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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

MOMENTO CRUCIAL

  
    Karl Jaspers 


Karl Jaspers designou como “momento axial” o terceiro dos períodos em que dividiu a História do Mundo. Decorreu entre 800 a.C. e 200 a.C. e caracterizou-se pelo aparecimento de uma mesma linha de pensamento em três regiões do globo, China, Índia e Ocidente. Afinal, a atualidade é resultado desse momento que corresponde à valorização do espírito humano, envolvendo a paideia grega como aprendizagem e a humanitas romana como cultura, acrescendo o excecional contributo das escolas de pensamento da Ásia de que o budismo é uma síntese evidente. Jaspers fala de quatro momentos: o inicial quando o homem começou a falar, aprendeu a utilizar o fogo e inventou os primeiros utensílios; o segundo (5000 e 3000 a.C.) corresponde ao nascimento das grandes civilizações do Egito, Mesopotâmia, Índia e China; o terceiro é o “tempo axial” e o último refere-se ao final da Idade Média e ao nascimento da ciência moderna.

Lembro este entendimento a propósito de um “momento crucial” que podemos estar a viver. Há circunstâncias decisivas que podem ter consequências muito gravosas, sobretudo quando ocorridas em clima de ódio e de cegueira. Simbolicamente, a eleição presidencial americana de hoje representa uma escolha dilemática, que poderá ter maior ou menor influência, mas põe-nos perante uma decisão dramática, tal como aconteceu, pelas piores razões, com o famigerado “Brexit”, com os efeitos desastrosos conhecidos. Agora estamos perante uma estranha cumplicidade entre o Czar russo e um putativo mandatário norte-americano, num ambiente geral de irracionalidade e de violência, em que a obra clássica de Kant pode ser relida enquanto distopia rebatizada como reflexão sobre a hipótese da guerra perpétua. O Estado de direito e a democracia surgem apoucados pela destruição prática de um sistema ético de valores e do primado da lei, numa perigosa lógica de vazio e de cupidez desumana.

Onde está a Carta das Nações Unidas e a experiência trágica de duas grandes guerras com milhões de vítimas? É difícil manter o equilíbrio sem que se manifeste a critica fácil. E quando alguém se dispõe a acabar com conflitos ancestrais em vinte e quatro horas, lembramo-nos de tristes momentos históricos que levaram à perdição de muitos impérios. Afinal, a história repete-se invariavelmente como tragicomédia. Calígula regressa às nossas mentes. E ouvimos Anne Applemaum no seu recente “Autocracia, Inc.” (Bertrand, 2024): “as autocracias mais sofisticadas preparam as bases legais e propagandísticas antecipadamente (…) concebendo armadilhas para apanhar ativistas pró-democracia antes ainda de estes ganharem credibilidade ou popularidade”. Eis o que está em causa – a prevenção dos valores fundamentais do desenvolvimento e da dignidade humanos. A banalização do mal nasce onde menos se espera, de modo irrepetível e sempre na lógica de alimentar a ilusão sobre um mundo que se pretende dominado por quantos invocam o privilégio de uma verdade abstrata, mesmo usando o eufemismo da pós-verdade que é o sinónimo mais perfeito da mentira. Não se trata de invocar fantasmas, mas de cuidar da realidade, lembrando Karl Popper, que nos ensinou que nunca sabemos o suficiente para poder ser intolerantes. E o momento axial de Karl Jaspers ilustra esta exigência – de que a inteligência e a sabedoria nunca são demais.


GOM

O HOMEM: QUESTÃO PARA SI MESMO (1)


     António Damásio © Miguel A.Lopes /Lusa 2013

 

1.  O CÉREBRO E O ESPÍRITO


Já no livro Francisco. Desafios à Igreja e ao Mundo escrevi longas páginas reflectindo sobre o tema, concretamente sobre as questões do “Transhumanismo e pós-humanismo”, onde também citava Raymond Kurzweil para quem não se trataria apenas de “transhumanismo”, melhorando o Homem, enxertando-lhe componentes electrónicas: “O fim último é ser capaz de descarregar uma consciência humana num material informático. A Humanidade acederá assim à imortalidade.”


Volto à questão do Homem, que se torna cada vez mais actual com os avanços da Inteligência Artificial (IA), cujos benefícios serão cada vez mais inegáveis, concretamente nos domínios da saúde, mas que vai pôr dilemas éticos, já que haverá perigos gigantescos, como preveniu o Papa Francisco na recente cimeira do G7 na Itália, apelando, por exemplo, à proibição da entrada em cenário de guerra de armas automáticas letais, sistemas que usam IA. No limite, a pergunta é: Iremos ser substituídos por máquinas?  O que é o Homem?


O enigma parece ser não tanto o espírito, mas a matéria. Embora o espírito seja enigmático na sua relação com a matéria – como é que, estando na raiz o espírito, há matéria? --,  parece menos compreensível como é que da matéria resulta o espírito, como é que a matéria se abre em espírito. O dualismo antropológico é cada vez mais inadmissível; mas como entender a emergência do espírito a partir da matéria?


