Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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“Foram os economistas que ensinaram os historiadores a observarem as conjunturas longas e curtas, a analisar os mecanismos económicos e a valorizar os estudos estatísticos”. Quem o lembra é a historiadora Miriam Halpern Pereira, na antologia agora publicada pela Fundação Gulbenkian com o título O Século do Liberalismo, lembrando Pierre Vilar, para referir a importância que no seu percurso pessoal teve a relação entre a História e a Economia. Contudo, acrescenta que: “cabe aos economistas compreenderem que os movimentos observados não têm apenas causas ou consequências económicas”. Estamos perante a necessidade de um verdadeiro diálogo, capaz de permitir um melhor conhecimento da realidade humana, bastante complexa, exigindo sempre a consideração de múltiplos fatores. E a História ensina-nos a encarar a realidade como algo que apenas pode ser compreendido se soubermos ligar os interesses materiais e os valores éticos sem a tentação de procurar soluções providenciais que não dependam da vontade dos cidadãos, da limitação do poder e da legitimidade democrática.
Para a historiadora, os séculos XIX e XX apenas podem ser compreendidos através de uma evolução dinâmica, em que a política, a economia, a sociedade, as finanças e a inserção europeia e internacional se articulam intimamente. Daí a necessidade de uma análise circunstanciada e rigorosa das grandes mudanças políticas e sociais desde 1820 até ao Ato Adicional à Carta Constitucional de 1852. Se é verdade que as mudanças do Marquês de Pombal prenunciaram a metamorfose política que ocorreu no século XIX sob a invocação da liberdade política e económica, o certo é que as razões de ordem interna e externa, entre a resistência da sociedade tradicional e o desenvolvimento urbano, condicionaram a evolução do Portugal oitocentista. Liberais influentes como Almeida Garrett e Alexandre Herculano viram-no com a preocupação comum de modernizar o país, pondo-o ao ritmo da Europa. Era uma sociedade nova que nascia depois da Revolução de 1820 e as guerras civis do cabralismo. Não por acaso, a autora coloca as suas reflexões sob a invocação do espírito constitucional, que consagra o primado da lei, a cidadania livre, plural e responsável, a limitação do poder em lugar da condição subordinada dos súbditos. Se dúvidas houvesse, bastaria lermos a evolução do pensamento político de Alexandre Herculano para compreendermos como se chegou ao compromisso, que reforçou a legitimidade original da Carta Constitucional de 1826, tornando-a em 1852 uma Constituição legitimada por um verdadeiro processo constituinte.
“Sem a economia, a história torna-se historizante, e sem a história a economia fica mais pobre nas suas explicações”. A afirmação da autora perpassa em toda esta obra fundamental. Estamos perante uma investigadora de excecional qualidade, que soube aliar a análise rigorosa dos acontecimentos complexos com uma perspetiva crítica, centrada no diálogo e na reflexão. A perspetiva económica completa-se com a compreensão psicológica e sociológica – com um particular cuidado na dimensão pedagógica, para que o método histórico possa abrir horizontes no entendimento do desenvolvimento humano. No nosso caso, a evolução tem de ser analisada nos seus progressos e inércias. A lentidão das reformas liberais que se arrastaram depois do reformismo audacioso de Mouzinho da Silveira, teve efeitos negativos. Os impasses do final do século XIX nas finanças públicas tiveram incidência na situação económica, aumentando a necessidade de empréstimos para os melhoramentos materiais, que elevaram o custo do crédito, cerceando o impacto da modernização dos instrumentos de crédito e da eficácia dos investimentos, que a Geração de 70 criticou – e por isso Portugal tornou-se um dos países menos desenvolvidos da Europa no dealbar do século XX. Eis por que, contra o atraso e o fatalismo, precisamos da vontade e dos compromissos sociais para uma cidadania inclusiva e justa.
A derrota de Napoleão na batalha de Trafalgar levou o Imperador francês a abandonar o plano de invasão da Grã-Bretanha e a conceber como alternativa o Bloqueio Continental, visando asfixiar economicamente o inimigo, tão dependente do comércio marítimo. Em novembro de 1806, chegado a Berlim, Bonaparte proclamou o fecho de todos portos do velho continente aos navios britânicos. E em Tilsit, deu conta ao Imperador russo do seu objetivo de depor as casas reais da Península Ibérica, resistentes ao bloqueio. Conhecemos a História, as breves hesitações do governo de Lisboa, a sobrevivência do Reino, a posição britânica, o bombardeamento de Copenhaga, em setembro de 1807, para que a frota dinamarquesa não caísse em poder da aliança franco-russa e a decisão portuguesa de partir.
Estamos no coração da obra de António Alves-Caetano A Emergência do Liberalismo em Portugal no Ocaso do Antigo Regime (1796-1822), que merece uma leitura atenta, uma vez que aí se desenham o destino trágico de Napoleão, a reconfiguração da Europa oitocentista e futuro de Portugal com a independência do Brasil e o nascimento do constitucionalismo liberal. Há dúvidas e contradições, mas a convenção secreta anglo-portuguesa de 22 de outubro de 1807 operou um golpe de teatro, ou seja, a retirada da Corte portuguesa para o Brasil. É verdade que houve uma espera, mas tudo se passou de modo que a chegada de Junot tenha ocorrido felizmente a destempo, quando os navios importantes, militares e mercantes, já tinham partido rumo ao Atlântico Sul. É certo que as ordens deixadas pelo Príncipe D. João eram para que os invasores fossem acolhidos com benignidade, como Domingos António de Sequeira interpretou à letra, mas a verdade é que a águia imperial, que chegava muito fragilizada, sem o saber estava ferida de morte. Abria-se o caminho da independência do Brasil e terminava o pacto colonial, com todas as consequências económicas e políticas.
