeu a quinta para o Banco e, com os bens decrépitos atulhados numa camioneta miserável, segue estrada fora em busca de trabalho e da Califórnia redentora.

 

Tom Joad, Henry Fonda, é o filho, neto e sobrinho dessa família. Acossados, humilhados, roubados de tudo por Bancos, impostos, polícias, só lhes resta a razão última da sua dignidade. Na mais escura das noites, Tom despede-se da mãe prometendo-lhe “I’ll be all around in the dark, I’ll be everywhere”, e é nessas sombras que mergulha para, bem-aventurado e sedento de justiça, estar em todo o lado.

 

Nos olhos de Henry Fonda, na sua voz calma e de uma vibração segura, a mãe, Ma Joad, descobre a força e a razão para não voltar a ter medo, “co’s we’re the people”, porque somos o povo que vive.

 

E hoje, em qualquer parte do mundo, se vejo uma família que atafulha os bens decrépitos numa camioneta de pneus furados, em cada grito zangado, no medo de cada mãe perplexa, no riso de cada miúdo que ignora o futuro hipotecado, volto a ouvir a voz de Tom Joad, volto a ver o olhar claro, a fé de Henry Fonda.

 

Henry Fonda é mais do que o pai dos seus filhos. Nesse filme de John Ford, Henry Fonda é o povo que se vê all around, em todo o lado. Pode o povo copiar-lhe a voz firme e, ao olhar, roubar-lhe uma razão da esperança?

 

Manuel S. Fonseca