NA SALA OU NA CAMA, CHAMAVA-LHE SLIM
Uma despedida
Por razões a que este blog do Centro Nacional de Cultura é alheio, interrompe-se aqui, à 34.ª crónica, a minha colaboração. Por vezes, somos forçados a fazer escolhas. Sou o editor da Guerra e Paz e as actuais exigências da actividade editorial em Portugal forçam-me a uma concentração que me leva a sair da blogosfera (mesmo do meu blog pessoal, Página Negra) e das redes sociais. Foi um prazer, este regresso a uma casa que conheci, e com a qual colaborei, no tempo de Helena Vaz da Silva. Levo do trato elegante e afável de Guilherme d'Oliveira Martins e de Teresa Tamen, um gosto que muito agradeço. Soube-me mesmo muito bem ter as minhas pobres prosas a deambular por aqui.
Saio de um prazer para outro prazer: quero agora preservar o salto de qualidade que a Guerra e Paz editores deu em 2019 e em 2020. Deixo de escrever crónicas, talvez escreva mais livros.
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Na sala ou na cama, chamava-lhe Slim
Howard Hawks transpirava charme. Ou seja, nunca precisou de transpirar. Nessa noite passeava-se pelo Clover Club e olhava para a pista de dança. Foi então que a viu.
Hawks era casado com a irmã da actriz Norma Shearer, o que fazia dele cunhado de Irving Thalberg, braço-direito de Louis B. Mayer o dono da MGM. Thalberg mandava em tudo. Mão de ferro para todos, uma luva para Hawks que acabara de filmar “Bringing up Baby”, comédia com um tigre verdadeiro, a leoa que era Katharine Hepburn e a cómica mansidão de Cary Grant. Um sucesso.
A Hawks, ninguém chamaria manso. Os engates dele davam para atapetar o chão do Clover Club, pista de dança e reservados. Numa agenda escarlate guardava nomes loiros e curvilíneos com números de telefone à frente. Hawks era a chave dourada para se entrar nos filmes, essa caverna secreta, aveludada, que a todas atraía.
Hawks olhou para a tão jovem mulher e pensou: “Hmm, que bela fechadura.” Quando a orquestra atacou a música seguinte, já Hawks dançava com ela. Caprichou na valsa, disse duas frases elegantes, fê-la rir – e se ela tinha um riso fácil, desprendido! Hawks meteu a chave: “Não quer entrar nos filmes, fazer um filme comigo?” Um sorriso na boca dela, prometedor, feliz e, logo a seguir, a resposta que atirou Hawks ao chão: “Não, que horror. Não me interessa nada.”
Seguiram-se três anos de muita cama, casamento depois. Ela, e era dele que falava, confessaria com candura: “Não era só bonito, encantador e cheio de sucesso, ele era o pacote inteiro que eu queria: a carreira, a casa, os quatro carros e o iate.”
Na cama ou na sala, Hawks rebaptizou-a. Mary Raye Gross de seu nome, passou por vontade e prazer de Hawks a ser Slim. E não houve, depois, filme dele em que ela não entrasse sem pôr os pés em nenhum. Slim inventou as mulheres de Hawks, a Rosalinda Russell de “His Girl Friday” ou a Barbara Stanwyck de “Ball of Fire”. Foi Slim que inspirou a Hawks as frases velozes e acutilantes, a física disponibilidade para as batalhas conjugais, a descarada autonomia e liberdade das mulheres dos seus filmes.
Um dia, Slim descobriu uma sósia, Lauren Bacall, quase tão bonita e ravissante como ela. Ofereceu-a de bandeja a Hawks: maquilhou-a, desenhou-lhe os vestidos, talvez a tenha ensinado a assobiar. Tão igual que a deixou usar o nome, Slim. Assassinando com brilho o livro de Hemingway que adaptava, em “To Have and Have Not” a relação de Bacall e Bogart era tão decalcada do amor deles, que a personagem de Bogart ficou Steve, como, na sala ou na cama, Slim chamava a Hawks.
Iludido, Hawks quis, vá lá, deitar-se com Bacall, mas o avisado Bogart antecipou-se. Já Hemingway, por graça da esplêndida Slim, teve boas razões para perdoar a forma como mandaram a história de “To Have and Have Not” às urtigas.
Ninguém como Slim, sem nunca ter entrado num filme, entrou, afinal, em tantos.
Manuel S. Fonseca