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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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XXIX.  A busca de uma identidade: que cultura portuguesa? (2)

 

Como disse Sophia de Mello Breyner: «Me dói a lua me soluça o mar / E o exílio se inscreve em pleno tempo» (Livro Sexto, 1962). Como Unamuno bem pressentiu e Eduardo Lourenço interpretou, com rigor e perfeição, somos feitos de lirismo e de história trágico-marítima – sem esquecer o picaresco, que salienta António Tabucchi, no escárnio e maldizer. Encontramos desde a poesia trovadoresca à rica poesia contemporânea, passando por Camões, Sá de Miranda, Bocage, Garrett, Herculano, Antero de Quental, João de Deus, Cesário, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa, Almada Negreiros e todos mais… Portugal, como palavra, é uma eterna convergência da lembrança e do desejo, do amor e da provação, e a língua portuguesa, espalhada pelo mundo, plena de diferenças, foi-se construindo nessa pluralidade e nessa complementaridade… A língua portuguesa, temperada com mais açúcar ou mais especiarias, é o traço de união e de diferenciação. E se dúvidas houvesse João Guimarães Rosa leva-nos em busca da terceira margem, Baltazar Lopes da Silva introduz-nos nas diferenças e nos segredos dos crioulos, Mia Couto reinventa-nos em permanência, Pepetela, Agualusa, Ondjaki, Germano Almeida põem-nos em contacto com as grandes superfícies de terra e mar, Raduan Nassar interroga e confronta as raízes em «Lavoura Arcaica», Rubem Fonseca usa como matéria-prima o drama quotidiano… Já para Carlos Drummond de Andrade: “Adélia Prado é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo”. Quem a conhece considera-a desconcertante, plena de ironia, ousada, iconoclasta, seríssima no entendimento das coisas essenciais. Nela o comum e o banal encontram-se, a cada passo, com o transcendente.

 

Eduardo Lourenço é perentório: «Não temos nada que provar. O que tínhamos de provar ao mundo já provámos quando isso era uma novidade e constituía uma ação para a humanidade inteira. Temos sempre este complexo de ser uma pequena nação não tão visível como outras. Mas outras nações também não são visíveis». Não somos melhores ou piores, somos nós mesmos. «Não se sabe assim como é que há quase mil anos este país pequenino, aqui no canto da Europa, é ainda sujeito do seu próprio destino.». A História é uma batalha cultural. «A Europa define-se na sua relação com o que não é Europa. Só sabemos o que é Europa quando estamos fora da Europa. Na Europa temos uma experiência normal. É como a experiência de quem está em casa. Há até uma pluralidade de casas que, mais ou menos, têm afinidades entre elas. Isso é a Europa». Mas há ameaças e perigos, e até indiferença e acomodação. Falta a normalização connosco próprios. Perante tantos sinais de incerteza persiste uma miragem europeia. A Europa fechada definha, por isso, importa tirar lições, procurando caminhos que permitam encontrar a defesa de um núcleo essencial de interesses e valores comuns. Língua de várias culturas, cultura de várias línguas – eis um caleidoscópio incompatível com paternalismos. Prevalecem o pluralismo e a diversidade. Garrett, Antero e Cortesão aspiraram a um patriotismo prospetivo, em que o fundo português se afirma como exigência aberta e plural.

 

Pedro Mexia tem razão ao afirmar que, “a dignidade vale mais do que a identidade” (Expresso, 10.5.2024). Não que esta não seja importante, mas é a dignidade da pessoa humana que se torna pedra angular de qualquer entendimento identificador, até pela importância da compreensão de que urge distinguir para unir… “É importante que um entendimento acerca do humano seja tão ambicioso quanto judicioso. E que esteja atento às formas de desumanização, as novas e as antigas”.

Agostinho de Morais

 

 

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XXVIII.  A busca de uma identidade: que cultura portuguesa? (1)

 

De que falamos quando referimos a Cultura Portuguesa? De continuidades e de mudanças, de características singulares e de convergências, de identidades e diferenças, de desafios e respostas. Não basta um sobrevoo na cultura geral, que mais não significa do que um contacto superficial com a criação e a arte, esquecida da complexidade, do que avança e progride e do que estagna. António Manuel Machado Pires tem recordado a preocupação que Vitorino Nemésio tinha com os seus discípulos, no sentido de abrir as suas mentes, ligando e relacionando realidades aparentemente distintas: “E por ‘ligar as coisas’ deve entender-se ligar mesmo, não apenas somar conhecimentos: fazer relacionações entre conhecimentos convencionalmente arrumados em cadeiras diferentes, ligar uma romaria a uma feira, esta a um modelo de vida, este à evocação de um almocreve, este a Gil Vicente e por que não, a O Malhadinhas de Aquilino?”. A cultura pressupõe diálogo e confronto, entre quem vê e tenta compreender e quem pretende ver e entender, numa relação sempre complexa entre a vida humana e a natureza que a rodeia. Daí a metáfora da varanda para ver a Cultura, tantas vezes usada pelo próprio Nemésio – “Varanda de Pilatos”. Afinal, refletir sobre a cultura é fazê-la, construí-la, interpretá-la e torná-la viva. Lembre-se o picaresco e o dramático no caleidoscópio de Fernão Mendes Pinto: “não é só uma narração de experiências, percursos de paisagens exóticas ou encontros e desencontros de povos (Ocidente e Oriente), é a ironia da vida, a dor humana, pecado, entusiasmo e castigo, alegrias e lágrimas, voluntarismos e disponibilidades, uma grandiosa saga coletiva de um povo (nem sempre exemplar), mas provando a exemplar lição do tudo e nada da Vida”. Eis por que a ligação da Literatura, da Arte ou da Ciência são pontos de observação de eleição para avistar e compreender a Cultura como panorama, uma vez que temos o testemunho concreto, mais do que a mera ostentação de um saber ou de uma técnica. Assim, não compreenderemos, por exemplo, o século XIX português sem ler Camilo (“raptos, fugas e famílias desgraçadas”), Júlio Dinis (“a conciliação social”), Eça de Queiroz (a ironia como método, devendo ser levada muito a sério), Cesário (a contradição dos sentimentos), João de Deus (a lírica popular) ou Antero (a reflexão culta).

 

Nemésio e Machado Pires falavam de duas linhas de pensamento marcantes na reflexão sobre a cultura portuguesa, a idealista e a racionalista, representadas por Teixeira de Pascoaes e António Sérgio. Ambas deveriam de ser consideradas “para o balanço de ser português na vida, na cultura e no mundo”. Dando maior importância ora a uma ora a outra, o certo é que os dois polos têm de estar presentes na definição do português e do “ser de Portugal”. A vontade, o sentimento de pertença, “a estruturação da Cultura e a organização do Estado”, caminhando a par, como na análise de António José Saraiva, articulam-se com a construção de um imaginário. A experiência “madre de todas as cousas”, os conflitos entre a sociedade antiga e a sociedade moderna, a compreensão de um culto de sentimentos contraditórios, os mitos da origem, de resistência ou de predestinação, tudo nos permite tentar perceber quem somos, donde vimos e o que nos motiva e desafia. Mas temos de recusar as simplificações e a tentação de levar a História da Cultura para uma mera sucessão de factos ou acontecimentos. Temos de descobrir tendências, de suscitar criticamente diversas leituras, de comparar, de ver de dentro e de fora, de cruzar saberes e campos de pesquisa. Urge contrariar as simplificações, que se tornam caricaturais, não permitindo compreender uma realidade que é multifacetada. Ligue-se a vontade ao fundo céltico, confronte-se a fixação e o transporte, contraponha-se o erudito ao castiço, compreenda-se as diferenças e as complementaridades entre Camões, a custódia de Belém, o galo de Barcelos ou o fado. De facto, nossa cultura tanto é o “Auto da Lusitânia”, de Todo o Mundo e Ninguém, como o “Pranto de Maria Parda”, para só nos atermos a Mestre Gil. Para Machado Pires quando diz que a «Cultura não é um “somatório” heteróclito, indiferenciado, anódino e maçador, mas um caminho coerente para um fim demonstrável no seu todo, um rasgão na neblina de dúvidas e problemas, carreando um considerável conjunto de materiais para “forçar” a prova». O que deve estar em causa é a procura de caminhos explicativos, de linhas de reflexão, de sínteses e de paradoxos, em resposta ao enigma persistente e contraditório de uma sociedade que oscila entre o messianismo e a vontade, entre o mito e a racionalidade, entre a crítica e a sobrevivência, entre o presente e o futuro. A Cultura é “uma perspetiva convergente e unitária de vários ramos do saber”. E eis o paradoxo, “se o historiador busca a razão dos acontecimentos, culpa os homens; se procura os imperativos da Raça, culpa o Destino”. O pessimismo contrasta com o compromisso cívico. E assim, num momento em que, nos anos 90 do século XIX, a decadência se manifestava e o desastre parecia anunciar-se, com o Ultimato, a bancarrota, a dívida pública, a crise do regime, o desprestígio das instituições, a Geração que se evidenciara em 1871 não baixa os braços e revela o sentido positivo da atitude crítica, em vez do fatalismo.

(cont.)

 

Agostinho de Morais

 

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XVIII. Geração de Setenta – os últimos românticos


O sobressalto vindo da Europa, originado na revolta social e na Primavera dos Povos, de 1848, projeta-se em Portugal. Seria impossível, perante a abertura de fronteiras e a emergência do mundanismo, deixar de ter entre nós a repercussão do que ocorria na Europa. A revolta dos estudantes de Coimbra dos anos sessenta, a questão ideológica do Bom Senso e do Bom Gosto. O Romantismo dava lugar ao Naturalismo, apesar da forte reminiscência do idealismo da primeira geração liberal. Os jovens de Coimbra admiram Garrett e Herculano, mas recusam o ultra-romanismo e o elogio mútuo da escola de António Feliciano de Castilho. Antero de Quental era o centro carismático da revolta. E no dia em que Eça o encontrou na Sé Nova de Coimbra («numa noite macia de Abril ou Maio», sob um «Céu onde os escravos eram mais gloriosamente acolhidos que os doutores», e «Aonde o bom Deus se mete,/ Sem fazer caso dos santos/ A conversar com Garrett.») não mais deixou de o admirar, ficando para sempre sentado a seus pés, «num enlevo, como um discípulo».


Depois, os jovens vieram para Lisboa, organizaram as Conferências Democráticas do Casino Lisbonense e tornaram-se a Geração mais marcante intelectualmente dos dois últimos séculos. E que mensagem nos deixaram? Antero, mestre de Unamuno, chave para a compreensão do «sentimento trágico da vida», disse-nos, com muita clareza e determinação, ao lado dos seus amigos: é preciso europeizar Portugal, único meio de o arrancar à sua passividade e ao influxo do passado. Mas, como disse Eduardo Lourenço, «o paradoxo da Geração de 70, que se dera como missão europeizar Portugal, libertá-lo, na medida do possível, do seu arcaísmo, foi o de retratar um país, como ninguém o fizera antes, em função de um modelo de civilização que tinha em Paris, Londres ou Berlim a sua vitrina» (op. cit., p. 46). Mas esse paradoxo é, porventura, a expressão perene do grupo, como referência à abertura de espírito, à modernidade e à recusa de um messianismo secular. E aí os jovens de setenta seguiram Garrett e Herculano. E Eça de Queirós faz em «Os Maias» (1888) o retrato romanesco do «Portugal Contemporâneo». Carlos da Maia e João da Ega simbolizam as contradições do seu tempo, cientes de que faltava modernizar o País e superar a distância da civilização, responsável pelo atraso. Jacinto, Zé Fernandes e Carlos Fradique Mendes simbolizam a divisão entre o progresso e a natureza. E não se diga que os jovens revolucionários de 1870 se acomodaram, como parece acontecer com Gonçalo Mendes Ramires em «A Ilustre Casa». Poderemos dizer, antes, que se manifesta o dilema entre o «transporte» e a «fixação», já evidente na Carta de Bruges do Infante D. Pedro e nos textos dos economistas do século XVII, de que falámos. Como fixar a riqueza? Como criar condições políticas e sociais para o efeito? É sobre o que Oliveira Martins reflete em «Política e Economia Nacional» ou em «Os Filhos de D. João I» – pondo a tónica num projeto nacional que teria de cuidar da justiça distributiva.


