Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A ÉTICA, AS VÍTIMAS INOCENTES, DEUS

  


Pela tomada de consciência da finitude e da pergunta que constitutivamente lhe está associada — de pergunta em pergunta, o ser humano  deparar-se-á  com a pergunta pelo Fundamento último de tudo e pelo Sentido último —, Deus virá sempre à ideia.


A questão de Deus impõe-se  igualmente por causa da ética, das vítimas inocentes  e da esperança. Lá está sempre Immanuel Kant — celebra-se este ano o terceiro centenário do nascimento — com as suas perguntas, as de qualquer ser humano atento: “O que posso saber? O que devo fazer? O que é que me é permitido  esperar?” A última está vinculada à religião: cumprindo o seu dever, o Homem torna-se digno da salvação de Deus.


A autonomia da razão prática, que vincula universalmente todos os homens, e para a qual Kant deu um contributo decisivo, é uma conquista definitiva da Humanidade: a moral é uma forma de auto-obrigação. Mas a questão ergue-se em todo o seu abismo, quando somos confrontados com a questão ética no seu limite. Edward Schillebeeckx apresenta precisamente o exemplo dramático do soldado que, numa ditadura e sob pena de morte, recebe a ordem de matar um inocente, só porque ele é judeu, comunista ou cristão. Por motivos de consciência, o soldado recusa executar a ordem, ficando assim numa situação que toca as raias do absurdo: de facto, ele próprio será morto e outro matará o inocente. Aparentemente, ninguém beneficiou desta acção ética absolutamente digna. 


Como responder à pergunta formulada por Freud, ao confessar: “Quando eu me pergunto porque é que sempre procurei com seriedade ser solícito e, quanto é possível, ser bondoso para com os outros e porque é que o não deixei de ser quando verifiquei que se é prejudicado por isso e massacrado, pois os outros são brutos e infiéis, não conheço qualquer resposta”?


Voltando ao exemplo de Schillebeeckx, estamos perante uma aporia: por um lado, somos incondicionalmente apelados pelo respeito para com o outro; por outro, não há qualquer garantia de que o mal — a violência e a injustiça, a tortura e a morte — não seja a última palavra sobre as nossas existências finitas no mundo.


A pergunta torna-se, pois, inevitável: porque é que devo continuar a respeitar incondicionalmente o outro, embora ele seja também fonte de injustiça e violência? Há apenas dois caminhos de resposta eticamente responsável: a resposta religiosa e a resposta que se reclama de uma acção heróica a favor do Humanum. Ambas se apoiam na esperança de que, contra todas as aparências fácticas, a justiça triunfará sobre a injustiça, o Humanum sobre a desumanidade. Jean-Paul Sartre, no seu leito de morte, dizia “Eu ainda continuo a confiar na humanidade do Homem.” No entanto, o humanista ateu/agnóstico não pode dar nenhum tipo de garantia de que a sua esperança, exclusivamente fundada ético-autonomamente, se concretize. De qualquer forma, para as vítimas que já caíram e para aquelas que no futuro continuarão a tombar, não há salvação. O Homem não pode por si mesmo operar a sua plena salvação: a uma total autolibertação emancipatória, à maneira, por exemplo, da situação ideal de fala contrafáctica, de Jürgen Habermas, opõe-se o facto de o Homem ser para os outros não só graça, mas também violência e aniquilação, numa história de maldade que parece não ter fim: “mistério da iniquidade”, dizia S. Paulo. Por isso, Theodor Adorno, da Escola Crítica de Frankfurt,  escreveu que a esperança tem de incluir a todos e que, a haver justiça, ela teria de ser justiça também para os mortos . Neste sentido, o seu amigo Max Horkheimer, outro fundador da Escola Crítica, escreveu: “Toda a pretensão de fundamentar a moral na inteligência terrena e não num Além (...) constrói sobre ilusões harmonizadoras. Em última análise, tudo o que se relaciona com a moral tem a ver com a teologia”, sendo a teologia  — “exprimo-me com toda a precaução — a esperança de que, não obstante a injustiça que caracteriza o mundo, não acontecerá que ela, a injustiça, seja  a última palavra”. Neste sentido, também Walter Benjamin insistiu em que a solidariedade com os mortos, concretamente com as vítimas inocentes, não permitia conceber a história “a-teologicamente”.


Também o crente é obrigado a empenhar-se incondicionalmente pelos outros, em caso-limite até ao martírio, e não precisa de Deus como fundamento imediato do seu agir ético. A entrega incondicionada do mártir não tem como motivo a conquista da recompensa eterna: na fundamentação autónoma da ética, trata-se do Humanum absolutamente digno e da esperança da justiça sobre a injustiça — etsi Deus non daretur (como se Deus não existisse). No entanto, o crente sabe que a sua acção é mais forte do que a morte, e, acreditando em Deus, considera a fé no triunfo do bem sobre o mal, da justiça sobre a injustiça, como experiência do meta-humano e meta-ético, que os homens na sua história intramundana não podem realizar. Desta forma, o mal e o absurdo não são anulados nem sequer racionalmente compreendidos (neste sentido, Hans Albert tinha razão quando falava do “mito da razão total”), mas, para o crente, não têm a última palavra: sendo Deus a fonte e o fundamento transcendente da ética, há esperança para as vítimas e para os mortos, que, fora desta perspectiva, ficam definitivamente anulados na História. O apelo a Deus é vivido no empenho ético e na fé de que a justiça é mais forte do que a injustiça, na plenitude da vida.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 16 de março de 2024

EXPERIÊNCIAS NEGATIVAS DE CONTRASTE, ÉTICA E RELIGIÃO

  


Numa história de mistura enigmática de bem e de mal, de alegria e de desgraça, de beleza e de terror, de sentido e de absurdo, o ser humano é convocado para o espanto, positivo e negativo. O ponto de arranque para a reflexão será sempre o assombro,  positivo e negativo, sendo este provocado concretamente pela massa incrível do sofrimento humano, e, mais imediatamente, pela memória irrecusável da dor infinda das vítimas inocentes. O Homem quer ser feliz e é infeliz. No meio do horror, habita-o a esperança, que não morre, de uma humanidade boa, solidária e verdadeira. Toda a filosofia e teologia que recusem reduzir-se a um mero exercício académico, repetitivo e inútil, hão-de referir-se sempre à reflexão crítica sobre as condições de possibilidade, objectivas e subjectivas, dessa esperança do  advento de uma humanidade finalmente reconciliada e livre.


Perante um mundo onde 1.200 milhões de pessoas sobrevivem com 1 dólar por dia, outras 925 milhões passam fome, 114 milhões de crianças em idade escolar não têm escola (63 milhões são meninas), onde anualmente perdem a vida 11 milhões de menores de cinco anos com doenças tratáveis, onde milhões de pessoas têm de deixar a sua terra e deslocar-se por causa das alterações climáticas (secas e inundações catastróficas) e os horrores de guerras em curso, onde o fosso entre os escandalosamente ricos  e os pobres é cavado cada vez mais fundo, onde o aquecimento global e o armamento nuclear põem em perigo a própria sobrevivência  da Humanidade, onde a cultura tecnocrática reduz o Homem à unidimensionalidade, onde continua a discriminação da mulher e das minorias, onde cresce a experiência do niilismo, a consciência ergue-se indignada: o mundo não está em ordem e não pode continuar tal como está!