Não têm faltado afirmações reducionistas do Homem. “O Homem não passa de um objecto material e tem apenas propriedades físicas” (D. M. Armstrong, 1968). “Toda a conduta humana terá um dia uma explicação mecânica” (D. Mackay, 1980). “As máquinas inteligentes tomarão pouco a pouco o controlo de tudo, acabando por apoderar-se do mundo da política... Pensar é simplesmente um processo físico-químico (L. Ruiz de Gopegui, 1983). “O espírito é uma máquina” (M. Minsky, 1987).


Hoje, com as novas técnicas da tomografia de emissão de positrões e da ressonância magnética nuclear funcional, consegue-se visualizar imagens das regiões do cérebro que entram em acção aquando das diferentes operações mentais. Assim, António Damásio escreveu que, embora avesso a previsões — aliás, com o tempo, parece-me cada vez mais prudente em relação à explicação científica da consciência —, lhe parece seguro poder afirmar que até 2050 a acumulação do saber sobre os fenómenos biológicos em conexão com a mente consciente fará com que “desapareçam as tradicionais separações de corpo e alma, cérebro e espírito.”  


Talvez haja quem receie que, mediante a compreensão da sua estrutura material, algo tão precioso e digno como o espírito humano se degrade ou desapareça. Mas António Damásio previne que “a explicação das origens e do funcionamento do espírito não acabará com ele.” O nosso assombro estender-se-á até essas incríveis microestruturas do organismo e às suas funções que permitem o aparecimento do espírito e da autoconsciência – não se esqueça que o cérebro com os seus cem mil milhões de neurónios e um número incalculável de sinapses é a estrutura biológica mais complexa que conhecemos. O espírito sobreviverá à sua explicação biológico-neuronal, como a rosa continua a enfeitiçar-nos com o seu perfume, depois de analisada a sua estrutura molecular.


A questão da consciência continuará a fascinar-nos, apesar de todos os avanços da neurobiologia. A razão está em que o corpo e o cérebro são objectivamente acessíveis. A consciência, porém, é íntima e ineliminavelmente subjectiva: é sempre cada um, cada uma, a viver-se a si mesmo, a si mesma, subjectivamente, de modo único e intransferível, sendo dada, portanto, na experiência pessoal. Demos um exemplo, apesar de tudo, menos exigente: um neurocientista que tivesse todos os conhecimentos sobre os mecanismos com que o cérebro processa a impressão da cor azul, sem a sua vivência real consciente, não saberia o que é o azul. O problema permanecerá: como é que processos  eléctricos e físico-químicos originam a experiência subjectiva.  Há uma correlação entre o cérebro e a consciência, mas como é que a experiência de si na primeira pessoa surge de processos e factos da ordem da terceira pessoa?


Mediante as novas técnicas, percepcionamos a base neurobiológica do pensamento. Significa isso que temos desse modo acesso ao conteúdo do pensamento? Reflectindo sobre esta problemática, o número de Julho-Agosto de “Philosophie Magazine” pergunta: “Observamos no cérebro correntes eléctricas, fenómenos de activação, mas algum dia veremos nele o próprio pensamento?” Onde está a liberdade no cérebro? Onde estão a autoconsciência e o eu no cérebro?  


Como sublinhou o célebre historiador Jean Delumeau, há realmente hoje correntes reducionistas, no sentido neuronal ou como se o Homem não passasse de um “mosaico de genes”. Mas não se esquece então que é o Homem que faz a ciência e lhe dá sentido? “Se o universo é o fruto do acaso, se o Homem não foi querido por um Ser que transcende a História, se a nossa liberdade é ilusória, nada tem sentido e, segundo a fórmula trágica de Léon-Paul Fargue, ‘a vida é o cabaret do nada’”. E continua: se, como pergunta Jean-François Lambert, o Homem é da mesma natureza que os outros seres, donde lhe vem o seu valor e dignidade? Onde se fundamentam os direitos humanos? Se se não é bom ou mau, “mas apenas  bem ou mal programado”, ainda se poderá falar de liberdade e responsabilidade?


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 10 de agosto de 2024

O QUE É O HOMEM?

  


Pela primeira vez na História a humanidade é hoje compelida a sair da lógica da guerra e do depauperamento incondicionado do ambiente. Parece que pode começar uma inversão da tendência com a assunção da consciência de que desta maneira não se pode seguir por diante, sob pena de destruir a humanidade a provocar a desolação do planeta.


Se nas últimas décadas constatámos de uma forma crescente que se estão a dar grandes passos rumo à barbárie, parece emergir agora uma reação que ainda não é a «insurreição das consciências» invocada por Pierre Rabhi, mas é a reiteração, de novo, da necessidade urgente de humanização.


São significativos, a propósito, os títulos de alguns ensaios filosóficos e sociológicos que apelam à humanização da modernidade, da política, da sociedade…. Perante as crises globais que se abateram sobre nós, como a pandemia, as crises económicas, as guerras nas fronteiras da Europa e do Mediterrâneo (portanto junto á nossa casa e, na realidade, guerras que também nós estamos a combater ao fornecer armas aos beligerantes), como afirmar um humanismo que seja um objetivo almejado com convicção pelas várias humanidades que fazem parte de um tecido da vida, da comunidade global?