Em maio de 1871, iniciaram-se as Conferências do Casino Lisbonense, no Largo da Abegoaria (ao Chiado). Antero de Quental foi o principal animador do evento. O brado deveu-se à intenção de debater ideias novas, capazes de lançar o país numa via de evolução, e progresso. E percebe-se que a partir dessa vontade tenham surgido desconfianças e resistências. Os jovens animadores da iniciativa eram republicanos sociais, iconoclastas e democráticos que queriam romper com o liberalismo formal. “Não pode viver e desenvolver-se um povo, isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo; o que todos os dias a humanidade vai trabalhando, deve também ser o assunto das nossas constantes meditações”. As Conferências pretenderam, assim, “abrir uma tribuna”, onde tivessem “voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este momento do século”, segundo a preocupação com “a transformação social e política dos povos”. Daí os objetivos de “ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada”; de “procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam, na Europa”; de agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna” e de “estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa”. Tratava-se de preocupar a opinião com o estudo das ideias que deveriam “presidir a uma revolução”, preparando e iluminando a consciência pública. Procurava-se uma base para uma “constituição futura”, mas também uma “sólida garantia à ordem”. E o grupo que lançava o repto democrático – Antero de Quental, Augusto Soromenho, Augusto Fuschini, Eça de Queirós, Germano de Meireles, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel de Arriaga, Salomão Saragga e Teófilo Braga – pedia o “concurso de todos”, partidos, escolas, pessoas, que, mesmo sem partilhar as opiniões dos subscritores do apelo de 16 de maio de 1871, não recusassem a sua atenção “aos que pretendem ter uma ação – embora mínima – nos destinos do seu país, expondo publica mas serenamente as suas convicções e os resultados dos seus estudos e trabalhos”. À distância do tempo, podemos perceber pelo menos duas coisas: por um lado, estavam nesse grupo os intelectuais que maior influência teriam na sociedade do seu tempo e no século seguinte; por outro, agitavam as ideias fundamentais que marcariam a sociedade, a economia, a política e a cultura daí em diante. E se a proibição de uma das Conferências e a indignação, a começar no patriarca liberal Alexandre Herculano, tornaram ainda mais célebre a iniciativa, projetando-a em termos que não estaria nas previsões dos seus promotores, a verdade é que a palestra de Antero “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares” tornar-se-ia um ensaio obrigatório para compreender a ascensão e a queda da influência de Portugal e Espanha. “Façamos nós (…) diante do espírito de verdade, o ato de contrição pelos nossos pecados históricos, porque só assim nos poderemos emendar e regenerar”. “Que seria dos homens se, acima dos ímpetos da paixão e dos desvarios da inteligência, não existisse essa região serena da concórdia na boa-fé e na tolerância recíproca!” As causas da decadência eram de três ordens – moral, política e económica: as transformações religiosas do Concílio de Trento, o fim das liberdades locais por força do Absolutismo e o efeito funesto das riquezas provenientes das conquistas, por contraponto à liberdade moral, à emergência de uma classe média burguesa e à afirmação da indústria… E contra um quadro de “abatimento e insignificância”, haveria que contrapor o “espírito de independência local” e a “originalidade do génio inventivo”. Eis a atitude de Antero, como representante da geração nova.


A célebre fotografia que se reproduz foi tirada no Palácio de Cristal na Cidade do Porto e reúne cinco amigos da geração de 1870: Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro. A imagem está ligada a um mítico almoço de 1885 e à compra de um leque para oferecer a D. Emília, noiva de Eça, autografado com uma pena de cozinha, entre a pera e o queijo: “quem muito ladra, pouco aprende” (Antero), “escritor que ladra não dorme” (Oliveira Martins); “dentada de crítico, cura-se como pelo do mesmo crítico” (Ramalho), “cão lírico ladra à lua; cão filósofo abocanha o melhor osso” (Eça), “cão de letras, cachorro!” (Junqueiro). E a matilha escreveu um “envoi”: “São cinco cães sentinelas / De bronze e papel almaço; / De bronze para as canelas, / De papel para o regaço”… Esta é uma das últimas expressões felizes do tempo em que Antero pôde ser feliz na costa de Vila do Conde.


Agostinho de Morai
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XVII. Garrett e Herculano – Um Novo Portugal


Almeida Garrett (1799-1854) e Alexandre Herculano (1810-1877) simbolizam o Portugal moderno de oitocentos, nascido das sequelas da ação do artífice do nosso “século das Luzes”, Sebastião José, o marquês de Pombal, das resistências da “Viradeira”, das repercussões da Revolução francesa, chegadas até nós pelas invasões napoleónicas, do “francesismo”, nascido da reação ao poder inglês, agravado pelo facto de D. João VI estar ausente e de o Rio de Janeiro ter-se tornado o polo político mais influente do Reino Unido. Não esqueçamos o importante papel desempenhado por D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna (Alcipe), e pelo seu salão literário, bem como pela Nova Arcádia, da qual fizeram parte Elmano Sadino (Bocage), Nicolau Tolentino ou Filinto Elísio. Combatendo os excessos do barroco, é o neoclassicismo que se manifesta, mas também a transição para o romantismo. O jovem Herculano, discípulo dos Oratorianos das Necessidades, foi um dos frequentadores do salão de Alcipe. É neste caldo de cultura que germina a Revolução de 1820 e o constitucionalismo português. E se D. João VI regressou a Portugal apressadamente, deixando no Rio a semente da independência, que D. Pedro concretiza nas margens do Ipiranga, o certo é que jamais irá dominar a situação interna, sendo provavelmente envenenado depois de se ter deixado enredar numa complexa teia de um absolutismo em que não acreditava – desde a Vilafrancada até à Abrilada. A história política que se segue é bem conhecida e só terminará no virar da metade do século… O Imperador do Brasil, D. Pedro, outorga a Carta Constitucional portuguesa (1826) e propõe uma solução de compromisso a seu irmão D. Miguel, cabeça da reação tradicionalista. D. Maria da Glória, a filha adolescente de D. Pedro, casar-se-ia com o tio… Mas o ambiente europeu foi mais favorável à aventura radical dita legitimista.


Não houve compromisso e a guerra civil (1828-1834) tornou-se inexorável e os jovens românticos Almeida Garrett e Alexandre Herculano tornaram-se resistentes ativos, ligando o compromisso cívico, o pensamento e a criação literária. A fidelidade às tradições históricas e populares exigia o combate pela liberdade. Garrett procura as raízes nacionais na noite dos tempos. Herculano encontra no romance histórico e na moderna historiografia (assente no rigor crítico e no estudo das fontes coevas) as razões para uma nacionalidade livre, baseada na vontade do povo e não em qualquer ilusão providencialista. Garrett vive a vida, segue a moda, é o jurista brilhante que escreve as leis de Mouzinho da Silveira, o maior orador parlamentar do seu tempo (ao lado de José Estevão), o fundador do moderno teatro português, o poeta e o romancista renovador. Herculano assume a austeridade, torna-se uma figura moral, um exemplo cívico, a sua escrita é irrepreensível, madura, mas não transige com a popularidade. «Almeida Garrett e Herculano ‘refundaram’ Portugal porque, pela primeira vez, e de uma maneira mais radical do que acontecera nas raras mas fortes crises que pontuaram a nossa história de nação independente, o País esteve em sérios riscos de perecer» (Eduardo Lourenço, Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade, Gradiva, 1999, p. 27). Só uma atitude de abertura e cosmopolitismo nos permitiria contrariar o fatalismo. A nação queria-se liberal e constitucional para salvar a independência.


«As Viagens na Minha Terra» retratam um País dividido e desiludido, depois da vitória liberal em Évora Monte (1834). Os ideais modernizadores, só no início da década de 30 contaram com um ambiente europeu favorável, mas depararam internamente com uma forte resistência dos interesses instalados, das invejas, da mediocridade. Em setembro de 1836 ganhou a corrente mais avançada, simbolizada por Passos Manuel. Mas em 1842 venceu a linha oposta, representada por António Bernardo Costa Cabral. E reabriu-se o clima de guerra civil, que só terminou em 1851, sob a inspiração do próprio Alexandre Herculano.


O que se deveria fazer? Enterrar o machado de guerra e construir uma nova ordem constitucional, na qual a velha Carta fosse enxertada com a lógica democrática de 1822 e de 1838. E assim aconteceu. A Regeneração e os melhoramentos materiais poderiam permitir ao País sair do atraso e da mediocridade. Iniciou-se então um longo período de paz civil, baseada na rotação entre as duas principais forças políticas – regeneradores e históricos. Mas, com o tempo, a rotina gerou a descrença. Aliás, a solução, uma vez concretizada, não viria a satisfazer Herculano. Mas com Fontes Pereira de Melo (o «António Maria», de Rafael Bordalo Pinheiro) ao leme houve um tempo de estabilidade e de progresso. É o tempo que Cesário Verde descreve com contornos novos: «Batem os carros de aluguer, ao fundo,/ Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!/ Ocorrem-me em revista exposições, países:/ Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!» («Sentimento dum Ocidental»). É a modernidade e a tentativa do cosmopolitismo. Mas que sociedade está por baixo desta visão moderna? O Portugal profundo, descrito por Camilo Castelo Branco, ele mesmo figura contraditória, cruzamento da tradição e do inconformismo. Silvestre Silva (de “Coração, Cabeça e Estômago”), Calisto Elói de «A Queda de um Anjo» ou os heróis de “Amor de Perdição”, Teresa e Simão, complementam a placidez (não destituída de tensão) de «A Morgadinha dos Canaviais», de Júlio Diniz, com a figura tutelar e atualíssima do Conselheiro Manuel Bernardo, pai de Madalena, sem esquecer o retrato do caciquismo eleitoral de Joãozinho das Perdizes… E se falamos de Júlio Dinis, o romancista português mais influenciado pelo romantismo britânico, temos de citar “Uma Família Inglesa”, o melhor retrato do contrato económico do tratado de Methuen, bem como “Os Fidalgos da Casa Mourisca”, representação de uma sociedade que se esgotava nas raízes tradicionais e que precisava de sangue novo para corresponder aos desafios da modernização na economia e nas mentalidades, bem evidenciada no papel de Berta e de Tomé da Póvoa.


Recorde-se ainda o escrito de Almeida Garrett “Portugal na Balança da Europa – Do que tem sido e do que ora lhe convém ser na nova ordem de coisas do Mundo Civilizado”. Trata-se da reflexão de um homem atento ao seu tempo sobre a evolução europeia, a emergência dos Estados Unidos da América na cena mundial e o lugar de Portugal na ordem mundial. E vemos como um ativista liberal olha a realidade nacional e internacional, procurando antever como os portugueses poderiam responder às novas circunstâncias. A obra foi escrita entre 1826 e 1829 e publicada em 1830. Acompanha a atribulada evolução nacional nesse período – desde a morte de D. João VI até ao início da guerra civil que opôs D. Pedro e D. Miguel. Depois de viver em França, como correspondente da Casa Laffitte, Garrett regressa a Portugal, a seguir à outorga da Carta Constitucional (“moldada pelas mais avisadas e prudentes da Europa”), para se dedicar ao jornalismo. Funda e dirige o jornal “Portugal” e passa três meses no Limoeiro por delito de opinião… D. Miguel regressa a Portugal e Garrett é obrigado a iniciar o seu segundo exílio – em Inglaterra, em França, na Ilha Terceira, onde colabora ativamente com Mouzinho da Silveira, regressando com Herculano como soldado do Batalhão Académico, como um dos bravos do Mindelo, no desembarque da praia do Pampelido.


No dizer de Ramalho Ortigão, encontramos em Garrett “um mensageiro do novo espírito europeu”, que se interroga sobre o que Portugal deveria ser na nova balança da Europa. Havia circunstâncias novas: a emancipação da América, a revolução de França e o engrandecimento da Rússia. Na balança antiga, Portugal era contrapeso necessário ao equilíbrio das três potências do Oeste: França. Inglaterra e Espanha. A mais interessada nesse equilíbrio havia sido a Inglaterra. Por isso, sustentou e garantiu a independência portuguesa.


