Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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A crónica da semana passada terminava com a pergunta: Por que é que o acesso das mulheres ao ministério sacerdotal não teve sequer possibilidade de ser colocado no Documento Final do Sínodo sobre a sinodalidade, aprovado pelo Papa Francisco em Outubro de 2024? E prometia tentar na crónica de hoje explicar como esta é questão decisiva na Igreja.
A discriminação das mulheres pela Igreja oficial constitui um escândalo e um pecado. De facto, é contra os direitos humanos e a vontade de Jesus. Tentarei desfazer equívocos para ir ao essencial.
1. O próprio Papa Francisco tem impedido colocar a questão, argumentando que “o sacerdócio é reservado aos varões, como sinal de Cristo Esposo que se entrega na Eucaristia”.
Como responder? Sim, Jesus é a visibilização de Deus, mistério indizível, em humanidade. O Evangelho segundo São João escreve que o Verbo (o Logos, Palavra) se fez carne (em grego, sarx), humanidade frágil. Sim, Jesus é homem, mas, como faz notar Marta Zubía, o que o Evangelho quer dizer é que o Verbo se humanizou, não que se varonizou, que “se fez homem (anthropos, homo) e não que se fez varão (aner, vir). Deus não se humanizou na sexualidade de Jesus, mas na sua pessoa, na sua humanidade. Esta redução, agravada pelo uso exclusivo de linguagem e imagens masculinas, leva a considerar a masculinidade, pelo menos na prática, como uma característica essencial do próprio Deus.”
2. Neste sentido, há quem argumente também que na Última Ceia só havia homens, os Apóstolos - afirmação muito discutível - e que só a eles foi entregue o governo da Igreja. O teólogo Herbert Haag, talvez o maior exegeta do século XX, respondeu que então, uma vez que todos eram judeus, só se poderia ordenar judeus!...
3. Jesus trouxe por palavras e obras a melhor notícia que a Humanidade teve: Deus é bom, Pai/Mãe e todos os homens e mulheres são seus filhos e, portanto, irmãos. Isso era intolerável para os interesses do Templo e do Império, que se coligaram para o assassinar. Portanto, Jesus não foi vítima de Deus, mas dos homens. Que Deus seria esse que teria precisado da morte do Filho para aplacar a sua ira? Note-se que Joseph Ratzinger, quando era só professor, escreveu que recusava acreditar que Deus se tornou “misericordioso” só depois de ver satisfeita a sua “vingança”. Opondo-se à teologia da “satisfação” que situava a cruz “no interior de um mecanismo de direito lesado e restabelecido”, rejeitou a noção de um Deus “cuja justiça inexorável teria exigido um sacrifício humano, o sacrifício do seu próprio Filho. Esta imagem, apesar de tão espalhada, não deixa de ser falsa”.
4. Foi também Herbert Haag que mostrou que as primeiras comunidades cristãs celebravam a Eucaristia, um banquete festivo, recordando a memória de Jesus, o que Ele disse e fez, a sua morte e ressurreição, e aprofundando o seu compromisso na realização do Reino de Deus... Quem presidia era um cristão ou uma cristã com uma casa melhor para se juntarem. Foi com a interpretação da Eucaristia como sacrifício que surgiram os sacerdotes, com uma ordenação sacra, o que levou, contra a vontade de Jesus que disse: “sois todos irmãos”, à divisão em duas classes: clero e leigos...
5. Como mostro no meu mais recente livro - O Mundo e a Igreja. Que Futuro? -, a Igreja sempre teve carismas, funções, ministérios..., mas nem Jesus, nem os Apóstolos ordenaram sacerdotes. Ela precisa de uma profundíssima reforma, e a não-discriminação das mulheres é essencial.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 24 de janeiro de 2025
1. É sabido quanto o Papa Francisco se tem empenhado na renovação da Igreja, também no sentido de colocar mulheres em altos cargos de governo na Cúria. Mesmo assim, constituiu uma autêntica revolução o anúncio feito pelo Boletim da Santa Sé no passado dia 6, dia da Epifania: pela primeira vez na história do Vaticano uma mulher foi nomeada Prefeita (Ministra) do Dicastério (Ministério) para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica. Trata-se da irmã Simona Brambilla, das Missionárias da Consolata, licenciada e doutorada em Psicologia pela Universidade Gregoriana.
2. No Documento Final do Sínodo sobre a sinodalidade, aprovado pelo Papa Francisco em Outubro de 2024, pode ler-se um belo texto sobre o lugar das mulheres na Igreja, Povo de Deus. Reza assim no número 60:
«Em virtude do Baptismo, homens e mulheres gozam de igual dignidade no Povo de Deus. No entanto, as mulheres continuam a encontrar obstáculos para obter um reconhecimento mais pleno dos seus carismas, da sua vocação e do seu lugar nos vários sectores da vida da Igreja, em detrimento do serviço à missão comum. As Escrituras atestam o papel de primeiro plano de muitas mulheres na história da salvação. A uma mulher, Maria de Magdala, foi confiado o primeiro anúncio da Ressurreição; no dia de Pentecostes, Maria, a Mãe de Jesus, estava presente no Cenáculo, juntamente com muitas outras mulheres que tinham seguido o Senhor. É importante que as passagens relevantes da Escritura encontrem lugar apropriado nos leccionários litúrgicos. Alguns momentos cruciais da história da Igreja confirmam o contributo essencial das mulheres movidas pelo Espírito. As mulheres constituem a maioria daqueles que frequentam as igrejas e são frequentemente as primeiras testemunhas da fé nas famílias. São activas na vida das pequenas comunidades cristãs e nas paróquias; dirigem escolas, hospitais e centros de acolhimento; lideram iniciativas de reconciliação e de promoção da dignidade humana e da justiça social. As mulheres contribuem para a investigação teológica e estão presentes em posições de responsabilidade nas instituições ligadas à Igreja, na Cúria diocesana e na Cúria Romana. Há mulheres que exercem cargos de autoridade ou são responsáveis pela comunidade. Esta Assembleia convida a dar plena implementação de todas as oportunidades já previstas no direito vigente relativamente ao papel das mulheres, particularmente nos lugares onde estas continuam por cumprir. Não há razões que impeçam as mulheres de assumir funções de liderança na Igreja: não se pode impedir o que vem do Espírito Santo. A questão do acesso das mulheres ao ministério diaconal também permanece em aberto. É necessário prosseguir o discernimento a este respeito. A Assembleia convida também a prestar maior atenção à linguagem e às imagens utilizadas na pregação, no ensino, na catequese e na redacção dos documentos oficiais da Igreja, dando mais espaço ao contributo de mulheres santas, teólogas e místicas».
