Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
1. Um rosto é um milagre. Há hoje no mundo quase 8.000 milhões. Nenhum igual a outro: cada rosto é único.
Um rosto é a visita do infinito e a sua manifestação viva no finito. Nunca ninguém viu o seu rosto e o seu olhar a não ser num espelho e sobretudo no olhar de outro rosto.
Para rosto há muitos nomes: rosto, cara, face, aspecto, máscara-pessoa. De um modo ou outro, todos indicam a visibilidade de um alguém. Que é um rosto senão alguém que se mostra na sua aparição? O rosto é a nossa exposição, o nosso estar voltados para os outros e para a frente, para diante.
O que vai na alma vem ao rosto. Há o rosto sereno, ou amargurado, ou severo, ou alegre, ou rancoroso, ou triste, esfarrapado, revoltado, suplicante, pensativo, esfomeado... De homem, criança, mulher. Ah!, e, quando dizemos a alguém que está com óptimo aspecto, possivelmente a resposta será: “não me queixo do aspecto”. Talvez essa pessoa não se queixe. Mas as fortunas que se gastam para se compor e arranjar o aspecto!... Ah!, a aparência, o parecer!
Um rosto estoira em riso; um rosto desfaz-se em lágrimas. A criança tem o rosto da manhã; nas rugas do rosto velho, está escrito o trajecto de uma história.
A beleza estonteante do riso num rosto nunca será explicada pela física. Penso que a química nunca há-de explicar as lágrimas de alegria, de dor, de horror, de compaixão, que nascem da fonte do olhar e descem por um rosto.
2 O rosto concentra-se no olhar. É dele que fala o filósofo E. Levinas, quando fala do outro como “visage”. O que é o olhar senão a luz que se acende na noite do mistério? Não é dos olhos que se trata. O mistério é o olhar. Um dia terão perguntado ao filósofo Hegel o que se manifesta e vê num olhar. E ele: “o abismo do mundo”.
Num olhar, o que há é alguém que vem à janela de si e nos visita. Também por isso, para tornar alguém anónimo, venda-se-lhe os olhos. Faz-se o mesmo a um condenado à morte, porque é intolerável o seu olhar.
Repito: até para nós próprios somos por vezes terrivelmente estranhos. Quem nunca se surpreendeu ao olhar para o seu próprio olhar no espelho? “Quem é esse ou isso que me vê, desde o abismo?”
Essa estranheza assalta-nos até no olhar de um animal: um cão velho e abandonado que nos olha não nos deixa indiferentes. Mas é sobretudo o olhar de alguém que é perturbador. Ele há o olhar triste. O olhar meigo. O olhar arrogante. O olhar do terror. O olhar da súplica. O olhar de gozo. O olhar que baila num sorriso. O olhar concentrado. O olhar disperso. O olhar da aceitação. O olhar do desprezo. O olhar compassivo. O olhar do desespero. O olhar sedutor. O olhar envergonhado. Ah!, o olhar da despedida final para sempre! O olhar morto, que já não é olhar! Ao morto fechamos-lhe os olhos.
Mais uma vez, o olhar é a presença misteriosa de alguém, que ao mesmo tempo se desvela e se vela. Já ao nível do tal cão velho e abandonado pode erguer-se o sobressalto da pergunta: o que é e como é ser cão? Mas é uma sensação de abismo, um belo dia, precisamente perante o olhar de alguém, ficarmos paralisados com a interrogação: o que é ser alguém outro? Porque a outra pessoa – o outro homem ou a outra mulher – não é simplesmente outro eu, mas um eu outro. Explicitando: o que é e como é ser o Juan ou a Eunice, viver-se a si mesmo por dentro como o Juan ou a Eunice? Nunca saberei. E como é o mundo visto a partir deles? E como é que ele ou ela me vêem? O quê e quem sou eu realmente para eles, a partir do seu olhar? É certo que só vimos a nós pela mediação do outro. Sem outros eus enquanto tus, não há eu. Entre mim e o outro há uma tensão dialéctica: de distância e proximidade. Afinal, a relação com o outro pode ser de rivalidade ou de aliança, de destruição ou de criação. Então, precisamente no olhar do outro enquanto próximo inobjectivável, irredutível, de que não posso dispor, pode revelar-se o apelo misterioso da proximidade infinita do Deus infinitamente Outro, Presença amororsa infinita...
