Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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O padre italiano Antonio Rosmini foi um notável filósofo e teólogo do século XIX, que, perante as transformações que então se operavam, escreveu, por amor à Igreja, em 1832, um livro famoso com o título Delle cinque plaghe della Santa Chiesa (Sobre as cinco chagas da Santa Igreja).
Desgraçadamente, a obra foi condenada e colocada no Index Librorum Prohibitorum (Catálogo dos livros proibidos). Mas, lentamente, a sua memória foi reabilitada e até foi beatificado em 2007 por Bento XVI. Em síntese, quais eram essas chagas? “O distanciamento entre o clero e o povo (na vida e na liturgia — não esquecer que as celebrações litúrgicas eram em latim); a fraca formação do clero, tanto no plano cultural como espiritual; a desunião entre os bispos; a intromissão da política na nomeação dos bispos; a riqueza acumulada pela Igreja”.
Na esteira de Rosmini, o padre espanhol Luis Pose Regueiro, historiador da Igreja, acaba de publicar em Religión Digital, “as dez chagas da Igreja”. Baseado no essencial do seu texto, deixo aí uma reflexão sobre essas chagas.
1. O tradicionalismo e o individualismo. Vivemos em tempos de confusão, incerteza, perplexidade, e, neste quadro, há a tentação de “refugiar-se anacronicamente na segurança do antes” — sempre se fez assim — ou então “isolar-se” no que cada um considera o correcto e mais seguro. Ora, o que se impõe é ir ao Evangelho e procurar “um caminho o mais possível comum”, seguindo o velho princípio: “nas coisas necessárias, unidade; nas duvidosas, liberdade; em tudo, caridade.”
2. O clericalismo. O poder dos padres e dos bispos, do clero, é tantas vezes “excessivo e distanciador”. Contra uma Igreja piramidal, Francisco não se tem cansado de chamar a atenção para essa “peste” do clericalismo e do carreirismo, que impede uma Igreja verdadeiramente sinodal, que a todos mobilize.
3. As riquezas e bens acumulados. “Por vezes ainda se vêem comportamentos economicistas por parte de pastores que sustentam uma espécie de ‘mercado’ de sacramentos.” E eu pergunto: não é um escândalo os cardeais na Cúria, com tudo pago — felizmente, o Papa Francisco acaba de decretar que cardeais e bispos da Cúria devem pagar uma renda pelos apartamentos no Vaticano—, terem um salário entre 4 e 5 mil euros mensais? Também penso que “precisamos de procurar maneiras dignas de austeridade, desprendimento e caridade.”
4. O etnocentrismo. A Igreja continua demasiado “romanocêntrica”. A mensagem do Evangelho precisa de encarnar nas várias culturas e actualizar a linguagem. Pergunto muitas vezes: o que teria acontecido na nossa compreensão da mensagem cristã, se o cristianismo, no princípio, em vez de ter passado da cultura hebraica para a cultura helénica, tivesse passado para a China ou para a Índia?
5. O machismo. Jesus, para escândalo de muitos, teve discípulos e discípulas. São Paulo entendeu que “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo.” Portanto, também na Igreja não pode haver discriminação das mulheres. O que pode impedi-las de presidir à Eucaristia?
6. O celibato obrigatório. O celibato como opção livre “é um chamamento digno e admirável, como o de unir-se para formar uma família: um e outro requerem amor, sacrifício e dedicação (não sei qual é mais exigente...). “ Onde está que Jesus exigiu o celibato? Francisco acaba de mostrar abertura à sua revisão.
7. A visão reducionista da sexualidade. “A doutrina ‘oficial’ pelo menos já defende que o sexo não é só para a procriação e admite a paternidade/maternidade responsável, mas não admite os métodos anticonceptivos artificiais nem o sexo pré-matrimonial; julgo que, no primeiro caso, se trata de uma incoerência (se se admite a atitude, porque não admitir uma ajuda artificial?) e, no segundo, de uma ingenuidade (não só porque não é cumprível, mas porque desconhece a importância do sexo na comunicação e vida de um casal).”
