Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
1. Agora, a seguir ao almoço e ao jantar, vou dar a minha volta junto ao mar, caminhando num passadiço de quilómetros na areia. Dali, contemplo o mar, sempre o mesmo e sempre novo, uma das mais belas imagens do infinito, e o Sol a incidir sobre ele ou a pôr-se (para onde irá ele?) e aquele esplendor de beleza em movimento que deslumbra (quem é que pinta lá no horizonte aquelas cores e figuras que nenhum pintor sabe pintar?). Encontro gente e medito e até organizo os textos que aqui publico e outros...
Mas, quando estava em Roma a estudar, a seguir ao almoço, ia à Basílica de São Pedro. Para parar e contemplar a Pietà de Miguel Ângelo. Está ali, e nunca se esgota, porque a beleza nunca acaba, pois é outro nome do divino, a compaixão toda do mundo. Não é em vão que se chama a Pietà, a Piedade. Naquela mãe, Maria, com o Filho Jesus morto nos braços, ele que foi vítima de um assassinato político-religioso, a gente vê a ternura toda, as lágrimas todas, de todos, e fica imóvel e mudo, enternecendo-se também, e é outro.
Veio-me à mente esse tempo, porque há dias a Pontifícia Academia para a Vida postou no Twitter uma fotomontagem da escultura de Miguel Ângelo com um Cristo negro no regaço de Maria. Choveram as reacções, contraditórias: uns elogiaram o gesto, numa mensagem forte contra o racismo; outros indignaram-se com a “blasfémia”: “O que querem com isto? Onde está o nosso Jesus?” Que não se deve tocar em Miguel Ângelo: não há um “Jesus negro” nem “um Jesus branco”, “Cristo é um só”.
Foi uma provocação? Foi. Mas não tocou em Miguel Ângelo nem na sua famosa escultura. Trata-se tão-só de uma provocação chamando a atenção de todos para que a vida de todos importa, evidentemente também a dos negros. Não sabem os cristãos que Jesus se identificou com todos, a começar pelos mais abandonados? “Destes-me de comer, de beber, de vestir, fostes visitar-me ao hospital e à cadeia...”. Maria, a mãe de Jesus, acolhe nos seus braços maternos todas as vítimas, como acolheu Jesus. E não há nenhum problema na associação com o movimento Black Lives Matter. Todas as vidas merecem respeito. Com esta imagem estamos, está-se a dizer que as vidas dos negros são importantes, como todas as outras vidas. Não foi através do cristianismo que veio ao mundo a ideia de pessoa e da dignidade infinita, porque divina, de todas as pessoas? E não foi com base no cristianismo que nasceu a consciência dos direitos humanos? Onde foram proclamados? Não foi em Pequim nem na Arábia Saudita.
Nós não temos nenhuma fotografia do Jesus histórico, real. Por isso, há muitas possibilidades de o imaginar. Esta fotomontagem é também uma forma de dizer que Jesus Cristo é o Salvador universal e, como Homem universal, tem muitos rostos. É absolutamente natural que em África o representem negro, na Ásia apareça com rosto asiático... O ser humano é sempre o resultado de uma herança genética e de uma cultura em história, e é preciso, como acentua o Papa Francisco, que o Evangelho se insira e encarne nas várias culturas.
2. Eu não sabia. Fiquei a saber por Júlio Machado Vaz que, em conexão com a luta contra o racismo, há também uma “campanha mundial contra a discriminação pela idade”. São quarenta as organizações de todo o mundo que lançaram a Old Lives Matter contra o idadismo. Foi também por Júlio Machado Vaz que soube que a Sociedade Francesa de Geriatria e Gerontologia veio sublinhar que afinal o idadismo é “a discriminação mais universal e aumentou durante a pandemia, sobretudo pela ausência de diálogo com os interessados e as suas famílias quanto às medidas tomadas, em particular no quadro das instituições. Acrescentam os investigadores que os mais velhos discriminados vivem, em média, menos sete a oito anos.”