É concretamente nas experiências negativas de contraste que se aprende a distinção entre bem e mal e o que significa dignidade humana.   Como escreveu o célebre teólogo Edward Schillebeeckx, “o que experienciamos como realidade, o que diariamente, através da televisão e outros meios de comunicação social, vemos e ouvimos acerca desta realidade não está de modo nenhum ‘em ordem’; há algo que está radicalmente mal. Por isso, a experiência humana de sofrimento, maldade e infelicidade é fundamento e fonte de um Não fundamental, que as pessoas pronunciam sobre a facticidade do seu ser-no-mundo.” Nesta experiência radical, acessível a todos os homens e mulheres, encontra-se um duplo elemento: por um lado, a indignação e revolta inamovíveis; por outro, “uma abertura para uma outra situação, que constitui apelo radical ao nosso Sim. Podemos designá-lo como um consentimento 'no desconhecido’, no que nem sequer é determinável com conteúdo positivo: um outro mundo melhor, que ainda não existe em parte alguma. Por outras palavras: na pura aceitação da possibilidade de melhorar o nosso mundo; abertura ao desconhecido e melhor”. Por um lado, um Não indestrutível, um veto radical ao mal; por outro, um Sim aberto a um mundo digno do Homem, um Sim que é mais forte do que o Não, pois é a condição de possibilidade da revolta e indignação contra a indignidade.


Estas experiências negativas de contraste constituem o núcleo da experiência ética, comum a crentes e não-crentes, e base para um esforço solidário na luta contra a injustiça e na construção de um mundo com rosto humano. Mas  “aqueles que acreditam em Deus preenchem religiosamente esta experiência fundamental, que é una, embora com dupla face. Então, o ‘Sim aberto’ recebe mais orientação e perfil. O fundamento disso não é tanto, pelo menos não imediatamente, a Transcendência do ‘divino’ (que é inexprimível, por assim dizer, anónimo, não-articulável) como (pelo menos para os cristãos) o rosto humano reconhecível dessa Transcendência, manifestada entre nós no homem Jesus, confessado como Cristo e Filho de Deus. Deste modo, para os cristãos, o lamento radical da Humanidade transforma-se numa esperança fundada. No núcleo mais íntimo da realidade, está presente um suspiro da compaixão, da misericórdia; os crentes vêem aí o nome de Deus. É assim a história dos cristãos”.


No mundo, não há provas constringentes da existência de Deus. Aliás, um deus demonstrável não seria Deus, mas pura criação da razão. Mas a finitude é ineliminável, e precisamente devido à finitude insuperável, a religiosidade surgirá sempre de novo na história. Outra vez  E. Schillebeeckx: “Para a fé, a finitude não-divina é precisamente o lugar em que o finito e o Infinito se tocam no mais fundo e é neste contacto profundo que se acende toda a religiosidade”. Por outro lado, o compromisso com o ser humano, na vivência mundana, é, concretamente na tradição cristã, não apenas ético, pois tem uma dimensão teológica. O cristianismo vê na luta pela humanidade do Homem uma profunda dimensão religiosa latente, “que tem essencialmente a ver com a compreensão de fé de que a finitude não é abandonada à sua solidão, mas transportada pela presença absoluta e salvífica do Deus vivo.” O cristianismo contém em si um potencial inesgotável de libertação. Se historicamente também foi causa de opressão e alienação, isso deveu-se a uma traição a si mesmo.


No confronto entre a ética e a esperança, pensando nas vítimas inocentes, Deus virá sempre à ideia, como viu a Escola Crítica de Frankfurt. Onde está a ética?, onde está Deus?, gritam as vítimas. 


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 9 de março de 2024

NA IGREJA, O SERVIÇO REALISTA E EFICAZ

  


Quando se fala em Igreja, é difícil não se ser confrontado com uma situação complexa. De facto, ela aparece frequentemente como uma hierarquia soberana e longínqua, que comanda, que proíbe, uma instituição de poder.


Num primeiro momento, a Igreja pode até surgir como uma hiperorganização, tendo à frente um monarca (o Papa), com os seus ministros (cardeais da Cúria romana), e também altos funcionários (núncios ou embaixadores do Vaticano, espalhados pelo mundo, e bispos) e ainda médios e pequenos funcionários (cónegos, padres).


Será assim? Vejamos. A palavra igreja em português (iglesia em castelhano, église em francês) vem do grego Ekklesía. Ora, a Ekklesía era a assembleia do povo. No alemão (Kirche), no inglês (Church), etc, a origem é outra: Kyrike (forma popular bizantina), com o significado de "pertencente ao Senhor" (Kyrios, em grego) e, por extensão, "casa ou comunidade do Senhor". De qualquer modo, na dupla etimologia, a Igreja, no Novo Testamento, significa a assembleia daqueles que acreditam em Jesus, que crêem nele como o Messias e se tornaram seus discípulos, querendo segui-lo, fazendo durante a vida o que ele fez e confiando nele na própria morte, esperando também a ressurreição. A Igreja desde o início considerou-se a si mesma como a assembleia dos fiéis a Cristo, dos que pertencem ao Senhor: o sinal dessa pertença é o baptismo e reuniam-se, celebrando, na Ceia, a sua memória, “até que ele venha”.


Evidentemente, sendo constituída por homens e mulheres, a Igreja precisou de dar-se a si mesma o mínimo de organização. Por isso, nela, há diferentes funções e serviços. A palavra correcta é precisamente serviços.  O Novo Testamento não fala de hierarquia (poder sagrado), mas de diaconia, que quer dizer ministério, serviço (mas também os Ministros não esqueceram já que ministro é aquele que serve?).


Que é que isto tudo quer dizer? A Igreja não é, na sua raiz, uma hiperorganização, mas assembleia convocada por Deus e reunida em Cristo. Então, o papa, antes de papa, é cristão; o bispo, antes de ser bispo, é cristão, um seguidor de Cristo; um cardeal, um cónego, um padre são discípulos de Cristo, que têm uma missão de serviço. Que devem servir, como qualquer cristão. Não há de um lado a hierarquia que manda e do outro os cristãos leigos que obedecem. Há sim a comunidade dos que acreditam em Cristo, que procuram ser seus discípulos e que obedecem uns aos outros, escutando-se uns aos outros, no Espírito Santo, e que prestam serviços uns aos outros e a todos os homens e mulheres, jovens e crianças do mundo, segundo os dons e as tarefas que foram dados a cada um para bem de todos.


Neste sentido, o cristão não acredita na Igreja, o que faz é professar o Credo cristão - a fé em Deus e no ser humano - em Igreja. Ao serviço eficaz da humanidade toda.