8. A homofobia. Já algo se avançou “em relação à visão humilhante da homossexualidade — que não é uma doença nem um capricho —, mas continua a não se aceitar que seja um modo digno de pessoas que se amam em consciência; e creio que isso é o verdadeiramente importante e o que Deus nos pede: que as pessoas amem como sentem em consciência.” Pergunto: o que impede, neste caso, que se lhes dê uma bênção?
9. Os abusos sexuais e o seu encobrimento. Uma infâmia, como aqui tenho escrito desde há muito tempo, os abusos e o seu encobrimento sistémico. Impõe-se cuidar das vítimas, que têm de ocupar o centro, fazer reparação, também financeira, sabendo que é um pecado hediondo, mas também um crime. E fica a necessidade de repensar a formação dos padres, também no domínio afectivo-sexual. E, com a idade com que são ordenados, têm consciência dos compromissos que assumem? E sabem o quê da vida real? Como garantir “tolerância zero”?
10. O ritualismo vazio e a espiritualidade débil. As celebrações comunitárias devem ser alimento para a vida cristã, também para a prática na vida quotidiana. Mas o que se constata é que de facto se fica num “cumprimento rotineiro e pouco enriquecedor”. E quando se pensa nas homilias...
Concluindo: Se houver a convicção funda da importância da Igreja, cuja missão é levar e entregar, por palavras e obras, a mensagem de Jesus à humanidade de cada tempo, para a vida das pessoas e das sociedades, estas questões não poderão deixar de ser debatidas com “liberdade e audácia”.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 18 de março de 2023
Foi a 13 de Março de 2013 — faz agora 10 anos —, que foi eleito. E percebeu-se logo naquela tarde que vinha como cristão: simples, sem aparato, inclinou-se perante a multidão, e ficou gravada na memória de todos aquela sua saudação: “buena sera” (boa tarde), que o tinham ido “buscar ao fim do mundo para bispo de Roma” (ele não usará o título de Papa), e, antes de dar a bênção, pediu que fossem os fiéis a pedir a bênção de Deus para ele primeiro.
O nome escolhido era revelador: Francisco, lembrando Francisco de Assis a quem pareceu uma vez ter ouvido dos lábios de Cristo crucificado o pedido: “Francisco, repara a minha Igreja, que ameaça ruina.” Sim, o Papa Francisco chegou e, por palavras e obras, é o que tem feito: não foi viver para o Palácio Apostólico, utiliza um carro modesto, está com todos, começando pelos mais pobres, acolhendo prostitutas, sorrindo e abraçando, brincando com crianças que lhe roubam o solidéu...
Era urgente reformar a Cúria, cujas doenças, a título de exemplo, elencou logo na saudação natalícia papal de 2014: tudo gira à volta da “patologia do poder”, e a primeira doença é “pensar e sentir-se imortal, indispensável” e lá estão “a rivalidade e a vanglória”, e a “esquizofrenia existencial”, o “Alzheimer espiritual”, “divinizar os chefes”... Francisco rodeou-se de uma equipa de cardeais para a missão da reforma e ela aí está na Constituição Apostólica Praedicate Evangelium (Pregai o Evangelho), onde, logo no título se diz o essencial: anunciar o Evangelho, a notícia boa e felicitante de Jesus para todos. Para que serve a Igreja se não anuncia e pratica o Evangelho?
Os escândalos do Banco do Vaticano eram outra fonte de terrível preocupação: para onde vão, como se utilizam, os dinheiros que vêm dos fiéis? Francisco tudo tem feito, inclusive apelando a regras internacionais, para impor a transparência.
Que dizer da ignomínia da pedofilia? Para ela, “tolerância zero”. E não apenas com palavras, mas com determinações seguras, também penais: a pedofilia não é só um pecado, é um crime... “Não posso começar sem pedir perdão uma vez mais. Nunca serão suficientes as nossas palavras de arrependimento e consolação para as vítimas de abusos sexuais por parte dos membros da Igreja. Pecámos gravemente: milhares de vidas foram arruinadas por quem tinha o dever de cuidar delas e defendê-las. Nunca será suficiente o que fizermos para tentar reparar o dano que causámos.”
