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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 3 a 9 de novembro de 2025


No âmbito da reflexão serena e fundamentada sobre os 900 Anos de Portugal, publicamos hoje um texto sobre as nossas raízes mais antigas, publicado há dias pelo “Observador”.

 

 D. Afonso Henriques


Para compreendermos o período da formação de Portugal devemos não só ter presente as raízes antigas (de um complicado cadinho ou melting pot), nas quais geografia e história se associam, mas também a chave cronológica apresentada por José Mattoso para o momento crucial da formação da nacionalidade, onde encontramos seis períodos, ao longo dos quais vamos verificando a consolidação gradual da identidade política social e cultural portuguesa, enquanto realidade una e múltipla. No primeiro momento, 1096-1131, o poder condal começou a organizar-se à semelhança das monarquias com o estabelecimento de uma relação direta e estável com a aristocracia senhorial e as comunidades municipais, criando-se uma nova instância política que reunia os condados de Portucale e de Coimbra (tendo este último sido aliado dos reinos muçulmanos desde as invasões de Almançor – c. 938-1002; e governado pelo moçárabe Sisnando – Sisnando Davidis, falecido em 1091). Entre 1131 e 1190, D. Afonso Henriques, vencedor de D. Teresa em S. Mamede (1128), à frente dos barões portucalenses, estabeleceu a sua sede estratégica em Coimbra e ampliou o território português para mais do dobro, sofrendo, no entanto, a forte pressão das invasões almorávidas, na tentativa de recuperação dos territórios perdidos. De 1190 a 1223 houve a ocorrência da crise económica em resultado dos maus anos agrícolas, tendo D. Afonso II lançado medidas de centralização do poder real, com reforço da aliança aos concelhos, opondo-se à influência fragmentária do alto clero e da nobreza. Em relação ao período 1223-1248, houve uma fase muito difícil, pelas repercussões de uma nova crise económica e da peste, pela eclosão da guerra civil, caracterizada pela extrema fragilidade do poder de D. Sancho II e pelas contradições no seio da nobreza senhorial. Relativamente aos anos 1248-1279, D. Afonso III, o conde de Bolonha, emergiu fortalecido da guerra civil e prosseguiu, com muita determinação e sistematicamente, a ação centralizadora do Estado contra a afirmação dos senhores da terra e do clero - ao lado dos concelhos -, completando a conquista do território até ao Al-Gharb. Por fim, de 1279 a 1325, desenvolveu-se a ação de D. Diniz, desde a continuidade centralizadora do poder real e da fixação de fronteiras (Tratado de Alcanizes, de 1297) até ao reforço do poder militar e naval com a nomeação do genovês Manuel Pessanha como Almirante das Armadas, passando pela adoção da língua portuguesa na chancelaria, pela fundação da Universidade Portuguesa (o Estudo Geral), pela afirmação da influência do Direito Romano, pelo entendimento de que os habitantes do Reino são vassalos naturais do rei, sem intermediações (como defendera já Afonso X), pela proibição dos nobres armarem os cavaleiros vilãos dos concelhos ou ainda pela criação da Bolsa de Mercadores e pela intensificação do comércio com a Flandres, Inglaterra e França.

Através deste caminho, de afirmação muito segura do Reino, fica bem explícito o risco acrescido das missões cometidas aos Condes de Portucale na conquista e consolidação de posições, em confronto direto com as forças muçulmanas. E assim o Conde D. Henrique e os seus sucessores garantiram, através da reunião dos poderes locais, um fator de segurança e de continuidade com resultados positivos na consolidação do poder, de que beneficiaram os reinos cristãos, em contraste com as divisões e o descontentamento existentes sob o domínio almorávida… Importa lembrar, aliás, que a criação do condado portucalense destinou-se "não só a criar uma instância de comando militar capaz de fazer frente às investidas almorávidas, que se tornaram especialmente perigosas nos anos de 1093 e 1094, mas também a vencer a resistência regional à autoridade de Afonso VI. De facto, a entrega do condado a um francês protegido por Cluny e a nomeação de vários bispos franceses, logo de seguida, para as dioceses de Braga e de Coimbra, constituíram um conjunto de medidas com propósitos políticos intimamente relacionados entre si!". O sucesso militar e político do Conde veio, deste modo, a criar uma autoridade indiscutível que permitiu ao Reino de Portugal surgir ao lado de Leão e Castela e de Aragão como protagonista na segunda vaga das autonomias dos reinos cristãos. Recorde-se que a primeira tinha ocorrido entre 950 e 1050, tendo como atores fundamentais Castela, Aragão e Navarra.

Compreende-se a importância de o Norte Atlântico ser "a região por excelência do regime senhorial" e de as áreas mais montanhosas do Norte Interior e do Sul Mediterrânico coincidirem com a "implantação maciça das comunidades organizadas em concelhos". Afinal, a receita para o sucesso político de Henrique de Borgonha e dos reis portucalenses advém da arguta compreensão desta diferença e desta complementaridade. Há, de facto, uma "dialética constante entre os vetores da divergência e os movimentos da integração". E a integração acaba por prevalecer, por força das migrações, do progresso económico ou da organização social e do poder político. Eis como José Mattoso, com base numa investigação essencial que articula os diversos elementos já conhecidos, faz a ponte entre as duas influências portuguesas - superando, assim, o velho entendimento dos Nobiliários, sobretudo preocupados com o nexo gótico e com o predomínio exclusivo dos reinos cristãos. O Estado, que precedeu a Nação, progrediu para além desse entendimento - compreendendo os mais influentes monarcas portugueses a importância das diferenças sociais e étnicas, do moçarabismo, da fragmentação dos reinos taifas e do descontentamento crescente que ia germinando no sul.

O papel da guerra externa foi, assim, fundamental para a consolidação da nacionalidade. E o facto de o reino ser de fronteira pesou fortemente na relação exigente entre o estímulo e a resposta. Além disso, a expansão para sul permitiu resolver a conflitualidade entre os membros da nobreza, dando-lhes novos espaços de influência. Os excedentes demográficos de Entre-Douro-e-Minho puderam ser absorvidos e as importantes cidades conquistadas (nas quais avultam Santarém e Lisboa) tornaram-se centros económicos muito relevantes e novos mercados para a sociedade agrícola e comercial. O facto dos concelhos moçárabes (base do municipalismo, segundo Herculano) se terem deixado encabeçar por D. Afonso Henriques tornou-se, por outro lado, garantia de estabilidade e de uma boa defesa fronteiriça - baseadas na cedência ao rei de prerrogativas na justiça e no fisco, em troca de não terem de se submeter aos poderes senhoriais e da Igreja. Em bom rigor, o Estado nasceu, porém, apenas com Afonso II, e com o seu chanceler Julião, sendo ameaçado pela expansão senhorial do reinado de Sancho II, a que Afonso III pôs cobro. É a consciência nacional que surge, encontrando as suas fronteiras e os seus símbolos - que deixam de significar a identificação de um poder real, para representar a identidade dos portugueses… O método de Identificação de um País recusa as explicações tradicionais ou mitológicas. As características da "portugalidade" são vistas como fenómenos complexos que não podem resumir-se a um dilema estreito entre os que "tendem a estreitar os laços com a Europa" e os que projetam "Portugal para fora dela". Os traços da nossa identidade baseiam-se num equilíbrio ou numa síntese que exige a compreensão das diferentes raízes e de um percurso histórico longo e multifacetado. 