3. Aqui chegados, permanece a pergunta de sempre: porque é que a questão do acesso das mulheres ao ministério do diaconado fica apenas em aberto?, mas sobretudo: porque é que a questão do acesso das mulheres ao chamado ministério sacerdotal não teve sequer possibilidade de ser colocada?
Esta questão constitui um problema central dentro da Igreja. Tentarei na próxima crónica explicar como ela é inclusivamente uma questão decisiva.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 17 de janeiro de 2025
Quando se fala em Igreja, é difícil não se ser confrontado com uma situação complexa. De facto, ela aparece frequentemente como uma hierarquia soberana e longínqua, que comanda, que proíbe, uma instituição de poder.
Num primeiro momento, a Igreja pode até surgir como uma hiperorganização, tendo à frente um monarca (o Papa), com os seus ministros (cardeais da Cúria romana), e também altos funcionários (núncios ou embaixadores do Vaticano, espalhados pelo mundo, e bispos) e ainda médios e pequenos funcionários (cónegos, padres).
Será assim? Vejamos. A palavra igreja em português (iglesia em castelhano, église em francês) vem do grego Ekklesía. Ora, a Ekklesía era a assembleia do povo. No alemão (Kirche), no inglês (Church), etc, a origem é outra: Kyrike (forma popular bizantina), com o significado de "pertencente ao Senhor" (Kyrios, em grego) e, por extensão, "casa ou comunidade do Senhor". De qualquer modo, na dupla etimologia, a Igreja, no Novo Testamento, significa a assembleia daqueles que acreditam em Jesus, que crêem nele como o Messias e se tornaram seus discípulos, querendo segui-lo, fazendo durante a vida o que ele fez e confiando nele na própria morte, esperando também a ressurreição. A Igreja desde o início considerou-se a si mesma como a assembleia dos fiéis a Cristo, dos que pertencem ao Senhor: o sinal dessa pertença é o baptismo e reuniam-se, celebrando, na Ceia, a sua memória, “até que ele venha”.
Evidentemente, sendo constituída por homens e mulheres, a Igreja precisou de dar-se a si mesma o mínimo de organização. Por isso, nela, há diferentes funções e serviços. A palavra correcta é precisamente serviços. O Novo Testamento não fala de hierarquia (poder sagrado), mas de diaconia, que quer dizer ministério, serviço (mas também os Ministros não esqueceram já que ministro é aquele que serve?).
Que é que isto tudo quer dizer? A Igreja não é, na sua raiz, uma hiperorganização, mas assembleia convocada por Deus e reunida em Cristo. Então, o papa, antes de papa, é cristão; o bispo, antes de ser bispo, é cristão, um seguidor de Cristo; um cardeal, um cónego, um padre são discípulos de Cristo, que têm uma missão de serviço. Que devem servir, como qualquer cristão. Não há de um lado a hierarquia que manda e do outro os cristãos leigos que obedecem. Há sim a comunidade dos que acreditam em Cristo, que procuram ser seus discípulos e que obedecem uns aos outros, escutando-se uns aos outros, no Espírito Santo, e que prestam serviços uns aos outros e a todos os homens e mulheres, jovens e crianças do mundo, segundo os dons e as tarefas que foram dados a cada um para bem de todos.
Neste sentido, o cristão não acredita na Igreja, o que faz é professar o Credo cristão - a fé em Deus e no ser humano - em Igreja. Ao serviço eficaz da humanidade toda.
Precisamente neste contexto de serviço, um serviço realista, operativo, pergunta-se se se justifica a existência do Vaticano como Estado. Fica aí uma breve citação de uma profunda reflexão de Paulo Rangel no Posfácio ao meu recente livro A Igreja e o Mundo. Que futuro?, para o qual remeto.
Escreve: “São muitos os que apoiam uma “despolitização” do Vaticano e da Igreja, reconduzindo-o às suas missões puramente espirituais e pastorais. Há quem diga até que, com a diversificação dos sujeitos da sociedade internacional – que agora já não são somente os Estados, à maneira tradicional –, sobejaria espaço para uma entidade como a Igreja Católica ter margem de manobra internacional, sem ter de se alcandorar à natureza de um Estado. A questão é pertinente, insisto. Mas curiosamente são as próprias reflexões de Anselmo Borges sobre os grandes desafios da Humanidade e do mundo que me ajudaram a encontrar uma resposta. Compreendo bem a complexidade da questão e conheço-a até da minha formação como jurista dedicado às coisas do direito público.
Quando olho para o Vaticano e para a sua actuação internacional, designadamente através da respectiva rede diplomática e das missões diplomáticas, vejo uma total consonância com o espírito evangélico e com a preocupação com os destinos da Humanidade no seu todo. São incontáveis os exemplos da actuação benigna e benfazeja das missões diplomáticas da Santa Sé e são deveras corajosas as tomadas de posição, mesmo contra as opções de política internacional das maiores potências. Os Papas bem como os serviços diplomáticos da Santa Sé têm naquele reconhecimento jurídico da natureza estadual um instrumento de exercício do seu múnus profético. Um múnus de denúncia, de intermediação, de presença, de influência. A missão profética da Igreja, no plano global – na aludida dimensão comunitária –, é altamente potenciada por esta estrutura institucional. Se recensearmos as grandes encruzilhadas em que se encontra a Humanidade, que o nosso Autor tão bem retrata, é muito fácil perceber como a natureza institucional e estadual da Igreja e da sua cúpula confere uma capacidade de acção, de denúncia e de influência sem paralelo. As negociações entre partes desavindas, as visitas papais, a denúncia de perseguições e violências, a organização de missões de emergência humanitária só são possíveis e só têm alcance e visibilidade em razão daquela vertente político-institucional do Vaticano. A pergunta que tem de se fazer vem a ser a que segue: o mundo estaria melhor e os humanos viveriam melhor se a Igreja não dispusesse deste “aparelho” estadual? É evidente que não.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 2 de março de 2024
Terminada a festa do Carnaval, os cristãos entram na Quaresma: quarenta dias de mais profunda meditação, de mais intensa conversão, de amor mais vivo e perfeito, em ordem a poder celebrar com mais dignidade a Páscoa do Senhor enquanto passagem da escravidão à liberdade, da morte à vida.
Logo na quarta-feira de cinzas, é dita a cada um, a cada uma, ao mesmo tempo que lhe é colocada cinza na cabeça em sinal de humildade e exigência de reflexão, aquela palavra de Jesus no início da sua pregação: "Convertei-vos e acreditai no Evangelho”, a Boa Nova, notícia boa e felicitante.