Precisamente neste contexto de serviço, um serviço realista, operativo, pergunta-se se se justifica a existência do Vaticano como Estado. Fica aí uma breve citação de uma profunda reflexão de Paulo Rangel no Posfácio ao meu recente livro A Igreja e o Mundo. Que futuro?, para o qual remeto.


Escreve: “São muitos os que apoiam uma “despolitização” do Vaticano e da Igreja, reconduzindo-o às suas missões puramente espirituais e pastorais. Há quem diga até que, com a diversificação dos sujeitos da sociedade internacional – que agora já não são somente os Estados, à maneira tradicional –, sobejaria espaço para uma entidade como a Igreja Católica ter margem de manobra internacional, sem ter de se alcandorar à natureza de um Estado. A questão é pertinente, insisto. Mas curiosamente são as próprias reflexões de Anselmo Borges sobre os grandes desafios da Humanidade e do mundo que me ajudaram a encontrar uma resposta. Compreendo bem a complexidade da questão e conheço-a até da minha formação como jurista dedicado às coisas do direito público.


Quando olho para o Vaticano e para a sua actuação internacional, designadamente através da respectiva rede diplomática e das missões diplomáticas, vejo uma total consonância com o espírito evangélico e com a preocupação com os destinos da Humanidade no seu todo. São incontáveis os exemplos da actuação benigna e benfazeja das missões diplomáticas da Santa Sé e são deveras corajosas as tomadas de posição, mesmo contra as opções de política internacional das maiores potências. Os Papas bem como os serviços diplomáticos da Santa Sé têm naquele reconhecimento jurídico da natureza estadual um instrumento de exercício do seu múnus profético. Um múnus de denúncia, de intermediação, de presença, de influência. A missão profética da Igreja, no plano global – na aludida dimensão comunitária –, é altamente potenciada por esta estrutura institucional. Se recensearmos as grandes encruzilhadas em que se encontra a Humanidade, que o nosso Autor tão bem retrata, é muito fácil perceber como a natureza institucional e estadual da Igreja e da sua cúpula confere uma capacidade de acção, de denúncia e de influência sem paralelo. As negociações entre partes desavindas, as visitas papais, a denúncia de perseguições e violências, a organização de missões de emergência humanitária só são possíveis e só têm alcance e visibilidade em razão daquela vertente político-institucional do Vaticano. A pergunta que tem de se fazer vem a ser a que segue: o mundo estaria melhor e os humanos viveriam melhor se a Igreja não dispusesse deste “aparelho” estadual? É evidente que não.”


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 2 de março de 2024

LIVRES. PARA ONDE QUEREMOS IR?

  


Aparentemente, não há nada que o ser humano tanto preze como a liberdade. Mas, tendo de optar entre a segurança - intelectual, espiritual, social, política, religiosa... - e a liberdade, não se sabe quantos ficariam do lado da liberdade e não da segurança.


Dostoiévski disse-o de modo ácido e também sublime num texto em que também se critica a Igreja de Roma. Fá-lo em Os Irmãos Karamázov, no poema de Ivan com o nome "O Grande Inquisidor".


A história passa-se em Espanha, em Sevilha, nos tempos terríveis da Inquisição, precisamente no dia a seguir a um "magnificente auto-de-fé" em que foram queimados de uma assentada, na presença do rei, da corte, dos cardeais e das damas mais encantadoras da corte e da numerosa população de Sevilha, quase uma centena de hereges. Cristo "apareceu, devagarinho, sem querer dar nas vistas e... coisa estranha, toda a gente O reconhece." Mas o cardeal inquisidor aponta o dedo e manda que os guardas O prendam. E é num calabouço do Santo Ofício que lhe diz que no dia seguinte O queima na fogueira como ao pior dos hereges. E a razão é que a liberdade de fé tinha sido para Cristo a coisa mais preciosa. Não foi Ele que disse tantas vezes: "Quero tornar-vos livres?"


Cristo, afinal, não percebeu que "o Homem não tem preocupação mais torturante do que encontrar alguém em quem possa delegar o mais depressa possível a dádiva da sua liberdade." "Em vez de Te apoderares da liberdade das pessoas, acrescentaste ainda mais à sua liberdade!", diz-lhe o inquisidor. "Esqueceste-Te de que a tranquilidade e até a morte são mais queridas para o Homem do que a escolha livre do bem e do mal? Não há nada mais sedutor para o Homem do que a liberdade da sua consciência, mas também não há nada mais torturante." Assim, ao longo de quinze séculos, os hierarcas eclesiásticos corrigiram a façanha de Cristo, baseando-a em milagre, mistério e autoridade. Agora, todos sabem em que é que hão-de acreditar e o que é que hão-de fazer, sem terem de perguntar porquê nem de escolher. "E as pessoas ficaram contentes por serem de novo guiadas como um rebanho e por ter sido tirada dos seus corações a dádiva terrível que tanto sofrimento lhes causava."


Como única resposta o prisioneiro beijou-o, e o velho cardeal vai até à porta, abre-a e diz: "Vai-te embora e não voltes mais... não voltes... nunca, nunca!"


O ser humano angustia-se com a liberdade. Porque ser livre quer dizer ser senhor de si e dos seus actos e ter de escolher e ter de responder por si e pelo mundo e pelos outros. Ter de escolher é para o ser humano, que quer tudo e todos os caminhos, ter de escolher algo e um caminho só de cada vez e ter de renunciar a tantas outras possibilidades, sem poder ficar com tudo, na consciência disso. Ser livre quer dizer entrar na urgência de um projecto e poder falhar e, num tempo irreversível, que inexoravelmente caminha para a morte, nunca mais ter tempo para remediar, para refazer, para fazer outra coisa e um ser si mesmo outro: é tudo sempre pela primeira e última vez, sem ensaios...


A angústia da liberdade e da responsabilidade  e a busca falaz da segurança explicam a facilidade da entrega a poderes totalitários, a seitas cegas, a colonizadores de corpos e de almas, a vendedores de "verdades e certezas" tapadas e irracionais.


A liberdade é condição de possibilidade da ética. Mas até do ponto de vista da raiz etimológica grega - ethos com épsilon e ethos com eta, que significam, respectivamente, acção, costume, modo habitual de agir, e toca do animal, morada, casa - se diz que a questão ética é indissociável da pergunta pela nossa morada enquanto horizonte de sentido, pátria onde se quer habitar. Sim! Afinal, para onde queremos ir? Na presente situação de hecatombe político-moral no país e no mundo, para onde vamos sem uma conversão ética?


Ao contrário do animal, que vem ao mundo já feito e age no quadro de uma rede de instintos, o homem vem ao mundo praticamente desarmado de instintos e aberto a possibilidades sem conta e tendo de fazer-se a si mesmo no mundo com os outros. Pode escolher entre esta e aquela possibilidade, até tem a capacidade de não escolher, mas quem tenta escolher não escolher também escolhe. De qualquer modo, é capaz de erguer-se a si mesmo acima do simplesmente agradável ou útil e colocar-se no lugar do outro. Transcende os interesses particulares da natureza e enquanto ser racional dá a si mesmo de modo autónomo a lei moral universal que é a lei da liberdade. Kant formulou-a nestes termos: "Age segundo uma máxima que queiras ao mesmo tempo que se transforme em lei universal de acção", ou então: "Trata a humanidade em ti e nos outros sempre como fim e nunca como simples meio."