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

O HORIZONTE DA ÍNDIA


Há um momento histórico crucial na existência coletiva dos portugueses, quando após ser investido como Rei pelos três Estados, em 1495, D. Manuel, cumprindo os desígnios do Príncipe Perfeito, seu antecessor, perguntou ao seu Conselho se deveríamos ir à Índia. Como nos diz o cronista João de Barros, a resposta que obteve foi negativa, dominada pelos receios dos perigos e incertezas do mar oceano. Contudo, ouvidos os conselheiros, não teve o monarca dúvidas em decidir diversamente continuar. “Finalmente el-Rei assentou de prosseguir neste descobrimento; e depois, estando em Estremoz, declarou a Vasco da Gama, fidalgo de sua casa, por Capitão-mor das velas que havia de mandar a ele, assi pola confiança que tinha de sua pessoa como por ter aução nesta ida”. E assim podemos compreender os Descobrimentos como a demanda de novas paragens e de novos povos, além do achamento de nós mesmos e da concretização pela primeira vez na história da humanidade de um mundo global capaz de concretizar o diálogo entre os povos do Ocidente e do Oriente e o reconhecimento de uma mesma dignidade para todas as pessoas. Deste modo, D. Manuel, o Venturoso, tornar-se-ia o primeiro monarca global, no que Arnold Toynbee designou como a Era Gâmica, considerando a chegada de Vasco da Gama à Índia um momento único na abertura de horizontes para considerar a humanidade como uma só. Por muito que alguns queiram desvalorizar o acontecimento, a verdade é que tudo mudou então à face da terra. Um dia na UNESCO, António Alçada Baptista perguntou a alguns críticos das navegações, como teria sido possível assegurar o reconhecimento universal dos direitos humanos sem esse passo decisivo. E Eduardo Lourenço ensinou-nos a compreender que, mais do que falar de glórias ou de desilusões, devemos olhar para diante e assumir as responsabilidades de hoje com todas consequências.

Somos nós mesmos, com tudo o que se nos exige agora, nem melhores nem piores do que outros, sabendo lidar com virtudes e defeitos - sem falsos messianismos. E se há lições sérias a tirar, já que não podemos refazer a História passada, importa deixar claro que há dois domínios em que não devemos transigir: a recusa do improviso, e a exigência da preparação e do planeamento; bem como o reconhecimento da importância da educação e da ciência, da aprendizagem e da experiência, “o saber todo de experiências feito”. Os infantes D. Pedro e D. Henrique agiram em coerência e complementaridade segundo um objetivo comum. E temos de ser claros, sobre o reconhecimento da importância do planeamento, preocupação que encontramos na “Crónica dos Feitos da Guiné” de Zurara e que está espelhada no testemunho vivo de Pedro Nunes, Garcia de Orta e D. João de Castro. “Não há dúvida que as navegações deste reino de cem anos a esta parte: são as maiores: mais maravilhosas: de mais  altas e mais discretas conjeturas: que as de nenhuma outra gente do mundo” – como disse Pedro Nunes. O acaso não dita o desenvolvimento, este exige vontade, determinação e avaliação para definir o caminho e para corrigir contratempos e dúvidas. Eis por que razão falar do que significou o Plano da Índia não é uma questão do passado, mas ensinamento para o presente e futuro, no tocante não a miríficas ilusões, mas à consideração de questões de atualidade, ligadas à necessária ponderação do que tem de ser feito para o progresso humano. 


GOM

EM BUSCA DE IDEIAS CONTEMPORÂNEAS

Folhetim de Verão - Capítulo 29
 

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UM TEMPO DE PRIMAVERA
 
Chegamos ao termo do Folhetim de Verão de 2025. Partimos de um desafio lançado pelo nosso decano, Edgar Morin, no ano em que, cheio de energia, completou 104 anos de vida. Quis deixar uma homenagem aos seus amigos portugueses, uma vez que lhe permitiram ter uma experiência única de vida. A democracia portuguesa não nasceu de geração espontânea, mas fruto de um caminho largo e longo. Houve muitos resistentes, houve prisioneiros e torturados, mas nada teria sido possível sem uma persistente preparação intelectual, e uma solidariedade internacional. Nada foi fácil. Como se viu no imediato pós-guerra, em termos geo-estratégicos, a situação da Peninsula Ibérica não era fácil. Logo em 1945 houve antigos oposicionistas e jovens entusiastas que pretenderam criar condições para um abertura política e eleitoral. Tal não foi possível. Se virmos bem, foram muito poucos os apoios internacionais à causa democrática portuguesa. Só a Itália contou com a existência de iniciativas políticas e parlamentares visando o apoio às resistências ibéricas. Contudo, a partir dos anos sessenta, há uma tentativa séria que Edgar Morin quis destacar e que envolveu um grupo de fraternais amigos portugueses, que desde cedo o pensador francês reconheceu como possuindo um visão de largo prazo. Se no curto tempo, houve quem suscitasse dúvidas ou pretendesse uma ambição maior e mais profunda, a verdade é que quando analisamos o prazo longo da institucionalização da democracia, verificamos que em vários campos de ação foi possível lançar diversas pistas na sociedade civil, que produziram efeitos positivos, de modo transversal. Referimo-nos ao grupo que teve como principal animador António Alçada Baptista, à frente da revista “O Tempo e o Modo”. Quer junto da oposição tradicional, de Mário Soares e Francisco Salgado Zenha, quer junto de uma ala renovadora do Estado Novo, de José Guilherme de Melo e Castro, José Pedro Pinto Leite, Veiga Simão, Rogério Martins ou João Salgueiro, quer de modo inesperado através dos jovens milicianos mobilizados para o esforço de guerra, como Ernesto Melo Antunes, assinantes ou leitores de “O Tempo e o Modo”, quer ainda por parte de intelectuais de todos os campos políticos que respeitavam António Alçada, o certo é que se criou uma verdadeira rede de cumplicidades que permitiria no período seguinte à Revolução encontrar condições de estabilização.
 
Temos, assim, uma convergência na sociedade civil que assegurou uma transição diferente da espanhola, mas com pontos de contacto. Podemos dizer, por exemplo, que os “Cuadernos para el Diálogo” de Joaquin Ruiz Gimenez tiveram um papel semelhante a “O Tempo e o Modo”. Os contactos com opositores espanhóis, como Dionísio Ridruejo no Centro Nacional de Cultura, José Bergamin, com Tierno Galván ou José Vidal Beneyto e com desenvolvimentistas moderados fizeram-se sentir. Se em 1945 a democratização não encontrou um clima internacional favorável, a partir de 1958, a candidatura de Humberto Delgado e o memorando do Bispo do Porto tiveram efeitos significativos e irreversíveis internos e externos e a Livraria Moraes e a revista de Alçada Baptista foram os símbolos culturais evidentes. Mário Soares compreendeu o novo paradigma que e não só se abriu a uma cooperação nova relativamente às relações no seio da oposição tradicional, mas também teve oportunidade de vincar a necessidade de uma lógica liberal democrática e europeísta. Por outro lado, os estudantes universitários da crise de 1961, como Jorge Sampaio, marcariam a sua presença, logo no primeiro número da nova revista.
 