Mas essa independência não era real. E Garrett parte do século XV, do tempo em que os papas e os imperadores haviam dado cabo da liberdade em Itália; em que, na Alemanha, a república federativa das pequenas potências que a compunham sucumbia perante a Casa de Áustria, antiga, inveterada e constante inimiga de toda a independência e liberdade; em que na Espanha os foros de Aragão e de Castela ou eram afogados em sangue ou caíam em desuso e em que em Portugal diminuía o poder dos nobres e aumentava o do rei e o do clero, espaçando-se a convocação de Cortes.


A descoberta da América veio alterar a balança da Europa. A influência do Mundo Novo tornou-se vantajosa. A agonia dos déspotas despontava, ainda que na Europa as tendências fossem inquietantes – ameaçando perseguir na América a liberdade foragida, através da “remessa periódica de parasitas”. Mas a América reage contra o despotismo europeu. Garrett elogia as virtudes americanas, de uma “confederação geral dos oprimidos contra os opressores”. E encontra o princípio sacrossanto segundo o qual “a liberdade é a única e sólida base de toda a felicidade das nações”. E diz-nos que a pureza do cristianismo é um dos melhores e mais evidentes fatores de consolidação do sistema da liberdade americana, ao lado da descentralização e do equilíbrio de poderes – autêntica “pedra filosofal das repúblicas”. Alexis de Tocqueville vem à nossa memória. E são as Américas e o seu apego concreto à liberdade que induzem a revolução francesa e as suas consequências. Depois houve as invasões. Bonaparte foi o artífice. E “a Europa já escrava ainda duvidava da sua servidão”. Napoleão encarnou a ambiguidade entre os princípios da revolução e uma prática de liberticida. Resistiu a Inglaterra de Pitt? É certo. Mas a causa da “quietação da Inglaterra no meio do bulício e da efervescência geral” deveu-se apenas ao facto de a nação já ser livre… E Garrett não poupa críticas à indiferença e à conciliação da Albion com a política mais retrógrada da Europa… Mas, a liberdade e a civilização triunfaram, e “o apóstata da sua causa foi debelado e punido”.


Garrett elogia a revolução de 1820. Portugal sem rei, sem comércio, sem indústria, sem administração, “descera ao mais vilipendioso estado”. As revoluções peninsulares (1812 e 1820) foram complementares – ambas “moderadas e pacíficas” e ambas conciliadoras com os tiranos, pois cederam para que cedessem. O erro capital de 1820 foi ter a revolução deixado as coisas como achou sem mudar senão os homens. “Como havia o povo de pugnar por um sistema que nem conhecia, nem sentia?”. A revolução foi militarmente construída e militarmente destruída. Assim se pode entender a contra-revolução de 1823 e a Abrilada de 24. A Santa Aliança imperava e a Europa sucumbiu na causa da liberdade, ao contrário da América. Ganharam o despotismo e a oligarquia. O estado do mundo civilizado em 1829 era, assim, perturbador: Luís XVIII reinava em França, onde a causa da humanidade podia ser ganha ou perdida (estava-se em vésperas da revolução de Julho de 1830); nos Países Baixos vivia-se um prodígio de conciliação de duas realidades diferentes e contraditórias (em 1830 nasceria a Bélgica); a Inglaterra estava estacionária enquanto outros andavam; a boa administração e o povo ilustrado da Prússia precisavam de mais liberdade; a Dinamarca era o único reino legitimamente absoluto da Europa; a Suécia, “tranquila e feliz”, era o “país natural das revoluções”; o governo russo (morto czar Alexandre) tinha medo à civilização e o governo austríaco tinha-lhe ódio; a Itália era toda escrava; o futuro da Grécia determinaria o destino de três impérios, o austríaco, o russo e o turco; em Madrid fazia-se o que apenas se desejava em Paris e em Portugal havia ilegitimidade, incerteza e confusão. A América do Norte olhava as misérias do velho mundo do alto do monte. Na América latina, a liberdade tardava porque não se passava facilmente de servo a cidadão e no Brasil havia uma estranha república sob forma de império (com que Garrett pouco se preocupa).


Portugal tem um único fim – ser livre. Daí restar-lhe optar entre uma independência verdadeira, uma independência com liberdade, e uma união com a Espanha. As instituições que conviriam ao País deveriam ser democráticas, baseadas no maior número, temperadas com o elemento aristocrático. Garrett defende a monarquia representativa e o constitucionalismo, em lugar do absolutismo e do radicalismo democrático. Insiste, por isso: na coerência constitucional da velha lei fundamental imemorial do Antigo Regime, que pecava pela forma, faltando-lhe regularidade, nexo e harmonia; na restauração dos antigos princípios da Constituição Portuguesa concretizada em 1822, apesar de haver uma democracia sem elemento aristocrático; e na moderação e equilíbrio da Carta Constitucional de 1826. No entanto, o escritor encontra defeitos e omissões na Carta - que o levarão em 1836 e depois de 1842 a pugnar pela verdadeira Regeneração, que chegará em 1851. Faltava o direito da coroa de dissolver a Câmara de deputados, não havia uma autêntica Câmara hereditária, confundiam-se funções administrativas e judiciais do poder local e minguavam garantias da Constituição: liberdade de imprensa, instrução pública, melhoramentos nas colónias, proteção do comércio e emancipação da indústria. Esse constitucionalismo deveria impedir que a liberdade e a independência fossem sacrificadas por uma oligarquia parasitária… E assim se poderia evitar a união com a Espanha, que Garrett considera um recurso extremo e desesperado…


Agostinho de Morai
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XVI. As invasões francesas e a presença da Corte no Brasil


Nem todos os acontecimentos históricos têm efeitos imediatos significativos, mas podem produzir resultados profundos no longo prazo. A Revolução portuguesa de 1820 é um desses exemplos. Não estamos perante um fenómeno instantâneo, mas diante de um processo gradual em que a sociedade se foi emancipando. Lembremos o que antecedeu no movimento do Porto de 24 de agosto: a ausência da Corte no Rio de Janeiro e a menorização política, económica e social do continente; o domínio de facto dos militares ingleses e o erro tremendo (pelo perigoso excesso de zelo de Beresford) da condenação à morte dos “mártires da Pátria” e da humilhação de Gomes Freire; os ecos da revolução de Cádis de 1812, do levantamento pernambucano de 1817 e da inaceitável recusa de Fernando VII do juramento da Constituição. Como vimos, as guerras peninsulares dividiram profundamente a sociedade portuguesa: havia um sentimento geral de resistência ao invasor napoleónico, Muitos dividiam-se entre a guerrilha contra o invasor, a participação no que restava do exército português ao lado das tropas britânicas ou até as simpatias pelo partido afrancesado, mas o certo é que há uma convergência ibérica que liga a Constituição de Cádis à Revolução do Porto de 1820.


A articulação dos dois sentimentos ibéricos, liberais e independentistas foi tão evidente que o primeiro impulso dos revolucionários portugueses correspondeu à defesa da adoção dos princípios da espanhola Constituição de Cádis em Portugal. As ideias de liberdade completavam a vontade mútua de independência. Foi o texto constitucional de Cádis o primeiro no sentido moderno da Península, apenas antecedido no mundo ocidental pelas Constituições da Córsega de 1755, dos Estados Unidos da América de 1787 e da França de 1791. No entanto, “La Pepa” apenas teve uma primeira vigência fugaz até 1814 e duas restaurações em 1820 e 1823. Mas aí estavam em causa inequivocamente o reconhecimento da soberania popular, a legitimidade dinástica, a separação de poderes, a independência dos juízes e a inviolabilidade dos representantes do povo no exercício de suas funções. Pode e deve dizer-se que nunca mais este reconhecimento deixará de marcar a vida política peninsular. Apesar das resistências mais conservadoras, a verdade é que o Antigo Regime, a legitimidade do absolutismo real e as Cortes Gerais da Nação deixaram de ter razão consensual e não puderam prevalecer sobre as ideias novas da soberania popular. D. João VI e seu filho D. Pedro compreenderam cedo essa nova tendência e a necessidade de salvar a unidade do Brasil. E a política britânica seria levada com o tempo, com a ajuda francesa dos Orleães, a abandonar a lógica dos velhos poderes e a seguir o que mais tarde viria a ser assumido pela orientação reformista liberal do whig Charles Grey (1764-1845), de boa memória, até para o fim do esclavagismo, decisiva na viragem de ventos que permitiria a vitória liberal na guerra civil, consagrada em Évora Monte (1834).


Deve, por isso, ser reconhecida mais do que a importância estrita do Sinédrio como movimento, a inteligência política de Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges e José Silva Carvalho. O primeiro singularizou-se pela competência, probidade e sentido patriótico, quer no trato exemplar com o comando britânico quando este era fundamental para a preservação da independência nacional, quer na tomada de consciência sobre a necessidade de não eternizar a dependência inglesa, lançando as bases de uma legitimidade constitucional similar à da Albion depois da “gloriosa revolução” de 1688-89. Garrett afirmou: “Portugal tornou a ver as suas cortes, e a Nação teve quem a representasse: toda a Europa admirou com respeito um congresso ilustrado, e no meio dele o campeão da liberdade, o patriarca da regeneração portuguesa”. Com inteira justiça, o óculo da Sala das Sessões plenárias da Assembleia da República representa Manuel Fernandes Tomás no uso da palavra. Importa, por isso, conhecer o percurso do exemplar magistrado, do estudioso incansável, do conhecedor profundo do género humano, do combatente sem descanso das liberdades e do bem comum. Urge, de facto, lembrar nos documentos que chegaram até nós sobre o magistério cívico do “primeiro dos regeneradores” a análise serena, moderada e objetiva sobre a necessidade de edificar um regime constitucional digno de uma nação civilizada (Cf. Manuel Fernandes Tomás, Escritos Políticos e Discursos Parlamentares - 1820-1822, Introdução e edição de José Luís Cardoso, ICS, 2020).


Sabemos, porém, das dificuldades existentes, numa nação atravessada por contradições que corresponderam à situação política e económica, num contexto incerto saído do Congresso de Viena e da União Sagrada, que favoreceu inicialmente a causa absolutista, e não as ideias liberais. Foram as Constituições de Cádis de 1812 e portuguesa de 1822 de inspiração republicana? Sim, no entanto, D. João VI e depois seu filho D. Pedro procuraram superar esses constrangimentos e encontrar a solução constitucional que a Carta Constitucional de 1826, após a trágica morte do rei, pretendeu preencher, apesar das limitações, que apenas viriam a ser superadas na segunda Regeneração de 1851. Para usar a expressão de Almeida Garrett, cidadão maduro: a Constituição deveria ser a pedra de toque de um regime justo, promover um governo representativo, e segurar a majestade do Povo, a liberdade da Nação, os direitos do Trono, a santidade da religião, e o império das leis. E a Carta Constitucional completada pelo Ato Adicional de 1852 (como Herculano defendeu) tornar-se-ia a mais duradoura das nossas Leis Fundamentais, baseada num consenso cívico e político decisivo.


A vida do constitucionalismo português tem-se feito e continuará a fazer-se, pois, gradualmente. Por isso, Garrett, no início deslumbrado por Rousseau, cartista crítico, aderiria a Montesquieu e a Chateaubriand. E Alexandre Herculano, cartista de alma e coração tornar-se-ia paladino da Constituição de 1838, cuja matriz estava na Lei Fundamental de 1822, limada de algumas angulosidades. E não se esqueça como o então moderadíssimo Herculano foi obrigado em 1831 a partir para o exílio, perseguido pelo mais cego dos radicalismos absolutistas. Se a Constituição da República Portuguesa de 1976 resultou de um compromisso complexo mas essencial, que perdura, a verdade é que ele se inseriu na tradição começada em 24 de agosto de 1820, no caminho fecundo do Estado de Direito, da soberania popular, do primado da lei, da legitimidade democrática e dos direitos fundamentais… A Revolução de 1820 tem, pois, uma importância maior do que à primeira vista possa parecer. Trata-se do acontecimento que põe termo, de facto, em Portugal ao absolutismo monárquico. A nova Constituição, saída da Revolução em 1822, previu, assim, a soberania popular, a legitimidade dinástica, a separação de poderes, a independência dos juízes e a inviolabilidade dos deputados da nação no exercício das suas funções. No entanto, a fragilidade do texto deveu-se à limitação dos poderes reais, pela ausência do monarca no Brasil. É certo que a vigência da nossa primeira Constituição foi muito curta, mas a verdade é que a partir da Vilafrancada e depois do regresso do Antigo Regime e das Cortes Gerais da Nação com D. Miguel desenvolveu-se uma guerra civil de legitimidades, na qual o absolutismo se encontrou logo fragilizado e ferido de morte.