Sem capacidade moral e liberdade - a liberdade é a condição de possibilidade da moralidade e, consequentemente, da responsabilidade -, o Homem não seria digno de louvor nem estaria sujeito à censura, e não haveria distinção entre o bem e o mal. Como escreveu o filósofo Luc Ferry, "um materialismo consequente deveria limitar-se, sempre, a uma 'etologia', sem nunca falar de moral a não ser como uma ilusão mais ou menos necessária, fazendo parte do real mas, sem embargo, enganadora". Embora condicionado, só porque não é completamente subordinado nem guiado pela natureza é que o ser humano "pode cometer excessos, quer no mal (o ódio e a maldade) quer no bem (o amor e a generosidade)".


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 24 de fevereiro de 2024

JESUS: O PODER E A AUTORIDADE

  


Terminada a festa do Carnaval, os cristãos entram na Quaresma: quarenta dias de mais profunda meditação, de mais intensa conversão, de amor mais vivo e perfeito, em ordem a poder celebrar com mais dignidade a Páscoa do Senhor enquanto passagem da escravidão à liberdade, da morte à vida.


Logo na quarta-feira de cinzas, é dita a cada um, a cada uma, ao mesmo tempo que lhe é colocada cinza na cabeça em sinal de humildade e exigência de reflexão, aquela palavra de Jesus no início da sua pregação: "Convertei-vos e acreditai no Evangelho”, a Boa Nova, notícia boa e felicitante.


De modo significativo, no primeiro Domingo da Quaresma, lê-se a passagem do Evangelho referente às tentações de Jesus. Ora, é importante que se diga que as três tentações estão todas referidas ao poder: poder económico, poder político, poder religioso. Jesus, antes de iniciar a sua vida pública, foi para o deserto rezar, meditar, e tinha de decidir se queria ser um Messias político, do poder, ou um Messias do amor, do serviço. Foi por esta segunda alternativa que seguiu: "Eu não vim para ser servido, mas para servir", e servir até dar a vida.


Essencial: a única verdadeira tentação, segundo o Evangelho, é a do poder, no sentido da dominação. Evidentemente, em qualquer sociedade o poder é inevitável. Toda a questão consiste em saber como é que ele é exercido e com que finalidade. Quantos se lembram que Ministro, na sua etimologia, significa pura e simplesmente servente, aquele que serve? Primeiro-Ministro é o que está à frente no serviço. Jesus disse aos discípulos, portanto, também ao papa, bispos, cardeais, padres: "Sabeis que os chefes das nações governam-nas como seus senhores. Não seja assim entre vós; pelo contrário, quem quiser fazer-se grande entre vós seja vosso servo".


Jesus renunciou ao poder enquanto domínio, mas é referido frequentemente no Evangelho que ensinava com autoridade. A palavra autoridade vem do verbo latino augere, que significa aumentar. Ter autoridade tem, portanto, a ver com fazer crescer, aumentar no ser. Cá está: servir. O poder legitima-se enquanto serviço de fazer crescer na liberdade e na dignidade... Presidentes, ministros, bispos, jornalistas, pais, professores, padres, polícias... exercem legitimamente o poder enquanto autoridade, quando ele faz crescer... Assim, não são apenas os súbditos que devem obedecer. A palavra obediência também tem a sua origem no latim: obaudire, que significa ouvir. Então, os que têm poder são os primeiros a ter de obedecer, isto é, a ter de ouvir aqueles que precisam que lhes seja feita justiça, ouvir a própria consciência, ouvir o apelo de todos aqueles que clamam por mais liberdade e dignidade... Não há superiores e inferiores. Há apenas homens e mulheres iguais em dignidade. E alguns estão constituídos em poder, que devem exercer como serviço a essa dignidade inviolável.


É curioso: quando se fala em tentações, o que vem normalmente à ideia é a tentação da carne, isto é, a tentação do sexo... Ora, sintomaticamente, Jesus também foi tentado, mas nenhuma das tentações se refere ao sexo; as tentações estão todas em conexão com o poder, com o domínio. Neste contexto, tenha-se presente o velho debate entre Freud e Adler: enquanto, segundo Freud, a pulsão humana fundamental está referida à libido e essencialmente ao prazer sexual, para Adler, essa pulsão tem a ver essencialmente com a auto-afirmação, com a vontade de poder. Ora, neste diferendo, é bem possível que seja Adler quem tem mais razão. Afinal, pensando bem, a própria sexualidade só constitui desvio quando alguém é utilizado como meio de prazer, quando a pessoa é instrumentalizada e coisificada.


Não; a grande tentação da Igreja, ao longo da sua história, foi e é o poder. Talvez isso explique até porque é que, no catálogo dos pecados, o sexo teve não só o predomínio, mas parecia, inclusivamente, deter a exclusividade do pecaminoso: no fundo, aninhava-se aí o medo de que o prazer subvertesse o poder... A tentação do poder nas Igrejas é tanto mais perigosa e deletéria quanto pretendam controlar, aprisionar o Sagrado e o Divino. Escreveu, com razão, Miguel Baptista Pereira: "Perdido o sentido do Mistério, instala-se a 'indoutrinação' e a administração definitiva do Absoluto e consagra-se a intangibilidade dos seus burocratas, não fosse dilema humano o serviço do Mistério ou a vontade ilimitada de poder". A Inquisição, que pode sempre continuar sob formas subtis, deriva da pretensão de dominar o Mistério. Quem julga deter o saber todo sobre Deus faz-se fatalmente inquisidor, no dia em que tenha do seu lado o poder político. (Diga-se, entre parêntesis, que foi também isso que aconteceu com os regimes comunistas, por exemplo: pensavam deter a ciência da História e controlavam completamente o poder político.) O pretenso saber total torna-se poder totalitário.


A novidade do Deus cristão é que, em Jesus Cristo, não vem em poder e majestade, mas como aquele que serve… Isto significa que, se Deus não dispõe de nós, muito menos nós podemos dispor de Deus. Deus é Mistério indisponível. Quem julga dispor de Deus, seja de que modo for, não esquece apenas que a fé termina no Mistério e não nas fórmulas do dogma. Corre sobretudo o risco de, com toda a desfaçatez, dispor dos homens e das mulheres... De facto, quem julga dispor de Deus porque é que não há-de dispor dos homens e das mulheres?


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 17 de fevereiro de 2024

SOBRE O RISO, O RIDÍCULO E O SAGRADO


"Foi tardiamente que os cristãos aceitaram os festejos carnavalescos às portas dos rigores da Quaresma. Apesar das tentativas da Igreja oficial para travá-los, eles continuaram e impuseram-se.” Foto: Maria João Gala / Global Imagens

 

Os Evangelhos referem mais de uma vez que Jesus chorou: nomeadamente, pela morte do seu amigo Lázaro e sobre Jerusalém e a sua ruína. Nunca se diz explicitamente que sorriu ou riu. Mas está escrito que se alegrou e exultou.