É importante deixar claro que Edgar Morin, bem como Jean-Marie Domenach da revista “Esprit” e Pierre Emmanuel, no Congresso para a Liberdade da Cultura, conjugaram esforços no sentido de batalhar no campo intelectual pela democracia. No Centro Nacional de Cultura, Sophia de Mello Breyner e Francisco Sousa Tavares desempenhariam um papel muito profundo quer no mundo intelectual, designadamente com jovens escritores, poetas e artistas, mas também junto de católicos inconformistas, como Frei Mateus Peres e Frei Bento Domingues, além de Nuno Teotónio Pereira, que lançariam as sementes da opção democrática e anticolonial, rompendo com a posição tradicional da oposição, ainda sob os efeitos do ultimatum inglês de 1890. João XXIII, ao convocar o Concílio Vaticano II fê-lo para superar a lógica do eurocentrismo, pondo a tónica nos sinais dos tempos, como salientaria na encíclica “Pacem in Terris”. Lembre-se que nos trabalhos do Concílio apenas usaram da palavra dois bispos portugueses, de tónica renovadora – D. António Ferreira Gomes (Porto), e D. Sebastião Soares de Resende (Beira). Domenach tenta mobilizar os leitores de “Esprit”, mas o efeito não demorará, a revista é proibida em Portugal. Nem mesmo a referência ao nome da revista é permitida pela censura, pelo que os redatores portugueses passam a usar a expressão de “revista de Mounier”.
 
Edgar Morin entusiasma-se com os amigos portugueses que em muito pouco tempo evoluem rapidamente no sentido da compreensão das causas profundas da justiça e da solidariedade humana. No fundo, a ideia de complexidade que ocupa as investigações de Morin encontra eco no generoso contributo de quem no dia a dia vai provando a vantagem indiscutível dos compromissos, que aproveitam os contributos de todos na medida das suas especificidades. A Democracia constrói-se a partir da compreensão da vida quotidiana e nada melhor do que fazer da entreajuda o método adequado para defender o bem comum. Sempre a relação entre a Raiz e a Utopia, entre a tradição e a modernidade, entre o passado e o futuro. Daí a importância da partilha de preocupações e de uma reflexão em diálogo, assente na aceitação das diferenças e na procura de uma mediação no seio das instituições. Sendo a liberdade um valor essencial para Edgar Morin, o certo é que há nele uma preocupação dialógica sempre presente.
 
A fonte do Humanismo europeu encontra-se na Grécia e no Cristianismo – que determinam uma ideologia, um conflito e uma inter-fecundação mútua das diferente fontes. E há ainda a ciência como domínio do conhecimento e da experiência. Mas Morin pôs sempre em diálogo realidades diferentes que constituem a pessoa humana. Por isso gostava de lembrar o pensador italiano que falava da ciência como “cantiere tumultuose”, “estaleiro tumultuoso”. Falando de Pascal e Dostoievski, lembrava que Pascal leu Montaigne e apreendeu o ceticismo crítico. Ora, Pascal era um cientista, um espírito racional, que pretendeu com as armas da razão mostrar os limites dessa mesma razão. Contudo, também era um homem de fé. E vai demonstrar que a competência da Razão é limitada, ou seja, há uma ordem, a que chama ordem da caridade que a razão não pode alcançar. Pascal utiliza o ceticismo para criticar a razão. Rompendo com o pensamento teológico clássico, para o qual Deus é absolutamente evidente e provado, diz-nos que Deus é incerto, sendo um assunto a discutir. E propondo este desafio, como aposta, introduz a dúvida e a controvérsia no que é mais fundamental – Deus. É evidente que este pensamento de Pascal, pensamento trágico, que ele viveu de uma forma intensa, é um dos fulcros mais extraordinários da cultura europeia. Quanto a Dostoievski, é preciso dizer que a cultura russa é uma das grandes culturas europeias como cultura viva, porque vive da oposição entre eslavofilia e ocidentalismo. O autor de “Crime e Castigo” assume, assim, essa contradição com um intensidade incrível. Depois de ter sido um revolucionário ocidental, torna-se um eslavófilo pro-czarista, mesmo sem perder fermento da dúvida e da contradição, que se exprime no “Apólogo do Grande Inquisidor”.
 
A cultura europeia é, assim, marcada pela tragédia e pela contradição e teve um potencial universal desde o seu nascimento. Mas, apesar da sua particularidade – na racionalidade, na ciência e no humanismo –, está hoje universalizada. Há três séculos o Ocidente era uma pequena porção da Europa, hoje, a Europa é uma pequeníssima parte do Ocidente… Não somos proprietários de uma cultura. Somos apenas herdeiros, o que é bem diferente. E assim estamos numa situação em que o património é comum a toda a Humanidade.
 
A intensidade dos debates e das reflexões torna-se essencial. Por isso devemo-nos empenhar para que esta problematização se transforme num novo Renascimento. Esta é a preocupação de Edgar Morin, não perder a memória de mil encontros fundamentais. Daí a insistência em deixar fixada a importância deste encontro português, que definiu a construção da democracia entre nós, não como protagonismo, mas como pano fundo, como rede de cumplicidades. Estamos num diálogo vivo, não de protagonistas maiores, mas das subtis sinapses que permitem aos acontecimentos importantes ter lugar. E muitas vezes um encontro aparentemente menos importante torna-se a chave essencial de uma explicação, exatamente como o acontecimento é verdadeiramente o grande mestre interior.
 
 
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D. JOÃO V - O REI ECLIPSE

  


«O seu carácter não é facilmente definível. É ciumento da dignidade do seu trono e da sua qualidade de rei. (…) Firme e rigoroso observador da justiça, propõe-se fazer florir as Belas-Artes no seu reino; ama muito e demasiado as cerimónias da Igreja». Assim definiu Étienne Silhouette o rei D. João V. Os primeiros anos do seu reinado foram marcados pela guerra da sucessão de Espanha (1701-1714), que deixou o reino e os povos empobrecidos. Por morte do enfermiço Carlos II, sem herdeiros diretos, foi Filipe d’Anjou designado para lhe suceder, contra a solução defendida pelo Imperador Leopoldo I de Habsburgo, a favor de seu filho Carlos, criando-se a Grande Aliança da Áustria, Inglaterra, Países Baixos, Dinamarca e Portugal. D. João V herdou de seu pai D. Pedro II esta guerra muito onerosa, um ano depois do Marquês das Minas ter invadido Madrid à frente do exército confederado, mas teve de se retirar por razões diplomáticas, sem consumar a aclamação de Carlos d’Áustria. Se o nosso rei Magnânimo admirava Luís XIV, o rei Sol, o certo é que se afirmou como contraponto a ele. E se 1715, o primeiro ano de paz, depois do tratado de Utreque, pôde simbolizar-se como Jano, o deus das duas faces, o nosso rei, depois do eclipse forçado da guerra, lua escondendo o sol, começou a emitir o seu brilho, incentivado pela rainha Maria Ana, filha de Leopoldo, para tomar decisões em mãos para que marcasse o seu reinado com reformas, apondo-lhes a sua própria visão. Como diria o confessor da Rainha: “Persuadindo-lhe que não lograsse o bem da república, se Sua Majestade não aplicasse os seus deveres ao curso dos negócios e tomasse ele mesmo o leme”. As embaixadas de fausto que enviou a Leopoldo I (1708), a Luís XIV (1715) e ao Papa Clemente XI (1716) deram brado.