É assim importante o estudo sobre a forma como o bloqueio de Napoleão afetou o movimento de entradas e saídas dos navios mercantes no porto de Lisboa, demonstrando os efeitos negativos não só da abertura dos portos do Brasil à Inglaterra, mas também os condicionalismos impostos pela guerra europeia na quebra das produções agrícolas e industriais do Reino. Porém, as importações inglesas e americanas invadiam-nos, ainda que muitas fossem destinadas ao consumo das tropas britânicas. E deve recordar-se o outro importante estudo do autor sobre “Os Socorros Pecuniários britânicos destinados ao Exército Português”, muito esclarecedor sobre o tema. Contudo, mesmo depois da vitória definitiva sobre os franceses (1811), a Marinha portuguesa, outrora dominante, veio a perder influência, também por ausência das reformas necessárias. Já a foz do Douro continuou com um movimento significativo relacionado essencialmente com o trato do vinho do Porto.
O livro de António Alves-Caetano contém uma análise rigorosa dos momentos fundamentais da Guerra Peninsular, desde a chegada de Junot até à revolução de 1820, com o despontar do movimento liberal, apresentando a conjugação da resistência nacional contra o invasor com a formação de uma consciência de soberania constitucional. O livro apresenta ainda a análise das ingerências britânicas em Macau na era napoleónica, do papel desempenhado por Miguel de Arriaga como Ouvidor em Macau ou da vitória naval na batalha do Boca do Tigre (1809-10), esclarecendo o autor o papel do Conde de Farrobo no apoio decisivo à causa liberal de D. Pedro, contra injustas difamações. E assinale-se a justíssima referência a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, figura central na organização das Finanças Públicas portuguesas, aquando da fundação do Ministério da Fazenda. No fundo, a emergência constitucional significava a busca da liberdade pátria e a resposta aos ingentes desafios perante as profundas mudanças europeias.
«Filosofia Medieval – Uma Introdução Histórica e Filosófica» de John Marenbon (Gulbenkian, 2024) é a mais recente publicação da reconhecida Coleção dos Clássicos, permitindo um conhecimento de um dos períodos mais ricos e complexos da história europeia.
Filosofia Medieval de John Marenbon (Gulbenkian, 2024) oferece um relato sintético e abrangente sobre a história da filosofia na Idade Média, referindo os principais escritores e ideias daquele período histórico, envolvendo os contextos sociais e intelectuais e os principais conceitos a considerar. O Professor John Alexander Marenbon (1955) é um prestigiado filósofo britânico, Fellow do Trinity College da Universidade de Cambridge e membro da British Academy. Exerceu a docência ou realizou conferências na Sorbonne, na Universidade de Toronto, no Vaticano e em Beijing. Tem vasta obra publicada, avultando a conferência “De quando foi a Filosofia Medieval” (2011) e “Pagans and Philosophers. The problem of paganism from Augustine to Leibniz”, Princeton University Press 2015. Esta introdução fornece um relato cronológico que trata das quatro principais tradições da filosofia que derivam da herança grega da Antiguidade tardia (filosofia cristã grega, filosofia latina, filosofia árabe e filosofia judaica); inclui secções de «estudo» focadas nos argumentos e «interlúdios» mais curtos que apontam para questões mais amplas do contexto intelectual; combina a análise filosófica com antecedentes históricos; incluindo um guia detalhado e útil para leitura adicional e uma extensa bibliografia, atualizada para esta edição. A tradução foi coordenada por José Meirinhos.
Foi Boécio, filósofo do século VI, quem definiu pessoa humana como “substância individual de natureza racional”. A citação do pensador romano na declaração sobre a dignidade humana permite-nos fazer a ligação, numa inserção plural, da obra agora publicada à declaração “Dignitas Infinita” sobre a Dignidade Humana, elaborada durante cinco anos e publicada em março de 2024 pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, pondo a tónica na dimensão universal, filosófica e antropológica, do respeito pela pessoa humana enquanto fator de salvaguarda dos direitos humanos, do primado da justiça e do reconhecimento de que todos os seres humanos como livres e iguais em dignidade e direitos. De facto, importa enfatizar «o caráter único da pessoa humana, incomensurável em relação aos outros seres do universo» (DI, 14). Assim se pode compreender o modo como é usado o termo dignidade na Declaração Universal das Nações Unidas de 10 de dezembro de 1948, onde se fala «da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos, iguais e inalienáveis». Apenas esse caráter inalienável da dignidade humana permite que se fale de direitos da pessoa humana na sua plenitude. Contudo, para melhor esclarecer o conceito de dignidade, deve tornar-se claro que esta não é concedida à pessoa humana por outros seres humanos, a partir de seus talentos e qualidades, por isso não pode ser perdida ou retirada por decisão aleatória. A dignidade é, pois, intrínseca à pessoa. «Em consequência, todos os seres humanos possuem a mesma dignidade, independentemente de serem ou não capazes de exprimi-la adequadamente» (DI, 15). Assim, o Concílio Vaticano II refere a «eminente dignidade da pessoa humana, superior a todas as coisas e cujos direitos e deveres são universais e invioláveis». E para a Declaração conciliar Dignitatis humanae, «os seres humanos tornam-se sempre mais conscientes da própria dignidade, crescendo o número daqueles que exigem poder agir por iniciativa própria, com a sua liberdade responsável, movidos pela consciência do dever e não obrigados por medidas coercivas». Assim, a liberdade de pensamento e de consciência, individual ou comunitária, é baseada no reconhecimento da dignidade humana «como foi dada a conhecer pela Palavra de Deus revelada e pela própria razão».