Apesar dos contratempos e das vicissitudes, o certo é que o rei D. João VI, com um fim trágico, vai ter um papel fundamental no futuro constitucional português e na salvaguarda da unidade do Brasil. D. Pedro outorgará a Carta Constitucional prometida em Vila Franca e a história política da Regência de D. Pedro na ilha Terceira, o desembarque dos heróis do Mindelo (entre o quais Garrett e Herculano), o Cerco do Porto e a vitória de Évora Monte em 1834 confirmarão que os acontecimentos do Porto de 24 de agosto de 1820 marcaram decisivamente a história portuguesa a partir de então. Não esqueço a veneração que encontrei no Brasil por exemplo no saudoso Amigo Hélio Jaguaribe pelos heróis da liberdade dos dois lados do Atlântico. De facto, as circunstâncias internacionais e a importância da Santa Aliança, que deram alento à causa miguelista, alteraram-se totalmente no início da década de 1830, quer pela chegada ao poder do governo liberal de Charles Grey em Inglaterra, quer pela monarquia de julho de Luís Filipe de Orleães. E a causa da liberdade venceu. Relembre-se a coerência de Manuel Fernandes Tomás, o “primeiro dos regeneradores”, com um papel fundamental na ligação ao Estado-Maior britânico, sendo, pois, um fator de equilíbrio e moderação, grandemente responsável pela vitória luso-britânica sobre as tropas de Napoleão na guerra de libertação nacional. Por outro lado, no quadro legislativo, insista-se, a Constituição de 1822 viria a ser a base da Constituição de 1838, após a Revolução de Setembro de 1836, sob a referência cívica e pedagógica de Passos Manuel, que levaria, depois do interregno cabralista, à sábia síntese plenamente concretizada na acalmação regeneradora do Ato Adicional de 1852, que permitiria a maior vigência em tempo de um texto constitucional na história portuguesa.


Almeida Garrett, imbuído dos ideais clássicos mais intensos e nobres, simboliza o melhor deste espírito, o que o leva a afirmar, em novembro de 1820, aquando da Martinhada, ao Corpo Académico: “Vivamos livres… ou morramos homens”. O jovem poeta exprime com entusiasmo a força mais pura dos ideais em que a sua geração acredita. Importaria defender uma solução política que favorecesse a liberdade e a justiça. Por isso, o jovem defende mais audácia dos constituintes de 1821 no domínio da Instrução Pública – “tão livre é o povo ilustrado quanto escravo o povo ignorante”. E enfatiza: “o povo cuja maioridade seja iluminada, esse povo será livre, porque a pequena porção de ignorantes não basta para servir os que o não são”. De facto, exigia-se pedagogia cívica. Essa era a orientação persistente do futuro autor de “Da Educação”. Se havia nele um impulso genuinamente radical contra a tirania e a idolatria, havia igualmente uma preocupação, que se manifestará pela vida adiante, no sentido do pragmatismo e do primado da lei, de acordo com os apelos que Catão e Mânlio fazem a Bruto contra o seu radicalismo. A Lei Fundamental deveria ser, pois, audaz, mas compromissória, reconhecendo a soberania do povo e do seu poder constituinte, assegurando o sufrágio geral e a representatividade popular das Cortes. A Constituição deveria ser, assim, a pedra de toque de um regime justo, promovendo um governo representativo, segurando a majestade do Povo, a liberdade da Nação, os direitos do Trono, a santidade da religião, e o império das leis. Eis a importância da Revolução de 1820, como momento fundador do nosso constitucionalismo, hoje vivo na Constituição da República Portuguesa de 1976. Quando lemos os “Escritos Políticos e Discursos Parlamentares (1820-1822)” publicados por José Luís Cardoso (Imprensa de Ciências Sociais, 2020) percebemos como aqui se encontra a matriz perene de uma cultura de cidadania, de liberdade e de salvaguarda dos direitos fundamentais.

Agostinho de Morais

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Alegoria à Constituição de 1822 – Domingos A. de Sequeira


XV. Da "Viradeira" à Revolução liberal


Com a morte de D. José (1777), caiu em desgraça o Marquês de Pombal. Ao subir ao trono D. Maria I vai procurar reparar o que se considerava serem as maiores injustiças cometidas pelo favorito de seu pai. Dá-se início à chamada “Viradeira”, que se vai limitar, porém, apenas a alguns aspetos da política anterior. Há uma relativa reabilitação da família dos Távoras e uma tentativa de responsabilização de Sebastião José, sem consequências significativas. José Seabra da Silva (1732-1813), o autor da “Dedução Cronológica”, que caíra em desgraça e fora desterrado por Pombal para o Brasil e África por razões nunca esclarecidas, assume funções de Secretário de Estado dos Negócios do Reino (1788-1799), sendo depois afastado por discordar da atribuição de plenos poderes ao Príncipe D. João ainda em vida de sua mãe, D. Maria I (1734-1816), a quem fora diagnosticada grave doença do foro psiquiátrico. Entre as decisões que foram adotadas no seu reinado avultam a fundação da Academia das Ciências de Lisboa (1779), da Real Biblioteca Pública (1796) e da Casa Pia de Lisboa (1780). Diogo Inácio de Pina Manique (1733-1805), Intendente Geral da Polícia, foi o impulsionador desta última instituição, para socorro dos pobres e ensino dos órfãos. A perseguição dos afrancesados partidários da Revolução Francesa por Pina Manique foi controversa, levando, aliás, ao seu afastamento em 1803… Pode dizer-se, assim, que a “Viradeira” é um movimento complexo e ambíguo, já que se há medidas que contrariam a orientação iluminista de Pombal, outras dão-lhe continuidade…


O final do século XVIII será marcado na Europa pela Revolução Francesa e pela ofensiva de Napoleão. As guerras peninsulares constituíram um momento especialmente importante até porque o expansionismo napoleónico encontrou aqui uma forte resistência, em virtude da aposta britânica em complementar a vitória marítima de Trafalgar (1805), beneficiando do acesso por mar relativamente fácil, a partir das ilhas britânicas, em contraste com as dificuldades sentidas pelos franceses, que não dominavam o Golfo da Gasconha. Enquanto os britânicos chegavam por mar, vindos do sul de Inglaterra sem perdas, os franceses, ao passarem os Pirenéus, tinham uma marcha muito depauperante. A Península Ibérica teve, assim, dois destinos: o da salvaguarda da independência portuguesa, graças ao movimento determinante da saída da corte para o Rio de Janeiro, com a criação do único império europeu dirigido da América do Sul; enquanto Espanha teve de sofrer a momentânea perda da independência. Em novembro de 1806, aquando da conquista de Berlim, o Imperador Napoleão proclamou o bloqueio continental, que exigia o fecho de todos os portos europeus aos navios de Sua Majestade Britânica. Esta medida visava a paralisia da indústria britânica e uma inevitável crise social. O príncipe regente D. João, em Portugal, foi protelando a aplicação da decisão, de consequências imprevisíveis. Para o Reino Unido, a Dinamarca e Portugal, pelas armadas importantes que possuíam, eram duas peças chave para um eventual sucesso do bloqueio e para a afirmação do domínio napoleónico. Em Friedland (1807), Alexandre I, czar da Rússia, ficou submetido ao domínio de Bonaparte, o que tornava a fachada atlântica de Portugal – onde se não aplicara o bloqueio – ainda mais decisiva para as aspirações da velha Albion. Aquando dos Tratados com a Rússia e a Prússia de Tilsit (1807), o imperador decide secretamente a ocupação da Península Ibérica, da Suécia e da Dinamarca, devendo as casas reinantes ser depostas e substituídas por monarcas da confiança do Imperador. Em consequência, em setembro de 1807 Copenhaga foi bombardeada preventivamente pelos britânicos, que se apoderaram da esquadra do reino. O bombardeamento britânico de Copenhaga teve um efeito europeu de curto prazo pernicioso, uma vez que conduziu à adesão ao bloqueio de alguns estados que se tinham mantido neutrais até então. A Inglaterra chegou a pôr a hipótese de invadir Portugal, se tal fosse necessário, mas prevaleceu a cobertura defensiva da saída da corte portuguesa para o Brasil – nos termos da convenção secreta de 22 de outubro de 1807. O estudo económico deste período ocupou António Alves Caetano em «Os Socorros Pecuniários Britânicos destinados ao Exército Português (1809-1814) – Subsídios para a História da Guerra de Libertação Nacional» (ed. Autor, 2013), ensaio que explica o sucedido. Sabemos como a frota portuguesa era ambicionada por Napoleão. Jean-Andoche Junot foi, por isso, incumbindo de apresar a armada, logo que chegasse a Lisboa. No entanto, os navios mais importantes tinham partido para terras de Vera Cruz, enquanto a outra parte da frota portuguesa ficou a bloquear o estuário, para evitar que as tropas imperiais fossem abastecidas e para impedir a saída de uma frota russa, que acidentalmente se acolhera ao Tejo. A ocupação de Portugal durou até setembro de 1808, tendo as tropas de Arthur Wellesley imposto aos franceses as derrotas de Roliça e Vimeiro, que puseram em xeque a posição de Junot. Vencido, Napoleão não desiste, propondo-se voltar a conquistar Portugal, encarregando dessa difícil missão o Marechal Nicolas Soult, seu favorito e herói de Austerlitz e de Iéna. A defesa de Portugal foi, no entanto, cuidadosamente preparada pelo Estado-maior britânico, permitindo que o exército português, apesar de enfraquecido, adquirisse uma apreciável capacidade de combate. Havia vantagem estratégica inglesa em Portugal pela proximidade marítima e pelo conhecimento das costas, por contraste com as dificuldades francesas. Sir Arthur Wellesley, Lorde Wellington, traz uma frota de 75 navios à foz do Mondego, em agosto de 1808, com víveres e forragens para os cavalos. O percurso da Figueira da Foz até Lisboa é feito junto ao mar, com o apoio da esquadra e assim ocorreu uma claríssima vitória da logística. William Beresford chegou a Portugal em março de 1809 e foi-lhe confiado o comando e a reorganização do exército, com o apoio do secretário do Governo para a Guerra, D. Miguel Pereira Forjaz. Mercê de uma minuciosa investigação nos arquivos do Erário Régio (no Tribunal de Contas) chega-se a conclusões preciosas: sendo o auxílio financeiro britânico às tropas portuguesas essencial. O governo britânico socorreu Portugal com a entrega de dinheiro, géneros alimentícios, armas, calçado e fardamento, o que correspondeu ao valor espantoso de 70 por cento das receitas totais que o Erário Régio foi capaz de captar nesses anos dramáticos. De 12 de abril de 1809 a 30 de setembro de 1814, entraram nos cofres do Erário Régio 29.258 contos de réis (cerca de 8 milhões de libras esterlinas), para manutenção de 30 mil homens (quando inicialmente tinham sido previstos efetivos de cerca de metade), num exército regular, que Portugal antes não tinha tido, tão bem equipado e eficaz. Aliás, aquando da vitória do Buçaco as apreciações do comando inglês foram encomiásticas sobre as qualidades militares dos portugueses. Acrescente-se que o auxílio financeiro da Grã-Bretanha teve o mérito de prevenir a bancarrota portuguesa, sendo que os atrasos nos pagamentos em 1814-15 foram responsáveis pelo não envio de reforços portugueses para Waterloo. O certo é que foi decisiva a determinação de Lorde Wellington para garantir os «socorros pecuniários». E os ganhos estratégicos da vitória foram evidentes: com a ativação do comércio brasileiro, o domínio do Atlântico Sul, a valorização do porto de Lisboa e do sal de Setúbal – e a reorganização do Exército português, graças ao planeamento de William Beresford.