De modo significativo, no primeiro Domingo da Quaresma, lê-se a passagem do Evangelho referente às tentações de Jesus. Ora, é importante que se diga que as três tentações estão todas referidas ao poder: poder económico, poder político, poder religioso. Jesus, antes de iniciar a sua vida pública, foi para o deserto rezar, meditar, e tinha de decidir se queria ser um Messias político, do poder, ou um Messias do amor, do serviço. Foi por esta segunda alternativa que seguiu: "Eu não vim para ser servido, mas para servir", e servir até dar a vida.
Essencial: a única verdadeira tentação, segundo o Evangelho, é a do poder, no sentido da dominação. Evidentemente, em qualquer sociedade o poder é inevitável. Toda a questão consiste em saber como é que ele é exercido e com que finalidade. Quantos se lembram que Ministro, na sua etimologia, significa pura e simplesmente servente, aquele que serve? Primeiro-Ministro é o que está à frente no serviço. Jesus disse aos discípulos, portanto, também ao papa, bispos, cardeais, padres: "Sabeis que os chefes das nações governam-nas como seus senhores. Não seja assim entre vós; pelo contrário, quem quiser fazer-se grande entre vós seja vosso servo".
Jesus renunciou ao poder enquanto domínio, mas é referido frequentemente no Evangelho que ensinava com autoridade. A palavra autoridade vem do verbo latino augere, que significa aumentar. Ter autoridade tem, portanto, a ver com fazer crescer, aumentar no ser. Cá está: servir. O poder legitima-se enquanto serviço de fazer crescer na liberdade e na dignidade... Presidentes, ministros, bispos, jornalistas, pais, professores, padres, polícias... exercem legitimamente o poder enquanto autoridade, quando ele faz crescer... Assim, não são apenas os súbditos que devem obedecer. A palavra obediência também tem a sua origem no latim: obaudire, que significa ouvir. Então, os que têm poder são os primeiros a ter de obedecer, isto é, a ter de ouvir aqueles que precisam que lhes seja feita justiça, ouvir a própria consciência, ouvir o apelo de todos aqueles que clamam por mais liberdade e dignidade... Não há superiores e inferiores. Há apenas homens e mulheres iguais em dignidade. E alguns estão constituídos em poder, que devem exercer como serviço a essa dignidade inviolável.
É curioso: quando se fala em tentações, o que vem normalmente à ideia é a tentação da carne, isto é, a tentação do sexo... Ora, sintomaticamente, Jesus também foi tentado, mas nenhuma das tentações se refere ao sexo; as tentações estão todas em conexão com o poder, com o domínio. Neste contexto, tenha-se presente o velho debate entre Freud e Adler: enquanto, segundo Freud, a pulsão humana fundamental está referida à libido e essencialmente ao prazer sexual, para Adler, essa pulsão tem a ver essencialmente com a auto-afirmação, com a vontade de poder. Ora, neste diferendo, é bem possível que seja Adler quem tem mais razão. Afinal, pensando bem, a própria sexualidade só constitui desvio quando alguém é utilizado como meio de prazer, quando a pessoa é instrumentalizada e coisificada.
Não; a grande tentação da Igreja, ao longo da sua história, foi e é o poder. Talvez isso explique até porque é que, no catálogo dos pecados, o sexo teve não só o predomínio, mas parecia, inclusivamente, deter a exclusividade do pecaminoso: no fundo, aninhava-se aí o medo de que o prazer subvertesse o poder... A tentação do poder nas Igrejas é tanto mais perigosa e deletéria quanto pretendam controlar, aprisionar o Sagrado e o Divino. Escreveu, com razão, Miguel Baptista Pereira: "Perdido o sentido do Mistério, instala-se a 'indoutrinação' e a administração definitiva do Absoluto e consagra-se a intangibilidade dos seus burocratas, não fosse dilema humano o serviço do Mistério ou a vontade ilimitada de poder". A Inquisição, que pode sempre continuar sob formas subtis, deriva da pretensão de dominar o Mistério. Quem julga deter o saber todo sobre Deus faz-se fatalmente inquisidor, no dia em que tenha do seu lado o poder político. (Diga-se, entre parêntesis, que foi também isso que aconteceu com os regimes comunistas, por exemplo: pensavam deter a ciência da História e controlavam completamente o poder político.) O pretenso saber total torna-se poder totalitário.
A novidade do Deus cristão é que, em Jesus Cristo, não vem em poder e majestade, mas como aquele que serve… Isto significa que, se Deus não dispõe de nós, muito menos nós podemos dispor de Deus. Deus é Mistério indisponível. Quem julga dispor de Deus, seja de que modo for, não esquece apenas que a fé termina no Mistério e não nas fórmulas do dogma. Corre sobretudo o risco de, com toda a desfaçatez, dispor dos homens e das mulheres... De facto, quem julga dispor de Deus porque é que não há-de dispor dos homens e das mulheres?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 17 de fevereiro de 2024
Afinal, o que justamente nos indigna noutros também já esteve presente, de uma forma ou outra, entre nós. E será que a tentação não continua lá?
Vamos dar exemplos.
Não foi há mil anos - muitos de nós ainda se lembram perfeitamente disso -- que as mulheres só podiam entrar nas igrejas com o véu e que a missa era em latim, e as pessoas ali estavam durante uma hora ou mais a ouvir e a dizer o que exprimimos no dito: para mim, é chinês.
Tudo indica que, enquanto pôde, o clero controlou a vida sexual dos fiéis, a ponto de o historiador Guy Bechtel afirmar que a fractura entre a Igreja católica e o mundo moderno se deu essencialmente na teoria do sexo e do amor: "Onde Estaline se detinha à porta da alcova, a Igreja pretendia deslizar para o meio dos lençóis", pois o diabo estava também e sobretudo dentro da cama. A confissão inquisitorial centrada na actividade sexual terá sido causa determinante na descristianização da Europa. Neste sentido, o historiador católico Jean Delumeau afirmou: "As minhas investigações históricas convenceram-me de que a imagem do Deus castigador e vingativo foi um factor decisivo de uma descristianização cujas raízes são antigas e poderosas". Os homens e as mulheres começaram a abandonar a Igreja, quando recusaram a confissão do seu território sexual, isto é, quando contestaram a invasão do segredo da intimidade, considerado um direito inalienável. Ah! E o carácter hediondo da pedofilia!...
Não é preciso lembrar os homens e as mulheres que foram assados nas fogueiras da Inquisição e não só: porque tinham ideias novas que não estavam de acordo com o que os guardiões da fé tinham estabelecido como a verdade, ou por causa do medo pânico da mulher, que se chegou a acusar de manter relações sexuais com o diabo...