Infelizmente, há numerosos mal-entendidos sobre o conceito de dignidade, que distorcem o seu significado. Longe de uma abstração devemos insistir no facto de se tratar da dignidade de cada pessoa humana, “para além das circunstâncias”, reconhecendo-se ao ser humano uma dignidade que não se perde mais, sendo possível garantir a tal qualidade um inviolável e seguro fundamento, que não oscila à mercê de diferentes e arbitrárias avaliações, pois «os direitos da pessoa são direitos do ser humano». Assim, a dignidade não se identifica com uma liberdade isolada e individualista. A defesa da dignidade do ser humano é fundada em exigências constitutivas da natureza humana, que não dependem nem do arbítrio individual, nem do reconhecimento social. Os deveres que resultam do reconhecimento da dignidade do outro e os correspondentes direitos que daí derivam têm, pois, um conteúdo concreto e objetivo, fundado sobre a natureza humana assumida em comum. Desse modo, a dignidade do ser humano compreende a capacidade ínsita na mesma natureza humana, de assumir obrigações em relação aos outros.
Segundo nos lembra o Papa Francisco, «devido à sua dignidade única e por ser dotado de inteligência, o ser humano é chamado a respeitar a criação com as suas leis internas. [...] Por isso o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar um uso desordenado das coisas». E assim, a vida humana torna-se incompreensível e insustentável sem as outras criaturas. Pertence, por isso, à dignidade humana o cuidado com o ambiente, considerando em particular a ecologia humana que lhe preserva o próprio existir. Importa ainda salientar que um dos fenómenos que contribui consideravelmente para negar a dignidade de tantos seres humanos é a pobreza extrema, ligada à desigual distribuição da riqueza. De facto, «continua “o escândalo de desigualdades clamorosas”, em que a dignidade dos pobres é duplamente negada, seja pela falta de recursos à disposição para satisfazer as suas necessidades primárias, seja pela indiferença com que são tratados por aqueles que vivem a seu lado» (DI, 36).
Outra tragédia que atinge a dignidade humana é o prolongamento da guerra, hoje como em todos os tempos. E o Papa Francisco sublinha, que «não podemos mais pensar na guerra como solução. Diante desta realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais maturados em outros séculos para falar de uma possível “guerra justa”. «Aqueles que invocam o nome de Deus para justificar o terrorismo, a violência e a guerra não seguem o caminho de Deus: a guerra em nome da religião é uma guerra contra a própria religião. Também os migrantes estão entre as primeiras vítimas das múltiplas formas de pobreza. E é urgente recordar que «cada migrante é uma pessoa humana que, enquanto tal, possui direitos fundamentais inalienáveis que devem ser respeitados por todos em todas as situações». O seu acolhimento é um modo importante e significativo de defender «a inalienável dignidade de toda pessoa humana para além da origem, da cor ou da religião». O tráfico de pessoas, os abusos sexuais, a violência contra as mulheres, o recurso ao aborto, a maternidade de aluguer, a eutanásia e o suicídio assistido, o desrespeito pelas pessoas com deficiência, a violência digital e tecnológica são violações graves da dignidade humana. E urge ainda reafirmar que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, evitando “toda marca de injusta discriminação” e particularmente toda forma de agressão e violência.
É nesse espírito que, com referida Declaração, a Igreja Católica exorta a colocar o respeito pela dignidade da pessoa humana, para além de toda circunstância, no centro dos esforços pelo bem comum e de todo o ordenamento jurídico. “O respeito pela dignidade de cada um e de todos é, de facto, a base imprescindível para a existência mesma de cada sociedade que se pretende fundada sobre o justo direito e não na força do poder. Sobre a base do reconhecimento da dignidade humana se sustentam os direitos humanos fundamentais, que precedem e fundam toda convivência civil” (DI, 64). E Pedro Mexia tem razão ao afirmar que, “a dignidade vale mais do que a identidade” (Expresso, 10.5.2024). Não que esta não seja importante, mas é a dignidade da pessoa humana que se torna pedra angular de qualquer entendimento identificador, até pela importância da compreensão de que urge distinguir para unir… “É importante que um entendimento acerca do humano seja tão ambicioso quanto judicioso. E que esteja atento às formas de desumanização, as novas e as antigas”.
“A Bíblia Tinha Mesmo Razão?” de Francisco Martins, S.J., publicado por Temas e Debates, constitui um precioso e fundamental roteiro sobre os grandes marcos do Antigo Testamento.