Agostinho de Morai
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XIV. Revisitando a ação dos Bandeirantes no Brasil


Reler “Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil” (2 volumes) da autoria de Jaime Cortesão (Portugália, 1966) é tomar contacto com uma obra aliciante que segue um percurso que nos permite ver sucessivamente a Geografia e a etnografia da América do Sul, “a reação ao Tratado de Tordesilhas e o mito da ilha-Brasil”, o fenómeno do bandeirismo sob os Filipes, Raposo Tavares e as primeiras bandeiras, as origens sociais do bandeirante, a primeira e a segunda bandeira de Guairá, os bandeirantes e os jesuítas no Tape, a restauração da independência portuguesa, o plano, o desenvolvimento das bandeiras e as respetivas conclusões. Quando acabámos de recordar o papel unificador da língua desempenhado durante o consulado do Marquês de Pombal é oportuno dar um passo atrás para compreendermos como foi possível construir um território tão solidamente identitário como o Brasil. A obra de Jaime Cortesão é de 1958 e surgiu no Rio de Janeiro, numa edição do Ministério da Educação e Cultura do Brasil, sendo escrito para a “Societé d’Études Historiques D. Pedro II, sob patrocínio de Ricardo de Moura Seabra. “Como Vasco da Gama em relação ao Índico, ou Fernão de Magalhães ao Pacífico, Raposo Tavares mediu a sua grandeza por dois dos maiores padrões da Natureza, os Andes e o Amazonas” – disse historiador português. Salientando a luta contra os jesuítas portugueses e espanhóis, o autor conclui: “Melhor do que D. João IV e seus conselheiros, (Raposo Tavares) defendeu juntamente o espírito da grei, fiel à tradição da aventura descobridora; e os interesses duma nação, para quem a expansão do Estado nos Mundos Novos representava um impulso e uma necessidade vitais”.  


De facto, o Brasil e a América do Sul são fruto de movimentos contraditórios e complementares. Os Bandeirantes levaram as fronteiras onde se julgava ser impossível chegar, os índios ora foram perseguidos ora foram protegidos, e os jesuítas representaram o contraponto aos Bandeirantes, empenhados no ensino e na criação das reduções em nome da dignidade humana e de um de criação de pequenas repúblicas autónomas… Iremos confrontar-nos com tais paradoxos e tentar compreender que a cultura brasileira é produto dessas várias influências. Partiremos da cidade de S. Paulo de Piratininga, onde os Padres Manuel da Nóbrega e José da Anchieta fundaram o colégio da Companhia de Jesus para catequese dos índios, no dia da conversão de Paulo de Tarso, em 25 de Janeiro de 1554, num barracão feito de taipa de pilão, entre os rios Anhangabaú e Tamanduatei. Em 1560, iniciou-se o povoamento da futura cidade, tendo o governador Mem de Sá enviado para a vizinhança do colégio a população da vila de Santo André da Borda do Campo. E não se esqueça a figura mítica de João Ramalho, natural de Vouzela (1493-1582), que viveu entre os índios tupiniquins, foi genro do cacique Tibiriçá, e contribuiu para a aproximação entre os índios que liderava e Martim Afonso de Sousa… Fundou uma dinastia de mamelucos ou caboclos que teria no século XVII destaque na epopeia dos bandeirantes.


S. Paulo manteve-se durante dois séculos, como uma vila pobre e isolada, cuja riqueza provinha da lavoura de mera subsistência. Por ser uma das regiões mais pobres da colónia tornou-se centro de irradiação dos chamados Bandeirantes, aventureiros que se dispersaram pelo interior do Brasil em busca de riqueza, de índios, de ouro e de diamantes. Partiam de São Paulo e de São Vicente e dirigiam-se para o interior pelas florestas desconhecidas, seguindo o rio Tieté, um dos principais meios de acesso para o interior do território. As expedições eram designadas como “Entradas” ou “Bandeiras”. As primeiras eram oficiais, organizadas pela administração territorial, enquanto as “Bandeiras” eram financiadas por senhores de engenho, donos de minas e comerciantes, desejosos de encontrar novos recursos e novas riquezas. A descoberta do ouro na região de Minas Gerais nos final do século XVII mudou o curso dos acontecimentos e fez com que as atenções do reino se voltassem para São Paulo, elevada à categoria de cidade (1711). A partir do século XVII viveu-se a febre do ouro e das pedras preciosas. Então, bandeirantes como Fernão Dias Pais, o seu genro Manuel Borba Gato, concentram-se nas buscas de Minas Gerais. Mas outros foram além da linha do Tratado de Tordesilhas já que vigorava o regime da monarquia dual, ou seja, a união pessoal de Portugal e Espanha, e descobriram metais preciosos. Desenvolvem-se Goiás e Mato Grosso e destacam-se: António Pedroso, Alvarenga e Bartolomeu Bueno da Veiga, o Anhanguera. A lista dos bandeirantes foi crescendo. E quando vemos o monumento de S. Paulo, da autoria de Victor Brecheret (na Praça Armando Salles de Oliveira), vêm à memória os nomes de: Jerónimo Leitão, participante na primeira bandeira conhecida; Nicolau Barreto, que seguiu pelo Tieté e Paraná, percorrendo os sertões do Paraná, Paraguai e Bolívia, e regressou com índios capturados; António Raposo Tavares, que atacou missões jesuítas espanholas para capturar índios; Manuel Preto, Belchior Dias Coelho, Domingos Jorge Velho, que foi até ao Nordeste; e Francisco Bueno, que foi até ao Uruguai. 


Pode dizer-se que os bandeirantes foram responsáveis pela expansão do território brasileiro, desbravando os sertões para além do meridiano de Tordesilhas e criando o Brasil de hoje. S. Paulo tornou-se, assim, uma grande metrópole, depois dos ciclos do açúcar e do café, de se ter tornado Cidade Imperial, da criação da Universidade, da industrialização e de ter sido a grande matriz do Brasil Moderno, onde teve lugar a mítica Semana de Arte Moderna de 1922 e onde está o MASP. As Bandeiras juntam-se à reduções jesuíticas e o povoamento do Rio Grande do Sul envolve a província de Tape como sete povos, a do Uruguai com dez reduções. A província do Paraná terá dez reduções entre os rios Paraná e Uruguai, e desenvolver-se-á uma tensão entre jesuítas e bandeirantes, da qual resultará uma síntese muito rica, que permitirá a unidade brasileira. E se com o tratado de Madrid de 1750 se operou a troca entre a Colónia de Sacramento e o Rio Grande do Sul, a verdade é que há uma cultura latino-ibero-americana que ainda hoje está viva e levou Jorge Luís Borges a dizer “A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires: La juzgo tan eterna como el água y como el aire”. Foi uma história marcante com elementos contraditórios, mas todos eles relevantes. Houve atrocidades, é certo; houve injustiças e destruições maciças, mas também houve vontade, determinação e anseios espirituais genuínos e a história do Brasil e da sua unidade geográfica, política e histórica deve-se a essa interessante fecundíssima dialética, que permitiu ao Brasil ser hoje o que é!

Agostinho de Morais

 

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XIII. Sebastião José de Carvalho e Melo e o Século das Luzes


Aproximando-se a chegada ao trono de D. José, D. Luís da Cunha, o experimentado diplomata, apresentou sugestões para um novo governo, indicando alguém que tinha experiência diplomática em Londres e Viena, na maturidade dos 50 anos, o que na altura era já uma idade avançada. Referia-se a Sebastião José de Carvalho e Melo, para a Guerra e Negócios Estrangeiros. Nestes termos, o “primeiro” Sebastião José assumiu uma missão muito concreta: arrumar as finanças do reino e reorganizar o Estado. Não há, assim, de início, um plano de ação que vise mais do que pôr ordem num Estado desorganizado e incapaz de responder aos novos problemas económicos. Porém, as dificuldades sentidas no Brasil por parte de Xavier de Mendonça Furtado, irmão do futuro marquês, e a resistência que encontra por parte dos jesuítas vão determinar uma viragem política centrada na necessidade de limitar o poder da Companhia de Jesus, no Brasil, que envolvia o risco da fragmentação do território. O “segundo” Pombal nasce a 1 de novembro de 1755. Inicia-se então o tempo do “terramoto dos homens” (1755-1759). Desde a destruição de Lisboa ao atentado de 1758, passando pela resistência dos jesuítas, pela tentativa de incriminação de Pombal junto de D. José e pelos motins do Porto, temos a constelação de acontecimentos que vai gerar um novo tipo de ação. Pombal tentou “preencher o sonolento vazio europeu em que Portugal sobrevivia desde D. João III”. Mas “não conseguiu” o que almejava, “não porque as medidas estivessem erradas, mas porque a violência por que as aplicou criou tanto um deserto em redor do Estado, de que tudo dependia, quanto um campo concentracionário de quase dois mil presos e exilados”. Os jesuítas foram expulsos e depois extintos por decisão papal (1773). E Pombal impôs a sua orientação, centrada nos poderes do rei, na limitação da nobreza e do clero e na definição de objetivos correspondentes a uma leitura parcial do interesse comum. Daí que o governante extremasse “dramaturgicamente uma situação política e cultural”: perante o vazio, “restabelecer o Estado”, sobre as ruínas do antigo Estado arcaico e incapaz. E, a partir de 1759, passou a haver plano, que antes não existia – o Erário Régio, o Colégio dos Nobres e a Universidade, a Intendência-Geral de Lisboa, a lei da Boa Razão, o fim da distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos, a subordinação da Igreja a uma conceção regalista. Urgia criar um corpo moderno de funcionários educados segundo as ideias de um iluminismo pombalino, dispostos a reformar o Estado e a Igreja.


Lisboa, cidade símbolo do novo tempo.
 


Na altura do terramoto, Jácome Ratton, descrevia a cidade de Lisboa como um “recinto fechado que abrangia o bairro da Alfama, bairro do Castelo, Mouraria, rua nova, Rossio, bairro alto, Mocambo, Andaluz, Anjos e Remolares”, contando no resto, que depois conheceu princípio de urbanização, Santa Clara e Sant’Ana, o Salitre, Cotovia de baixo e de cima, Boa Morte e Alcântara, “apenas algumas casas aqui e acolá, à borla de caminhos que atravessavam por terras cultivadas”». Duas obras resistiram da cidade antiga: um bairro contruído a partir do século XVI, o Bairro Alto, que beneficiou da vizinhança de S. Roque e da casa professa dos jesuítas e o Aqueduto da Águas Livres, que em França se considerava ser «a mais magnífica e a mais sumptuosa empresa do género». A catástrofe em quase nada atingiu estes dois elementos, mas, ao invés, o luxuoso Teatro de Ópera, a Ópera do Tejo, inaugurado sete meses antes do terramoto, foi arrasado. Dois terços das ruas da cidade ficaram impraticáveis, das quarenta igrejas paroquiais, trinta e cinco desmoronaram-se, apenas onze conventos ficaram habitáveis. O Núncio Apostólico calculava que haveria quarenta mil mortos. Carvalho e Melo preferiu falar de 6 a 8 mil, mas o número correto teria sido de 12 a 15 mil… O rei D. José foi poupado, uma vez que estava em Belém, jurando a partir de então não mais desejar dormir em casa de pedra e cal. Daí ter sido construída no Alto da Ajuda, a «Real Barraca», em madeira, que viria, mais tarde, a ser consumida pelas chamas, por inadvertência de uma cozinheira. Perante um panorama desolador, haveria que «enterrar os mortos e tratar dos vivos», na fórmula tornada célebre da boca de Sebastião José, homem forte do novo tempo, mas que poderia ter sido proferida pelo duque de Lafões, Regedor das Justiças, que formava com o presidente do Senado da Cidade, marquês de Alegrete, e com o marquês de Marialva, Governador das Armas, a estrutura da governança de urgência. Para evitar desmandos e pilhagens, montam-se forcas em lugares estratégicos, como dissuasores. O futuro marquês de Pombal torna-se então ministro do Reino e rodeia-se do Estado-Maior do Exército para tomar as medidas urgentes e lançar de imediato a reconstrução da cidade. Houve quem dissesse que emergiu um segundo terramoto.