Como é que foi possível o dinamismo do universo ir-se configurando ao longo de milhares de milhões de anos até à sua concentração na forma de um rosto enquanto divino visto? Pode ser nele que Deus nos visita e interpela.
No rosto, há uma pessoa que se apresenta e é vista. Por isso, o mistério de um rosto morto é que nele o que se mostra é a ausência definitiva de um alguém. Para sempre.
Para sempre?
Final mesmo é a esperança da convocação por Deus de todos os rostos da história do mundo, transfigurados pelo esplendor divino da eternidade. Já não haverá lágrimas nem dor nem sofrimento nem morte. Como diz o Apocalipse: "Vi então um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra são do passado, e o mal já não existe. Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade santa, a Jerusalém nova, pronta como esposa adornada para o seu esposo. Nisto, ouvi uma voz forte que, do trono, dizia: Eis a tenda de Deus entre os homens. Ele habitará com eles, eles serão o seu povo e Ele, Deus-com-eles, será o seu Deus. Ele enxugará todas as lágrimas dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor! Não haverá mais dor! Sim! As coisas antigas passaram! Aquele que está sentado no trono declarou então: Eis que faço novas todas as coisas!".
3. Por tudo isto, considero um crime a imposição da burqa. Eu já vi ao vivo mulheres com a burqa: verdadeiros sacos ambulantes. Rouba-se-lhes o rosto, o olhar, a identidade. É um crime de lesa-humanidade.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 28 AGOSTO 2021
| O Estado não soçobra ao sofrimento da sociedade que afinal não representa |
Há quem se não ocupe de outra coisa senão a de fazer passar a mensagem que afirma como realidade parecida com aquelas que não se podem fazer melhor do que o que são e aí assentar de vez.
Aqui e além, também se diz, como se a preocupação não fosse ausente, que a democracia está doente.
Assim, sem ordem nem motivo aparentes, mas de jeito conveniente, nada se estranha, nada se arrola para imediato ou posterior tratamento, já que o tá doente e ninguém se envergonha de o ter contaminado às entranhas, antes, com o correr do tempo se sabe não haver melhor remédio do que apostar na fugidia memória de todos, à perca do ponto de mira…
É certo que os incaracterísticos pensos rápidos, vendidos em farmácias ou junto aos semáforos, vão dando para aguentar a sobrevivência que poucos sabem não ter de mendigar.
Não é menos verdade que a democracia vive dentro de outra e outras caixas, encaixadas sucessivamente umas nas outras e de tal forma sobrepostas que não se descortina a mais vazia, se logo no abrir da primeira ou por sob o alcatrão da última.
Fingidas submissões ao Estado de Direito e à sua genuína pujança, se o respeitassem, são forma comum de aplacar os ânimos de todos os lesados e assaz ofendidos nos mais elementares direitos e expectativas legítimas.
Mas, tal como dizia Montaigne, o descaramento e a firmeza têm por vezes surtido o mesmo efeito, logo, quem com inacreditável valentia se opõe às hostes podres, mas fortes pelo número, por tão notável coragem, recebe, em doses regulares, ora a cólera de quem o gorro encarapuça por inteiro ora a sôfrega fúria do amo, caso o tenha agraciado com um direito constitucionalmente a todos atribuído.
Será que não chegou o tempo de fazer cessar o martírio contra o resoluto ânimo da ainda e enfim viva democracia?