A biografia de D. João V, saída a lume da autoria de Pedro Sena-Lino, El-Rei Eclipse (Contraponto, 2024) dá-nos uma leitura multifacetada e precisa de Portugal e da Europa no século charneira de setecentos. A guerra paga pela afluência do ouro brasileiro, permitiu a Portugal, sem ter ganho (como outros) territórios europeus, apenas Colónia de Sacramento e a regularização da Amazónia, o reconhecimento internacional e o prestígio da dinastia na balança da Europa. Em vez de Rei-Sol, o brilho do português alcançar-se-ia como espelho ou como caleidoscópio. E o reino sem guerra não tinha franceses como vizinhos, mas um rei Bourbon, Filipe V, com Madrid e Paris unidos pelo mesmo sangue. O reinado de D. João V, por vezes pouco conhecido, corresponde, de facto, às duas faces de Jano, lançando as bases do iluminismo, de que o embaixador D. Luís da Cunha é exemplo. A ciência e as artes confluem, o rei construtor singulariza-se na obra extraordinária de Mafra, onde o sublime procura encontrar-se, também com a mais rica e numerosa Biblioteca, possuindo tudo de relevante, o que contrastava com o fanatismo das proibições para o vulgo. O Aqueduto das Águas Livres era o sinal de progresso para os povos. E havia os melhores músicos e instrumentos, e a misteriosa produção de Bartolomeu Lourenço de Gusmão, irmão do grande diplomata, secretário do rei, Alexandre de Gusmão. Já retido no leito D. João carteia-se com sua filha Maria Bárbara, rainha de Espanha, mulher de Fernando VI, e sentimos os ecos da grande política. Os eclipses são momentâneos, mas a luz essencial fica.


GOM 

MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL

 

24. OS TUDORS E UMA FALACIOSA HISTÓRIA DE PORTUGAL


Surpreende a desfaçatez com que a série televisiva britânica The Tudors, sobre a vida de  Henrique VIII, de Inglaterra, testemunha a vida na corte portuguesa da época, representando-a falaciosamente como um abrigo bafiento e exótico de atrasados mentais.  


Pejada de inverdades, tem um episódio em que o rei D. Manuel I é representado como um velho corcunda, mal cheiroso e desdentado,  bobo e de olhar libidinoso, numa corte de antiguidades e velharias alienígenas e excêntricas, entre homens pouco dignos e sujos, anciãs vestidas de negro e clérigos de ar inquisitorial, numa sucessão de cerimónias do casamento real com uma fictícia princesa Margarida, irmã de Henrique VIII, nunca casada com qualquer monarca luso, cuja fantasiosa consumação conjugal é de puro mau gosto.         


Como se não bastasse tal falácia, eis que a dita princesa, frustradas as suas expetativas conjugais e reais, agudizadas pela diferença de idades, assassina o rei, asfixiando-o em sigilo com uma almofada, no meio de um grande plano de uns grosseiros e sujíssimos pés.       


Impõe a verdade que se diga que D. Manuel I embora tenha casado três vezes, fê-lo apenas com duas filhas dos reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela, Isabel e Maria, e com D. Leonor, irmã de Carlos V.       


E não foi assassinado por asfixia, mas na sequência do flagelo da peste e de outras epidemias que assolavam o reino.   


Qual a justificação para esta falsificação da história, numa época de ouro da corte lisboeta, do rei venturoso e seu império, demonstrando a importância de Portugal,   mesmo se expectável alguma fantasiosa ficção da narrativa?   


É inadmissível que se deturpe a História, falseando factos e pondo em causa a nossa reputação nacional, não nos defendendo, quer por omissão coletiva e institucional a uma versão indecorosa do nosso passado histórico, quer por omissão de investimento no audiovisual, sob o subterfúgio da falta de dinheiro para ninharias e futilidades, deixando o testemunho da nossa história ao sabor da altivez e sobranceria dos outros.


Continuamos sem filmes, séries documentais, ficcionais e dramas sobre figuras e eventos da nossa história. 


Assim se conclui, de novo, ser uma prioridade estratégica apoiar e investir na ficção do audiovisual, pois um país sem imagens, na era atual, é “um país que não existe”.


04.12.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício 

A CÉLEBRE CARTA DE BRUGES

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 “Parece-me, senhor, que a justiça tem duas partes. Uma é dar a cada um o que é seu. A outra é dar-lho sem delonga. E ainda que eu cuido que ambas em vossa terra igualmente falecem, da derradeira sou bem certo e esta faz tão grande dano em vossa terra que, em muitos feitos, aqueles que tarde vencem ficam vencidos”. A afirmação é do Infante D. Pedro, das Sete Partidas, foi escrita no primeiro quartel do século XV e consta da célebre Carta de Bruges, enviada ao Príncipe D. Duarte, tratando da governança do Reino. A Carta é um repositório de conselhos e constitui um verdadeiro “programa de acção”. E tem sido muito lembrada, pelo menos desde a chamada “geração de 1870”, como sinal de um “reformismo” avant-la-lettre assente na exigência de ligar “fixação” e “transporte”, ou seja, de criar condições para produzir riqueza em ligação com o desenvolvimento do trato comercial consequente à empresa das “descobertas”. Por isso, D. Pedro diz ainda que “a Universidade da vossa terra devia ser emendada, e a maneira vos escreverei segundo ouvi dizer a outro que nisto mais entendia do que eu” – e, nesse sentido, ordenar-se-iam os colégios “por maneira dos de Oxónia e Paris, e assim cresceriam os letrados e as ciências, e os senhores achariam donde tomassem capelães honestos e entendidos, e quando tais promovessem não seriam desditos. E além disto se seguiria que vós acharíeis letrados para oficiais de justiça; e quando alguns vos desprouvessem, teríeis donde tomar outros, e eles, temendo-se do que poderia acontecer, serviriam melhor e com mais diligência”. Educar e formar melhor, com base no rigor, na abertura e na “irmandade” com os melhores Estudos e Universidades. Mas o infante não esquecia ainda o modo como se garantiria a administração, a segurança do reino e a defesa do interesse geral. No entanto, “a regra que eu até agora vi ter em vosso reino sobre tudo isto é que as obras necessárias são muitas vezes esquecidas e sobre as voluntárias se dá grande trabalho ao povo e se faz grande despesa”. E a mesma preocupação se encontra no tocante à aplicação dos meios disponíveis: “bem creio, senhor, que seis que tivessem vontade de desembargar e tivessem vontade de desembargar e fossem diligentes em seu ofício fariam mais que cinquenta que tal vontade não têm”. E os gastos dos senhores da terra? De facto, estes faziam “tão grandes despesas que a terra o não pode suportar; e por isto se lançam preitas e outras imposições per que ela é muito gastada”. E ainda por cima “a terra e todolos fidalgos dela” eram mal servidos, porque prevalecia a ociosidade e “nenhum se contenta de aprender o ofício que seu padre havia, nem servir outros senhores senão lançarem-se à corte em esperança de serem escudeiros del-rei, ou vossos ou de cada um de vossos irmãos”. Assim o duque de Coimbra apontava os principais males da sociedade portuguesa, que eram, entre outros: esquecer o essencial em favor do acessório, desprezar o valor do trabalho e da organização continuados e menosprezar a celeridade na administração da justiça.