A Engenharia militar pontua, com decisiva influência. O General Manuel da Maia, engenheiro-mor, com os seus quase oitenta anos, e uma longa folha de bons serviços sob o reinado de três monarcas, apresenta as alternativas para a reconstrução: «as cinco hipóteses (…) podem classificar-se em duas ordens: na primeira vemos reedificar-se a cidade tal como era dantes, melhorada apenas pelo facto de serem novos os edifícios, mas vemos também (diz José-Augusto França) alargarem-se as ruas para melhor serventia e maior formosura do conjunto, e vemos ainda, de acordo com uma prevenção constante de Manuel da Maia, reduzir os edifícios reconstruídos à altura de dois pisos sobre as lojas. Na segunda ordem de programas encontramos duas ideias radicais: arrasar o que restava da cidade velha, na sua parte central, ou baixa, mais danificada pelo terramoto, e planifica-la com inteira e conveniente liberdade; ou abandonar a Lisboa antiga ao seu destino, deixando os proprietários dos prédios derruídos agir à sua vontade, e edificar outra, completamente nova, para os lados de Belém, aliás menos flagelados pela catástrofe – ideia que, de resto, andava no ar e teve eco numa correspondência da altura para o “Journal Étranger” de Paris». Este trabalho de reflexão é muito rico. Maia inclina-se para uma profunda renovação. Além de Belém, fala-se ainda na hipótese de S. João dos Bem-Casados (hoje Campo de Ourique / Amoreiras) – ou até de Buenos Aires (atual Lapa). Entretanto o jovem capitão Eugénio dos Santos, arquiteto do Senado da cidade, desenha arruamentos e edifícios, e para cada uma das ruas «a mesma simetria em portas, janelas e alturas». Os exemplos de Londres e Turim estão bem presentes, em nome do arejamento e do espaço para circulação. E aparece ainda o tenente-coronel Carlos Mardel (húngaro, chegado a Portugal em 1733, protegido da rainha Habsburgo), ao lado de Gualter da Fonseca e Elios Poppe. Prevalece o traçado ortogonal regular da autoria de Eugénio dos Santos (que morreria prematuramente em 1760), dois polos – o do Rossio e o da futura Praça do Comércio (antigo Terreiro do Paço). Havia que abrir espaços de grande dignidade, que definissem o espírito da cidade. E a zona de desenvolvimento da cidade a norte coincide com o leito da Ribeira de Valverde (a atual Avenida da Liberdade) e o Regueirão dos Anjos (atual avenida Almirante Reis). Por outro lado, o Passeio Público (hoje Restauradores) «oferecia timidamente um contraponto ao sistema racional do pombalismo, como se apresentasse, no quadro do seu Iluminismo, a face da natureza que nele paradoxalmente se integrava, em possível anúncio romântico». Os prédios de rendimento obedecem uma disciplina racional e regular, segundo uma hierarquia no tocante aos requisitos de qualidade, sendo os prédios das três ruas principais ou nobres (que ligam a Praça do Comércio ao Rossio – rua Áurea, rua Augusta e rua da Prata) de maior exigência. A disciplina é, no entanto, rigorosa quanto ao cumprimento de uma certa uniformidade racional. Há castigos severos para quem não cumpra, que podem ir até à expropriação. Há ainda as «casas nobres» que preocupam Manuel da Maia, sendo exemplos, o palácio Castelo Melhor, à entrada do Passeio Público, o palácio do conde de Valadares no Carmo (que viria a ser o Liceu do Carmo), os de Sebastião José, na rua Formosa (hoje Rua de «O Século») e das Janelas Verdes (este vindo de um Távora, condenado em virtude do atentado a D. José), além dos palácios Sobral no Calhariz, Caldas na rua da Madalena e Quintela na rua do Alecrim. Quanto ao ritmo da reconstrução, os testemunhos variam – há quem diga que quando Pombal sai do poder cerca de metade está concretizada, outros falam de um terço…


É a burguesia enriquecida pelos privilégios e monopólios (designadamente as Companhias brasileiras) que mais facilmente vai contribuir para a reconstrução. Note-se que as soluções encontradas são variadas, avultando a Companhia Reedificadora, formada por dois mestres-de-obras que tomam à sua conta a urbanização da encosta que vai da Cotovia a S. Bento. Já a modéstia das novas igrejas paroquiais deve-se à míngua de esmolas, heranças e legados. Alexandre Herculano descendia dos construtores da cidade – nascendo no pátio do Gil, na rua de S. Bento, cujo nome vem do tio-avô materno do historiador, António Rodrigues Gil, mestre carpinteiro. Quanto aos processos técnicos, refira-se o sistema de «gaiola» para prevenção contra os sismos e para garantir flexibilidade na ocorrência de terramotos. Na zona alagadiça da Baixa (no Esteiro do Tejo), adotou-se o sistema de estacaria de pinho verde, seguindo a experiência da cidade de Amesterdão, de modo a estabilizar a organização urbana. O pinho verde não apodrece dentro de água, mantendo-se ao longo dos séculos. Numa abordagem pragmática, sem grandes laivos de genialidade criadora, a reconstrução da cidade deve-se a uma demonstração de eficácia – em ligação com as medidas nos domínios da economia (região demarcada do vinho fino da Real Companhia Velha das Vinhas do Alto Douro, pescarias no Algarve, construção de Vila Real de Santo António), do direito (lei da Boa Razão de 18 de agosto de 1769), da educação (Colégio dos Nobres e reforma da Universidade de Coimbra), das manufaturas (Fábricas das Sedas e dos Pentes em Lisboa, nas Amoreiras; Vidro da Marinha Grande, têxteis na Covilhã), das Companhias (como a de Grão-Pará e Maranhão)… Em suma, «o processo de Reconstrução é, no fim de contas, um processo autónomo, que podia correr, melhor ou pior, com maior urgência ou lentidão, independentemente das crises que se sucediam nos outros setores da ação do futuro marquês de Pombal. A prova está em que, no momento desejado, o ministro pôde pôr (ou impor) um ponto final no discurso, fazendo erigir, numa Praça do Comércio menos de meio terminada, a estátua que glorificava o êxito da empresa». E diz a tradição que as víboras que o cavalo de D. José pisa são suficientes para que os pombos nunca aí poisem. Quando Sebastião José caiu em desgraça, o seu medalhão na frente do monumento foi retirado. Mas voltaria a ser reposto, onde está ainda hoje. Dizia, aliás, o povo de Lisboa poucos anos depois – “Mal por mal, antes Pombal”.

Agostinho de Morais

 

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XII. O Ouro do Brasil e as sequelas de Methuen


Os Tratados de Methuen estabeleceram o acordo de Portugal com a Grande Aliança, formada pela Grã-Bretanha, as Províncias Unidas e o Sacro-Império Romano-Germânico, para enfrentar a Espanha e a França na guerra de sucessão espanhola. À frente das negociações deste tratado estiveram o embaixador inglês John Methuen e D. Manuel Teles da Silva, marquês de Alegrete, do lado português. Portugal não desenvolveria as suas infraestruturas industriais, em especial têxteis (e portanto perdeu a corrida industrial). Contudo, Portugal manteve uma posição política forte num cenário que se revelou fundamental na preservação da integridade territorial do Brasil, num momento em que a exploração do ouro e diamantes ganhou importância. O segundo tratado, assinado em 27 de dezembro de 1703 (popularmente conhecido como "Tratado do Vinho do Porto", estudado por David Ricardo) incentivou as relações comerciais entre a Inglaterra e Portugal. Os seus termos permitiam que o tecido de lã inglês fosse admitido em Portugal com isenção de direitos; em troca, os vinhos portugueses importados para a Inglaterra estariam sujeitos a um terço a menos do que os vinhos importados da França. Isso foi particularmente importante para ajudar o desenvolvimento da indústria portuária. Como a Inglaterra estava em guerra com a França, tornou-se cada vez mais difícil adquirir vinho e, assim, o Vinho do Porto tornou-se uma bebida muito apreciada.


Pouco tempo antes, dera-se a primeira grande descoberta de ouro no Brasil nos sertões de Taubaté, em 1697, quando o então governador do Rio de Janeiro Castro Caldas anunciou a descoberta pelos paulistas de ouro da melhor qualidade. Iniciou-se então a primeira “corrida ao ouro” da história moderna. O movimento foi tal que em 1720 D. João V limitou a saída de pessoas do noroeste de Portugal, prevendo autorizações especiais e passaportes para outros casos. Chegaram então ao Brasil cerca de dois milhões de imigrantes, de várias origens. A confluência destes dois fatores, incentivo à produção do vinho e descoberta do ouro, determinou uma clara redução da política da fixação, em benefício do transporte, o que atrasou aas manufaturas e a industrialização do país. A descoberta do ouro do Brasil interrompeu, assim, a concretização do desígnio manufatureiro – o qual só viria a ser concretizado algo fugazmente pela política de Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro Conde de Oeiras e Marquês de Pombal…


A Europa das Luzes: Portugal e os Estados modernos


Portugal, depois da Restauração da Independência de 1640, saiu enfraquecido, procurando responder às novas circunstâncias em que se encontrava. E assim jogou com a liberdade dos mares e com a relação com a Inglaterra (em plena crise interna britânica de índole constitucional, religiosa e política). Daí as tentativas para criar núcleos economicamente ativos nas zonas de influência, em especial no Brasil, sendo desse tempo a proposta do Padre António Vieira de recorrer aos cristãos-novos e judeus, de modo a refazer o império marítimo, contra a lógica do isolamento a que a Espanha nos quis condenar. E o Prof. Jorge Borges de Macedo refere duas tendências em confronto na política externa portuguesa – uma atlântica, inclinada ao entendimento com a Inglaterra, e outra continental, orientada para uma ligação à França. E se o casamento de D. Catarina de Bragança com Carlos II de Inglaterra, procurou pôr fim ao isolamento português, segundo uma opção atlântica, que parecia ser a mais consistente, não podemos esquecer a ambiguidade do casamento de D. Afonso VI com a princesa francesa D. Maria Francisca Isabel de Sabóia, que viria a originar uma série de acontecimentos que culminariam na deposição do rei e na aclamação de seu irmão, D. Pedro II. “Para Portugal, - refere ainda Borges de Macedo - as boas relações com as potências marítimas apresentavam-se como indispensáveis, uma vez que era por mar que se fazia o comércio externo mais significativo; por aí saíam o vinho, o sal, as frutas, chegavam e partiam as produções coloniais, como sejam o açúcar, o tabaco e os couros”.


Aliás, a participação portuguesa na guerra da sucessão espanhola (1701-1714) é bem ilustrativa dos cuidados estratégicos e da exigência tática. Haveria que acautelar o que restava da influência marítima, sobretudo na América do Sul e no que restava da influência na Índia. E se houve mudança de campo e de partido por parte de D. Pedro II, primeiro ao lado de Luís XIV e da causa dos Bourbons, e, depois de uma aparente hesitação neutralista, na “Grande Aliança”, de Inglaterra, Holanda, Áustria e alguns Estados alemães, a verdade é que a preocupação fundamental estava ligada à necessidade de preservar a relevância de Portugal como potência atlântica. O primeiro Tratado de Methuen (1703) celebrado com a Inglaterra inseriu-se nesta orientação e teve uma influência grande na evolução económica do século XVIII. No entanto, os lucros da comercialização dos produtos canalizados pela economia portuguesa pertenceriam aos grandes comerciantes franceses, ingleses e holandeses. O tratado de Utrecht (1712), no fim da guerra de sucessão, permitiu a Portugal reforçar a sua posição no Brasil – num momento em que se anunciava a riqueza e magnanimidade do ouro…


Enquanto a Grã-Bretanha se tornava paulatinamente a potência marítima hegemónica, Portugal vivia uma fase próspera, com meios de pagamento abundantes, graças ao ouro, e ao resultado das vendas do açúcar brasileiro, dos vinhos e das frutas, e gozava de prestígio internacional, designadamente junto da Santa Sé (com a atribuição do título de “Fidelíssimo” ao monarca português) reforçado pela participação na vitória sobre os turcos em Matapão (1717).