É por isso que a pergunta séria e urgente que devemos colocar-nos não é sobre Deus mas sobre o mundo humano: «O que é o humano?». Pergunta na verdade antiga, que significativamente reencontramos no início e no fim do Saltério hebraico: «O que é o Homem?».


Devemos refazer-nos estas perguntas sobretudo hoje, porque o humano está esmagado entre o inumano e o pós-humano.


Conhecemos bem o inumano como possibilidade de depredação e negação do próprio humano: quando o ser humano é reduzido a “res”, coisa, quanto é humilhado e reduzido ao nada, distorcido pelo ódio e pela violência dos massacres e dos genocídios, desconhecido nos migrantes que apenas invocam compaixão, o inumano reina e nega o rosto à pessoa, nega a sua vida.


E é sempre permanente a necessidade de discernir o desumano também na nossa vida quotidiana, nas relações pessoais entre familiares e conviventes, nas situações onde falta a palavra apropriada, o respeito que sabe reconhecer o outro, a mansidão que pode assegurar a paciência recíproca. Bernanos escrevia: «A barbárie aninha-se nas fronteiras das nações como nas casas mais humildes».


E todavia hoje o humano está também desconfiado do pós-humano, ou seja, esse novo estádio evolutivo da humanidade no qual o cruzamento entre biologia e tecnologia está cada mais omnipresente. Deveremos alimentar muita inquietação perante estas novas oportunidades que poderão chegar a negar o corpo para o substituir com estruturas artificiais munidas de elementos de inteligência humana. Ao “homo sapiens” sucederá a “macchina sapiens”? E não será este talvez um delírio de omnipotência que deseja ser capaz de transumanismo até chegar a negar a mortalidade?


Pessoalmente nutro uma tal confiança na humanidade que não acredito que seja possível essa deriva e continuo convicto de que mais uma vez o “homo sapiens” saberá responder de maneira vital à pergunta que só ele sabe colocar-se: o que é o Homem? Porque há na humanidade um selo que pode ser pisado e negado, mas que é indestrutível e jaz como indestrutível na sua profundidade: a fraternidade. Ela tem a força de emergir assim como a terra, depois da água, do fogo, do vento, deixa despontar a erva e retomar a vida.


Enzo Bianchi
Trad.: Rui Jorge Martins

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


170. DO AMOR E ÓDIO À HUMANIDADE


A destruição do nosso planeta por um holocausto nuclear estará inscrita na História da Humanidade? Hiroshima e Nagasaki foram apenas um “erro” que não voltará a repetir-se? O Holocausto foi um simples “erro” irrepetível? A guerra, como realidade histórica que tem acompanhado o ser humano na sua trajetória terrena, é irredutivelmente eterna? A presença do Homem na Terra é só destruição?     


É uma visão cruel da presença humana na Terra, que trouxe (e trará) destruição à natureza e aos humanos. Só que, olhando para a natureza, compreendemos que ela também é cruel, o que não legitima que defendamos que o mal humano é mais digerível quando o transformarmos num mal natural.     


Não foi a presença humana, em si e só por si, que trouxe destruição à natureza e à espécie humana, por muitos exemplos que haja da sua crueldade. Apesar do seu quinhão de destruição, evitável, em parte, o saldo é e continua positivo, através de um enriquecimento substancial do mundo em que habitamos. A não se entender assim, é legítimo concluir que há quem seja portador de um pessimismo intrínseco que prefere um mundo desumano e com ódio à humanidade. 


Tomando como referência a tese geral de que a presença humana na Terra é destrutiva, há quem a torne extensiva ao colonialismo (racismo e não só), que com a escravatura, por exemplo, destruiu a natureza do humano e da cultura nas comunidades locais colonizadas.


Trata-se, por um lado, de uma avaliação e generalização simplista, dado saber-se que quando os europeus chegaram o tráfico de escravos já era conhecido. É consensual que os africanos já se escravizavam entre si antes dos portugueses chegarem a África. Pode falar-se de uma questão de grandeza, uma vez que os europeus da época praticaram a escravatura (já existente) numa escala maior. O que também pode levar, por outro lado, a um incitamento ao ressentimento e à violência, começando por um certo ódio tribalizado que se pode universalizar, apesar de, à nascença, segundo Rousseau, sermos todos bons selvagens.   


E é muito pouco consensual (no mínimo) a teoria crítica da raça, segundo a qual como só os brancos tinham poder, apenas os brancos poderiam ser racistas. Os negros, não, ou, se o fossem, eram-no apenas porque tinham “interiorizado a branquitude”, tida como contagiosa para desculpabilizar os que não comungavam as novas ideias e teorias raciais. E os da Ásia e das Américas?   


Não se pretende “branquear” a colonização, escravatura e racismo, porque condenáveis na sua desumanidade, repugnância e ódio à humanidade. Mas é incompreensível só aceitar visões maximamente supremacistas, de vencedores ou vencidos, que muitas vezes apenas sobrevivem por ressabiamento e pelo odioso ao que é humano, não as contextualizando, escrutinando e confrontando nos seus prós e contras. É um discurso negativo, revanchista, vingativo, ressentido, megalómano, perigoso e vil. Há que não estimular ideologias de incitamento ao ódio, antes sim as de união e reconciliação. A lista de coisas boas é extensa e gratificante: avanços médicos, científicos, tecnológicos e as artes em geral de que o mundo beneficia. E que o nosso amor à humanidade sedimenta e amplia.