 

Como afirma o Prof. Pedro Calafate: “Foi Jaime Cortesão quem sublinhou de forma ímpar a pertinência do nível de análise para que apontamos, ao escrever sobre o Portugal do seu tempo que ‘não é o regime, nem a agricultura, nem a indústria, nem as finanças que verdadeiramente estão em crise, o que em Portugal, há alguns séculos está em crise é o Português’. Por isso que, dizia ainda Jaime Cortesão, ‘o nosso grande mal é uma doença de vontade cujos sintomas se chamam o desalento, o pessimismo, o abandono fatalista, uma inerte cobardia e a falta de confiança no esforço próprio’, a que contrapunha a audácia e o alento de tempos idos”. Cortesão escrevia em “A Águia” em Outubro de 1912, e apontava a vontade como o melhor remédio, na linha da intelectualidade que ao longo da história foi advogando a criatividade e a abertura de espírito como modos de combater o fatalismo e o fanatismo. Atendo-nos aos quatro primeiros volumes, verificamos uma linha condutora que vem desde o pensamento cristão, marcante desde os primórdios, com especial destaque para Orósio de Braga (século V), bem referenciado em razão do seu conceito de “fraternidade”, fundamento ético e metafísico do império (que o próprio Cortesão glosou consabidamente). Depois de um grande salto no tempo, as concepções providencialistas medievais vão estar representadas pela “Crónica de 1419”, entrando-se nos primeiros sinais “modernos” de Fernão Lopes e do Infante das Sete Partidas, a que se seguem os outros cronistas, Gomes Eanes de Zurara e Duarte Galvão. Por seu lado, Gil Vicente, Sá de Miranda, João de Barros, Damião de Góis, Fernão de Oliveira e Amador de Arrais procuram retratar o Portugal pelos olhos teatrais (dos tipos essenciais), através da reflexão e da poesia que buscava os valores da nação antiga (Herculano disse de Sá de Miranda: “que não tomava a febre do país por força normal de vitalidade”), pela busca de um destino colectivo que se confrontava com os complexos “fumos da Índia”, pela “defesa da defesa dos povos hispânicos” e pela invocação dos nossos mitos.

 

Mas é em Luís de Camões que encontramos a força que procura desvendar a “fisionomia espiritual” do povo e da pátria. Aí temos Portugal em toda a sua complexidade – orgulho e indignação, maravilhoso pagão e maravilhoso cristão, sensualidade e “saudade do céu”, grandeza e aviltante decadência. Na exaltação e na crítica está a grandeza camoneana, combatendo o primado do mito, ligando razão e sentimento, articulando vontade e destino. Se dúvidas houvesse, o velho do Restelo é um símbolo dessa consciência dividida. Jorge de Sena escreveu, por isso, que Camões soube transformar numa obra de arte o povo mais anárquico do mundo… Depois, houve a literatura apologética, sebastianista e messiânica da “Monarquia Lusitana” e a seguir a pujança do Padre António Vieira, indefinível, a um tempo elogiador da razão e da loucura, do pragmatismo e do sonho (“Todos os que na matéria de Portugal se guiaram pelo discurso erraram e se perderam”). A força argumentativa da razão (que tão bem cultivou) havia de se alcançar “com mistura de doudice”. Mas os séculos XVII e XVIII irão continuar a trazer-nos factores contraditórios - vontade de mudança e persistência de messianismo, agudeza de análise e fanatismo retrógrado. Alexandre de Gusmão critica a intolerância, D. Luís da Cunha propõe a via reformista, Vernei e Ribeiro Sanches anunciam a reviravolta de Sebastião José e a reforma que este deseja para a Universidade.

 

Muitas esperanças acumuladas deram lugar à desilusão – “Portugal não conseguira colmatar a distância que desde finais de Quinhentos o empurrava para longe de padrões culturais que via germinar além-fronteiras, emparelhando neste caminho com a Espanha…” (P. Calafate). Os românticos, como Garrett e Herculano procuraram contrariar as ilusões de um destino inexorável, o liberalismo dos “melhoramentos materiais” levou à obsessão finissecular pela decadência das “Farpas” e do “Finis Patriae”. A “Vida Nova” e o republicanismo da “Renascença Portuguesa” procuraram encontrar rumo e saída, sem êxito… Fernando Pessoa tentou uma síntese que fundisse “todos os deuses e todos os credos”, num universalismo baseado nas virtualidades da língua portuguesa, para que cada um pudesse “ser tudo de todas as maneiras”. E aqui nos encontramos perante “Portugal como Problema”, hoje entre a Europa e a democracia, procurando resolver a equação de sempre. Eduardo Lourenço disse-o: “Como todos os organismos sociais, uma nação é um sistema que cria espontaneamente certas defesas contra essa forma de agressão contra a sua identidade, mas o espontaneísmo, aqui, como no resto, é insuficiente”…

 

A VIDA DOS LIVROS

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   De 24 a 30 de agosto de 2020 

 

200 Anos do Constitucionalismo - 24 de agosto de 1820

 

Celebramos duzentos anos da Revolução constitucional do Porto. Quando lemos de Manuel Fernandes Tomás os “Escritos Políticos e Discursos Parlamentares (1820 - 1822)” publicados por José Luís Cardoso (Imprensa de Ciências Sociais, 2020) percebemos que é na Revolução de 24 de Agosto de 1820 que se encontra a matriz perene de uma cultura de cidadania, de liberdade e de salvaguarda dos direitos fundamentais.

 

CNC - 200 Anos do Constitucionalismo – 24 de ago

 

Acontecimentos

No dia 24 de agosto de 1820, na cidade do Porto, grupos militares dirigiram-se pacificamente para o Campo de Santo Ovídio (atual Praça da República) e, depois de uma missa campal, proclamaram solenemente o Manifesto aos portugueses, exigindo a convocação de Cortes para elaborar uma Constituição, na qual se consagrassem a autoridade régia e os direitos dos portugueses. Pedia-se ainda o imediato retorno da Corte, como forma de restaurar a dignidade da antiga Metrópole, além da restauração dos antigos direitos de comércio. Constituiu-se então a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, presidida pelo Brigadeiro António Silveira Pinto da Fonseca, e constituída entre outros pelo Coronel Sebastião Drago Brito Cabreira, pelo Coronel Bernardo Correia de Castro e Sepúlveda, por Frei Francisco de S. Luís, Fernandes Tomás, Ferreira Borges e Silva Carvalho. Em 15 de Setembro o movimento proclamar-se-ia em Lisboa, criando no final do mês a Junta Provisional do Supremo Governo do Reino.

Assembleia Constituinte

As Cortes reuniram-se solenemente em janeiro de 1821 para elaborar a Constituição. Enquanto a Magna Carta estava a ser redigida vigorou uma Lei Fundamental provisória que seguia o modelo espanhol da Constituição de Cádis. No decurso de 1821 a Corte retornou a Portugal, com exceção de D. Pedro de Alcântara, que permaneceu no Brasil como Príncipe Regente, já que persistia, desde 1815, o Reino Unido de Portugal, Brasil e dos Algarves.

Causas da Revolução

Os antecedentes que influíram no movimento de 1820 foram: o rescaldo das invasões francesas; a ausência da Corte no Rio de Janeiro e o sentimento de orfandade política existente; o domínio dos militares ingleses na Regência do Reino (sob o comando de Beresford), agravado pelo sacrifício dos mártires da Pátria em 1817, em especial o enforcamento humilhante de Gomes Freire; os ecos da Revolução espanhola de Cádis de 1812; o movimento sedicioso de Pernambuco de 1817 e a revolta liberal espanhola de janeiro de 1820 que forçou, sem sucesso o juramento da Constituição por Fernando VII.