A influência dos Estrangeirados


No século XVII, um conjunto de autores portugueses preocuparam-se com a necessidade de recuperar a posição de Portugal no contexto internacional, não só evitando a subalternização relativamente a Espanha, mas também garantindo a defesa dos domínios ultramarinos e das frotas do Brasil. Estiveram neste caso diversas figuras relevantes em diversos domínios da vida nacional, como: Manuel Severim de Faria, Duarte Ribeiro de Macedo, o Padre António Vieira, o 4º conde da Ericeira, Alexandre de Gusmão, José da Cunha Brochado, o Cardeal da Mota (D. João da Mota e Silva) ou António Ribeiro Sanches. É nestas águas que encontramos também D. Luís da Cunha, autor do célebre Testamento Político. Quando encontramos referências aos estrangeirados, estamos, assim, perante uma corrente política que procurava assegurar uma ligação à chamada “Europa das Luzes”, que procurava seguir as orientações marcantes nos países com maior desenvolvimento, quer pelo culto da racionalidade, quer pelo conhecimento científico. Está nesse caso o Dr. António Ribeiro Sanches, formado nas Universidades de Coimbra e Salamanca, de origem judaica, que D. Luís da Cunha conheceu bem, designadamente num contacto que fez com a Universidade de Leiden (Países Baixos), em diligência feita no ano de 1730 para a aquisição de livros de Medicina e de Filosofia Moderna, destinados à Universidade de Coimbra.


No relatório que produziu, Sanches salientava, porém, que os lentes de Coimbra iriam ter certamente dificuldades em aceitar as novas ideias por exemplo no tocante à Física de Newton ou a moderna medicina experimental, por estarem demasiado dependentes do ensino escolástico. Ribeiro Sanches partiria pouco depois para S. Petersburgo (donde regressaria em 1747) a solicitação da czarina Catarina II, onde exerceu influência significativa. Continuou, porém, a reflexão sobre como modernizar Portugal, o que, segundo o conselho dado a D. Luís da Cunha obrigaria a encontrar alguém com grande influência no Rei que pudesse contrariar as práticas censórias e inquisitoriais e mudar profundamente as mentalidades e os métodos vigentes. Sanches escreveu as “Cartas sobre a Educação da Mocidade” (1759), onde preconizava as urgentes medidas necessárias a ultrapassar os grandes atrasos do país.


Importa referir o exemplo de Luís António Verney, autor do “Verdadeiro Método de Estudar” (1746), leitor dos pensadores britânicos, como John Locke, no qual é feita uma crítica ao ensino rígido e escolástico, devendo proceder-se a uma nova orientação, baseada na inovação e na experiência, devendo a instrução elementar ser ministrada a ambos os sexos e a todas as classes e cabendo ao Erário fomentar e custear as despesas da educação. Refira-se ainda o caso de Francisco Xavier de Oliveira (Cavaleiro de Oliveira), o autor da mais severa crítica aos métodos inquisitoriais, que considerava serem a razão do atraso português. Menos preocupado em adotar uma perspetiva pedagógica e reformista, assume essencialmente uma perspetiva de denúncia. Por isso, será condenado pelo Santo Ofício, tendo-se convertido ao protestantismo, escreveu vasta obra crítica entre a qual as Reflexões de Félix Vieira Corvina dos Arcos…  Já Filinto Elísio foi um admirador dos franceses, com o cuidado de evitar excessos galicistas. Clérigo de formação, foi mestre de latim de D. Leonor de Almeida, a marquesa de Alorna (Alcipe). No exílio, com o seu amigo Félix Avelar Brotero, aplaudirá a Revolução Francesa, regressando no ano seguinte a Portugal. O próprio Padre José Agostinho de Macedo, o famigerado Padre Lagosta, foi influenciado pelos ventos estrangeirados, mas tornou-se conhecido pelas diatribes antiliberais e pela linguagem radical. Pertenceu com Bocage à Nova Arcádia, com Cruz e Silva e Reis Quita, onde teve por nome Elmiro Tagídeo, mas deixou uma sombra pouco acolhedora. E D. Luís da Cunha? Há quem ponha dúvidas. Mas não há que as ter, pois foi indiscutivelmente o verdadeiro símbolo de inteligência fulgurante, num tempo de radical mudança.

Agostinho de Morais

 

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Veloso Salgado


XI. O domínio filipino e a Restauração: equilíbrio e cerco


A Restauração da Independência de Portugal de 1640 correspondeu a uma reação à tentativa de Filipe III (IV de Espanha) e do Conde Duque de Olivares de centralização e unificação dos reinos ibéricos. Estava em causa o desrespeito das condições definidas nas Cortes de Tomar (de 1581). Se Portugal nunca perdeu a independência formal, o certo é que, como Francisco Rodrigues Lobo bem viu, o que havia era uma “Corte na Aldeia”. Os constrangimentos da guerra dos 30 anos, os efeitos da crise económica, o aumento dos impostos para financiar as forças armadas espanholas, a subalternização política portuguesa, a invasão holandesa do Brasil – tudo isso determinou grande descontentamento e alterações populares em todo o país, como as do Manuelinho em Évora. A reação não se fez esperar e os conjurados apoiaram a causa do Duque de Bragança, D. João, contando com a simpatia da França do Cardeal Richelieu e a mobilização espanhola para a guerra da Catalunha. A Vice-Rainha de Portugal, Margarida de Sabóia, Duquesa de Mântua, bisneta de Isabel de Portugal e de Carlos V de Habsburgo, não resistiu e sairia de Portugal ainda em dezembro de 1640, tendo o Secretário de Estado Miguel de Vasconcelos sido defenestrado pelos conjurados.


Depois de 1640, ao lado de D. João IV, o mais célebre dos Conselheiros do novo rei foi o Padre António Vieira (1608-1697), figura ímpar da cultura portuguesa. Com o Padre António Vieira, estamos perante a maturidade da língua portuguesa em prosa, cuja leitura nos dias de hoje continua a encher-nos de emoção. Foi um visionário, um diplomata, um pregador da Capela Real, um conselheiro avisado, um humanista, um lutador pelo respeito da dignidade de todos, à frente do seu tempo, e um artífice, como houve muito poucos, da palavra dita e escrita. Sente-se, em cada expressão, em cada ideia, a força mágica dos encadeamentos, das repetições, das sinonímias, das contradições, dos paradoxos, das metáforas, dos símbolos, dos conceitos, do ponto e do contraponto, da proximidade e da distância. Vieira não se resume, nem se limita ao jogo de palavras e de ideias, por detrás desse jogo aparente está uma corajosa defesa de ideias e de causas, que, pela sua determinação e persistência, lhe foram causando os maiores dissabores e os piores contratempos. E é preciso ter uma força muito especial para poder manter-se atual quatro séculos depois do seu nascimento. E se digo atual, uso a palavra com o cuidado devido: não significa que possamos repetir agora o que foi dito por ele no século XVII, quer antes dizer que podemos hoje compreender, ressalvadas as distâncias de tempo e mentalidades, o que visava o padre, o orador ou o conselheiro. E percebemos bem que o que dizia e o que pensava estava muito à frente do que entendiam os seus contemporâneos. Vieira foi um homem que procurou sempre pautar-se pela antecipação e pelo critério do futuro, demandando respostas para um transe muito difícil então vivido pelos portugueses. Como pregador precisava de seduzir e de mobilizar vontades, quando a sociedade estava dividida e perplexa. O império temporal vinha-se esboroando, num processo longo que vinha do último quartel do século XVI. As riquezas perdiam-se ou dissipavam-se, os “fumos da Índia” avolumavam-se, havia divisões profundas (bem evidentes na crise dinástica que Vieira sentiu diretamente, sobretudo depois do desaparecimento de D. João IV). Havia, por isso, que reconstruir o império em moldes totalmente diferentes, que não padecessem das enfermidades antigas. E um império sem pés de barro, teria de ser espiritual, para ser motivador e tentar combater os males da corrupção do poder e do dinheiro. E vinha à baila a antiga ideia judaica de “povo eleito” à exigência moderna de encontro e de reconhecimento das diferenças. Eis por que razão a espiritualidade de Vieira procura ser aberta aos outros e ao futuro. E, no entanto, nota-se o risco, que mais tarde se revelará (na história das “reduções jesuíticas”, por exemplo), de um choque de projetos políticos, o do reino e o da companhia. Esse risco sente-o o próprio Padre Vieira, ora por incompreensão política, ora pelo sobe e desce dos poderes, ora por ameaça dos interesses e ora por falta de meios para agir.


O Padre António Vieira e o mito do Quinto Império


Lembramo-nos do Quinto Império de Vieira e temos de referir que «a restauração política de Portugal do seu tempo interessou Fernando Pessoa, como é de sobra conhecido, a ponto de ver Sidónio Pais um novo D. Sebastião. Mas (esclarece E. Lourenço), o Quinto Império com que sonha é um Império Cultural. E desse império e não de outro talvez seja ele mesmo o D. Sebastião». Entrando de pleno no mundo dos mitos, Eduardo Lourenço chega ao século XX e longe de qualquer tentação ilusória, diz-nos, com clareza, que «o Portugal – D. Sebastião de Pessoa é todo-o-mundo-e-ninguém com ele Pessoa – D. Sebastião é ninguém-e-todo-o-mundo, um e outro, a “eterna criança que há de vir”, aquele que morre como particularidade nacional ou pessoal, para ser tudo em todos, exemplo de um mundo e de uma personalidade sem limites nem fim». Lembramo-nos do “Auto da Lusitânia” de Gil Vicente. Deste modo, o autor de «A Nau de Ícaro», ao partir de Costa Lobo, ultrapassa claramente as preocupações deste e a sua análise, para proceder a um retrato fulgurante da mitologia portuguesa, na linha da sua psicanálise mítica do destino português. Para o Padre António Vieira o que estaria em causa era um império sobrenatural, capaz de superar os «fumos da Índia» e as fragilidades que conduziram a Alcácer Quibir. «Assim o que começou como um sonho de um Império redivivo termina com Pessoa em Império de sonho».


Assim se delineou uma estratégia, segundo a qual seria necessário compatibilizar o humanismo universalista e uma nova ideia de império. E o Padre António Vieira retoma então o que os franciscanos espirituais há muito defendiam (na linha do monge calabrês Joaquim de Flora, que falava das Idades do Pai, do Filho e do Espírito Santo). E se falamos de audácia e atrevimento, basta lembrar o poderoso “Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda”, dito na Igreja baiana de Nossa Senhora da Ajuda em maio ou junho de 1640 (“arrependei-vos misericordioso Deus, enquanto estamos em tempo, ponde em nós os olhos da vossa piedade, ide à mão da vossa irritada justiça, quebre vosso amor as setas da vossa ira, e não permitais tantos danos e tão irreparáveis”). Mas os exemplos multiplicam-se, com especial subtileza. António Vieira atraiu ódios que juraram pela sua pele, primeiro entre os colonos, depois na corte, entre os invejosos do lugar proeminente que assumiu junto de D. João IV, alvitrando, aconselhando e agindo, e ainda na Inquisição, pela qual foi perseguido, julgado, preso e, por fim, perdoado apenas graças à intercessão papal… Leia-se o Sermão da Dominga Vigésima Segunda depois do Pentecostes (1649), onde, partindo de S. Mateus (“É lícito ou não pagar o imposto a César?”, 22,17), verbera a hipocrisia dos fariseus, ataca o fanatismo cego e sem caridade, e lembra os escrúpulos falsos de Pilatos, sempre a pensar nos inquisidores: “Ó julgadores que caminhais para lá com as almas envoltas em tantos, e tão graves escrúpulos de fazendas, de vidas, de honras, e cuidais cegos, e estúpidos, que essas mãos com que escreveis as tenções e com que firmais as sentenças, se podem lavar com uma pouca de água. Não há água que tenha tal virtude”. Nunca fugiu das dificuldades nem da denúncia dos erros e atropelos, como se vê bem no Sermão do 5º Domingo da Quaresma, dito no Maranhão: “E se as letras deste abecedário se repartissem pelos Estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida que o M. M Maranhão, M murmurar, M motejar, M maldizer, M malsinar, M mexericar, e sobretudo M mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente…”. Os Sermões de Santo António aos Peixes, dito também no Maranhão, da 3ª Dominga da Quaresma, pregado na Capela Real, e do Bom Ladrão, apresentado na Igreja da Misericórdia de Lisboa (Conceição Velha), de 1654 e 1655, são bem ilustrativos da coragem acusatória de Vieira contra abusos e injustiças: “Encomendou el-Rei D. João o Terceiro a S. Francisco Xavier o informasse do estado da Índia, por via de seu companheiro, que era mestre do Príncipe; e o que o santo escreveu de lá, sem nomear ofícios, nem pessoas, foi que o verbo rapio na Índia se conjugava em todos dos modos…”.