Francisco é combatente acérrimo contra o clericalismo e o carreirismo eclesiástico, uma “peste” na Igreja. Não quer “bispos príncipes” nem “bispos de aeroporto”. Contra a “casta” eclesiástica: “Há um profundo desprezo pelo povo santo de Deus. Já não são pastores, mas capatazes”. Mais uma vez, na sua recente visita ao Sudão do Sul, no encontro com os bispos, o clero e os religiosos, pediu aos pastores que fossem compassivos e misericordiosos, “não senhores do povo” . A Igreja de Cristo “situa-se no meio da vida sofredora do povo, e suja as mãos pelo povo”.
Bate-se pelo diálogo ecuménico e inter-religioso e pratica-o. Por exemplo, esteve na Suécia para participar na comemoração dos 500 anos da Reforma. “Creio que as intuições de Martinho Lutero não eram equivocadas: era um reformador. Talvez alguns métodos não tenham sido adequados, mas pensando naquele tempo vemos que a Igreja não era realmente um modelo a imitar: havia corrupção na Igreja, espírito mundano, apego ao dinheiro e ao poder.” É amigo de Bartolomeu, patriarca ortodoxo de Constantinopla, a quem até já pediu a bênção. Foi com o arcebispo anglicano de Cantuária, J. Welby, visitar o Sudão do Sul. Esteve em vários países de imensa maioria muçulmana e assinou, em Abu Dhabi, juntamente com o grande imã da mesquita Al-Azhar, A. Al-Tayyeb, o “Documento sobre a Fraternidade Humana”.
Sobre a ecologia, escreveu uma encíclica que fica para a História: a Laudato Sí, defendendo uma “ecologia integral”, vinculando a urgência da defesa da Natureza e a dos mais pobres. A Terra é criação de Deus, e, sem a salvaguarda do ecossistema, o que está em jogo é o planeta e a sobrevivência da Humanidade.
Desde o princípio, defensor acérrimo da paz, a sua intervenção política foi notada, a ponto de se ter tornado um líder político-moral global, talvez o mais ouvido. Significativamente, a sua primeira visita fora de Roma foi a Lampedusa, para clamar a favor dos refugiados e uma política contra a “globalização da indiferença”. A quem o acusa de “fazer política”, responde: “Sim, estou a fazer política. Porque toda a pessoa tem de fazer política”. A quem lhe chama comunista remete para o Evangelho e acrescenta: “Não condeno o capitalismo e também não estou contra o mercado”: o que defende é a “economia social de mercado”. “A mesa económica não funciona só com duas pernas. Com três, sim: o capital, o trabalho e o Estado como regulador.”
Entretanto, nestes dez anos, Francisco foi abrindo portas para uma nova compreensão e abertura no domínio da moral sexual, por exemplo, abrindo portas de acesso à comunhão de divorciados recasados, aos anticonceptivos, aos homossexuais...
A reforma decisiva da Igreja ficará historicamente definida com a sinodalidade e a superação do domínio patriarcal. Aí está uma razão essencial para não querer resignar antes de 2024: levar a termo o Sínodo sobre a sinodalidade.
E é feliz? “Estou feliz porque me sinto feliz. Deus faz-me feliz”, disse há pouco à America Magazine.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 11 de março de 2023
Torna-se cada vez mais claro que a Igreja precisa de uma conversão a fundo. Com a tomada de consciência da tragédia da pedofilia, fala-se de um sismo e impõe-se uma reconstrução desde os fundamentos: Jesus e o Evangelho.
Neste contexto, permita-se-me que volte ao teólogo Hans Küng, católico convicto e pensador universal, que nos deixou em Abril de 2021 e que constitui certamente uma das fontes inspiradoras do Papa Francisco. Também ele pensava que é urgente cada uma, cada um, interrogar-se sobre a sua fé pessoal. No seu livro Was ichglaube (O que eu creio) deu testemunho, respondendo, de modo pessoal e profundo, às perguntas essenciais: em que posso acreditar?, em que posso confiar?, em que posso esperar?, como posso configurar a minha vida? De facto, a fé vive-se em Igreja, mas de modo pessoal. E só se pode transmitir aos outros, se realmente se mostra como Evangelho, notícia boa e felicitante para nós.