12.04.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

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168. INTRÍNSECA E ESTRUTURALMENTE IMPERFEITOS

O ser humano nasceu imperfeito, é imperfeito e será sempre imperfeito.
A democracia surgiu imperfeita, é imperfeita e será sempre imperfeita.
A liberdade germinou imperfeita, é imperfeita e será sempre imperfeita.
Pela sua própria natureza o ser humano é imperfeito, finito e limitado perante o infinito, dado o seu desconhecimento de valores e princípios intemporais e universais, numa vivência que se move entre o que é tido por real e o ideal, rumo a uma “perfeição” imperfeita e perfectível.
Também fala de imperfeição a famosa frase de Churchill segundo a qual: “A democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as outras já experimentadas ao longo da História”. Uma espécie de mal menor ou menos mau.
Também a liberdade individual de cada um não pode ser usada para negar a liberdade dos outros, sendo uma miragem na sua maravilhosa imperfeição.
Aspirar a um ser humano perfeito, num ser que é intrínseca e estruturalmente imperfeito, é um contrassenso. O mesmo quanto à liberdade e à democracia como ideais jamais alcançados e alcançáveis na sua plenitude.
A ideia de uma crescente e permanente perfeição num mundo em que não somos a medida de todas as coisas, é um absurdo, embora todos lutemos por progressos manifestamente exequíveis e melhoráveis.
Um futuro seguro e justo para todos não passa por objetivos e fins inconciliáveis com a natureza, pois a realidade é o que é e não o que gostaríamos que fosse.

 

29.03.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


149. INTERDEPENDÊNCIAS DAS VÁRIAS VERTENTES DO CONHECIMENTO


Sobressai a ideia de haver uma interação virtuosa de todas as vertentes do conhecimento, baseada num novo paradigma científico, que inclui tanto as ditas “ciências duras” (aplicadas ou exatas), como as chamadas “ciências puras” (ciências humanas e sociais), por oposição à ideia segundo a qual as artes, humanidades e ciências sociais são subsídio-dependentes, enviesadas de subjetividade e, em última análise, “inúteis”.    

Contrariando uma versão restrita e simplista, que tem o cerne da “funcionalidade” e “utilidade” de todas as ciências no ganho económico imediato e a curto prazo no mercado, tem-se vindo a alargar a valorização da criatividade e da intuição no núcleo duro do pensamento científico, como elementos essenciais de inovação, em que, por exemplo, recentes progressos da neurociência demonstram que as circunvalações cerebrais ligadas à perceção auditiva não são estáveis, reconfigurando-se caso a caso pelos vários padrões que condicionam essa experiência, em que o hardware cerebral é, impreterivelmente, reformatado pelo software da experiência artística, havendo uma interdependência dinâmica da ciência e da cultura.

Retornando às neurociências e à distribuição dos processos cognitivos entre os dois hemisférios cerebrais, conclui-se que o pensamento linear, a sequenciação lógica, a formulação de modelos simétricos e a aquisição e gestão sistemáticas de informação estão no hemisfério esquerdo, enquanto a criatividade, a descoberta, a invenção, a surpresa e a associação instintiva se localizam no hemisfério direito, provando a interpenetração entre ambos os hemisférios e, concomitantemente, entre as ciências aplicadas e “duras” e as humanas e sociais, sendo erróneo maximizar as funções cerebrais do lado esquerdo face às do lado direito.

A própria lei da oferta e da procura e o valor de mercado de cada novo produto não depende apenas da sua estrita funcionalidade e utilidade, mas também de um conjunto de fatores relacionados com a criatividade, mais-valia e valor acrescentado gerados por várias dimensões contextuais e simbólicas, como a história, os costumes e a tradição renovados, a estética, a empatia, o design, o cromatismo, o jogo, a mensagem, o significado.  

Nas sociedades mais desenvolvidas e inovadoras, é cada vez mais notório que não há ciências “duras” sem Ciências “puras”, havendo uma permanente interação entre ambas, não havendo indústrias culturais dinâmicas sem anterior experimentação estética de topo, patentes comerciais sem prévia investigação que as viabilize. 

Muitos, se não mesmo a maioria, dos mais prestigiados protagonistas do mundo da ciência e da tecnologia caraterizam-se por terem tido, em paralelo com a sua atividade e saber estritamente científico, uma grande curiosidade, estima e dedicação pela criação artística e literária, pelas humanidades e artes em geral, incluindo o social, desde Leonardo de Vinci, Copérnico, Galileu, Kepler, Morse, Einstein (entre nós, por exemplo, Pedro Nunes e Damião de Góis, alargando e modificando o conhecimento, com o espírito e consequências científicas dos descobrimentos), tendo-se o pensamento criativo e crítico como transversal a toda a ciência e cultura.

“Um homem apenas médico, não é médico”, eis uma afirmação do médico, professor e investigador Abel Salazar, que sintetiza bem a interação das diversas facetas do conhecimento.