Houve os autos-de-fé, e também os livros considerados heréticos foram queimados.
No passivo do cristianismo histórico, estão as cruzadas, as guerras de religião, as conquistas coloniais, a missionação forçada. Já Kant se referiu aos Descobrimentos nestes termos: "A América, os países negros, as ilhas das especiarias, o Cabo, etc., eram para eles, na sua descoberta, países que não pertenciam a ninguém, pois os habitantes nada contavam para eles". Este "eles" refere-se às "potências que querem fazer muitas coisas por piedade e pretendem considerar-se como eleitas dentro da ortodoxia, enquanto bebem a injustiça como água".
Assim reza a bula “Romanus Pontifex” (1454) para os reis de Portugal: “Nós concedemos faculdade plena e livre para invadir, conquistar, combater, vencer e submeter quaisquer sarracenos e pagãos e outros inimigos de Cristo, em qualquer parte que estiverem, e os reinos, ducados, principados, domínios, possessões e bens móveis e imóveis tidos e possuídos por eles; e reduzir a escravidão perpétua as pessoas dos mesmos, e destinar para si e os seus sucessores e apropriar-se e aplicar para uso e utilidade sua e dos seus sucessores os reinos, ducados, condados, principados, domínios, possessões e bens deles...”.
Há também a bula “Inter caetera” de Alexandre VI (1493) concedendo os mesmos direitos aos reis de Castela, mas com uma diferença, como sublinha o historiador teólogo Mariano Delgado: não autoriza explicitamente a escravizar os pagãos (índios), pois, insistindo no mandato da evangelização, exclui implicitamente a escravização, porque os baptizados não podiam ser escravizados.
Hoje é sabido que 20 milhões de africanos foram escravizados.
Há uma Constituição do Papa Clemente XI, que proíbe a leitura da Bíblia, incluindo os Evangelhos, aos leigos, e especialmente às mulheres.
Pio VI condenou a "detestável filosofia dos direitos do Homem". Pio XI condenou a evolução.
No termo do século XX, o teólogo Eugen Drewermann escreveu: "Há 500 anos a Igreja recusou a Reforma; há 200, o Iluminismo; há 100, as ciênciass naturais; há 50, a psicanálise. Como viver com tantas rejeições?". E o cardeal Carlo Martini, que o Papa Francisco cita, constatava que “a Igreja anda atrasada mais de duzentos anos”.
Apesar de tudo, julgo poder afirmar que no cômputo global o saldo é superior a favor da religião, nomeadamente do cristianismo. Esta evocação histórica não é, portanto, de modo nenhum um exercício de masoquismo. Quer apenas mostrar que se tornou absolutamente claro que não só não é humano mas tremendamente perigoso aderir de modo cego a uma religião. A fé não é produto da razão, mas a fé autêntica exige a intervenção da razão crítica. Foi esta intervenção que levou, por exemplo, à compreensão de que os livros sagrados - a Bíblia, o Alcorão ou outros - não são ditados divinos; por isso, precisam de interpretação, de uma hermenêutica histórica, não podendo ser engolidos na sua totalidade de modo acrítico. Tornou-se sobretudo transparente que uma religião que seja contra o ser humano, o diminua ou amesquinhe, das duas uma: ou é uma religião falsa ou interpreta-se mal a si própria.
Não me canso de sublinhar que o Novo Testamento “define” Deus como “Amor Incondicional” (Agapê) e também como Lógos (Palavra, Inteligência, Razão) e, por isso, uma vida autenticamente humana e cristã se realiza no cruzamento do amor e da inteligência, da bondade e da razão. E peço aos críticos e inimigos de Francisco, o Papa-cristão que procura levar a Igreja ao Evangelho e trazer o Evangelho à Igreja, que não se esqueçam das desgraças da História.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 3 de fevereiro de 2024
Na presente crise gigantesca da Igreja, impõe-se continuar com a reforma que o Papa Francisco pôs em marcha. Para ela, há que contar também com contributos e reflexões de Bento XVI, apesar das duras críticas que justamente se levantam contra ele. Não se pode esquecer que a primeira herança a ter em conta é justamente Francisco. Repare-se em algumas dessas reflexões, que mostram não ser possível contrapor pura e simplesmente Francisco e Bento XVI. Ficam aí alguns exemplos.
1. Ainda recentemente Francisco lembrou o seu antecessor, que dizia: “A Igreja não faz proselitismo, cresce muito mais por atracção.” Neste sentido, em 1969 o então professor de Teologia J. Ratzinger avançou com uma profecia: “Da actual crise surgirá uma Igreja que terá perdido muito. Será mais pequena e terá que recomeçar mais ou menos do início. Já não será capaz de habitar os edifícios que construiu em tempos de prosperidade. Recomeçará com pequenos grupos. Será uma Igreja mais espiritual, Igreja dos pobres.” Acrescentou: mas então as pessoas descobrirão que vivem num mundo de “indescritível solidão” e elas, que tinham perdido Deus de vista, verão “esse pequeno rebanho de crentes como algo completamente novo: descobri-lo-ão como uma esperança para eles próprios, a resposta que secretamente sempre tinham procurado.” Voltou à ideia em 1970 e 1971: A Igreja “tornar-se-á pequena. Com o número dos seus membros, perderá muitos dos seus privilégios… Conhecerá também certamente novas formas de ministério e ordenará como padres cristãos que deram provas, que têm a sua profissão”. Sobre o celibato: por um lado, a sua defesa; por outro, a ordenação dos chamados viri probati (homens de fé provada, casados ou não) parecia-lhe “ser o caminho para, com sentido e sem quebra da tradição, criar novas possibilidades.” Nessa altura admitiu também, no quadro de certas condições, a possibilidade da comunhão para divorciados recasados.
2. Ele que carregou com o que terá constituído o seu maior pecado — a condenação de dezenas e dezenas de teólogos — também deixou escrito: “Acima do Papa encontra-se a própria consciência, à qual é preciso obedecer em primeiro lugar; se fosse necessário, até contra o que disser a autoridade ecclesiástica. O que faz falta na Igreja não são panegiristas da ordem estabelecida, mas homens cuja humildade e obediência não sejam menores do que a sua paixão pela verdade, e que amem a Igreja mais do que a sua comodidade da sua própria carreira.”