Foi assim que já em 2011 escreveu o livro Ist die Kirche noch zuretten? (A Igreja ainda tem salvação?), a que várias vezes aqui me referi. Foi por imperativo de consciência que o escreveu: "Na presente situação, o silêncio seria irresponsável".
De que sofre a Igreja? A Igreja católica, a maior, a mais poderosa, a mais internacional Igreja, essa grande comunidade de fé, está "realmente doente", "sofre do sistema romano de poder", que se caracteriza pelo monopólio da verdade, pelo juridicismo e clericalismo, pelo medo do sexo e da mulher, pela violência espiritual. E que propõe?
É preciso voltar a Jesus Cristo, ao que ele foi, é, quis e quer. De facto, em síntese, a Igreja é “a comunidade dos que se entregaram a Jesus Cristo e à sua causa e a testemunham com energia como esperança para o mundo. A Igreja torna-se crível, se disser a mensagem cristã não em primeiro lugar aos outros, mas a si mesma e, portanto, não pregar apenas, mas cumprir as exigências de Jesus. Toda a sua credibilidade depende da fidelidade a Jesus Cristo." Como procederia Jesus nas actuais situações, quando pensamos no modo como agiu? Seria contra o preservativo, os anticonceptivos, excluiria as mulheres, obrigaria ao celibato, proibiria a comunhão aos recasados? Que diria sobre as relações sexuais antes do casamento? Como procederia em relação ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso?
A Igreja não pode entender-se como um aparelho de poder ou uma empresa religiosa, mas como povo de Deus e comunidade do Espírito Santo nos diferentes lugares e no mundo.
O papado não tem que desaparecer, mas o Papa não pode ser visto como "um autocrata espiritual", antes como o bispo que tem o primado pastoral, vinculado colegialmente com os outros bispos.
A Igreja, ao mesmo tempo que tem de fortalecer as suas funções nucleares - oferecer aos homens e mulheres de hoje a mensagem cristã, de modo compreensível, sem arcaísmos nem dogmatismos escolásticos, e celebrar os sacramentos -, deve assumir as suas responsabilidades sociais, apresentando, sem partidarismos, à sociedade opções fundamentais, orientações para um futuro melhor.
Não se trata de acabar com a Cúria Romana, mas de reformá-la segundo o Evangelho. Aqui, pergunto: Não é o que quer Francisco com a reforma da Cúria na Praedicate Evangelium (Pregai o Evangelho)?
Mais: precisa-se de transparência nas finanças da Igreja; deve-se acabar com a Inquisição, não bastando reformá-la, e eliminar todas as formas de repressão; deve-se permitir o casamento dos padres e dos bispos, abrir às mulheres todos os cargos da Igreja, incluir a participação dos padres e dos outros fiéis na eleição dos bispos; não se pode continuar a vedar a Eucaristia a católicos e protestantes; é preciso promover a compreensão ecuménica, o diálogo inter-religioso e o trabalho em conjunto.
Na presente situação da Igreja, há várias opções: abandoná-la, converter-se a outra, não entrar nela. Outra opção: comprometer-se de modo activo na comunidade, em movimentos, na teologia, pela sua reforma. "Foi esta opção que escolhi para mim."
A sua visão da Igreja determina-se pelas características da radicalidade cristã: a reforma da Igreja não se funda na adaptação ao Zeitgeist (espírito do tempo), mas na mensagem originária cristã e da constância: não se baseia em oportunismos, mas atende aos impulsos fundamentais do Concílio Vaticano II.
Concretizando:
1. Não tem salvação uma Igreja voltada para o passado, mas aquela que " se concentra nas tarefas do presente", aberta ao futuro.
2. Não tem salvação uma Igreja fixada patriarcalmente em imagens estereotipadas da mulher, linguagem exclusivamente masculina, papéis sexuais pré-definidos. Mas sobreviverá uma Igreja de companheirismo, inclusiva e que "aceita mulheres em todos os cargos eclesiais".