Comover-se, chorar, é próprio do ser humano. Como é próprio do ser humano sorrir e rir. Por isso, lá está Santo Tomás de Aquino a argumentar que, se era humano, é claro que também riu e sorriu. O animal não chora nem ri. O rosto de um ser humano que ri às gargalhadas pode ser do mais bonito que há. Sorrir e rir é sinal da transcendência humana: o ser humano está para lá do dado e do facto e, por isso, sempre também para lá de si mesmo. Ai do homem incapaz de rir-se de si próprio...


Evidentemente, há muitas formas de sorriso e riso, e as suas causas são múltiplas. O riso exultante não se identifica com o riso do desdém. O sorriso saltitante do acolhimento e da ternura nada tem a ver com o sorriso da ironia sardónica, e, muito menos, com o sorriso sobranceiro do desprezo. Em situações-limite, o riso estoira em lágrimas e a dor explode em riso. Tive uma vez uma jovem estudante que me pediu para escrever um “trabalho” precisamente sobre o riso, pois aconteceu-lhe que a mãe ao entrar na igreja e ao ver o cadáver da sua própria mãe (avó da jovem) começou a rir. Cá está: foi tal a dor, a angústia pela morte da mãe, que começou a rir-se — é isso: rimos até às lágrimas, choramos até ao riso…


Sintomaticamente, parte substancial das nossas piadas e anedotas não versam propriamente sobre o jocoso em si mesmo, mas sobre realidades tremendamente sérias: o sexo, a morte, o Além... Talvez por isso mesmo: por serem terrivelmente sérias. Talvez também por isso, o poder, em princípio, não tem boas relações com o humor e o riso e as ditaduras não toleram. É que o humor e o riso podem transportar consigo doses maciças de subversão corrosiva do poder no seu exercício, sobretudo no seu ridículo — não provém ridículo de ridere, precisamente rir?


Estas más relações são notórias concretamente quando consideramos o poder eclesiástico. Ainda não há muitos, muitos anos que os seminaristas nos seminários e as freiras nos conventos passavam os dias e as noites de Carnaval em adoração ao Santíssimo Sacramento, desagravando-o pelos pecados cometidos nesses dias e nessas noites. Não sei se alguém sabia ou saberá exactamente onde é que estava ou está a diferença entre os pecados do Carnaval e os pecados das outras épocas do ano...


Foi tardiamente que os cristãos aceitaram os festejos carnavalescos às portas dos rigores da Quaresma. Apesar das tentativas da Igreja oficial para travá-los, eles continuaram e impuseram-se.  Seja como for, havia na Idade Média uma festa, que era a Festa dos Loucos. Nessa festa, chegava-se ao cúmulo de paramentar um burro, que entrava, portanto, na igreja com as vestes litúrgicas. Realizava-se a Festa dos Loucos, uma crítica brutal ao poder eclesiástico. Arranjava-se um subdiácono, o grau mais baixo da hierarquia, era vestido de “bispo”, colocado em cima de um burro, entrava na igreja com a face voltada para a cauda, de costas para o altar. Em momentos fundamentais da liturgia, o celebrante e o povo zurravam. Na transmissão simbólica do báculo episcopal, rezava-se o Magnificat naquele passo: "e Deus derrubou os poderosos e exaltou os humildes." 


Há um texto da Faculdade de Teologia de Paris, que, em 1444, assim quer justificar a Festa dos Loucos: "Os nossos eminentes antepassados permitiram esta festa. Porque haveria ela de ser-nos interdita? Os tonéis do vinho rebentariam, se de vez em quando não se abrisse o batoque para arejá-los. Ora, nós somos velhos tonéis mal ajustados que o vinho da sabedoria rebentaria se o deixássemos ferver numa devoção contínua ao serviço divino. É por isso que dedicamos alguns dias aos jogos e à palhaçada, a fim de voltarmos em seguida com mais alegria e fervor ao estudo e aos exercícios da religião." Pelo menos, nessa altura, era permitido pôr a ridículo o poder clerical.


No meio de todo aquele aparato do Vaticano, não há uma contradição entre a pompa e a cruz?  E há aquele texto do filósofo Sören Kierkegaard, que diz mais ou menos assim: vai Sua Excelência Reverendíssima o Bispo de Copenhaga, revestido de paramentos com filamentos de ouro e um báculo e uma mitra debruados de pedras preciosas, com todo o seu séquito em esplendor, senta-se num cadeirão de prata e dá início à sua homilia sobre a pobreza. E ninguém se ri!...


A alguém que se sentisse irritado com estas perguntas lembro um texto de Joseph Ratzinger, mais tarde Bento XVI, no qual escreveu que, se hoje se critica menos a Igreja do que na Idade Média, não é porque se tem mais amor à Igreja, mas a si e à carreira.


É para mim evidente que não deve, não pode ser permitido ridicularizar de modo boçal o Sagrado, o Divino. Se isso fosse permitido, era a hecatombe. Mas a questão é outra: pôr a nu, pelo riso, a diferença entre o Sagrado e aquilo que nós seres humanos finitos fazemos dele é saudável. Porque o Divino e o Sagrado não se identificam com o que fazemos deles. Quem pode imaginar e admitir o ridículo de certas imagens de Deus na inteligência e no coração de alguns crentes? Assim, rir-se do modo como nós falamos do Mistério e do modo como o tratamos pode ser uma maneira sã de nos darmos conta da Transcendência do Mistério e do Divino. Que ao mesmo tempo se revelam e se ocultam.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 10 de fevereiro de 2024

A RELIGIÃO CONFRONTADA COM A RAZÃO CRÍTICA

  


Afinal, o que justamente nos indigna noutros também já esteve presente, de uma forma ou outra, entre nós. E será que a tentação não continua lá?


Vamos dar exemplos.


Não foi há mil anos - muitos de nós ainda se lembram perfeitamente disso -- que as mulheres só podiam entrar nas igrejas com o véu e  que a missa era em latim, e as pessoas ali estavam durante uma hora ou mais a ouvir e a dizer o que exprimimos no dito: para mim, é chinês.


Tudo indica que, enquanto pôde, o clero controlou a vida sexual dos fiéis, a ponto de o historiador Guy Bechtel afirmar que a fractura entre a Igreja católica e o mundo moderno se deu essencialmente na teoria do sexo e do amor: "Onde Estaline se detinha à porta da alcova, a Igreja pretendia deslizar para o meio dos lençóis", pois o diabo estava também e sobretudo dentro da cama. A confissão inquisitorial centrada na actividade sexual terá sido causa determinante na descristianização da Europa. Neste sentido, o historiador católico Jean Delumeau afirmou: "As minhas investigações históricas convenceram-me de que a imagem do Deus castigador e vingativo foi um factor decisivo de uma descristianização cujas raízes são antigas e poderosas". Os homens e as mulheres começaram a abandonar a Igreja, quando recusaram a confissão do seu território sexual, isto é, quando contestaram a invasão do segredo da intimidade, considerado um direito inalienável.  Ah! E o carácter hediondo da pedofilia!...