A PRUDENTE INTERROGAÇÃO
As histórias de Israel e Israel na História levam-nos à investigação de um competente jesuíta que permite uma análise cuidada sobre a verosimilhança dos acontecimentos fundamentais do Antigo Testamento. Em 1955, o jornalista e ensaísta alemão Werner Keller escreveu uma obra que deu brado. Referimo-nos a “E a Bíblia tinha razão”, livro que se propunha mostrar que as descobertas arqueológicas disponíveis confirmavam a veracidade dos relatos bíblicos. O que muitos consideravam mito, lenda ou referência ilusória tinha acontecido de facto, e era possível prová-lo cientificamente. E assim a conquista de Canaã, relatada no livro de Josué, ou a fundação do reino de David, a quem sucederia Salomão, segundo os livros de Samuel e dos Reis, corresponderiam a acontecimentos cuja memória podíamos confirmar com provas históricas. O mesmo afirmava Keller relativamente ao dilúvio universal, relatado no Genesis, às dez pragas do Egipto, referidas no Livro do Êxodo, ou no surgimento do Maná do deserto… Importaria encontrar indícios naturais que pudessem confirmar a memória longínqua desses acontecimentos, como a ocorrência de uma grande inundação na foz do rio Eufrates ocorrida cerca de 4000 antes de Cristo, cujas marcas eram encontráveis, ou a decisão do Faraó de deixar partir o povo judeu, o que só poderia explicar-se sob o efeito de uma ameaça sem dúvida avassaladora. Já quanto ao Maná do deserto, Keller encontrou como explicação as secreções de um inseto-escama que se alimenta da seiva dos tamariscos… A partir desta obra, Francisco Martins S.J., professor de literatura bíblica na Universidade Pontifícia Gregoriana de Roma, apresenta-nos uma investigação que, segundo um método diferente, transformou a afirmação de Werner Keller numa pergunta, procurando investigar o que podemos saber sobre a história do povo judeu, que nos legou na Bíblia o relato do que o marcou e lhe deu uma identidade própria. Urge, assim, responder às perguntas que devem animar um estudo sério sobre o tema, desde as condições sociais que promoveram o surgimento da realidade coletiva, até à compreensão de como se afirmou a expressão política dessa identidade, nos séculos que correspondem ao período do Antigo Testamento. Trata-se, no fundo, de compreender melhor, corrigindo anacronismos e sem forçar os acontecimentos, qual a relação entre a Bíblia e a História. Foi esse o caminho seguido pelo investigador, e o certo é que os leitores são largamente beneficiários de tal método e da atitude crítica.
UMA ATITUDE CRÍTICA
Em vez de responder sim ou não à pergunta do título, o que empobreceria a nossa compreensão sobre o perfil e o horizonte da literatura bem como sobre a reconstrução histórica, deveria partir-se do texto bíblico para uma análise crítica das circunstâncias do mesmo. Podemos compreender, assim, a linha do tempo que ela acompanha. Daí explicar-se que Frei Bento Domingues, O.P. tenha afirmado ser este livro o melhor dos presentes de Natal. Seguindo um caminho cronológico, deparamo-nos com o período das origens, desde Abraão até à época dos Asmoneus; depois estão em causa os relatos patriarcais e as dúvidas sobre quais as razões para o caráter tardio das composições literárias sobre os patriarcas, com forte risco de anacronismo e mistérios por resolver. “Envoltas em ‘roupagem’ literária do primeiro milénio a. C., as histórias de Abraão, Isaac, Jacob-Israel e seus descendentes (Gn 12-50) e a épica libertação do Egipto (Ex 1-15) preservam muito provavelmente o ‘eco’ de figuras e eventos mais remotos, mas subtraem-nos os contornos históricos concretos em nome da reelaboração que as transformou em relato fundacional”. Por exemplo, no relato sobre o papel desempenhado por José junto de um Faraó, não encontramos confirmação na história das fontes egípcias. Após o Êxodo do Egipto, encontramos a emergência do monoteísmo, a importância de Yahvé – sendo que o seu culto exclusivo e a proclamação da unicidade divina resultaram de um longo processo histórico que não culminou senão depois do exílio. No caso do surgimento de Israel e da terra de Canaã, sentimos o contraste entre os livros de Josué e dos Juízes e a procura de um síntese harmoniosa. No caso da controvérsia sobre o início da monarquia (século X a. C.) e sobre as figuras de Saul, David e Salomão podemos, por isso, explorar os limites da reconstrução histórica, perante a dificuldade de emitir juízos seguros sobre esse tempo. Perante a “história normal” dos reinos de Israel e Judá, há condições para uma maior certeza histórica. E assim os escritores sagrados construiram narrativas nas quais os acontecimentos históricos são pretexto para mostrar a relevância teológica do que acontece na História.
A GÉNESE DO JUDAÍSMO
O Reino de Judá chegará ao fim dos seus dias pela captura da cidade de Jerusalém em 586 a. C. e pelo início do exílio em Babilónia. É o livro de Jeremias que nos dá o ambiente no interior da cidade sitiada e os sinais de resistência. Nabucodonosor ordena destruição da cidade. Mas ao sucesso segue-se a queda do império babilónico, a que sucede a conquista do rei Ciro da Pérsia, que muda a sorte dos exilados na Babilónia. O período persa permite o regresso do povo e a reconstrução do Templo de Jerusalém, a reedificação das muralhas de Jerusalém e o início da escrita da Bíblia ou proclamação da Torá – o Pentateuco, considerado como lei local. O nome “judeu” ganha, assim, dois significados – ou designa o indivíduo natural ou com uma ligação histórica ao reino de Judá ou à Judeia, ou corresponde a quem professa a religião judaica. Os séculos VI e V a. C. são o período charneira para o surgimento da Bíblia e assim se passa do Yahvismo (o povo escolhido por Deus) para o judaísmo, baseado no “código dos códigos” da cultura ocidental, sendo a Bíblia, motivada pelo trauma do exílio. E deste modo o “livro”, mais do que a “terra”, adquire o estatuto de pátria e de “religião”. E o período persa e o período helenístico, sob o domínio macedónio, abriram um novo horizonte que será, nos séculos seguintes, enriquecido pelo cristianismo…
Ao falar de identidade nacional, José Mattoso lembrava a anedota que se contava do rei D. Luís quando, já bem adiantado no século XIX, perguntava do seu iate a uns pescadores com quem se cruzou se eram portugueses e a resposta foi bem clara: “Nós outros? Não, meu Senhor! Nós somos da Póvoa de Varzim”.