3. Não tem salvação uma Igreja vencida pela arrogância institucional, exclusivismo confessional, negação da comunidade. Mas sobreviverá uma Igreja que seja "uma Igreja ecuménica aberta".
4. Não tem salvação uma Igreja eurocêntrica e que reclama que só ela tem a verdade. Mas sobreviverá uma Igreja "universal e tolerante, que respeita uma verdade sempre maior, que, portanto, procura aprender também com as outras religiões e deixa uma adequada autonomia às Igrejas nacionais, regionais e locais. E que, por isso, também é respeitada pelos homens e mulheres, cristãos e não cristãos". E concluía: "Não abandonei a esperança de que a Igreja sobreviverá".
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 4 de março de 2023
Não conheço condenação mais dura da pedofilia do que a de Jesus. Ele disse: “Deixai vir a mim as criancinhas”, mas também disse: “Ai de quem escandalizar uma criança. Era melhor atar-lhe a mó de um moinho ao pescoço e deitá-lo ao mar”.
Outra palavra de Jesus: “Nada há de oculto que não venha a revelar-se”.
E esta: “A verdade libertar-vos-á.” Sempre admirei ao chegar à Universidade de Friburgo na Alemanha ver no frontispício precisamente esta palavra do Evangelho de São João: “Die Wahrheit wird euch frei machen”: a verdade tornar-vos-á livres.
Penso que foi neste contexto que José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, tomou a decisão corajosa de levar a Conferência a criar a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, que já apresentou os resultados do estudo. Denúncias validadas atingem o número de 512, tendo sido enviadas para o Ministério Público 25 — destas, seis estão sob investigação —, é de 4815 o número estimado de vítimas ao longo dos últimos 72 ano. Estes são os números do flagelo.
A reflexão tem de atender aos números, mas, como diz o Papa Francisco, mesmo que houvesse apenas um caso, seria uma tragédia.
O abuso é sempre abuso de poder. De facto, de um lado está um adulto e do outro uma criança inocente. No caso da Igreja, o abuso é mais brutal, porque se trata de um poder considerado sacro, divino, e, por outro lado, a família e as crianças confiavam na Igreja e nos padres. Ora, foi esta confiança que foi traída. Entre nós, foram publicados relatos arrepiantes, mas também li num relatório dos Estados Unidos este testemunho de uma família: “O padre entrava em nossa casa, era Deus que entrava. Depois, pedofilizou os nossos filhos e dizia-lhes: não podeis dizer nada, porque, se disserdes, ides para o inferno”. Isto é a perversão. Também entre nós — era uma espécie de norma comum na Igreja e não só, segundo o princípio: “a roupa suja lava-se em casa” —, houve encobrimento por parte de responsáveis.
Perguntam-me se há relação, relação de causa-efeito, entre o celibato e os abusos. À primeira vista, a resposta é: não. De facto, a maior parte, parte substancial, dos casos de pedofilia, passa-se em contextos familiares no sentido alargado, incluindo, vizinhos, amigos, portanto, pessoas casadas. Mas, aprofundando, deve-se reconhecer que, atendendo à formação tradicional nos Seminários, os futuros padres entravam ainda miúdos e toda a formação, incluindo a passagem pela puberdade-adolescência, se deu sem presença feminina, e a tentação era o sexo, o que fez com que tenha havido certamente casos de padres com uma sexualidade distorcida. Vítimas, eles próprios, fizeram vítimas.