3. Contra uma Igreja centrada na Europa, confessou, já depois de ter abdicado e pensando na eleição de Bergoglio: “Papa é o Papa, não importa quem seja”. A eleição de um cardeal latino-americano “significa que a Igreja está em movimento, é dinâmica, aberta, tendo diante de si perspectivas de novos desenvolvimentos. É completamente claro que a Europa já não é o centro da Igreja mundial” e é evidente que ela “está a abandonar cada vez mais as velhas estruturas tradicionais da vida europeia e, portanto, muda de aspecto e nela vivem novas formas . É claro sobretudo que a descristianização da Europa progride, que o elemento cristão desaparece cada vez mais do tecido da sociedade. Portanto, a Igreia deve encontrar uma nova forma de presença. Estão em curso reviravoltas epocais.” A teologia precisa de renovar-se e admoestou os cardeais para “renunciarem ao estilo mundanao de poder e glória”.
4. E não tinha razão quando, nas Últimas Conversas, depois de confessar que “acreditar não é senão, na noite do mundo, tocar a mão de Deus e assim — no silêncio — ouvir a Palavra, ver o Amor”, perguntou: Qual é “o verdadeiro problema deste nosso momento da História? Deus desaparece do horizonte das pessoas e, com a extinção da luz que vem de Deus”, a Humanidade é apanhada pela falta de orientação, “cujos efeitos se manifestam cada vez mais”.
Pergunto: não consiste o desastre da presente situação de consumismo hedonista e de vazio no facto de já nem sequer se colocar a pergunta essencial, a pergunta pelo Fundamento, pelo Sentido último? Sem essa pergunta, onde fundamentar a dignidade do ser humano, “fim em si mesmo e não simples meio”, como teorizou I. Kant? De facto, só o Infinito é fim em si mesmo: para lá não existe mais nada. O que tem o ser humano de infinito senão precisamente a pergunta ao Infinito pelo Infinito, em última análise, a pergunta por Deus, independenetemente da resposta que lhe dê, pois, com honestidade, pode haver crentes, agnósticos e ateus?
5. Enfrentou a doutrina da “satisfação”: Deus mandou o seu Filho Jesus ao mundo para, com a morte na cruz como vítima expiatória, reparar a ofensa infinita feita a Deus pela Humanidade. Rejeitou a noção de um Deus colérico, sádico, “cuja justiça inexorável teria exigido um sacrifício humano, o sacrifício do seu próprio Filho. Esta imagem, apesar de tão espalhada, não deixa de ser falsa”, contradiz o Deus-Amor, revelado em Jesus.
6. Percebeu a necessidade, no contexto da interdependência de tudo e de todos, de uma Governança global: “Urge a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial, que deverá ser reconhecida por todos, gozar de poder efectivo para garantir a cada um a segurança, a observância da justiça, o respeito dos direitos”.
7. Ficam para a História a denúncia da Cúria, um verdadeiro cancro da Igreja, e a resignação, que permitiu a eleição de Francisco, uma bênção para a Igreja e para o mundo.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 21 de janeiro de 2023
1. Não gosto de canonizações, sobretudo de canonizações de Papas, pois, para lá do mais, até fazem lembrar endogamia. Mas gostei que João Paulo I tenha sido lembrado no passado dia 4 de Setembro, 44 anos após a sua morte (Setembro de 1978), e beatificado.
Ser Papa era a última coisa que ele desejaria. Aos cardeais que o elegeram apresentou-se como “um pobre de Cristo”: “Que Deus vos perdoe!”. Claudio A. Andreoli na biografia: Albino Luciani. João Paulo I, que estou a seguir, continua: “Não haverá tiara nem entronização.” Trata-se apenas de “dar início oficial ao seu serviço pastoral”. Sorrindo, perguntou “como é que se faz de Papa: ‘Em toda a minha vida dei catecismo aos garotos. Mas que mudança!’” Mais: tem de dar a bênção aos cardeais, mas interrrompe-se: “Parece-me um pouco estranho dar-vos eu a bênção apostólica… Sois todos sucessores dos Apóstolos. Mas, enfim, está aqui escrito: ‘Em nome de Cristo, dou, com efusão de sentimento a vós, aos vossos colaboradores e a todas as almas confiadas aos vossos cuidados pastorais, as primícias da minha propiciadora bênção apostólica’… um tanto ou quanto áulica a linguagem… Paciência!” Não quis que se falasse de trono. Aceitou com resignação ser transportado na cadeira gestatória, para poder ser visto pelas pessoas, mas dirá pouco depois às religiosas do apartamento pontifício: “Não posso aceitar ser transportado assim. Se aqui estivesse a minha mãe, diria: ‘Albino, não tens vergonha de seres levado aos ombros no meio de toda a gente?”…
Na homilia da tomada de posse, o plural majestático desapareceu. “Há poucos minutos, o professor Argan, Presidente da Câmara de Roma, dirigiu-me amavelmente palavras corteses de saudação, exprimindo-me os seus votos. Algumas das suas palavras fizeram-me lembrar uma oração que eu recitava, com a minha mãe, quando era pequeno. E era assim: ‘Os pecados que bradam ao Céu são… oprimir os pobres, negar o justo pagamento aos operários’.” E acrescentou: “Em Roma, reportar-me-ei sempre à escola de São Gregório Magno: ‘O Pastor esteja próximo de cada um dos súbditos com compaixão, esquecendo a sua categoria; considere-se igual aos bons vassalos, mas sem medo de exercer contra os maus os direitos da sua autoridade. Lembre-se de que, enquanto todos os súbditos elevam ao Céu o que fez de bem, ninguém ousará censurar o que fez de mal; quando reprimir os vícios, não cesse de se reconhecer com humildade igual aos irmãos que corrige; e diante de Deus sinta-se tanto mais devedor quanto mais impunes ficam as suas acções perante os homens’… Seja-me permitido juntar só mais uma coisa: é Lei de Deus que não se possa fazer o bem a quem quer que seja, se antes não se lhe quer bem.”
Evidentemente, os senhores da Cúria sentiam desconforto e desconcerto com esta simplicidade e humildade. Por isso, não poupavam nos comentários críticos e ácidos. Quando pediu aos fiéis para rezarem “por este pobre de Cristo”, pareceu a alguns que tinha dito uma blasfémia. Os fiéis, esses entendiam e saíam felizes das audiências da Quarta-Feira, juntavam-se aos milhares, muitos milhares, para vê-lo e escutá-lo.
Sobre a cruz peitoral. Os fiéis da sua terra natal tinham-lhe oferecido uma em ouro por ocassião da ordenação episcopal, que mandou substituir por outra de prata esmaltada. Agora, um prelado da Cúria sugeriu que ela fosse substituída, para as fotografias oficiais: “Santidade, tendes essa cruz peitoral pequena, de prata…, não seria melhor usar outra mais apropriada e compatível com a vossa dignidade?” Ele olhou curioso e perguntou: “Que tipo de cruz é que devo trazer ao peito?” O prelado abriu uma caixa: “Por exemplo, esta, Santidade. É uma cruz artística, de ouro. É muito simples, mas muito digna…” Ele tirou o cordão, separou a cruz peitoral de prata e enfiou a nova, dando um suspiro: “Que pena!...”