Com efeito, é sempre complexo o processo de definição do que designamos por identidade nacional. Ela é inseparável de uma perceção coletiva. Por isso a consciência histórica é fundamental, correspondendo à noção de apropriação do poder, tendo no caso de Portugal o Estado precedido a Nação, num processo lento e gradual. Esta anedota serve para se perceber que, longe de um entendimento fechado, estamos perante uma realidade complexa e aberta, que no caso português se traduz num curioso cadinho que, na diversidade, se uniformizou no território, na fronteira, na língua e numa construção convergente realizada de norte para sul e de sul para norte. “A História-escrita não será nunca reprodução da História-vivida” – disse-o José Mattoso (cf. A História Contemplativa – Ensaio, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2020). “A História-escrita não será nunca reprodução da História-vivida. Uma verifica os vestígios deixados pelo que aconteceu e relaciona-os entre si para representar o que já não existe. A outra é o conjunto dos próprios acontecimentos, que se sucedem no tempo e por isso podem ser recordados por quem os viveu, mas já não existem. Ao escrever a História construímos uma representação, ou seja, uma réplica do que aconteceu. Com efeito, os acontecimentos deram-se em momentos fortuitos, que não podemos representar porque a cada um deles segue-se outro momento”. A História-escrita não explica a reação dos poveiros. E para o historiador o encadeamento dos factos corresponde a operações mentais. Daí a necessidade de sínteses, de classificações, de agrupamentos racionais. Contudo, perante a complexidade temos dificuldade em distinguir o individual e o coletivo, o nacional e o internacional, os fatores sincrónicos e diacrónicos. Assim, a organização do tempo revela-se importante não apenas para distinguir a sucessão dos acontecimentos, mas também para permitir a comparação com o que ocorre noutros horizontes e que converge e diverge entre si. Como há um movimento permanente e simultâneo da sociedade humana, só podemos situar-nos na razão de ser das coisas a partir das referidas operações mentais.
ANÁLISE CERTEIRA E INOVADORA José Mattoso fez uma análise certeira e inovadora, usando uma metáfora feliz: a História-escrita assemelha-se à maquette de um edifício que já não existe, mas que idealizamos e pode ser reconstruída. A História-vivida não tem lugar na realidade, desapareceu, mas pode ser representada pela História-escrita, como operação que procura ser verosímil. É algo que já não existe, uma vez que está a ser apenas objeto de uma projeção – e, sendo-o. Move-se, modifica-se sob o risco de permanente anacronismo, uma vez que a crítica é influenciada pelas mentalidades. Pode aproximar-se da objetividade, sem certezas, mas não está preservada da neutralidade. Lembremo-nos dos conceitos de identidade e de património cultural. José Mattoso teve o cuidado de encarar tais realidades como elementos complexos. “Quando o pensamento moderno se apropriou da História para reconstituir o passado, procurou rever as histórias nacionais para excluir as lendas e milagres, mitos, revelações e fantasias, descobrir causas e efeitos, e enfim impor a racionalidade e a lógica das narrativas anteriores”. Houve, assim, a tentação de reduzir tudo à racionalidade e à mentalidade ocidental. A diversidade, a recusa da superficialidade das análises, a exigência da compreensão do contexto – já que os factos dependem não só das decisões individuais ou coletivas, mas de fatores estruturais, antes desvalorizados. O tempo curto e o tempo longo têm de se articular – ensinou-o Braudel. E a memória recorda o que aconteceu, representando-o, ainda que de um modo fragmentado. No caso dos poveiros, temos a experiência da pesca e do conhecimento do mar no tempo longo e a vulnerabilidade das correntes e da meteorologia, bem como a maior ou menor presença do pescado no tempo curto, os economistas chamam-lhe estrutura e conjuntura. Mas como poderemos analisar a vida humana transcendendo o efémero? E Paul Ricoeur leva-nos para um caminho em que possamos usar uma mediação imperfeita ou incompleta entre o futuro, o passado e o presente. E se falamos de mediações e de instituições estamos no cerne da interrogação sobre como podemos colocar as pessoas como protagonistas da organização da sociedade e da realização do bem comum.
CHEGAR À CONTEMPLAÇÃO Para José Mattoso, chegamos assim à contemplação, que é o único modo de entender a unicidade e a coerência do ser, compreendendo a diversidade e a complementaridade, a prevenção do conhecimento contra o erro e a ilusão, a consideração do método que valoriza o contexto e o conjunto, o reconhecimento do elo entre a unidade e a diversidade da condição humana, além da aprendizagem de uma identidade planetária, da exigência da atenção ao inesperado e ao incerto como marcas do nosso tempo, da educação para a compreensão mútua entre as pessoas de pertenças e culturas diferentes e do desenvolvimento de uma ética do género humano de acordo com uma cidadania inclusiva – em que insiste Edgar Morin. “Ao captar a realidade pluridimensional do Homem no tempo, nasce nele o verbo silencioso forte de imagens, símbolos e alegorias que não o esgotam, mas indicam o sentido da vida humana sobre a terra, tudo o que se passa no tempo – os grandes impérios, o sofrimento dos excluídos, a renúncia aos bens terrenos, o amor e o desejo, o riso das crianças que brincam no campo, a exploração da terra, a composição de uma sinfonia musical – enfim tudo o que é real. Tudo tem sentido, tudo pode desencadear a exaltação de quem descobre esse mesmo sentido”. E eis-nos diante do paradoxo que é a existência humana, evidenciado no mistério revelado na fórmula de Pedro Calderón de la Barca de que “a vida é sonho”. A História-escrita e a História-vivida explicam uma exigência de compreensão da importância do tempo e da reflexão, da contemplação e do mistério… José Mattoso, foi um profundo renovador da moderna historiografia em Portugal, sendo exemplar nos novos métodos e na revelação de muitos enigmas, renovando a investigação como um campo de complexidade e de compreensão, até para se entender a necessidade de uma melhor vivência democrática, bem como da defesa efetiva do património cultural e de uma relação europeia e global mais profícua.