Constituição de Cádis de 1812

Foi aprovada pelas Cortes extraordinárias em Cádis no dia 18 de março de 1812 e promulgada no dia seguinte (dia de S. José, daí a designação de “Pepa”, diminutivo familiar de Josefina). Foi a primeira Constituição aprovada na Península Ibérica e das primeiras do mundo ocidental, apenas precedida pelas Constituições da Córsega de 1755, dos Estados Unidos da América de 1787 e francesa de 1791.

Constituição de 1822

O mais antigo texto constitucional português iniciou o fim do Antigo Regime e do absolutismo, apesar de uma vigência fugaz, de setembro de 1822 a maio de 1823. Previa a soberania popular, a legitimidade dinástica, a separação de poderes, a independência dos juízes e a inviolabilidade dos deputados da nação no exercício das suas funções. A fragilidade do texto deveu-se à limitação dos poderes reais (tal como a de Cádis), pela ausência dos monarcas no momento da feitura das Constituições.

 

Cortes Gerais da Nação
Em 1824 com a Abrilada e a influência absolutista de D. Miguel verificou-se o regresso das instituições do Antigo Regime, contra a promessa de D. João VI em 1823.

Fernandes Tomás (Manuel) – (1771-1822)
Foi o mais influente dos promotores da Revolução. Magistrado judicial de prestígio, foi o autor do Manifesto aos Portugueses de 1820. Designado como o “primeiro dos regeneradores” é o orador representado na Sala das Sessões do Parlamento.

Ferreira Borges (José) – (1786-1838)
Membro ativo do Sinédrio, jurisconsulto prestigiado. Autor do Código Comercial de 1833

Gomes Freire de Andrade – (1757-1817)
Como comandante militar serviu nos exércitos português, prussiano e francês. Comandou o regimento de Infantaria 4. Participou na Legião Portuguesa de Napoleão na Campanha da Rússia. Grão Mestre do Grande Oriente Lusitano. Condenado à morte na tentativa de golpe liberal de 1817, foi enforcado em S. Julião da Barra, quando um oficial general, se condenado, apenas poderia ser fuzilado.

D. João VI - (1762-1826)
Vindo do Brasil em 1821, jurou a Constituição de 1822, mas suspendeu a sua vigência em 1823. Apoiou na prática seu filho D. Pedro na independência do Brasil, garantindo a unidade do País.

D. Miguel – (1801-1866)
Combateu o novo regime constitucional, restaurando o Antigo Regime. Foi derrotado na Guerra Civil que o opôs a seu irmão D. Pedro, sendo banido do Reino pela Convenção de Évora Monte (1834).

D. Pedro IV – (1799-1834)
Imperador do Brasil, proclamou a independência (1822). Outorgou a Carta Constitucional de 1826. Durante a Guerra Civil foi regente do Reino (1828-1834) em nome de sua filha D. Maria da Glória.

Porto
Cidade onde teve lugar a Revolução de 1820, base da ação e da vitória das forças liberais de D. Pedro, depois do desembarque dos bravos do Mindelo (julho de 1832). Na Igreja da Lapa da cidade encontra-se o coração do Rei, doado ao povo da cidade invicta.

S. Luís (Frei Francisco de) – (1766-1845)
Religioso beneditino, reitor da Universidade de Coimbra, futuro Cardeal Patriarca de Lisboa, conhecido como Cardeal Saraiva. Nasceu em Ponte de Lima e teve papel diplomático decisivo na causa liberal, representando uma corrente moderada.

Silva Carvalho (José da) – (1782-1856)
Membro influente do Sinédrio e da Revolução. Foi o primeiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Perseguido pelos absolutistas sucederia a Mouzinho da Silveira como ministro da Fazenda de D. Pedro.

Sinédrio
Criado no Porto a 22 de janeiro de 1818 por Fernandes Tomás, Ferreira Borges e Silva Carvalho, entre outros, foi a associação que preparou a Revolução de 1820 e a defesa dos ideais liberais.

Vilafrancada e Abrilada
Em maio de 1823, as forças fieis a D. Miguel e ao Antigo Regime aproveitaram a imposição em Espanha pelas forças da Santa Aliança de Fernando VII como rei absoluto para pressionar D. João VI no sentido da suspensão da vigência da Constituição liberal de 1822. Tal aconteceu, apesar do rei prometer uma Carta Constitucional. No ano seguinte em abril de 1824 os absolutistas imporiam, porém, condições para o regresso absolutista.

Guilherme d’Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

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   De 4 a 10 de março de 2019

 

O «Dicionário de História de Portugal» de Joel Serrão (Figueirinhas) constitui um precioso elemento de estudo sobre a historiografia portuguesa, numa perspetiva rigorosa e pedagógica, com grande qualidade científica e capacidade de abrir e alargar horizontes. É uma obra indispensável.

 

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PEDAGOGO EXEMPLAR

Joel Serrão (1919-2008) foi um pedagogo exemplar, que soube ao longo da vida fazer dos ofícios de pensador e de historiador uma permanente ação de cidadania. O seu labor científico foi sempre feito a pensar nos seus alunos, nos seus leitores e na necessidade de fazer da reflexão uma exigência permanente. Quando hoje nos lembramos da importância do “Dicionário de História de Portugal”, percebemos a determinação e a generosidade de quem se empenhou em preencher uma lacuna na nossa perspetiva cultural. Mas só alguém com uma extraordinária capacidade de ver largo e com uma férrea capacidade de trabalho pôde realizar uma empresa muito difícil, em que a marca de grande qualidade fica bem patente, não só em cada entrada, mas no conjunto realizado. Vê-se como o coordenador foi obrigado, com grande mestria, a preencher todos os espaços previstos e necessários. Mas igualmente descobrimos, em algumas remissões, o drama sentido nos atrasos de alguns colaboradores. Quem coordena obras coletivas sabe bem a angústia que sente, quando um texto falta no momento em que deve entrar na tipografia. Ora, tratando-se de um Dicionário saído em fascículos, esse drama surgia agravado pelos inexoráveis compromissos da Editora. Só o conhecimento, o trabalho, a persistência, o cumprimento determinado do compromisso assumido de um professor e de um intelectual de exceção puderam superar as angústias e os contratempos. Conheci-o bem, mas não tive o gosto de ser seu aluno. Posso dizer, porém, que fui desde muito cedo seu ávido leitor. Foi através dele que li sistematicamente os “seareiros” e, antes de todos, António Sérgio, seguindo-se Jaime Cortesão e Raul Proença. Recordo especialmente a minha saudosa professora Maria Lucília Estanco Louro, que nos fazia ler os grandes mestres da História política como modo de aprender a realizar uma verdadeira Escola de Cidadãos – do mesmo que nos levava às conferências dos grandes mestres, desde o pensamento às artes, numa imersão total em banhos lustrais de sabedoria e sensibilidade. Eram momentos de puro deleite, através dos quais compreendíamos como o diálogo entre filósofos da Escola de Atenas, retratados por Rafael, começava na capacidade de saber perguntar… E pouco antes de nos deixar, Maria Lucília foi ter comigo à Casa Fernando Pessoa para dizer que não podia ficar para uma conferência. E nesse momento pudemos lembrar esse tempo em que Joel Serrão nos ensinava pelos seus escritas a ler melhor o mundo e o tempo e em que ouvíamos as canções de 1789, como sinal de liberdade.