Não é preciso lembrar os homens e as mulheres que foram assados nas fogueiras da Inquisição e não só: porque tinham ideias novas que não estavam de acordo com o que os guardiões da fé tinham estabelecido como a verdade, ou por causa do medo pânico da mulher, que se chegou a acusar de manter relações sexuais com o diabo...


Houve os autos-de-fé, e também os livros considerados heréticos foram queimados.


No passivo do cristianismo histórico, estão as cruzadas, as guerras de religião, as conquistas coloniais, a missionação forçada. Já Kant se referiu aos Descobrimentos nestes termos: "A América, os países negros, as ilhas das especiarias, o Cabo, etc., eram para eles, na sua descoberta, países que não pertenciam a ninguém, pois os habitantes nada contavam para eles". Este "eles" refere-se às "potências que querem fazer muitas coisas por piedade e pretendem considerar-se como eleitas dentro da ortodoxia, enquanto bebem a injustiça como água".


Assim reza a bula “Romanus Pontifex” (1454) para os reis de Portugal: “Nós concedemos faculdade plena e livre para invadir, conquistar, combater, vencer e submeter quaisquer sarracenos e pagãos e outros inimigos de Cristo, em qualquer parte que estiverem, e os reinos, ducados, principados, domínios, possessões e bens móveis e imóveis tidos e possuídos por eles; e reduzir a escravidão perpétua as pessoas dos mesmos, e destinar para si e os seus sucessores e apropriar-se e aplicar para uso e utilidade sua e dos seus sucessores os reinos, ducados, condados, principados, domínios, possessões e bens deles...”.


Há também a bula “Inter caetera” de Alexandre VI (1493) concedendo os mesmos direitos aos reis de Castela, mas com uma diferença, como sublinha o historiador teólogo Mariano Delgado: não autoriza explicitamente a escravizar os pagãos (índios), pois, insistindo no mandato da evangelização, exclui implicitamente a escravização, porque os baptizados não podiam ser escravizados.


Hoje é sabido que 20 milhões de africanos foram escravizados.


Há uma Constituição do Papa Clemente XI, que proíbe a leitura da Bíblia, incluindo os Evangelhos, aos leigos, e especialmente às mulheres.


Pio VI condenou a "detestável filosofia dos direitos do Homem". Pio XI condenou a evolução.


No termo do século XX, o teólogo Eugen Drewermann escreveu: "Há 500 anos a Igreja recusou a Reforma; há 200, o Iluminismo; há 100, as ciênciass naturais; há 50, a psicanálise. Como viver com tantas rejeições?". E o cardeal Carlo Martini, que o Papa Francisco cita, constatava que “a Igreja anda atrasada mais de duzentos anos”.


Apesar de tudo, julgo poder afirmar que no cômputo global o saldo é superior a favor da religião, nomeadamente do cristianismo. Esta evocação histórica não é, portanto, de modo nenhum um exercício de masoquismo. Quer apenas mostrar que se tornou absolutamente claro que não só não é humano mas tremendamente perigoso aderir de modo cego a uma religião. A fé não é produto da razão, mas a fé autêntica exige a intervenção da razão crítica. Foi esta intervenção que levou, por exemplo, à compreensão de que os livros sagrados - a Bíblia, o Alcorão ou outros - não são ditados divinos; por isso, precisam de interpretação, de uma hermenêutica histórica, não podendo ser engolidos na sua totalidade de modo acrítico. Tornou-se sobretudo transparente que uma religião que seja contra o ser humano, o diminua ou amesquinhe, das duas uma: ou é uma religião falsa ou interpreta-se mal a si própria.


Não me canso de sublinhar que o Novo Testamento “define” Deus como “Amor Incondicional” (Agapê) e também como Lógos (Palavra, Inteligência, Razão) e, por isso, uma vida autenticamente humana e cristã se realiza no cruzamento do amor e da inteligência, da bondade e da razão. E peço aos críticos e inimigos de Francisco, o Papa-cristão que procura levar a Igreja ao Evangelho e trazer o Evangelho à Igreja, que não se esqueçam das desgraças da História.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 3 de fevereiro de 2024

AS CONDIÇÕES DO URGENTE DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO

  


Tanta gente que foi morta ao longo dos séculos, vítima do ódio e de interesses económicos, políticos, geoestratégicos, imperativos de monopólio religioso, e  em nome de  Deus!... Haverá coisa mais abjecta e absurda? É evidente que o deus em nome do qual arbitrariamente se torturou, se assassinou, se vandalizou, não existe. Não passa de um ídolo execrável, que serviu  de legitimação a interesses brutais, sujos, selváticos. Escusado será dizer que esse deus idolátrico produz e tem de produzir inevitavelmente ateísmo. Matar, mandar matar está nos antípodas do santo nome do Deus vivo.


E hoje essa tragédia continua. E porque entre nós não se fala disso, quero (entre parêntesis) apresentar alguns números sobre a perseguição dos cristãos, sabendo-se que o cristianismo é hoje a religião mais perseguida no mundo. Não é a única, evidentemente — pense-se, por exemplo, nos rohinga, adeptos da religião muçulmana e na sua perseguição brutal em Myanmar, país maioritariamente budista. Segundo a ONG  “Puertas Abiertas”, no seu relatório de 2024 referente à perseguição dos cristãos, acabado de ser publicado, entre 1 de Outubro de 2022 e 30 de Setembro de 2023, 14.766 lugares de culto foram destruídos ou encerrados e 4.998 cristãos foram assassinados. Um em cada 7 cristãos é perseguido no mundo — um em cada 5 na África, 2 em cada 5 na Ásia, um em cada 16 na América Latina. A Coreia do Norte voltou a encabeçar o ranking negativo de perseguição mais severa, seguindo-se Somália, Líbia, Eritreia, Iémen, Nigéria, Paquistão, Sudão, Irão e Afeganistão, ocupando Índia e China os lugares 11 e 19, respectivamente. Segundo o Relatório, são 57 os países onde os cristãos enfrentam uma perseguição severa...


Voltando  à temática das religiões, constatamos que a corrupção do óptimo é péssima. A religião, que é, pode e deve ser a pátria da expansão in-finita do ser humano, da libertação, da dignidade e dignificação de todos, do amor, da alegria, da paz, do sentido último, também foi, é e pode tornar-se o espaço da loucura toda, à solta. Na religião, houve e há o melhor e o pior: nela, aconteceu e acontece a subida ao céu do humano heróico até ao divino; nela, desceu-se até ao inferno da desumanidade diabólica. Neste início ainda do século XXI, com a confusão e o medo instalados, reflectir sobre esta realidade é imprescindível.


O que durante tanto tempo Hans Küng, recentemente falecido, sublinhou — a necessidade do diálogo inter-religioso para ser possível a paz no mundo — é cada vez mais urgente. Entende-se mais claramente do que nunca que a obra do famoso teólogo se oriente pelo lema: "Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso globo sem um ethos global, um ethos mundial."


