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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Alice and the Cities e o percurso de uma descoberta, numa paisagem infinita. 


No filme Alice and the Cities (1974), de Wim Wenders assiste-se à vontade de regressar a uma plenitude que se perdeu e que se deseja recuperar. 


No livro Wim Wenders de Iñigo Marzabal lê-se que a estadia de Philip nos Estados Unidos, é impulsionada por um olhar nostálgico, por um olhar que sente falta, por um olhar que substitui e que já não consegue ver. 


No filme, a América representa o mito e o sonho que se vai desvanecendo. Os espaços por onde Philip vai passando anunciam instabilidade, permuta, transição, constante mudança, solidão. Antecipam partidas. São a negação do lugar, são vazios de sentido. Philip converte-se aos poucos num estranho para si mesmo e é a busca e a esperança de se encontrar de novo que ainda estimula o seu caminho. Philip deseja encontrar provas da sua existência. Por isso, tira polaroids sem parar.


As polaroids são bocados reais do mundo que está diante dos seus olhos. As polaroids provam que Philip está efetivamente ali, naquele lugar e não noutro. As polaroids contêm a verdade da sua experiência particular e são o resultado concreto da sua existência física. São as testemunhas mais diretas da sua viagem. São a captação de um momento original e irrepetível que jamais sucederá. São os documentos instantâneos que demonstram que Philip esteve ali, presenciou e foi testemunha de algo. As polaroids confirmam, revelam e possibilitam estender, prolongar e partilhar a sua viagem.


Mas a imagem imóvel das polaroids provocam uma frustrante inquietude em Philip, por nunca mostrarem exatamente o que se vê, por nunca superarem a realidade. As polaroids são cortes na sequência ininterrupta de uma paisagem. São fechamentos demasiado compreensíveis. São fragmentos de um infinito com autonomia espacial própria: “Un fragmento de lo infinito no supone sino el acto del recorte en estado puro, pues la materia celeste, por su irrelevancia composicional, se resiste a la formalización.” (Marzabal 1998, 84)


A realidade da viagem pela América nunca transmite o fundamento, a causa, o motivo da sua vida. O viajante, na verdade, procura por uma nova capacidade de ver. Como não consegue a sua existência torna-se uma eterna busca de si mesmo, um eterno girar em círculo. 


É Alice que vai transformar Philip e vai permitir revelar a sua subjetividade perdida. Alice passa a ser o seu guia, para ir ao encontro do princípio, do lugar que o faça sentir-se em casa e em entendimento com aquilo que o rodeia. Por esse motivo, o regresso à Alemanha significa, talvez a possibilidade de voltar ao acontecimento original, à coerência que não precisa de ser explicada, à prova real de que se está vivo. Significa, através de Alice, um resgate da capacidade de ver. 


Na Alemanha, os espaços por onde os dois vão passando também são igualmente impessoais, anónimos e vazios. Philip segue sentindo-se um estranho no seu próprio país. O que vai ser modificado não é o objeto do olhar, mas a forma que o próprio olhar adota. A viagem pela Alemanha é mais espontânea e imprevisível, mas concretiza uma importante busca e contrasta com os percursos preestabelecidos e premeditados da América. segundo Marzabal agora sim Philip tem um objetivo bem definido que é o de devolver Alice ao seu lugar, a sua casa. 


Quando se volta ao lugar de origem o confronto com a mudança é inevitável. A alteração do olhar construído fora, faz do lugar da memória um lugar também desconhecido e inóspito. Porém, Philip consegue voltar a entender o que é relevante, através da perspetiva amplificadora da Alice. É Alice e a sua infantilidade que colocam Philip diante dos problemas que mais interessam à sobrevivência. A espontânea vitalidade, a permanente vontade de brincar e a insaciável curiosidade de Alice permitem Philip confrontar-se com a sua própria existência e a sair de si mesmo. Alice consegue aos poucos libertar Philip das interrupções que perturbam o seu olhar, pois é ela que dá forma ao confronto direto, atento e desprendido sobre as coisas reais, sobre o espaço e sobre o tempo.  


Sendo assim, o filme de Wim Wenders capta o percurso de uma descoberta, numa paisagem infinita. O constante movimento de Philip fragmentado na América, finalmente se funde num lugar. A estranheza transforma-se em abertura inevitavelmente incompreensível. E é visão direta e libertadora de Alice sobre o real, que abre espaço para que Philip se redefina.

 

Ana Ruepp