Será que se finge desconhecer o seu paradeiro, recompensando-se do que esse facto proporciona?, será que a entendem como filha de pai incógnito e mãe entregue a cheques?, será que não se intui que muitos daqueles que querem afirmar-se excluídos de qualquer processo avesso à vida democrática são, na realidade, mutuamente dependentes não só daqueles que simulam detestar como do sangue que neles flui tóxico, mas útil, à orgia da manipulação desenfreada de um qualquer e ainda que irrisório poder?
Em rigor, a omnipresente impunidade – jet-set da pátria – acirrará, um dia, todos os ânimos dos “tolerantes” deste caminho percorrido em muitas palhas insanas e, amotinando-se de justos valores, com eles arremessarão de forma tão dura que até o sonho de melhorar a saúde da democracia se esvai, posto que excessos contra excessos não são excessos ao quadrado, antes abertura ampla e fácil ao abuso de poder, agora, e finalmente instalado na totalidade.
Eis um labiríntico perigo que a História nunca perdoou aos homens a leviandade de o não detetarem com antecipação.
Não se concebe as dificuldades que o poder político e económico têm de entender que a todos incumbe o aprofundamento da democracia sem soçobrar aos tiranos que, por nascença ou antiguidade, insistem obstinadamente em ser os únicos a demarcar a usança de um território, o qual, supostamente, já nem ao seu alcance se deveria deparar, na medida em que democracia não é seguramente tráfego sem barreiras, afeto a pérfidos jogos cujo triunfo consiste em não assumir qualquer pública culpa, qualquer arrogância provadamente lesiva da vida de outrem, não se dando sequer ao trabalho de poupar o vil espetáculo titanesco.
Na verdade, o não respeito pelo código da democracia deriva da facilidade e da bonomia com que são entendidos os valores fundamentais de uma sociedade, em vez de a necessária assunção desses valores acarretar um transporte de ombro penoso e nobre.
Em última análise, não se chora o descontentamento de ninguém, que, afinal, sentem tão alheio e motivo pelo qual não cabe sequer na análise de abstenção das últimas eleições que tiveram lugar entre nós. Todavia, tem lógica que assim seja, o Estado não soçobra ao sofrimento da sociedade, que, afinal, não representa.
Sempre nos declínios se perderam as moradas centrais, sempre na profanação de direitos se simularam interpretações justificantes; sempre que se descuidou a reflexão se atribuíram preços altos à absurdidade; sempre que não se alertou para as intoxicações todas as existências foram de equívoco; sempre que as frenéticas trocas de favores excitaram, pela sedução, os ávidos de Hobbes, o cancro da submissão enovelou-se, informe, qual matéria não viva, mas lama.
Se estivermos atentos, ainda se vive num mundo em que a certos escravos se oferece um atributo de tirania temporária, para que eles se sintam orgulhosos do seu tempo de robóticos e aceitem a tarefa de uniformizar, pela força delegada, um mundo de sonhos e conquistas de destino.
Desconhecem estes pobres de espírito, mais sugestionados pelo embotamento do prémio do que pela “obra”, que, geneticamente modificados ou por congestão de nascença deformados, só poderão encontrar-se a si próprios por entre monte de escória e, a observá-los, a piedade e o desprezo dos que construíram o Saber humano. Os que sabem onde mora a democracia, os que constituem o núcleo duro da energia criativa, impressionante força que não toma de empréstimo qualquer vitória, os que, tal como Espinosa, se questionam “porque combatem os homens pela sua subserviência como se tratasse da sua salvação?”, ou, revivendo sempre as núpcias da democracia, a força mágica da questão de Gershom Scholem, “tinham os golems o dom da fala?”.
Questões suficientes são estas, desde que colocadas no imo das coisas e, em hora e “prime time”, que inibem ou encolhem, de alguma forma, quem se opõe à rebelião dos homens que não aceitam as condições impostas pela golemização e para quem a democracia pode constituir uma realidade de contornos à qual se não afeiçoa a insídia…e ainda são muitos, muitos, basta estugar o passo.
Teresa Bracinha Vieira Publicado no Jornal Euronotícias a 9 de fevereiro de 2001