08.09.23
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

OS PÉS QUE TRANSPORTAM GENTE À HUMANIDADE

  

 

A crise humanitária que só em 2015 levou a que mais de um milhão de pessoas atravessassem o Mediterrâneo em parcas embarcações, permanece ativa por muitos meios, e com muitos milhares de seres a pagarem com a vida a tentativa de chegarem à Europa ou aos EUA.

São êxodos desesperadíssimos estes que também suportam os terríveis encargos que os traficantes de seres humanos cobram por mortes quase certas, ou por servidão torturada enquanto sobrevivida.

E são encargos que também correspondem a dinheiro, verbas dificílimas de obter nas terras de miséria absoluta que agora tentam abandonar, e quantas vezes, deixando por lá as suas amadas e para sempre condenadas famílias.

Os sobreviventes (quantos?) ajoelhados às fronteiras dos países da sua esperança, por ali ficam, em carne viva, de alma desolada, destruída, por não terem conseguido entrar lá onde a vida se faria antes que o sangue lhes secasse nas veias.

Todavia, raramente se os escuta no lamento da decisão tomada e inerente à tão temerária viagem para a Europa ou EUA.

Tudo é preferível ao que lhes era imposto nos países de origem. E o tudo, mesmo que a um preço cruel, é preferível do que ficarem onde estavam, ou tomarem a decisão de se dirigirem a outros países onde a liberdade e o respeito pelos direitos humanos não existem de todo.

Na verdade, diga-se, são hercúleas as desigualdades nos níveis de vida entre as várias regiões do mundo, implicando outras desigualdades fundamentais a nível dos direitos da educação, da alimentação, da saúde, das liberdades em geral, da esperança de vida com a mínima qualidade.

Contudo, registe-se que as persistências das guerras em todo o mundo, geram sempre disparidades tremendas, horrores inenarráveis, inverdades que tornam desconcertantes as explicações das razões das diferenças entre os países mais ricos e os mais pobres.

Na verdade, a decisão de arriscar a vida apenas por um espaço de tempo em que pelo menos a esperança seja vida, ganha algum avanço à desgraça: eis o espírito esperante.

Contudo, em países em vias de desenvolvimento, em que se tentou que o aumento do progresso tecnológico expandisse o crescimento económico, a desigualdade entre as nações persistiu de tal modo que, bem se pode considerar, uma ausência total da análise das causas intrínsecas da pobreza, sobretudo das que que criam barreiras que contribuem para um desenvolvimento profundamente desigual no nosso planeta.

De reter, nomeadamente os impactos assimétricos da globalização e da colonização nos últimos dois séculos.

De reter, nomeadamente o ritmo da própria industrialização em países desenvolvidos e em desenvolvimento que, aliás, agora também precipitou um aquecimento do planeta que ameaça a vida, questiona a ética e a sustentabilidade da jornada.

De reter, as dramáticas atrocidades de todos os totalitarismos que bloqueiam a evolução do espírito da espécie humana.

Mas, se todos sabemos que a riqueza se continua a distribuir de forma tremendamente desigual, e até por fatores históricos e geográficos, também todos sabemos que as lancinantes crises humanitárias estão repletas de pormenores terríficos não isentos da nossa responsabilidade, certo é que as mortes das gentes do esperante, nos mares-e-estradas-cemitérios, só se detém, se acaso se não ignorar as correntes poderosas e minadas que correm dissimuladas por baixo dos pés que nos transportam enquanto gente a esta humanidade.


Teresa Bracinha Vieira

PENSAR SOBRE A ACTUALIDADE

  


Pensar é essencial e talvez seja o que mais falta. Pensar vem do latim pensare, que significa pesar razões, mas é de pensare que vem também o penso sanitário, pois pensar cura. Ficam aí alguns temas da actualidade para pensar e agir.


1. Segundo as Nações Unidas, pela primeira vez na história somos 8.000.000.000. Impressiona o ritmo de crescimento da população no mundo. Os Homo sapiens sapiens, e, como acrescento sempre, ao mesmo tempo demens demens, uma espécie muito recente, poderia, segundo José Arregi, somar, há uns 12.000 anos, antes da revolução neolítica, à volta de 1 milhão; há 2.000 anos, no tempo de Jesus, eram uns 200 milhões; no ano 1800, ascendiam a uns 1.000 milhões; mas, passados 100 anos, chegavam quase a 2.000 milhões; e no ano 2000 éramos 6.000 milhões, para, vinte anos depois, sermos 8.000 milhões.