Com a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) a finar-se, havia que preparar um alinhamento que permitisse uma presença segura na nova balança europeia. E a justificação espiritual (que a Inquisição considerou heresia) poderia abrir novos horizontes, sobretudo através da criação de bases sólidas no Brasil e na Índia. Assim, o Quinto Império não era um sonho desligado da realidade nem uma ilusão centrada no território da loucura, era a tentativa de regresso à epopeia de quinhentos, com um repensamento estratégico que tirasse lições dos erros cometidos. Assim foi concebida a “História do Futuro”, antecipada pelo Sermão dos Bons Anos (1.1.1642), onde as Escrituras, as profecias de S. Frei Gil de Santarém e as “Trovas” do Bandarra levaram-no a transferir o mito do Desejado de um rei morto em Alcácer-Quibir (Sebastião) para um rei vivo (João, ali presente na Capela Real). Seria nesse império que se reuniriam todos os povos sob a égide do Vigário de Cristo e sob um mesmo governo temporal do Rei de Portugal…


A Quinta do Tanque, propriedade da Companhia de Jesus, situava-se a meia légua da cidade de Salvador da Bahia, e foi o lugar onde o Padre António Vieira passou os últimos anos de vida, a partir de 1681, a cuidar da versão final dos Sermões. Aí, sabe-se ter sido a sua existência seriamente perturbada pelo conflito entre o irmão Bernardo e o sobrinho Gonçalo com o governador António de Sousa de Meneses (o célebre “Braço de Prata”), a ponto de António Vieira se lamentar de que: “vindo-me meter em um deserto para melhor me aparelhar para a morte, nem viver nem morrer me deixem”. Com o seu amigo e companheiro Padre José Soares, apesar de tudo, pôde trabalhar intensamente, permitindo-nos conhecer as versões finais das suas orações fundamentais. Em 1688, foi, no entanto, nomeado pela Ordem Visitador da Província do Brasil, como que em reparação depois de mil injustiças e incompreensões, regressando apenas em 1691 ao remanso da Quinta do Tanque, não apenas para terminar a impressão dos Sermões, mas também para escrever o que considerou poder vir a ser a cúpula da sua obra – a Clavis Prophetarum, De Regno Christi in Terris consummato, livro que jamais acabaria. Infelizmente, esse foi um tempo de doença e de enfraquecimento. Teve a seu lado, além do Padre Soares, o Padre António Maria Bonucci, e isso permitiu que o trabalho árduo das revisões pudesse ser feito. Ainda em 1694 viu-se, de novo, contestado pelos superiores da Província, por excesso de intervenção na eleição do Procurador à Congregação Geral de Roma, a ponto de ser privado de voz ativa e passiva em todos os atos da Companhia. Viria a ser ilibado dessa pena, mas a notícia do facto só chegaria a Salvador já Vieira tinha morrido. Ficou muito amargurado e, em 1696, a saúde agravou-se-lhe irremediavelmente, tanto que teve de partir para a cidade, para o Colégio, que tão bem conhecia, de onde mais não sairia. Aí morreu a 18 de julho de 1697, à hora primeira, descrevendo assim o Padre André de Barros, em linguagem e com atitude do tempo, esse momento final: “no mesmo ponto, e hora da noite em que expirou, acendeu o Céu uma nova estrela, ou facho luminoso, que foi visto sobre o Colégio, e notado dos de fora, brado portentoso, e pregão divino dos merecimentos do imortal Vieira…”. Salientamos ainda neste período a importância de D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), grande escritor das duas línguas ibéricas. Historiador, pedagogo, moralista, autor teatral, epistológrafo e poeta, foi representante máximo da literatura barroca peninsular – tendo sofrido ao longo da sua vida os efeitos de ser referência dos dois reinos, sendo acusado pelos dois lados por ser cúmplice do outro…


Portugal e a nova Europa (Vestefália)


A chamada Paz de Vestfália (1648) pôs fim à Guerra dos Trinta Anos, constituindo o começo da diplomacia moderna, dando início ao sistema moderno dos Estados-nação, em lugar do velho entendimento centrado na relação entre poder temporal e poder espiritual. Reconhece-se, assim, a noção de soberania de cada um dos Estados envolvidos. As guerras posteriores ao acordo não mais tiveram como causa principal a religião, mas giravam em torno de questões de Estado. Isto permitiu que potências católicas e protestantes pudessem aliar-se, provocando alteração nos equilíbrios entre os diferentes países europeus. Contudo, agravou as divisões internas no território da atual Alemanha, impedindo a unificação, que só viria no final do século XIX. E assim o Sacro Império Romano-Germânico perdeu influência, inviabilizando a primazia na Cristandade.


O pensamento económico português foi marcado ao longo dos séculos pelo estudo das condições que caracterizam a nossa situação quase paradoxal de um território europeu virado ao mar, mas com inequívocas carências, com exigentes solicitações globais em razão da presença dos portugueses no mundo. Tal é o pano de fundo dos movimentos que obrigaram sucessivas gerações a partir – ora para a Índia, ora, em ocasiões diferentes e com destinos diversos, para a emigração. Em 1415 vamos para Ceuta para superar a falta de trigo e de ouro – para beneficiar do comércio do Mediterrâneo. Se a longa costa atlântica portuguesa permitiu contrariar a situação periférica, o certo é que houve sempre uma tensão entre a defesa de um melhor aproveitamento dos recursos próprios e a consideração das oportunidades dos movimentos de pessoas e mercadorias… São bem conhecidos os alertas de Infante D. Pedro das Sete Partidas na célebre Carta de Bruges (1426) ou as queixas de Francisco Sá de Miranda: “Não me temo de Castela, donde guerra inda não soa, / mas temo-me de Lisboa que ao cheiro desta canela o reino nos despovoa”. E não esquecemos, no século XVII, o conde da Ericeira na defesa do espírito manufatureiro, a que a descoberta do ouro do Brasil não deu continuidade. Houve, assim, plena consciência de que era preciso fixar riquezas depois de partir em sua busca. Essa procura teria de ser compensada de alguma forma, para que a míngua de pessoas não impedisse a criação e consolidação de uma cabeça coerente e de uma orientação eficaz para o império. A doutrina refere-se, por isso, às duas políticas nacionais. Falando de obras pioneiras portuguesas no tocante à economia, cabe referir, os fundamentais autores seiscentistas – Mendes de Vasconcelos, Severim de Faria e Ribeiro de Macedo. Em 1608, Diálogos do Sítio de Lisboa de Luís Mendes de Vasconcelos (c. 1542-1623) é o primeiro exemplo de uma tomada de consciência sobre a importância da capacidade criadora da economia. O autor viveu na passagem do século XVI para o século XVII, foi Capitão das Armadas do Oriente e governador em Angola. Nesse livro – onde discutem um Filósofo, um Soldado e um Político – encontramos a exaltação das qualidades da cidade de Lisboa, sobretudo quando comparada com Madrid e, tratando-se do tempo de Filipe I, durante a monarquia dual, António Sérgio (1883-1969) diz-nos que o autor procurava convencer o rei “a mudar de Madrid para Lisboa a capital do seu império”. Por outro lado, combate-se “o estonteamento da nossa política ultramarina, que consistiu em se perverter o objetivo comercial com as ideias de conquista”. Luís Mendes de Vasconcelos defende a criação e a fixação, não apenas no domínio teórico, mas com exemplos práticos do que hoje classificaríamos como ordenamento do território, em especial para o aproveitamento agrícola nas lezírias do Tejo e na região de Lisboa. Ainda para Sérgio, este reformismo assenta na “política fixadora, a da produção metropolitana, com base na estabilidade do comércio do ultramar, e da sua nacionalização”; bem como num conceito de glória e heroísmo – “a glória do político e do militar, o heroísmo do servidor da pátria está em concorrer para a prosperidade dela”.


Já o clérigo e teólogo, formado pela Universidade de Évora, Manuel Severim de Faria (1583-1654) subscreve, com preocupações semelhantes, Dos Remédios para a falta de Gente (1655), onde critica a prioridade bélica em detrimento do comércio e da manufatura – somando-se esse mal á falta de investimento, aos defeitos do arranjo agrário, à concentração fundiária, ao absentismo e ao despovoamento... De mais a mais, o império do Índico apresentava-se frágil por falta de organização mercantil, e por defeitos no arranjo agrário. Daí se advogar a prioridade para o comércio, a indústria e as manufaturas, único modo de fixar recursos, devendo a preocupação de criar riqueza prevalecer sobre a conquista. Só favorecendo o governo do Reino a introdução de ofícios e técnicas modernas poderia o mesmo alcançar a independência económica da nação. O jurisconsulto e diplomata Duarte Ribeiro de Macedo (1618-1680) publicou o Discurso sobre a introdução das artes no Reino (1675). Em coerência com a sua correspondência com o Padre António Vieira e D. Francisco Manuel de Melo, o escritor considera ser fundamental a compreensão de que só haveria um meio para evitar a dependência do exterior pelas importações, e esse seria impedir que o dinheiro saísse do Reino através da criação de artes e manufaturas. A introdução de uma tal orientação evitaria o dano que fazem ao Reino o luxo e as modas; obstaria à ociosidade; tornaria o país povoado e abundante com gentes e frutos; aumentaria as rendas reais (“porque o peso que levam poucos, dividido por muitos, é mais fácil de levar e pode ser maior”); e atrairia ouro de Espanha, aproveitaria mais as colónias e daria ao porto de Lisboa, superior ao de Constantinopla, a primazia do comércio do mundo. Escrevendo na França de Colbert, Ribeiro de Macedo considerava que haveria que seguir os caminhos mercantilistas de França e Itália e que a Inglaterra começava a trilhar. Saliente-se ainda que, tal como o Padre António Vieira, o diplomata defendeu a necessidade de encontrar um entendimento com judeus e cristãos-novos de modo a angariar novos meios e capacidades. Dois outros diplomatas merecem referência pela valia dos seus escritos de orientação convergente com a de Duarte Ribeiro de Macedo – refiro-me a Alexandre de Gusmão (1658-1753) e D. Luís da Cunha (1662-1749). O primeiro, irmão de Bartolomeu Lourenço de Gusmão, defendeu o combate à ociosidade, o aumento da agricultura, o aproveitamento das ribeiras para navegar e regar, o estabelecimento de fábricas, o aumento da indústria e o favorecimento do comércio dentro e fora do reino. O segundo insiste na necessidade de dar um uso positivo à propriedade agrícola e de favorecer o investimento nas artes. Tratava-se de colher nas experiências das nações civilizadas os melhores exemplos com resultados práticos. Quando o já citado António Sérgio publicou a sua Antologia dos Economistas Portugueses (1924), lembrou que os três autores seiscentistas “iniciaram a doutrina da política da Fixação, contra a política do Transporte; e o reformismo português, desde aí até agora, será o desenvolvimento dos princípios que defenderam nas suas obras. Em Luís Mendes de Vasconcelos é a Fixação, pela agricultura; em Severim de Faria, pela agricultura e pelas indústrias; em Ribeiro de Macedo, finalmente, são as minúcias de um programa de fomento industrial”. Logo no final do século XVII, porém, o dinheiro das minas do Brasil e mais tarde os empréstimos do constitucionalismo e as remessas dos emigrantes adiaram a realização das ideias dos três reformadores. Mas o seu espírito continua, ressalvadas as distâncias e qualquer anacronismo, vivo e pertinente, em nome de um reformismo que foi assumido por Herculano, pela geração de 1870, pela “Seara Nova” e pelo moderno pensamento democrático. Regressar aos clássicos é, no fundo, um privilégio, sobretudo quando podemos usufruir através da sua leitura de ensinamentos duradouros e perenes.


Saído do período de sessenta anos em que viveu em Monarquia Dual com a Espanha, com a sua presença na Ásia enfraquecida, quer pelas conquistas dos holandeses, quer pelo desenvolvimento do mercado interasiático e com a perda de Ormuz (1622) e de Malaca (1640) e expulsão do Japão (1637-41), em Portugal a procura da fixação fazia todo o sentido.


Agostinho de Morai
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