O seu pontificado durou 33 dias. Por causa da sua afabilidade, ficou conhecido como “o Papa do sorriso”. Foi encontrado morto na sua cama na manhã do dia 29 de Setembro pela irmã Vincenza Taffarel. Significativamente, o comunicado da Sala de Imprensa da Santa Sé anunciou que tinha sido encontrado pelo secretário particular.
Ficaram sempre as suspeitas de assassinato. Lá está a eterna pergunta: Porque não se fez a autópsia? O que se sabe é que era sua intenção profunda avançar com a renovação da Cúria e pôr ordem no Banco do Vaticano que transportava escândalos trágicos.
2. Com os sucessores, João Paulo II e Bento XVI, houve retrocesso em relação ao Concílio. Francisco voltou ao espírito revolucionário conciliar, e estou convencido de que, apesar das suas limitações de saúde, tem o desejo firme de estar presente no Sínodo dos Bispos, em Outubro de 2023, sobre a sinodalidade da Igreja, aprofundando a consciência de que a Igreja são todos os baptizados, devendo todos ter voz para a sua renovação segundo o Evangelho. Quer que o seu successor não retroceda — na entrevista a Maria João Avillez, não lhe saiu aquela de que o Papa vem mesmo à Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, só não sabendo se é ele, Francisco, ou João XXIV? —, pelo contrário, avance, no contexto do processo sinodal, para o futuro concretizando exigências das Igrejas locais: uma Igreja humilde, inclusiva, reforma da Cúria, igualdade das mulheres na Igreja, incluindo a ordenação, fim do celibato obrigatório, um novo empenho no diálogo com o mundo globalizado, com outro modelo de economia…
João XXIV, um Papa João XXIII para o século XXI.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 1 de outubro de 2022
Nas sociedades, também na Igreja, o pior é o poder enquanto domínio. Jesus, a pedido deles, ensinou os discípulos a rezar. Ensinou-lhes o “Pai nosso”, dirigindo-se a Deus como Pai/Mãe e não como Senhor, Rei ou Imperador, e o seu reino não é um império, mas a Humanidade toda enquanto comunidade de filhos e filhas. A revolução de Jesus está no novo encontro com Deus, omnipotente, mas não com a omnipotência do arbitrário e da dominação, mas enquanto Força infinita de criar e de servir, para que todos se possam realizar plenamente.
E volto a Jean Delumeau, historiador eminente, católico convicto, que deixou obras essenciais sobre o passado do cristianismo, e, como só quem conhece e reflecte sobre o passado pode projectar o futuro, uma, luminosa, sobre o futuro, em 2015: L’avenir de Dieu (O futuro de Deus). E lá está: no contexto da imagem terrífica de Deus, que tem de ser revista, “hoje, os cristãos podem mais seguramente afirmar: ou os homens perdoam uns aos outros ou criaram já muitas vezes e, ai!, criam hoje também o inferno na Terra.” Hoje, quando já vivemos numa aldeia planetária, “descobrimos que somos forçosamente solidários uns com os outros e, para não perecermos, estamos condenados a unir-nos e a erguer uma governança mundial que deveria ter os meios de ser obedecida.” E indo ao núcleo da questão: qual é o grande mal do cristianismo? A sua ligação ao poder. “Pelas suas consequências, uma das mais trágicas falsas vias para as Igrejas cristãs foi, depois do fim das perseguições, a ligação entre o poder imperial romano e a hierarquia eclesiástica, simbolizada e fortificada pela coroação de Carlos Magno pelo Papa.” Não se deve esquecer que desde sempre tinha havido, no Império Romano e fora dele, ligação e amálgama entre o poder religioso e o poder político. Foram, por isso, necessários muitos séculos e conflitos incessantes para que “o religioso e o político aceitem por fim distanciar-se um do outro, num equlíbrio aliás instável e que é necessário reajustar continuamente.” De qualquer modo, “desde o início do século IV, a Igreja tornou-se um poder.” Ora, “esta deriva perigosa”, que durante muito tempo só a poucos chocou, ainda não terminou. A Igreja Católica “tem atrás de si um grande e belo passado de escritos religiosos sublimes, inumeráveis iniciativas caritativas e múltiplas obras de arte. Realizou uma obra civilizadora grandiosa e mundial. Deu à Humanidade legiões de santos e santas, canonizados ou não, incansavelmente dedicados ao serviço do próximo. Mas a sua grande fraqueza foi ter-se constituído em poder… Ora, é preciso que de ora em diante abandone o poder, pratique a humildade para poder de novo convencer e dar-se a si mesma estruturas mais flexíveis do que no passado e, portanto, capazes de evoluir. Porque hoje é necessário aceitar e dominar evoluções inevitáveis.”
Nesta espécie de “testamento” (Delumeau tinha 92 anos), apresenta então “pistas e proposições” para o futuro.
O governo da Igreja tem de “ser profundamente repensado e reconstruído”, devendo estar “mais atento do que no passado aos desejos e aspirações dos fiéis”. Não deveriam estes “poder escolher os seus representantes que constituiriam uma espécie de parlamento da catolicidade?”
Há uma série de reformas urgentes que “a civilização em que estamos mergulhados impõe”. Por exemplo, “não impor o celibato aos padres (o que não impediria em nada a existência de fiéis que livremente escolham o celibato, para se consagrar inteiramente à Igreja e à oração)”. O que pode impedir a ordenação de homens e mulheres casados para presidir às comunidades e à Eucaristia?
Impõe-se “valorizar o lugar da mulher na Igreja”, indo aliás ao encontro de várias práticas das primeiras comunidades cristãs. “Esquece-se demasiado que o cristianismo, historicamente, contribuiu em grande medida para a libertação da mulher.” Desejava, pois, “com uma forte convicção, a reabilitação plena e completa da mulher no catolicismo”. Estamos na civilização da “inovação absoluta, a que devemos fazer face, desembaraçando-nos dos reflexos, desconfianças e interditos herdados de um passado superado. Ora, não encontraremos nos Evangellhos nem razões teológicas nem maldições eternas a sancionar o ‘sexo fraco’. Atendendo à evolução recente e inédita da nossa civilização, o catolicismo deve, portanto, dar finalmente à mulher todo o seu lugar, em igualdade com o homem, nos ministérios e no governo de uma religião que se quer universal e comum a homens e mulheres. O êxito de uma nova evangelização passa, na minha opinião, pela reabilitação completa da mulher nas Igrejas cristãs. Por imperativo da minha alma e consciência, e antes do silêncio que em breve a morte me imporá, quero lançar um grito de alarme: na minha opinião, a salvação e o futuro do cristianismo, e nomeadamente do catolicismo, passam por esta completa reabilitação da mulher.” Nesta linha, multiplicam-se os testemunhos de teólogos eminentes e de bispos.