A vida dos idosos — a campanha não teve receio em dizer dos velhos — também importa, vale, como todas as vidas. Por isso, quando observo o tratamento que lhes é dado, até porque vivemos numa sociedade economicista e do descarte, só posso estar em total acordo com Machado Vaz, quando, criticamente, num apelo dramático à solidariedade, ergue estas perguntas: “Estaremos condenados a olhar com angústia o tempo suplementar de que dispomos, oferecidos pela ciência e por estilos de vida mais saudáveis? Não apenas pelos achaques normais da idade, mas por força de uma sociedade que recusa a cidadania plena a gentes cujas rugas invadem a pele e por vezes, dramaticamente!, os neurónios, mas não o coração?”
3. É neste contexto das campanhas que gritam: “as vidas dos negros importam”, “as vidas dos idosos importam”, que é necessário e urgente levantar a questão, que esteve apenas suspensa (com medo de quê?, não era oportuno porquê?, quando é que é oportuno?), referente ao debate parlamentar na especialidade e votação das leis da eutanásia aprovadas em Fevereiro. Afinal, não importam as vidas de todos? Estou com Miguel Oliveira da Silva: eu também “gostava de saber, dos mais de 1970 doentes que morreram com covid-19, quantos pediram para serem eutanasiados ou falaram disso com os médicos.” All Lives Matter: todas as vidas são importantes, valem.
Que legitimidade tem o Parlamento, se os dois maiores Partidos não incluíram a eutanásia nas campanhas eleitorais? Poderá ter legitimidade legal, mas não tem legitimidade ética, moral. E seria uma vergonha se, num regime democrático, a Assembleia da República ousasse ignorar o pedido de referendo sobre a questão com 95.287 assinaturas.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 3 OUT 2020
Questionar o contexto demográfico que descreve o mundo atual, em particular definindo o envelhecimento da população é importante porque em grande parte explica o fenómeno das atitudes negativas em relação às pessoas mais velhas. Preconceitos e discriminação ferem as pessoas idosas atirando-as, nomeadamente, para o grupo dos sem grandes ou nenhumas capacidades, sendo que o “idadismo” não é compatível com a mudança social de um país como Portugal que tanto necessita de ver um futuro bem diferente.
Li que em 1969 o psicólogo americano Robert Butler procurava explicar o termo “idadismo” (ageism em inglês) quando procurava um esclarecimento às reações negativas de uma comunidade face à construção em determinada área das redondezas da mesma, de casas para pessoas idosas. Conclui Butler que não constituindo estas pessoas idosas qualquer motivo de provocação de medo ou de afrontas, somente a idade levantava questões à comunidade pois diminuía o valor imobiliário na zona e mesmo o charme da vizinhança.
Em rigor a Suécia e o Reino Unido têm feito um esforço no que se refere às práticas negativas contra alguém, baseadas na sua idade. O idadismo – envolve preconceitos e sentimentos que se têm em relação a um qualquer grupo etário- não descura as pessoas idosas e talvez por essa razão se chamarmos gerontismo, estejamos mais próximos da senilidade de espírito que se quer apontar, ainda que nem sempre presente na realidade, e, por essa razão, para a sua ausência, queremos alertar.
Tende-se a criar grupos de idosos com traços negativos baseados na incapacidade, na doença, no sentimento de desdém, e, até na piedade que empolga sentires desditosos face ao aspeto espelhado pelo enrugamento de pele ou pela curvatura de dorso, entre outros sinais de velhice como o longo olhar inquiridor e mesmo zangado de muitos idosos, que tanto indicam a pergunta da razão da injustiça que suportam sob o nosso consentimento. Existe uma ideia do que é feio na velhice e que conduz ao distanciamento, ao abuso e aos maus tratos, não necessariamente por via de agressões físicas, mas pelo abandono do idoso, reduzido ao mimo hipócrita de um comportamento cultural da visita aos lares, onde se depositam na maioria das vezes, espelhando sempre que um idoso tem local certo, possa o jovem familiar ter ou não disponibilidades de lhe retribuir em conforto tudo o que ele, uma vida inteira lhe proporcionou.
A discriminação em relação à idade do idoso é em Portugal um núcleo duro a vencer. Será de perguntar a todos os idosos se já foram maltratados devido à sua idade? se, já lhes foi questionado, quando não, subtilmente insinuado que assim sofrer é o normal face à idade? Creio que por medo de abandono total ou agravamento dos receios em relação a quem deles toma conta quando estão à mercê de desumanidades, poucos são os que diriam a verdade. Pois que aguardem a morte serenos, pois que assim cumprem o dever fundamental de entenderem os constrangimentos que impõem a quem deles por estes modos assumem a responsabilidade de os tratarem.