Esta situação obriga evidentemente a pensar. Estão aí problemas gigantescos e é urgente reflectir sobre as questões que se colocam, desde a alimentação para todos e a ecologia, ao futuro da humanidade, e isso implica pensar concretamente numa governança global… 


Por outro lado, habituados aos grandes números, não podemos de modo nenhum esquecer o que parece absolutamente banal, mas que é decisivo: 8.000.000.000 resuta da soma de 1+1+1+1+1+1+1+1…, um mais um, mais um, mais uma, mais uma, mais uma, mais um…, e cada um e cada uma é ele, ela, de modo único, irrepetível, com os seus sonhos, as suas aspiraçãoes, os seus dramas, os seus êxitos, a sua intimidade, os seus amigos e admiradores, os seus adversários e inimigos, os seus amores, os seus filhos, as  as suas tragédias, a sua solidão mortal, as suas interrogações sem resposta, as suas doenças, as suas angústias diante do fim…


Quando me surgem na televisão aquelas imagens terríficas de pessoas massacradas naquela hedionda guerra da Ucrânia, penso: esta era uma criança que tinha nome e família e um futuro à espera; este era um idoso que ainda esperava; esta era uma mãe que deixou filhos na orfandade; este era um pai que transportava mundos com ele…


No Catar, onde há pena de morte e a violação dos direitos humanos é constante, na construção dos estádios e outras infraestruturas terão morrido 6500 trabalhadores migrantes… Por trás deste número assustador, estão rostos, nomes, famílias, sonhos. A propósito, o que terá movido as três mais altas figuras do  Estado a quererem ir ao Mundial?


Temos de ter presente permanentemente a humanidade inteira, mas sabendo que, no final, o que há é sempre este, aquele, esta, aquela… Um a um. E o amor começa pelo mais próximo/próxima…


2. O censo 2021
. Henrique Monteiro foi cortante: Portugl: “Velho, Pobre, Doente. Não há resumo mais resumido do último censo.” É catastrófico: 182 velhos para 100 jovens; há mais de um milhão de pessoas a viver sozinhas; há mais divorciados do que viúvos; há urgências com longas horas à espera…


As perguntas acumulam-se. Por exemplo: que políticas existiram de apoio à família e à natalidade?


Há muito tempo que, quando faço um baptismo, vou avisando: se for possível, façam um seguro para este menino, para esta menina… Vamos precisar de trabalhadores migrantes, mas não podem ter uma vida escravizada. Têm de ser recebidos com dignidade, receber salários justos e com os devidos descontos… até para garantia da segurança social futura. Ah!, e uma economia fracassada…


3
. No ano 2000, a ONU designou o dia 25 de Novembro como Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher. António Guterres, pensando neste 25 de Novembro, clamou: “Levantemos a voz com firmeza para defender os direitos das mulheres.” De facto, desgraçadamente — socorro-me de Consuelo Vélez —, “a cada 11 minutos morre uma mulher ou uma menina às mãos do companheiro íntimo ou algum membro da sua família, ainda há 37 Estados nos quais não se julga os violadores se estiverem casados ou se casarem depois com a vítima e 49 Estados nos quais não existe legislação que proteja as mulheres da violência doméstica”. Note-se que em Portugal, neste ano, já vamos em 28 mulheres mortas.


A barbaridade da mutilação genital feminina continua. Mas a violência não é apenas física, ela abarca a violência sexual, psicológica, moral, educacional, casamento de menores… As religiões também têm culpas. Pergunta-se, por exemplo: para quando o fim da discriminação das mulheres na Igreja?


4
. A propósito de 25 de Novembro e a libertação das mulheres, deve vir à memória também o nosso 25 de Novembro de 1975. Foi com ele e os seus heróis que finalmente se assegurou em Portugal a democracia pluralista. Considerando o contexto da época, foi um acontecimento de importância mundial. Espero, exijo, que as celebrações do cinquentenário do 25 de Abril sejam do 25 de Abril e do 25 de Novembro.


5
. Tempo do Advento. No passado Domingo, começou o tempo do Advento. Advento vem do latim e significa vinda, chegada: chegada, vinda de Deus. É tempo de preparação para o Natal — gostaria de saber quantos portugueses, sobretudo entre os mais jovens, sabem que o Natal se refere ao nascimento de Jesus, acontecimeto decisivo para a Humanidade, pois foi através do cristianismo que se soube da dignidade inviolável da pessoa humana e dos seus direitos.


Em tempos em que se vive sedados com o hedonismo, a alienação, o consumismo voraz, a pós-verdade…, o Advento deveria ser uma oportunidade para parar e ir ao encontro do interior, do essencial, da busca do sentido da vida…

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 3 de dezembro de 2022

DEUS E OS VENCIDOS

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A razão iluminista tinha como desígnio a reconciliação e emancipação plena do Homem. Mas, de facto, sem esquecer evidentemente conquistas irrecusáveis, como, por exemplo, as Declarações dos direitos humanos nas suas várias gerações, deparamos com duas guerras mundiais e as suas muitas dezenas de milhões de mortos, o comunismo mundial e também os seus milhões e milhões de vítimas, deparamos com Auschwitz e o Goulag, o fosso cada vez mais fundo entre a riqueza e a miséria, a Natureza ferida, a desorientação e o vazio de sentido...

E, desgraçadamente, sabemos que o número das vítimas não cessará de aumentar, de tal modo que frequentemente a História nos aparece, como temia Walter Benjamin, à maneira de um montão de ruínas que não deixa de crescer. Mas, mesmo que fosse possível realizar no futuro uma sociedade totalmente emancipada e reconciliada, nem assim, desde que iluminada pela memória, a razão poderia dar-se por satisfeita, pois continuariam a ouvir-se os gritos das vítimas inocentes, cujos direitos estão pendentes, pois não prescrevem.