Este diálogo assenta em quatro pilares fundamentais. Primeiro: todas as religiões, desde que não só não se oponham ao Humanum, mas, pelo contrário, o afirmem e promovam, são reveladas e verdadeiras. Segundo: as religiões são manifestações e encarnações da relação de Deus com o Homem e do Homem com Deus. Todas são relativas, no duplo sentido de relativo, dito já no étimo latino: relativas, na medida em que estão inevitavelmente inseridas num determinado contexto histórico-social, e relativas, no sentido de que estão referidas, isto é, em relação com o Absoluto, mas elas próprias não são o Absoluto. Precisamente este segundo pilar exige o terceiro: se não são o Absoluto, embora referidas a ele, então os homens e mulheres religiosos devem dialogar para melhor se aproximarem desse Mistério divino já presente em cada religião, mas sempre transcendente a cada uma e a todas. Não se trata, portanto, de mera tolerância religiosa, que pressupõe ainda uma superioridade de quem tolera o outro considerado inferior. É o próprio Mistério infinito de Deus que exige o diálogo para que os crentes se enriqueçam mutuamente num sempre a caminho do Mistério que se revela e ao mesmo tempo se oculta, e do qual o ser humano não pode apoderar-se nem dominar. Deste diálogo fazem parte os ateus, pois são eles que permanentemente previnem os crentes contra a idolatria e a desumanidade. Finalmente — é o quarto pilar —, se Deus é o Mistério que tudo penetra e a todos envolve, então o respeito pelo outro crente, pelo outro homem, por todas as criaturas, não é algo de acrescentado à fé religiosa, mas exigido pelo próprio dinamismo dessa fé. Acreditar em Deus implica em si mesmo acreditar no ser humano, em todo o ser humano.


E uma última observação, essencial. Não haverá paz entre as religiões e com as religiões, sem dois pressupostos fundamentais, e, aqui, peço desculpa por fazer um apelo nomeadamente ao islão, porque aquilo que custou tanto a perceber e concretizar na e pela Igreja católica, vai ser muito mais difícil para o Islão. Primeiro: condição fundamental é a leitura histórico-crítica dos textos sagrados, que não admitem de modo nenhum uma leitura literal. Segundo: a laicidade do Estado, a separação do Estado e da(s) Igreja(s), o Estado não tem nenhuma religião, para poder salvaguardar a liberdade de todos, o que não significa de modo nenhum laicismo, que seria a pretensão de remeter a religião só para o espaço privado,  como se ela não tivesse lugar no espaço público.   


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 27 de janeiro de 2024

A TEMPESTADE DAS BENÇÃOS

  


1. Penso que para ninguém faz sentido casar por um período determinado de tempo. É perfeitamente claro que não há casamentos a prazo, ele é para a vida toda: “até que a morte nos separe.” O que se passa é que a vida é o que é e pode acontecer que de facto tenha um  termo, podendo mesmo chegar a um ponto em que a separação pode ser até obrigatória — quando há violência, por exemplo, e a educação dos filhos está em perigo. 


Nestas circunstâncias, como aliás tinha escrito Bento XVI quando era apenas o professor Joseph Ratzinger, desde que tenham sido  satisfeitos todos os deveres de justiça em relação com o primeiro casamento, por exemplo, no caso de haver filhos, e se há um novo amor, com verdadeiro  compromisso  na dignidade e na fidelidade cristãs e se os filhos são educados na fé  cristã, já me aconteceu dar uma bênção e admitir esses casais à comunhão. Aliás, Francisco já deu orientações para estes casos.


Fui durante muito tempo professor de Antropologia Filosófica, e hoje é sabido que há homossexuais. Porque  é que não hão-de ser acolhidos? Assim, na sequência do seu casamento civil, já dei, com todo sentido de responsabilidade, uma bênção, numa celebração em família, a um casal de lésbicas, pessoas cristãs, com o sentido da responsabilidade, dedicadas ao trabalho generoso pelos outros, no cumprimento do dever. Na celebração, prometeram e juraram amor nas horas boas e nas horas más, respeito e fidelidade até à morte, e a graça de Deus foi invocada para as suas vidas em comum. É claro que para mim não foi um sacramento no sentido litúrgico-canónico,  mas nem por isso deixou de ser um sacramento  —  Santo Agostinho falou em dezenas de sacramentos —, no sentido mais profundo da palavra: um sinal visível da presença e da actuação de Deus.


2. Estando a Igreja a caminho da celebração no próximo mês de Outubro da segunda sessão do Sínodo dos Bispos, com voz e voto também de leigos e leigas, precisamente sobre a sinodalidade da Igreja, constituiu uma surpresa para quase todos a publicação no passado dia 18 de Dezembro da declaração Fiducia supplicans (Confiança suplicante), um texto assinado pelo cardeal Víctor Manuel Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, e aprovado pelo Papa Francisco, autorizando os bispos, os padres e os diáconos a abençoar ”casais em situação irregular”, como os divorciados recasados e os casais homossexuais. É sobretudo a admissão da possibilidade da bênção dos casais do mesmo sexo que tem levantado um clamor de críticas.


Foi e é uma tempestade, com padres e bispos a recusar dar essa bênção e até com cardeais a considerar Fiducia Supplicans um documento “erróneo, herético, blasfematório”.


Não há de modo nenhum razão para essas críticas, como não se cansa de repetir o cardeal Víctor Fernández.  Mas a questão tem particular relevância na África  onde a homossexualidade é interdita em 32 países e nalguns o simples facto de se declarar gay  pode levar à prisão. O prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, que mostra compreensão para casos como este, não se tem cansado em  desfazer equívocos.


Fica aí uma síntese da entrevista bem esclarecedora  Religuil:  Vdora rizando os padasal de homossexuais, de crssoas do mesmo sexo.e aprovado pelo Papa Francisco autorizando os pad a  Religión Digital. À pergunta: “abençoa-.se as pessoas ou também os casais”, respondeu: “A Declaração diz até à exaustão que há um só matrimónio (homem-mulher, indissolúvel, etc). Diz que esse é o único contexto adequado das relações sexuais. Diz que se deve evitar as bênçãos ritualizadas que poderiam levar à confusão. Parece-me estranho que se possa interpretar mal um texto tão clássico. Explica que se abençoa o casal, essas duas pessoas que se apresentam, mas não a união em si mesma. Vê-se que é um tema que provoca urticárias.” O que responde aos bispos que dizem que a Declaração é inoportuna, desnecessária (já em 2021 se tinha falado do tema), que defrauda? Resposta: “Em 2021  dizia-se que só se podia abençoar os indivíduos separadamente. Aqui, diz-se que na realidade podem estar os dois juntos, porque este tipo de bênçãos pastorais, não rituais, não pretendem validar nada. Por outro lado, o texto nunca fala de abençoar “a união”, coisa que se exclui com base na doutrina tradicional da Igreja, mas se abençoa essas duas pessoas que estão em casal, e pede-se para esse casal saúde, trabalho, paciência, e que possam viver cada vez com maior fidelidade ao Evangelho.” Com uma oração semelhante a esta, esclareceu noutra ocasião:  “Senhor, olha estes teus filhos, concede-lhes saúde, trabalho, paz, ajuda mútua. Livra-os de tudo o que contradiz o Evangelho e concede-lhes viver segundo a tua vontade. Amém.”


