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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


141. IGUALANDO DEUS, TIRANDO VIDAS E SALVANDO-AS


- Porque quer estudar medicina? - interpelou o professor.

- Da primeira vez que fui ao hospital, pensei que ia sair de lá a correr. O cheiro, o sangue, os gritos… Mas fiquei. Senti que aquele era o meu lugar, porque queria ajudar.

- E o senhor? - perguntou a aluna.

- Eu?

- Eu digo-lhe.

- O juramento de Hipócrates salvou-me nos meus momentos mais negros. Concederam-nos duas formas de nos igualarmos a Deus: tirando vidas e salvando-as. Eu acho que está na altura de as grandes mentes do nosso país voltarem à segunda opção.

- E você, menina Wolf… está no lugar certo.

- Obrigado - agradeceu Ulla.

Vi este diálogo na série televisiva alemã “Os anos dos milagres”, retratando os amores e a vida da família Wolf, na Alemanha pós-nazi, em que uma das protagonistas sai de casa para ser médica, sendo questionada sobre a sua vocação por um professor e examinador, na faculdade, com um final feliz.   

Segurei-o e retive-o, consciencializei que agarra tão de perto e de modo incisivo o que é ser médico, que houve um clique mais elucidativo em mim, sumariando e robustecendo, num ínfimo minuto, o que me ditava a experiência. 

Pelo que experienciamos no dia a dia, não há para o ser humano bem mais precioso que a saúde, o que justifica o lugar da medicina em todas as civilizações, a relação tão pessoal e especial que se estabelece entre o doente e o médico. 

Quem exerce a medicina é uma espécie de representante de Deus na terra, um deus terreno, que tem o poder de tirar e salvar vidas, alguém a quem se atribui um saber, um poder e uma influência incomum na vida e saúde de todos, cuja palavra e uma relação especial estabelecida, quando de confiança, se pode sacralizar, chegando o paciente a sentir-se desamparado ou perdido, na ausência do seu médico, com igual sentimento deste, se também ausente, como que num relacionamento de salvação recíproca. 

Entre a opção de tirar e salvar vidas, deve prevalecer a segunda, ajudando a dar vida e saúde, e não, como em pleno nazismo, sinalizar pessoas como descartáveis e dispensáveis consoante a raça.

No pensamento médico, em quem exerce medicina, deve estar presente, em permanência, a regra de que todo o ser humano tem mais valor que as ideologias e ideias abstratas. Exige-o o juramento de Hipócrates, em que se jura solenemente consagrar a vida ao serviço da humanidade, exercer a arte com consciência e dignidade, não permitir que considerações de natureza política, religiosa, racial, de nacionalidade ou posição social, se interponham entre o dever do médico e o seu doente, guardando respeito absoluto pela vida humana, mesmo sob ameaça, não fazendo uso, à revelia, dos conhecimentos médicos, a lembrar uma declaração universal de direitos e deveres humanos fundamentais, em que a unidade do género humano se sobrepõe à diversidade das culturas por nós habitadas.  


02.06.23
Joaquim M. M. Patrício