O teólogo Johann Baptist Metz não se cansou de repetir, com razão, que só conhecia uma categoria universal por excelência: a memoria passionis, isto é, a memória do sofrimento. Se a História não há-de ser pura e simplesmente a história dos vencedores, se a esperança tem de incluir a todos, quem dará razão aos vencidos?

A autoridade do sofrimento dos humilhados, dos destroçados, de todos aqueles e aquelas a quem foi negada qualquer possibilidade é ineliminável. Trata-se de uma autoridade que nada nem ninguém pode apagar, a não ser que o sofrimento não passe de uma função ou preço a pagar para o triunfo de uma totalidade impessoal. Mas precisamente o sofrimento, que é sempre o meu sofrimento, o teu sofrimento, como a morte é sempre a minha morte, a tua morte, é que nos individualiza, dando-nos a consciência de sermos únicos, de tal modo que nenhum ser humano pode ser dissolvido ou subsumido numa totalidade anónima, seja ela a espécie, a história, uma classe, o Estado, a evolução... O sofrimento revela o outro na sua alteridade, que nos interpela sem limites.

Assim, se as vítimas têm razão - a razão dos vencidos, como escreveu o filósofo Reyes Mate -, com direitos vigentes que devem ser reconhecidos, não se poderá deixar de colocar a questão de Deus, um Deus que as recorde uma a uma, pelo nome, chamando-as à  plenitude da Sua vida. "Essa é a pergunta da filosofia", dizia Max Horkheimer, da Escola Crítica de Frankfurt. Mas é claro que para essa pergunta só a fé e a teologia têm resposta. Ele próprio o reconheceu, ansiando pelo “totalmente Outro”.

Se a História do mundo tem uma orientação, ela só pode ser a liberdade. Ser Homem, ser livre e ser digno identificam-se. Com razão, I. Kant não se cansou de repetir que o respeito que devo aos outros ou que os outros podem exigir de mim é o reconhecimento de uma dignidade, isto é, de um valor que não tem preço. O que tem preço pode ser trocado: é meio. O Homem não tem preço, mas dignidade, porque é fim em si mesmo.

Quando nos interrogamos sobre o fundamento da dignidade do Homem, encontramo-lo no seu ser pessoa. Pela liberdade, a pessoa está aberta ao Infinito. Se se reflectir até à raiz, concluir-se-á que o fundamento último dos direitos humanos é nesse estar referido estrutural do Homem ao Infinito que reside: nessa relação constitutiva à questão do Infinito, à questão de Deus precisamente enquanto questão (independentemente da resposta, positiva ou negativa, que se lhe dê), o Homem aparece como fim e já não como simples meio.

O Homem é senhor de si, autopossui-se, e é capaz de entregar-se generosamente a si próprio a alguém e por alguém. A Humanidade faz a experiência de si como história de libertação para mais humanidade, portanto, para mais liberdade. O Homem indigna-se desde o mais profundo de si contra a indignidade, revolta-se contra toda a violação arbitrária e impune da justiça e do direito, e é capaz de dar a vida pela dignidade da humanidade em si próprio e nos outros seres humanos.

Houve muitos homens e mulheres que, ao longo da História, livremente, morreram por essa dignidade. Mas mesmo que tivesse havido apenas um a fazê-lo, seria inevitável perguntar: o que é isso que vale mais do que a vida física?

Precisamente aqui, nesta experiência-limite, deparamos com o intolerável: como é que pode ser moralmente admissível que quem é sumamente digno, pois se entrega até ao sacrifício de si pela dignidade, morra, desapareça e apodreça, vencido para sempre? Por isso, neste acto de suma dignidade, encontramos um dos lugares em que a questão de Deus enquanto questão é irrenunciável e irrecusável.

A experiência do Deus bíblico surge essencialmente da experiência do intolerável de as vítimas inocentes serem entregues para sempre à injustiça. O Deus bíblico é definitivamente um Deus moral: é o Deus que não esquece os vencidos.

Por isso, a História não é um continuum, onde a razão estaria permanentemente do lado dos vencedores. A História está aberta ao salto último da meta-história, à Palavra definitiva que só Deus pode pronunciar, Palavra que ressuscita os mortos e reconhece para sempre às vítimas os seus direitos. Sem esse reconhecimento definitivo da dignidade de todos, bem e mal, justiça e injustiça, honra e cinismo, verdade e mentira, dignidade e indignidade, tudo é igual, pois, como escreveu Bernhard Welte, tudo seria para nada, já que irá ser engolido pelo nada para sempre.

 

 Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 12 de fevereiro de 2022

O PAPA FRANCISCO EM TEMPO NATALÍCIO

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Apesar dos seus 85 anos, Francisco continua atento aos problemas da Humanidade e incansável na sua missão. Mostrou-o de modo exemplar neste tempo natalício. Ficam aí apontamentos, extractos de mensagens, chamadas de atenção...