A doutrina do pecado original contradiz a evolução e o Evangelho. É preciso mudar a linguagem, pois ninguém entende hoje expressões como: “desceu aos infernos”, “subiu aos céus”, “ressurreição da carne”…
Impõe-se o diálogo ecuménico e inter-religioso. Não se pode ignorar a ciência, e é fundamental estar atento às novas tecnologias, e refiro concretamente as NBIC (nanotecnoligias, biotecnologias, inteligência artificial, neurociências)…
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 30 de julho de 2022
1. Fazemo-nos e construímo-nos uns aos outros; desfazemo-nos e destruímo-nos uns aos outros. Lá está o mito da Torre de Babel, um mito que transporta uma verdade fundamental e dá que pensar, como escreveu o filósofo Paul Ricoeur. Um dia - está escrito no Génesis - os homens disseram: Construamos uma cidade e uma Torre cujo ápice penetre nos céus. A Bíblia vê neste projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho insensatos, aquela hybris - desmesura -, que os gregos também condenavam, porque arrastava consigo a maldição e a catástrofe. No meio da arrogância e da desmesura, os seres humanos, em vez de se compreenderem, guerreiam-se e matam-se na barbárie.
A tragédia repete-se constantemente. Quando, por exemplo, um ditador brutal, ignorando o Direito Internacional e as Nações Unidas, invade um país independente com uma guerra de terror, aí está uma Babel, num mundo perigoso, com horrores e catástrofes à vista.
Em toda a sua História, talvez nunca a Humanidade tenha estado numa crise tão grave como aquela que já se vive e se aproxima. Quando se pensa na “globalização da rapina”, segundo a expressão do antigo chanceler alemão Helmut Schmidt, e na globalização das armas de destruição massiva -- quem vai impedir armas nucleares e outras à venda por aí? -, é preciso tomar consciência da ameaça de convulsões em cadeia e inclusivamente da morte global. A revolução a caminho é a dos pobres e humilhados, que nada têm a perder.
2. O que se contrapõe, segundo a Bíblia, à Torre de Babel e à sua ameaça, é o Pentecostes, que a Igreja celebra. Nesse dia, lê-se também na Bíblia, no livro dos Actos dos Apóstolos, quando se percebeu que o que tem de unir os seres humanos é a justiça, o amor, a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela igualdade na diferença e pela diferença na igualdade, todos - partos, medos e elamitas, habitantes da Mesopotâmea, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e da Líbia, romanos, cretenses, árabes, homens de todas as nações que há debaixo do céu -- voltaram a encontrar-se e entenderam-se...
3. Afundados no meio desta crise inquietante, as religiões têm um papel decisivo a desempenhar e foi com essa consciência que em Setembro de 1993 teve lugar em Chicago o Parlamento das Religiões do Mundo, com a presença de uns 6500 participantes e onde 150 pessoas qualificadas, representando as diferentes religiões e movimentos de tipo religioso do mundo assinaram o Manifesto ou a Declaração Princípios de uma ética mundial.
O texto fora essencialmente preparado por Hans Küng, o famoso teólogo de Tubinga, que nos deixou recentemente. De que se trata? Como escreveu Küng, não se trata de uma duplicação da Declaração dos Direitos Humanos, nem de uma declaração política, nem de uma prédica casuística, nem de um tratado filosófico, nem de uma idealização religiosa ou da busca de uma religião universal unitária. Trata-se de um consenso de base, mínimo, referente a valores vinculantes, a critérios e normas inamovíveis e a atitudes morais fundamentais. Supõe-se que estes mínimos éticos, que assentam na constatação de uma convergência já existente nas tradições religiosas, podem ser assumidos por todos os seres humanos, independentemente da sua relação com a religião.
Neste consenso mínimo de base, a exigência fundamental é: todo o ser humano deve ser tratado humanamente. Porquê? Todo o ser humano, sem distinção de sexo, idade, raça, classe, cor, língua, religião, ideias políticas, condição social, possui uma dignidade inviolável e inalienável.
Por outro lado, para agir de forma verdadeiramente humana, vale, antes de mais, a regra de ouro: Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti (formulada positivamente: Faz aos outros o que queres que te façam a ti). "Esta deveria ser a norma incondicionada, absoluta, para todas as esferas da vida, para a família e as comunidades, para raças, nações e religiões." Esta regra de ouro concretiza-se em quatro directrizes ou orientações antiquíssimas e inalteráveis: comprometimento com uma cultura da não-violência e do respeito pela vida (não matarás: respeita toda a vida); comprometimento com uma cultura da solidariedade e com uma ordem económica justa (não roubarás: age com justiça); comprometimento com uma cultura da tolerância e uma vida vivida com veracidade (não mentirás: fala e age com verdade); comprometimento com uma cultura da igualdade de direitos e com uma irmandade entre homem e mulher (não prostituirás nem te prostituirás: respeitai-vos e amai-vos mutuamente). No espírito de uma declaração de ética mundial, não se deu entrada a questões morais discutidas em todas as religiões e nações, como a contracepção, o aborto, a eutanásia.
Trata-se de uma Declaração assinada por "pessoas religiosas", que têm a convicção de que "o mundo empírico dado não é a realidade e a verdade última, suprema", que, portanto, fundamentam o seu viver numa Realidade Última e dela extraem, em atitude de confiança, na oração e na meditação, na palavra e no silêncio, a sua força espiritual e a sua esperança. Na presente crise de valores, "estamos convencidos de que são precisamente as religiões que, apesar de todos os abusos e frequentes fracassos históricos, podem assumir a responsabilidade de que as esperanças, objectivos, ideais e critérios de que a Humanidade precisa para a convivência na paz sejam mantidos, fundamentados e vividos".