"A História Contemplativa" de José Mattoso (Temas e Debates, 2020) é ponto de partida para a invocação da Carta Apostólica do Papa Francisco “Sublimitas et Miseria Hominis” sobre 4 séculos do nascimento de Blaise Pascal.
A HISTÓRIA HUMANA… Começo por recordar a memória de José Mattoso (1933-2023), referência fundamental da moderna historiografia e da cultura portuguesa. Deixo uma breve citação, na qual recordo o seu espírito: “A minha visão da História humana, da História-vivida, é contemplativa. Sem dispensar nenhum dos recursos da investigação crítica, da heurística, da cronologia, da situação no espaço, da reconstituição dos factos, da perceção das ideias, da averiguação dos conjuntos humanos, do sentido dos mitos e dos rituais, procuro nela a trajetória temporal do Homem que creio ter sido feito à imagem e semelhança de Deus. Procuro a relação do Homem – de qualquer homem e de qualquer mulher – com o Filho do Homem (Mateus 8,20; Marcos 8,31). Do Filho do Homem que é igualmente Filho de Deus vivo (cf. João 6,51) Não esqueçamos que a atitude contemplativa é da ordem da visão. Requer um olhar atento, global, pacífico, não interventivo. Um olhar que capta as relações do pequeno com o grande, do singular com o plural, do diferente com o semelhante, do mesmo com o contrário. O olhar que coloca as coisas na sua ordem, que permite descobrir os géneros e as espécies, que classifica os conjuntos e que lhes atribui qualidades. Um olhar que reconhece o movimento e as mutações, sem que a diferença de tempo altere a identidade. Um olhar que compreende os percursos e os destinos da Humanidade, a atração e a repulsa, o amor e o ódio. (…) A visão contemplativa da História total faz da Arte, um dos caminhos que creio poderem conduzir ao Transcendente” (in “A História Contemplativa, Temas e Debates, 2020).
A RELIGIÃO E O MUNDO O Papa Francisco, quando se assinalam quatro séculos do nascimento de Blaise Pascal (1623-1662), filósofo, matemático e homem de fé, põe-nos diante deste tema que tão bem foi tratado por José Mattoso, na linha dos ensinamentos e reflexões de Yves Congar, O.P., a quem devemos o diagnóstico sobre as razões da incredulidade dos dias de hoje – “a uma religião sem mundo, sucede um mundo sem religião”. Daí a preocupação de João XXIII sobre a compreensão dos sinais dos tempos e sobre a exigência de olharmos o mundo com olhos de ver. “Sublimitas et Miseria Hominis” é o título da Carta Apostólica e trata-se de um documento excecional, já que reflete sobre a experiência de um cientista cristão, que fez luz sobre a dignidade humana. É a vida vivida que está em causa “um olhar que compreende os percursos e os destinos da Humanidade”. «Desde criança e por toda a vida, (Pascal) procurou a verdade. Com a razão, esquadrinhou os sinais dela, especialmente nos campos da matemática, geometria, física e filosofia. Em idade ainda muito precoce, fez descobertas extraordinárias, alcançando fama considerável. Mas não ficou por aí. Num século de grandes progressos em muitos campos da ciência, acompanhados, porém, dum crescente espírito de ceticismo filosófico e religioso, (o cientista) mostrou-se um incansável investigador do verdadeiro: como tal, permaneceu sempre «inquieto», atraído por novos e mais amplos horizontes». A homenagem a alguém que se tornou célebre pelos sucessos científicos e técnicos e pelos trabalhos desenvolvidos na busca da verdade dos factos e das experiências, permite-nos pôr a tónica na modernidade e nas suas virtudes, dúvidas e perplexidades. «Se Blaise Pascal consegue tocar a todos, é sobretudo porque falou admiravelmente da condição humana. Mas seria errado ver nele apenas um especialista, embora genial, dos costumes humanos. O monumento formado pelos seus Pensamentos, de que alguns ditos isolados ficaram célebres, não se pode compreender realmente se se ignora que Jesus Cristo e a Sagrada Escritura constituem simultaneamente o centro e a chave do mesmo». A um tempo, Pascal adverte-nos contra a tentação de nos considerarmos como possuidores da verdade, mas também contra as falsas doutrinas e as superstições «que mantêm, a tantos de nós, longe da paz e alegria duradouras d’Aquele que deseja que escolhamos a vida e a felicidade, não a morte e a desventura». De facto, «sem a sapiência do discernimento, podemos facilmente transformar-nos em marionetas à mercê das tendências da ocasião».
UMA CANA PENSANTE Tem razão o Papa Francisco, quando salienta que «para se compreender bem o discurso de Pascal sobre o cristianismo, é necessário estar atento à sua filosofia”. Daí a exigência do sentido crítico e do entendimento dos limites, já que o estoicismo leva ao orgulho e o ceticismo ao desespero. E a razão humana é uma maravilha da criação, que distingue o homem dentre todas as criaturas, porque «o homem não passa duma cana, a mais frágil da natureza, mas uma cana pensante». Blaise Pascal colocou o amor dos seus irmãos em primeiro lugar. Sentiu-se e reconheceu-se como membro do Povo de Deus, porque nada é mais perigoso do que um pensamento desencarnado: «Quem quer fazer o anjo, faz a besta». E há ideologias mortíferas, que mantêm os seus sequazes em redomas como se o ideal substituísse o real. Como leigo, saboreou a alegria do Evangelho, com que o Espírito quer fecundar e curar «todas as dimensões do homem» e reunir todos os homens à volta da mesa do Reino. Quando escreveu a Oração para pedir a Deus o bom uso das doenças (1659), Pascal era um homem pacificado, fora da controvérsia e da apologética. Estando à beira da morte, desejou morrer na companhia dos pobres, com a simplicidade duma criança. E depois de receber os Sacramentos, as últimas palavras foram: «Que Deus nunca me abandone».