3. Sabemos que há homossexuais, trans e outros. E impõe-se tratar essa realidade com naturalidade, e todas as pessoas são dignas de respeito, atendendo inclusivamente ao que sofreram ao longo dos tempos.


Neste contexto, pergunto: quando um casal de homossexuais, na verdade da dignidade, sem relativismo moral, sem confusões nem exibicionismo, pede uma bênção, não é uma bênção para a sua união? Então, como ficou dito, não se trata de um sacramento? Respondo, citando o jesuíta Juan Masiá: “Toda a vida da Igreja é sacramento como participação no Sacramento Radical que é Jesus Cristo, Sacramento do encontro com Deus... Na união civil de baptizados e a bênção eclesial (não canónica, mas eclesial) de casais ‘”irregulares”, pode haver autêntico sacramento (em contexto eclesial, no melhor sentido da palavra).”


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 13 de janeiro de 2024

PASCAL: O HOMEM E DEUS. 3

Pascal_3_anselmo_borges.jpg

 
O Memorial, fé e razão, a aposta
 
Pascal entregou-se totalmente a Deus e doou os seus bens aos pobres. Em 1654 teve uma experiência extraordinária, mística, com o Deus vivo, de tal modo marcante que a descreveu e guardou escrita em segredo cosida no forro do casaco, tendo sido descoberta depois da morte por um criado. É o famoso Memorial:
"Ano da graça de 1654, Segunda-Feira, 23 de Novembro, dia de São Clemente, papa e mártir, e de outros no martirológio. Véspera de São Crisógono, mártir, e outros. Das dez horas e meia da noite, mais ou menos, até mais ou menos meia-noite e meia. FOGO. Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob, não dos filósofos e dos sábios. Certeza. Certeza. Sentimento. Alegria. Paz. DEUS de Jesus Cristo. Deum meum et Deum vestrum (Meu Deus e vosso Deus). "O teu Deus será o meu Deus". Esquecimento do mundo e de tudo, menos de Deus. Ele não se encontra senão pelas vias ensinadas no Evangelho. Grandeza da alma humana. "Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu conheci-te". Alegria, alegria, alegria, lágrimas de alegria. Separei-me dele. Dereliquerunt me fontem aquae vivae. Meu Deus, abandonar-me-eis? Que eu não me separe de ti eternamente. Esta é a vida eterna: que te conheçam a ti, único Deus verdadeiro, e aquele que enviaste, Jesus Cristo. Jesus Cristo, Jesus Cristo. Eu separei-me dele, fugi dele, reneguei-o, crucifiquei-o. Que eu nunca me separe dele. Ele só se conserva pelas vias ensinadas no Evangelho: Renúncia total e doce. Submissão total a Jesus Cristo e ao meu director. Alegria eterna por um dia de exercício na terra. Non obliviscar sermones tuos. Ámen."
 
Pascal foi sempre crente, mas entendendo cada vez mais profundamente que só em Deus, no Deus vivo, o Deus de Jesus, o homem encontra a resposta para a sua tensão constitutiva e a verdade e o sentido pleno para a existência.
 
Foi uma experiência mística. Mas a fé tem de ser acompanhada pela razão, como diz em muitos textos. "Conhecemos a verdade não só pela razão, mas também pelo coração. "Miséria do homem sem Deus. Felicidade do homem com Deus." "Os homens têm desprezo pela Religião. Têm-lhe ódio e temem que seja verdadeira; para curar isso, é preciso começar por mostrar que a Religião não é contrária à razão, mas venerável, e digna de respeito. Torná-la em seguida amável." "Submissão e uso da razão: é nisso que consiste o verdadeiro cristianismo." "Se tudo submetermos à razão, a nossa religião nada terá de misterioso e de sobrenatural. Se contrariarmos os princípios da razão, a nossa religião será absurda e ridícula." "Há poucos cristãos verdadeiros. Digo o mesmo na questão da fé. Há muitos que crêem, mas por superstição. Há muitos que não crêem, mas por libertinagem, há poucos entre uns e outros. "A piedade é diferente da superstição."
 
Pensando concretamente nos libertinos, deixou o famoso pari (aposta). Como reza a aposta pascaliana em termos simples? Cito.
 
"Deus existe ou não existe. Para que lado nos inclinaremos? A razão não o pode determinar: há um caos infinito que nos separa. Na extremidade dessa distância infinita, joga-se um jogo em que há-de sair cruz ou coroa. Em que apostareis? É preciso apostar. Não é coisa que dependa da vontade. Já estais embarcados. Que escolha fareis? Já que é preciso escolher, vejamos o que menos vos interessa. Tendes duas coisas a perder: a verdade e o bem; e duas coisas a empenhar: a vossa razão e a vossa vontade, o vosso conhecimento e a vossa bem-aventurança; e a vossa natureza tem de evitar duas coisas: o erro e a miséria. A vossa razão não será mais lesada por escolherdes uma coisa de preferência à outra, pois é forçoso escolher. Eis um ponto assente. Mas a vossa felicidade eterna? Ponderemos o ganho e a perda, escolhendo a cruz que é Deus. Ponderemos estes dois casos: se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, não perdereis nada. Apostai, pois, que Deus existe, sem hesitação. Há uma eternidade de vida e de felicidade. Há nisto uma infinidade de vida inteiramente feliz a ganhar, uma probabilidade de ganhar contra um número finito de probabilidades de perder, e o que jogais é finito. A nossa proposição tem por si uma força infinita, quando há o finito a arriscar num jogo onde há iguais probabilidades de ganho ou perda, e o infinito a ganhar. Que mal vos poderá acontecer tomando tal partido?" Mesmo em relação a esta vida terrena, o que perdereis? Nada. Pelo contrário, ganhais. Porquê? "Sereis fiel, honesto, humilde, reconhecido, benfazejo, amigo, homem de bem, sincero, amigo de verdade. Com efeito, não ficareis no meio dos prazeres empestados, com a glória, com as delícias, mas não tereis outras delícias? Digo-vos que ganhareis até nesta vida, e que, a cada passo que derdes neste caminho, vereis tanta certeza de ganho, e tanta nulidade naquilo que arriscais, que reconhecereis, por fim, ter apostado numa coisa certa, infinita, pela qual nada haveis dado."
 
"Oh! Este raciocínio transporta-me, arrebata-me, etc. " "Se vos agrada e vos parece forte, sabei que ele é feito por um homem que se pôs de joelhos antes e depois, para pedir ao Ser infinito e sem partes, ao qual submete tudo o que é seu, que submeta também o que é vosso para vosso próprio bem e para a sua glória, e que assim a força se concilie com essa baixeza" (de ajoelhar).
 
A sua última oração, antes de morrer: "Que Deus nunca me abandone!"
 
Bom Natal!
 
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 23 de dezembro de 2023