 

A PAIXÃO DA HISTORIOGRAFIA

No tempo em que nos aproximámos, o ensaísta e historiador mergulhava no âmago da gloriosa geração de 1870, e naturalmente foi Antero que nos fez encontrar pessoalmente, compreendendo no que viria a ser O Primeiro Fradique Mendes (Livros Horizonte, 1985), como as figuras dessa idade de ouro se complementaram na diferença e se projetaram no século seguinte. “Pouco ou nada se compreenderá das origens do escritor Eça de Queiroz se não tivermos em vista a conjugação de duas perspetivas: a primeira, é que ele foi um homem da geração, cujos valores e objetivos fundamentais haviam sido esboçados pelos juvenis escritos de Antero; e a segunda, é que esse facto, além de comprovado, lhe não tolheu a singular originalidade da sua procura, a partir de um magma cultural mais ou menos comum”. E sem sombra de anacronismo, é o próprio Joel Serrão que irá encontrar ecos dessa riqueza criadora no Livro do Desassossego de Bernardo Soares – ou seja, é a modernidade que se encontra a si própria nas suas diversas facetas. E Carlos Fradique Mendes vai ser, no percurso da sua afirmação, o ponto de encontro de um singular heterónimo coletivo, envolvendo Antero, Batalha Reis e Eça. E este último dirá: “Antero, mesmo troçando e amaldiçoando, era um ateniense: e à sua ironia convinha, mais que à de nenhum outro ironista, o nobre epíteto homérico de alada. Os seus ditos abriam através da sua geração grandes sulcos luminosos e puros”. Havia, pois, uma indicação de sentido de marcha orientada para o futuro. Contudo, do que se tratou inicialmente com Fradique, no dizer de Batalha Reis, foi um tremendo simulacro: “o nosso plano era considerável e terrível: tratava-se de criar uma filosofia cujos ideais fossem diametralmente opostos aos ideais geralmente aceites, deduzindo, com implacável e impassível lógica, todas as consequências sistemáticas dos pontos de partida, por monstruosas que elas parecessem. Dessa filosofia saía naturalmente uma poesia, toda uma literatura especial, que o Antero de Quental, o Eça de Queiroz e eu, nos propúnhamos construir a frio, aplicando os processos revelados pelas análises da Crítica moderna, desmontando e armando a emoção e o sentimento, como se fossem máquinas materiais conhecidas e reproduzíveis”. E esse satanismo mais não seria do que a procura de um gesto original, capaz de prenunciar novos caminhos críticos. Estaríamos perante o realismo em poesia, e a demarcação nítida do romantismo decaído.

 

FRADIQUE MENDES

E depois da revelação do poeta no seu espaço próprio, escrito a várias mãos, encontramos em 1870 Fradique Mendes, no capítulo XXX de O Mistério da Estrada de Sintra, da autoria partilhada de Eça e Ramalho Ortigão, saído em folhetins no “Diário de Notícias”: “sentado no sofá com um abandono asiático”, “verdadeiramente original e superior”, “um excêntrico, distinto”, de “caráter impecável”, “originalidade violenta, quase cruel”, “amigo de Baudelaire” – que “tocava admiravelmente violoncelo, era um notável jogador de wist, tinha viajado no Oriente, estivera na Meca e contava que fora corsário grego”… Dir-se-ia que a personagem vai ganhando vida, para além da poesia que tinha publicado. E assim Eça vai apoderar-se da figura. E o certo é que já não é o mero símbolo, algo marginal na obra de uma geração, que desejava deixar clara a sua identidade. Agora, já temos uma figura central, base de um verdadeiro romance epistolar – ao lado de Amaro, Basílio, Carlos da Maia, João da Ega, Jacinto, Zé Fernandes e Gonçalo Mendes da Maia. Em bom rigor, é uma personagem multifacetada, capaz de gerar fascinação e de se constituir em voz de um tempo singularíssimo. “A minha intimidade com Fradique Mendes começou em 1880, em Paris, pela Páscoa – justamente na semana em que ele regressara da África Austral. O meu conhecimento porém com esse homem admirável datava de Lisboa, do ano remoto de 1867. Foi no Verão desse ano, numa tarde, no Café Martinho, que encontrei num número já amarrotado da ‘Revolução de Setembro’, este nome de C. Fradique Mendes, em letras enormes, por baixo de versos que me maravilharam”… Os versos significavam uma definição nova, muito mais do que um estilo inolvidável. Este estava representado pela própria personagem, que se tornou símbolo de uma geração, de uma obra, de uma força crítica. Assim, Eça e toda a geração de 1870 superam o romantismo do elogio mútuo, mas atingem a sua plena consumação num naturalismo que não segue cânones de escola e se abre para o simbolismo, anunciando o modernismo do século XX, como necessidade a um tempo crítica e construtiva em relação à sociedade. Joel Serrão compreendeu-o plenamente na sua análise rigorosa e certeira de Fradique.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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MADRINHA DE PORTUGAL!

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TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

Diário de Agosto * Número 30

 

Um dos poemas mais intensos da “Mensagem” de Fernando Pessoa é, sem dúvida, o que se refere a Filipa de Lencastre. Madrinha de Portugal! – eis como o poeta qualifica quem foi por certo a mais célebre das nossas Rainhas.

 

Mãe da Ínclita Geração e dos Altos Infantes, na expressão de Camões, foi de uma influência crucial, como educadora, como fator de estabilidade e de bom governo. Seus filhos marcaram decisivamente a Pátria.

 

D. Duarte, o Leal Conselheiro, é o primeiro dos nossos pensadores – que, no entanto, soube distinguir a sua qualidade de filósofo e governante. D. Pedro compreendeu que Portugal precisava de ir para as Sete Partidas – afirmando-se na Europa, criando boas instituições e partindo para o Mar. Se terminou tragicamente em Alfarrobeira, seus netos, o Príncipe Perfeito e Santa Joana Princesa projetaram a sua influência positiva na história portuguesa.

 

D. Henrique lançou o plano do Achamento do Mundo (em coerência e não contradição com D. Pedro), Gomes Eanes de Azurara explica bem a coerência de uma cuidada preparação contra a ideia de improviso. D. Isabel de Portugal, Duquesa de Borgonha, mulher de Filipe o Bom, mãe de Carlos o Temerário, foi uma das mulheres de maior influência na história do seu tempo. D. Fernando, o mártir de Tânger, foi símbolo do sacrifício em nome de uma causa. Em todos há a marca indelével de Filipa de Lencastre, da inteligência, da sabedoria e da determinação. Morreu quando seus filhos partiam para Ceuta – mas a sua referência ficou bem evidenciada, no que fez e no que legou.

 

Nos dias de hoje, não podemos esquecer que D. Filipa simboliza originalmente a mais antiga aliança entre duas Nações – Portugal e o Reino Unido. Em tempos de incerteza e do terrível “brexit”, temos de lembrar que na Europa há uma ligação perene que não se deve perder e que tem vocação atlântica. Resistimos juntos nas Guerras Peninsulares, foi a mudança política britânica que permitiu a vitória liberal em 1834, os Açores foram essenciais na vitória dos Aliados, entrámos na EFTA / AECL com o Reino Unido, seguimo-lo nas Comunidades Europeias – razões suficientes para vermos os últimos acontecimentos com preocupação. Houve sombras, é certo, mas o balanço global é o de que a frente atlântica europeia precisa de Portugal e do Reino Unido solidários… D. Filipa de Lencastre, madrinha de Portugal! Temos isso bem presente. Meu avô anglófilo dos quatro costados insistia sempre nesse ponto.  

 

«Que enigma havia em teu seio

Que só génios concebia?