Seja por acaso, ou porque sim, a História, para Tolstoi, não responde à questão de saber porque aconteceu a guerra, havendo uma lei natural que determina a vida das pessoas, embora estas, incapazes de admitir este inevitável processo, procurem representá-la como uma sucessão de escolhas livres, atribuindo a responsabilidade ao que acontece aos “grandes homens”, aos heróis, que vê como meros cidadãos, pois só quando se escrever a História de todos os homens, só aí se encontrará a força que a move.
Em qualquer caso, concorde-se ou não com Tolstoi, guerra e paz são parte de quem somos como seres humanos. Não vale a pena fazer de conta que não somos assim. São como o mal e o bem, as trevas e a luz, o caos e a clareza, a desordem e a ordem.
Há os instintos e impulsos que não controlamos conscientemente, há o falhanço humano, a evolução do nosso pensamento na direção errada, que fazem parte de nós, aos quais, para muitos, temos de estar ligados se quisermos ascender e conhecer aquilo que na realidade somos.
Há quem diga que não nos podemos elevar, ascender, transcender, sem ter os pés na lama, sem haver guerra e paz, sem conhecer o bem e o mal, sem incorporar tudo o que somos e compreendê-lo, havendo sempre uma repetição da História.
Sem esquecer que os grandes homens lideram, manipulam e movimentam vontades, mesmo que estas sejam manifestações de irracionalidades absolutas que jamais se saciam, como o demonstra a guerra, como um falhanço brutal e monstruoso de todos nós.
E tem havido sempre uma lei e ordem natural de reprodução temporal e espacial na História e na Guerra e Paz.
Para quando o banimento da guerra e a permanência da paz?
Como a árvore com as suas raízes na terra (o que somos) e as suas folhas no céu (que ansiamos e nos ultrapassa)?
Perante este falhanço da Humanidade, de que vale rezar se as nossas vozes não chegam ao céu?
As angústias, incompreensões e não respostas de Tolstoi, quanto à verdade histórica da guerra permanecem, como na sua obra monumental Guerra e Paz, cuja intemporalidade persiste, mesmo neste tempo de conflito bélico entre a Rússia e a Ucrânia, pois uma obra de arte vale sempre por si, independentemente da sua origem e das opções pessoais do seu autor.
O interesse pela História e pela verdade histórica era crucial para Tolstoi.
Só a História tinha a solução para o mistério de porque é que o que sucedia, sucedia como sucedia e não de outra maneira. Porque é que as coisas acontecem como acontecem e não de outro modo.
Tendo a Filosofia da História como banal e superficial, desconfiando do abstrato, da metafísica, do impalpável e do sobrenatural, tinha a experiência, o concreto, o empírico, o observável, o verificável, todo o espírito de investigação empírica, como a chave para a verdade histórica.
Só a História continha a verdade, quando baseada em acontecimentos concretos, na real experiência humana, em factos puros e duros reconhecíveis pelo intelecto normal, e não a História escrita pelos historiadores, que deseja ser algo que não é, não sendo uma ciência com conclusões exatas.
Mas ao reconhecer a natureza não científica da História, conclui ser inviável descobrir leis históricas autênticas e fiáveis que em conjugação de esforços com a observação empírica viabilizassem predizer o futuro (e a retrodicção do passado). O ser humano, usando os seus próprios recursos, é impotente para compreender e controlar o rumo dos acontecimentos, dada a existência de uma lei natural segundo a qual, e num grau não inferior ao da natureza, a vida dos seres humanos é determinada.
Não sendo, de facto, livres, mas não podendo viver sem a convicção de que o somos, conclui que se permitirmos que a vida humana seja governada pela razão, a probabilidade de uma vida espontânea envolvendo a consciência do livre-arbítrio é destruída. Desta oposição entre a ilusão do livre-arbítrio a as leis deterministas que comandam o mundo, surge um caos sem sentido onde a desordem da nossa vida é refletida na guerra, no seu grau mais extremo.
Questionando-se porque acontece a guerra, não encontra resposta, podendo ser tantas as causas que acabam por não ser nenhumas. Sucede por acaso ou porque sim, tendo como errada a ideia dos historiadores que têm este facto ou aquele evento como causa principal da guerra, defendendo que a História só dirá a verdade quando não se limite aos grandes homens, tidos como carneiros que o pastor engorda para o abate, pois a verdade sobre a condição humana está nos que têm a humildade de reconhecer a sua irrelevância e insignificância, sem vaidades nem ressentimentos.
Na esteira de Schopenhauer, o ser humano sofre em demasia porque espera demasiado, é infeliz porque é eternamente insatisfeito, incessantemente ambicioso porque sobrevaloriza as suas capacidades de um modo fantasioso e, acima de tudo, tem o propósito insensato de querer observar e estabelecer uma ordem a partir da convicção desesperada de que deve existir uma ordem, mesmo que o caos em que vivemos o contrarie, como a guerra, densa e intensamente, o exemplifica.
Há a tendência para prognosticar o emergir de uma civilização universal, resultado da afirmação dos valores ocidentais, referência civilizacional cimeira para os outros povos.