Não se pretende promover a incapacidade ou a dependência com bem-intencionados atos. Não se pretende que se não viva por ter um idoso em casa, mas que se compreenda o delinear de políticas adequadas que combatam a atitude de uma condenação à espera da morte e mergulhada em desamor: eis o que aguarda numa desilusão estilhaçada a nossa sociedade grisalha, aquela que poucos anos antes ainda aguardava que, esperança de vida, afinal, levasse a uma pertença de estatuto a respeitar.
A Europa é a região mais envelhecida do mundo. A redução do crescimento demográfico associado ao aumento de esperança de vida com profundos impactos económicos e também sociais, e não se descuidando imigrações e migrações, não deixa de nos impressionar, e, de acordo com o INE em 2007nos próximos 25 anos o número de pessoas com mais de 65 anos poderá duplicar o número de jovens.
Recordo que em 2006 a União Europeia iniciou uma discussão sobre os desafios a as oportunidades trazidas pela sociedade grisalha, mesmo no âmbito do trabalho e da interação dos saberes. Teve-se em conta também a proteção social e as finanças públicas. A ideia de que a dispensa dos trabalhadores mais velhos tem de ter lugar para que os mais novos ocupem posto, é só por si tao desprovida, que, a economia chamou a este pensamento, a falácia do pulmão, comparando com o ar que neles entra, saindo consequentemente o que lá estava, e assim de jeito reducionista, se expulsam as hipóteses das pessoas mais velhas serem portadoras transmissíveis de criação de riqueza, não obstante o ter presente os processos de envelhecimento e a diminuição de capacidades funcionais do organismo.
A esta temática voltarei, ou, na fila de uma farmácia, não tivesse escutado uma senhora de 70 anos, dirigindo-se à farmacêutica
Sabe a sensação que tenho com esta minha idade? É que sou tratada como se critica que os negros o são só por serem negros. Ninguém faz esforço para me entender, disparam a arma do julgamento só de me olharem os traços da idade. Isto não é uma sociedade inclusiva. Envelhecer assusta mais do que ter enfrentado a vida 70 anos. Poucos são os que atuam de modo diferente em termos individuais sequer, e, nem se dão conta de que muitos dos paternalismos magoam fundo com o cobertor de fibra que envolvem.Faz feridas entende?A interpretação de um idosoparece que é tão necessária como compreender diversas etnias.
É uma ideologia, pensei para mim. É também uma cultura que não é explicada às crianças garantindo uma comunicação normal entre todas as idades, e, que ameaçar é crime. Ameaçar com afastamentos, formas de abandono e desamor é crime, e, no futuro, todos nós assim acabamos a ser o seu alvo preferencial como garantia completa do termo da história.
O «écran-circo» distrai-se nas aparências sem essência. A sociedade grisalha entrou no mundo pela memória das máquinas, pelas barbáries simuladas de afetos. O horizonte do verbo foi-se desfocando com a passagem dos anos: resta perecer sob a dignidade possível.
As pessoas idosas têm uma ideia clara da desvalorização de que são alvo na sociedade em geral. As manifestações idadistas quanto muito toleram coexistências de saber, mas raramente intuem o quanto esse conhecimento é diálogo de aprendizagem. Ainda estão na fase da arrogância e do tudo dominarem sob muitos títulos, sendo que para esses também o símbolo de alguém curvado com uma bengala é rótulo de idoso extensível a um perfil codificado.
Bem basta que o corpo vivido se alterne em contrações e dilatações a nós estranhas: o próprio espírito olha-o com um despropósito entorpecido.
Paira sobre todos nós, envelhecer, com o perigo de muito, muito envelhecer, tanto que o destempo pode chegar com o estrangeiro que nos oferece um dormir lá onde e aonde se escondem as mensagens da nossa sedução, e, se inspira o cheiro das tílias que se entrançam para partir.
Digo: antes desse momento em serenidade desejado por todos, eis-nos ainda a tempo.
Que os jovens não cumpram o trabalho de termiteiras: esse é o maior amor que lhes podemos desejar, o único capaz de não lhes fazer sentir o seu futuro, precocemente amedrontado pela velhice!