Que arcanjo teus sonhos veio

Velar, maternos, um dia?

Volve a nós teu rosto sério,

Princesa do Santo Gral,

Humano ventre do Império,

Madrinha de Portugal!»

 

 

   Agostinho de Morais

 

 

 

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A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
#europeforculture

 

 

 

 

 

 

A VIDA DOS LIVROS

 

De 14 a 20 de maio de 2018

 

A «História de Portugal» de Alexandre Herculano constitui ainda hoje obra de consideração obrigatória para compreender as origens da Nação. “Querer é quase sempre poder: o que é excessivamente raro é querer”. Com esta afirmação o historiador responde a muitos dos que consideram o primado da liberdade crítica como um não querer.

 

UMA POLÉMICA CIVILIZADA
Sabemos como o autor de Eurico se demarcou das novas gerações que se lhe seguiram, em especial da que se afirmou nas Conferências Democráticas pela evolução e pela igualdade. Conhecemos os termos da polémica civilizada, mas claríssima, que travou com Oliveira Martins (sob o olhar atento de Antero), em que deixou muito clara a sua atitude essencial relativamente ao primado da liberdade política, económica e cultural. De qualquer modo, se há uma marca própria na atitude de Herculano, ela corresponde à afirmação da liberdade como um fator necessário de afirmação de vontade. Liberdade e não querer são assim antagónicos e contraditórios, na perspetiva herculaniana. E aí os detratores do velho historiador viram uma contradição insanável, entre o distanciamento na intervenção e a retidão quase profética na ética. Nesse sentido, a partir de Kant, aproximou-se de Montesquieu e de Tocqueville, numa demarcação evidente em relação a Rousseau. Não é a liberdade do bom selvagem que Herculano invoca, mas a articulação de vários poderes, a sua autolimitação e a consideração da cidadania, como distinta de uma “vontade geral”, abstrata ou uniformizadora, e enquanto concretização de instituições livres, capazes de assegurarem uma mediação eficaz e legitimadora. Os fundamentos medievais das instituições animaram, de facto, a sua investigação histórica, com especial ênfase para o municipalismo, o que motivou críticas à historiografia moderna. O certo é que, para Herculano, o bem comum resulta de uma mediação, capaz de tornar a vontade algo de positivo, com vista a realizar desígnios comuns e a contrariar qualquer ilusão onírica. Daí a sua interpretação da “História de Portugal” como uma afirmação de vontade – sem esquecer, contudo, um certo “espírito público”, a animar a causa da independência. Apesar das diferenças, o certo é que há uma óbvia convergência entre as linhas emancipadoras dos primeiros românticos, Garrett e Herculano, e os desígnios da geração de Antero, Eça e Oliveira Martins. E sobretudo verifica-se uma certa confluência crítica sobre a degenerescência das instituições liberais, com aceitação por Herculano de algumas soluções sociais visando combater as injustiças (a enfiteuse, as caixas económicas, o crédito cooperativo)… Não por acaso, José-Augusto França prolonga a sua análise do Romantismo português até às repercussões ocorridas quase no fim do século: “1835 (ou 1834), pax liberalis, é uma data indiscutível: marca o começo do processo romântico nacional, na sua fase de instauração. 1880 situa-se no fim deste mesmo processo, no momento em que se caracteriza uma viragem da sociedade portuguesa e onde, sobretudo, esta sociedade toma consciência dos seus próprios valores – e da sua própria falência”.

 

O ESTADO COMO GÉNESE DA NAÇÃO
A consideração da vontade criadora do Estado e em consequência a génese da Nação no século XII português põe a tónica na convergência de fatores orgânicos e históricos que permitiram a origem de Portugal – “nascido no século XII em um ângulo da Galiza, constituído sem atenção às divisões políticas anteriores, dilatando-se pelo território do Gharb sarraceno, e buscando até (…) aumentar a sua população com as colónias trazidas de além dos Pirenéus, é uma nação inteiramente moderna”. A sua história própria “é assaz honrada e ilustre sem essas vaidades estranhas que estão longe de terem o valor que se lhes atribui”… Herculano falava das invocações de Viriato, de Sertório e dos lusitanos – sobretudo referidas a partir do século XV, fruto de um modismo clássico. No entanto, não há um nexo de continuidade entre a resistência à invasão romana e os povos que formaram o reino de Portugal. A nova monarquia compôs-se, digamos assim, de duas componentes, da fisiologia e da fisionomia da sociedade, enquanto do outro lado “impôs, vencedora, os seus próprios caracteres, posto que, como devia acontecer, dele recebesse modificações orgânicas”. E assim, como é fácil de compreender, a cultura do ocidente peninsular construiu-se em dois movimentos, de norte para sul e de sul para norte. A presença dos barões de Entre-Douro-e-Minho, que apoiaram Afonso Henriques, vai completar-se, a partir de Coimbra, por uma aliança muito profícua com os municípios moçárabes. Daí a construção da língua portuguesa, a partir da convergência de diversos dialetos, em que a Península Ibérica foi sempre fértil – que culminou na uniformização do idioma, com pequenas diferenças de pronúncia ou terminologia (com a exceção do mirandês), em virtude da mobilidade interna e da centralização. Herculano pôs, deste modo, a tónica na vontade, a que se somou o fator unificador da costa marítima – que reforçou o carácter atlântico de Portugal, por contraponto à continentalidade da Espanha, com a centralidade de Leão e Castela a ter de se virar para oriente (Aragão e Navarra), já que não se concretizou a ligação ocidental, com os funestos desaparecimentos do filho de D. João II, Príncipe D. Afonso, e do filho de D. Manuel, Miguel da Paz, simbolicamente sepultado em Granada com seus avós, os Reis Católicos.

 

A TÓNICA NA ÉTICA CÍVICA
Herculano põe a tónica na ação animada pela ética cívica. Assim se explica o interesse dos jovens de 1870. Como afirma Fernando Catroga: “o velho soldado liberal” interessa a Oliveira Martins, “desde cedo, não só como historiador (…) e como reformador social, mas também como modelo de virtudes cívicas. É que, para ele, o dissídio herculaniano não encerrava uma lição negativista. Bem pelo contrário, o seu magistério, antes e depois de ‘Vale de Lobos’, surgia-lhe como um símbolo de luta pela subordinação da política à moral, como um protesto rico de significação social” (“Ética e Sociocracia – O exemplo de Herculano na geração de 70”, in “Studium Generale”, nº 4, Porto, 1982). Aqui está porventura a chave que liga uma tradição de pensamento que vem de Garrett e Herculano, passa pela Geração de 70 e chega, nos nossos dias, a Eduardo Lourenço. E Catroga, ao falar de Oliveira Martins (de quem o autor de O Labirinto da Saudade se aproxima), ainda refere uma “propensão sociologista – corrigida pela sobredeterminação ética – e o seu apego às questões práticas da vida” que não bloquearam “a sua adesão à gesta individual de Herculano, a qual acabará por emergir como critério aferidor do sentido da sua própria ação como homem público”. Afinal, o que articula estas perspetivas, diversas mas complementares, não é qualquer negativismo ou ausência, mas uma visão crítica dos mitos como modo de emancipação – nunca como aceitação de qualquer fatalismo, ou acomodação à inexistência de vontade. “Somos porque queremos” – repetirá Herculano e com ele os seus seguidores, animados pela verve crítica, capaz de alimentar fecundamente a vontade.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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