Em 1989, com a queda do muro de Berlim e o fim da guerra fria, a ideia de universalização do ocidente ganhou nova projeção com a defesa da tese segundo a qual a democracia liberal seria a “forma final de governo humano” e, como tal, “o Fim da História”, da autoria de Francis Fukuyama (O Fim da História e o Último Homem, edições Gradiva).
Argumenta, em seu favor: “Todos os países em fase de modernização económica se tornarão cada vez mais parecidos entre si: têm de conseguir a unidade nacional com base num estado centralizado, urbanizar, substituir as formas tradicionais de organização social, como a tribo, a seita e a família, por formas economicamente racionais, baseadas na funcionalidade e na eficiência, e promover a educação universal dos seus cidadãos. Este processo garante uma homogeneização cada vez maior de todas as sociedades humanas, quaisquer que sejam as suas origens históricas ou culturais”.
O desenvolvimento científico e tecnológico, a interdependência comunicacional do sistema económico e consequências comunicacionais do sistema político, justificariam essa uniformização através da globalização.
E esse anúncio da vitória da democracia liberal sobre as autocracias, ditaduras e totalitarismos, projetou-o e visualizou-o, de novo, Fukuyama, no início da invasão da Ucrânia, prevendo o colapso do regime russo, a derrota da Rússia, sem solução diplomática para a guerra. Em síntese: “A derrota russa tornará possível um novo nascimento da liberdade. O espírito de 1989 voltará a viver, graças a um bando de bravos ucranianos”.
Se é verdade que a modernidade e a evolução tecnológica e científica se disseminaram globalmente, isso não significa que foram causa de uma civilização única ou de um modelo único de resposta institucional e política.
Escreve Arnold Toynbee: “A origem do erro foi o facto de a nossa civilização ocidental ter modernamente lançado rede do seu sistema económico a todo o mundo, e a esta unificação económica seguiu-se na mesma base e quase na mesma extensão uma unificação política”. E acrescenta: “nada mais fácil para o comércio do que exportar uma nova técnica ocidental. É infinitamente difícil para um poeta ou um santo do Oriente comunicar a sua própria chama espiritual a uma alma estranha do Ocidente”.
Adianta Fernand Braudel: “A difusão da tecnologia, e mesmo de alguns valores ocidentais, nos países que não pertencem à nossa civilização, mais não é do que manifestação da ancestral permuta “inter-civilizacional”. Conclui: “O passado das civilizações, aliás, não é mais do que a história dos contínuos contributos mutuamente prestados, ao longo dos séculos, sem que por isso percam os seus particularismos, as suas originalidades”.
A idealista, talentosa e polémica tese de Fukyama sobre o Fim da História falhou, até agora, mesmo sabendo-se que a Rússia também é, por direito próprio e geograficamente, parte da Europa, e maioritariamente e civilizacionalmente cristã. Prova-o a invasão à Ucrânia, sem derrocada à vista (até hoje) da autocracia/ditadura e emergência da democracia, bem como os populismos, ditaduras e totalitarismos que, pelo mundo fora, não veem na democracia liberal um amanhã que canta.
O pacifismo, ao defender a paz como bem supremo, faz o seu percurso ideológico e político desenvolvendo-se, no seu sentido mais restrito, ao recusar o uso de meios violentos contra toda a criação ou a espécie humana (ecologistas), quer no mais amplo, ao incluir as doutrinas defensoras da conciliação internacional, na base de organizações e de políticas como a SDN, a ONU, a DUDH, a Ostpolitik e o desanuviamento.
Baseia-se numa antropologia tida essencialmente como otimista, onde predomina a paz, tendo como base filosófica a Paz Perpétua de Kant e a ideia de que o homem é naturalmente bom.
É uma ideia culturalmente e espiritualmente revolucionária em termos civilizacionais, que não tem qualquer tipo de reflexo de uma ordem natural das coisas, o que é demonstrado pela repetição da História ao longo dos tempos, não justificando o otimismo excessivo do pacifismo.
Com efeito, ao lado do aprofundamento da globalização, integração regional e aumento da cooperação, materialização e positivação do conceito de complementaridade de ação das organizações internacionais, reapareceram violentas e agressivas afirmações de nacionalismos e violações dos direitos humanos. Algumas das mais recentes nos Balcãs (ex-Jugoslávia), no Ruanda-Burundi e Síria. E, atualmente, com a invasão da Ucrânia, após duas guerras mundiais com epicentro europeu, contrariando quem tinha tal factualidade como uma regressão improvável.
É a antropologia pessimista que tem por fundamento filosófico a teoria de Thomas Hobbes de que o Homem é mau, é um lobo para o Homem, defendida pelos belicistas, dada a inevitabilidade da guerra que acompanha, em permanência, o ser humano, adaptada pelos realistas para quem o Estado é o único ator internacional válido relacionando-se com os outros (Estados) movido pelo interesse nacional, maximizando o poder, se necessário o militar, através da guerra, sendo esta boa se for um meio para atingir os fins.
Tem havido sempre uma repetição da História, quanto a guerra e paz.
O desejável seria nunca haver repetição da guerra, havendo sempre paz.
Movimentos generalizados da opinião pública a favor da paz são louváveis, mas há obstáculos à sua realização, como o terrorismo, tensões religiosas, intolerâncias étnicas, xenofobia, racismo, supremacias imperialistas ou outras, fazendo esquecer os esforços da paz, sem excluir o poder como fim ilimitado, sustentado pelo puro domínio e ganância do poder pelo poder.
É a guerra e paz e a repetição da História.
O que não justifica que nos conformemos com a repetição da guerra, pois a paz é decorrência inelutável do progresso espiritual da Humanidade, árdua tarefa, que vem de há muito, não sendo, para muitos, uma mera utopia.