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 4 de junho de 2022
«O Mundo e a Igreja – Que Futuro?» da autoria do Padre Anselmo Borges (Gradiva, 2021) é um conjunto muito atual de reflexões sobre as consequências do pontificado do Papa Francisco
UMA INTERROGAÇÃO
Interrogando-se sobre como devemos encarar hoje os valores éticos, Anselmo Borges afirma no seu último livro, agora dada à estampa - O Mundo e a Igreja. Que Futuro? (Gradiva) – que assistimos a uma inversão na pirâmide de valores, já que o dinheiro se tornou um valor central e a medida de todos os valores. Nesta obra, contamos com um conjunto oportuno e bastante claro de reflexões sobre as responsabilidades da Igreja Católica na sua relação com o mundo contemporâneo, numa perspetiva de exigência crítica e de coerência, em lugar de acomodação ou de indiferença. E em diversos passos do livro somos levados a recordar a obra fundamental “A Largueza do Reino de Deus” do Padre Alves Correia, tantas vezes recordado por Anselmo Borges no seu magistério. “Onde está a honra, a dignidade, o valor da palavra dada, a solidariedade, a família como esteio que segura os valores, a escola que forma pessoas íntegras e assim bons profissionais, alguns princípios orientadores da humanidade e para a Humanidade?”. Afinal, importa refletir, pensar para além do imediato e superar o imediatismo e as certezas baseadas na superficialidade. Urge compreender que não há explicações unívocas, já que a complexidade é a regra humana. Essa a lógica das bem-aventuranças – entender a humanidade como realidade plural. O homem não se fez para o sábado, mas o sábado para o homem e Jesus Cristo foi acusado de se relacionar com todos, recusando condenar a mulher adúltera…
SABEDORIA E CONFINAMENTO
E o Padre Anselmo Borges recorda o que Edgar Morin disse a propósito desta pandemia e no contexto dela: “Não digo que a sabedoria é permanecer toda a vida num quarto, mas para dar um exemplo: pensando apenas no nosso modo de consumo e alimentação, é talvez o momento de nos desfazermos de toda esta cultura industrial, cujos vícios conhecemos, o momento para nos desintoxicarmos. É também a ocasião para tomarmos consciência de modo duradouro dessas verdades humanas, que todos conhecemos, mas que estão recalcadas no nosso subconsciente: o amor, a amizade, a comunhão, a solidariedade, que fazem a qualidade de vida”. E assim um decálogo para a felicidade não pode ser confundido com uma receita de boticário. Exige-se compromisso pessoal e sentido de entreajuda. O início da alegria é começar a pensar nos outros. A melancolia deve dar lugar a uma atitude positiva e prospetiva. Não são o poder, o dinheiro ou os prazeres efémeros que podem dar alegria, mas o amor. Daí a necessidade de ter sentido de humor, de não nos levarmos demasiado a sério, de saber agradecer, de saber perdoar e de pedir perdão, de ter o gosto do compromisso e de saber ter o desprendimento em que se baseiam as bem-aventuranças, bem como de compreender a importância do diálogo fraterno e da oração, abandonando-nos nas mãos de Deus, por sabermos que somos amados. Longe da indiferença (e isto é uma responsabilidade de todos os homens e mulheres de boa vontade, como tanto insistiu o Bom Papa João XXIII) trata-se de saber partilhar, falando olhos nos olhos, entendendo a relação pessoal como permanente revelação do alfa e do ómega da dignidade humana. E o livro é um apelo constante à compreensão mútua, segundo o testemunho vivo de Jesus Cristo. Nos últimos dois anos, perante a inesperada pandemia e a demonstração de como assistimos a uma destruição avassaladora da natureza e do meio ambiente, tomamos consciência de que não podemos esconder-nos ou ser indiferentes. Importa compreender as ameaças e os riscos, a distinção entre o que é passageiro e o que é permanente. A crise ambiental obriga-nos a compreender os limites, combatendo o desperdício e prevenindo a destruição irreversível dos recursos que são património comum da humanidade toda. A crise económica e social agravou, por outro lado, as desigualdades e as injustiças e esqueceu uma distribuição equitativa de recursos não apenas entre os cidadãos de hoje, mas também relativamente às gerações futuras. À crise financeira de 2008 somou-se a situação sanitária, à ilusão monetária sucedeu a paragem brusca da atividade económica em todo o mundo, com todas as consequências conhecidas, das quais resulta que as desigualdades aumentaram, os mais ricos ficaram mais ricos e os mais pobres ficaram mais desprotegidos. A crise migratória pôs a nu o medo dos outros e a recusa das diferenças, exigindo uma verdadeira solidariedade planetária, que continua a faltar. E urge recordar o apelo do Papa Francisco a que os migrantes sejam acolhidos com prudência, reclamando um novo Plano Marshall para os países mais pobres, para estancar a hemorragia de assola o mundo.
QUE DEMOCRACIA, QUE CIDADANIA?
A crise política tem levado à fragilização da democracia e da cidadania, obrigando a que cuidemos mais da qualidade das instituições, do Estado de Direito, dos direitos fundamentais e da dignidade humana. A democracia precisa de melhor legitimação, de mais responsabilidade de todos e de mais participação cidadã. E a palavra do Papa Francisco tem de ser mais ouvida, apontando para que os princípios humanos se tornem compromissos de justiça: “A democracia baseia-se no respeito mútuo, em que todos possam contribuir para o bem da sociedade e em considerar que opiniões diferentes não só não ameaçam o poder e a segurança do Estado, como, num confronto honesto, se enriquecem mutuamente e permitem encontrar soluções mais adequadas para os problemas que é preciso enfrentar”. Os conflitos da sociedade, sendo naturais, não podem gerar a tentação da violência e da cegueira. A crise das relações humanas está, porém, na raiz de muitas das dificuldades e bloqueios atuais. A atenção, o cuidado, o respeito mútuo, a solidariedade estão na ordem do dia. A crise na educação, a desvalorização da cultura, a subalternização do dom e da troca, da comunicação e da capacidade de aprender obrigam a encontrar um contrato social que permita favorecer a coesão, o desenvolvimento e a justiça distributiva capazes de fazer da equidade uma prática comummente aceite. A liberdade religiosa e a paz entre as religiões revelam-se mais necessárias que nunca, uma vez que sem compreensão dos limites e sem a coragem de pôr em comum o que verdadeiramente nos pode unir, nada conseguiremos. E assim, longe da ideia de “ópio do povo”, o que importa é a procura dos fundamentos de uma ética cordial, baseada na compreensão do outro, no respeito mútuo e na salvaguarda da liberdade, da autonomia pessoal e da dignidade humana. A recusa do paternalismo e do clericalismo liga-se à necessidade de uma prática cristã mais madura e mais humana. Daí que o Papa Francisco insista em que não pode haver ecumenismo com proselitismo. Mais do que as palavras, importa fazer prevalecer os atos e os exemplos. E as reflexões de Anselmo Borges constituem preciosos auxiliares nesse sentido.