 

1. Lembrou: "O nascimento de Jesus é um acontecimento universal que afecta todos homens." "Para chegar a Belém é preciso pôr-se a caminho, correr riscos, perguntar e até enganar-se." "Hoje, quereria levar a Belém os pobres e também aqueles que julgam não ter Deus, para que possam compreender que só n'Ele se realizam os nossos desejos e se chega a ser profundamente humano". "Os Magos representam também os ricos e os poderosos, mas só aqueles que não são escravos da posse, que não estão "possuídos" pelas coisas que julgam possuir."

 

2. Migrantes e refugiados. "A família de Nazaré experimentou na primeira pessoa a precariedade, o medo e a dor de ter de abandonar a sua terra natal.

"São José, tu que experimentaste o sofrimento dos que têm de fugir para salvar a vida dos seus entes mais queridos, protege todos os que fogem por causa da guerra, do ódio, da fome. A História está cheia de personalidades que, vivendo à mercê dos seus medos, procuram vencê-los exercendo o poder de modo despótico e realizando actos de violência desumanos."

 

3. Dia Mundial da Paz. "Se nos convertermos em artesãos da fraternidade, poderemos tecer os fios de um mundo lacerado por guerras e violências." "Não serve de nada ir-se abaixo e queixar-se, precisamos de arregaçar as mangas para construir a paz". Aqui, é essencial recordar que no Natal "Deus não veio com o poder de quem quer ser temido, mas com a fragilidade de quem pede para ser amado."

 

4. Natal é tempo de família. Assim, escreveu uma carta aos casais de todo o mundo. Alguns extractos: "Que estar juntos não seja uma penitência, mas um refúgio no meio das tempestades." "As famílias têm o desafio de estabelecer pontes entre as gerações para a transmissão dos valores que conformam a humanidade. É necessária uma nova criatividade para, frente aos desafios actuais, configurar os valores que nos constituem como povo nas nossas sociedades e na Igreja, Povo de Deus." "É importante que, juntos, mantenhais o olhar fixo em Jesus. Só assim encontrareis a paz, superareis os conflitos e encontrareis soluções para muitos dos vossos problemas. Estes não vão desaparecer, mas podereis vê-los a partir de outra perspectiva." "Que o cansaço não ganhe, que a força do amor vos anime para olhar mais para o outro - o cônjuge, os filhos - do que para o próprio cansaço." "Muitos viveram inclusivamente a ruptura do casamento que vinha sofrendo uma crise que não se soube ou não se pôde superar. Também a estas pessoas quero exprimir a minha proximidade e o meu afecto," "A ruptura de uma relação conjugal gera muito sofrimento devido ao afundamento de tantas expectativas; a falta de entendimento provoca discussões e feridas não fáceis de reparar. Também não é possível poupar os filhos ao sofrimento de ver que os pais já não estão juntos. Mesmo assim, não deixeis de procurar ajuda para que os conflitos possam de algum modo ser superados e não causem ainda mais dor a vós e aos filhos." "Se antes da pandemia era difícil para os noivos projectar um futuro, quando era complicado encontrar um trabalho estável, agora a situação de incerteza laboral aumenta ainda mais." "A família não pode prescindir dos avós. Eles são a memória viva da humanidade, e esta memória pode ajudar a construir um mundo mais humano, mais acolhedor."

No Dia da Sagrada Família, voltou ao tema. Para denunciar "a violência física e moral que quebra a harmonia e mata a família". Para pedir: "Passemos do 'eu' ao 'tu'. E, por favor, rezai todos os dias um pouco juntos, para pedir a Deus o dom da paz. E comprometamo-nos todos - pais, filhos, Igreja, sociedade civil - a apoiar, defender e proteger a família." "É perigoso quando, em vez de nos preocuparmos com os outros, nos centramos nas nossas próprias necessidades; quando, em vez de falar, nos isolamos com os nossos telefones móveis; quando nos acusamos uns aos outros, repetindo sempre as mesmas frases, querendo cada um ter razão e no fim há um silêncio frio." "Talvez não tenhamos nascido numa família excepcional e sem problemas, mas é a nossa história, são as nossas raízes: se as cortarmos, a vida seca." "Jesus é também filho de uma história familiar, inserido na rede de afectos familiares, nascendo e crescendo no abraço e com a preocupação dos seus." E "até na Sagrada Família nem tudo corre bem: há problemas inesperados, angústia, sofrimento." Contra o inverno demográfico: "Alguns perderam a vontade de ter filhos ou só querem um. Pensem nisto: é uma tragédia. É um problema demográfico: façamos todo o possível para vencer este inverno demográfico, que vai contra a nossa pátria e o nosso futuro."

Neste contexto, condenou com vigor a violência contra as mulheres: "Basta. Ferir uma mulher é ultrajar a Deus."

 

5. Não esqueceu a Cúria: "A humildade é requisito" para o governo da Igreja. "Se o Evangelho proclama a justiça, nós devemos ser os primeiros a procurar viver com transparência, sem favoritismos nem grupos de influência." E a Igreja somos todos. "Todos!não é uma palavra que possa ser mal interpretada. O clericalismo faz-nos pensar sempre num Deus que fala só a alguns enquanto os outros só têm de escutar e executar."

A missão de Francisco é continuar a pôr fim a esta situação.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 8 de janeiro de 2022