O que fazer agora? Isto, ligado a imensos escândalos, também financeiros, no Vaticano e não só, abusos de poder sobre as consciências, etc...., constitui um sismo na Igreja e é necessário reconstruir desde a raiz, sabendo que o fundamento é Jesus e o seu Evangelho. Neste caso concreto, sem esquecer que se trata também de um crime hediondo, exige-se um pedido sentido de perdão, um apoio sólido às vitimas, psicológico, psiquiátrico, e, na medida do possível e em condições a estabelecer, também financeiro. Os abusadores, eles próprios com necessidade de apoio psicológico ou mesmo psiquiátrico, deverão abandonar o ministério. Os encobridores, que antepuseram a defesa da instituição, que queriam ver prestigiada, imaculada, à defesa das vítimas, deveriam demitir-se. Sem “caça às bruxas”, como disse o bispo Ornelas, e salvaguardando o princípio da presunção de inocência, os suspeitos precisam de atenção e devem ser mantidos sob vigilância até ao apuramento dos factos. A Igreja, que leva com ela o Evangelho de Jesus, a mensagem mais libertadora que a Humanidade alguma vez ouviu na sua história, precisa de voltar a adquirir autoridade e credibilidade. No próximo dia 3 de Março, espera-se da Conferência Episcopal a tomada de medidas sólidas neste sentido, provando que haverá realmente “tolerância zero” para a pedofilia.
Entretanto, é fundamental rever a formação nos Seminários, retomar sem medo o debate da questão do celibato obrigatório e da igualdade real das mulheres na Igreja, sem discriminação. Temas para próximas crónicas.
Concluo com palavras de Henrique Monteiro no Expresso de 17 deste mês, num texto lúcido: OS OBSCENOS. “Já se usaram todas as palavras. E mesmo alguns insultos, para caracterizar os abusos sexuais sobre menores na Igreja Católica que a Comissão Independente, designada pela mesma Igreja, revelou. Mas há indignação genuína, pura, sentida, e outra oportunista com duas facetas: a daqueles que se querem pôr de fora, quando estiveram sempre dentro do mal que os seus pares praticaram, e a daqueles que aproveitam mais uma oportunidade para atacar a Igreja. Como se fosse ela a única entidade a permitir ter no seu seio a ignomínia da pedofilia. Felizmente, os membros da Comissão têm sido sérios e competentes. Ainda ontem Daniel Sampaio dizia que, se fosse bispo e tivesse ocultado um caso assim, se demitiria. Não podia, nem pode ser de outra forma. A Igreja precisa de se limpar, de tomar um bom banho de humildade e autocrítica: de ser diferente caso pretenda manter o essencial do seu ministério. E isto diz quem vê de fora, quem nunca lhe pertenceu, nem teve fé, nem concorda com os dogmas, nem gosta de fogueiras inquisitoriais, mesmo para a entidade que as praticou.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 25 de fevereiro de 2023
Padre Anselmo Borges: “O segredo da confissão é, para mim, inviolável”
A Igreja tem de se dispor a apoiar financeiramente as vítimas. A prazo, o fim dos seminários e do celibato obrigatório têm de ser equacionados, sugere o padre Anselmo Borges.
Anselmo Borges, padre e professor de Filosofia, é, desde há muito, uma voz crítica de uma Igreja “clericalizada” e mais preocupada com a sua sobrevivência do que em abrir-se à sociedade e à protecção das vítimas. Face ao relatório que, a partir de 512 testemunhos validados, calcula que quase cinco mil crianças tenham sido vítimas de abuso sexual às mãos de clérigos portugueses nos últimos 72 anos, numa estimativa “muito conservadora”, Anselmo Borges não hesita em considerar que chegou a hora de equacionar o fim do celibato dos padres e a abertura às mulheres para lugares de topo na hierarquia da Igreja.
O que se impõe que a Igreja faça com as conclusões do relatório? Isto foi um sismo na Igreja e, portanto, aquilo que eu espero e desejo ardentemente é que agora haja uma regeneração desde os alicerces, isto é, que voltemos verdadeiramente ao Evangelho. Em concreto, que se peça perdão às vítimas, que haja uma verdadeira reconciliação, que, inclusivamente, e na medida justa, haja uma reparação eventualmente financeira às vítimas que ficaram com a vida destroçada. É fundamental esta reconciliação, reconhecer o mal que foi feito às vítimas. Isto é sempre uma catástrofe, mas neste caso estamos perante um abuso de um poder considerado sacro e divino. As crianças confiavam na Igreja e nos padres, foi uma traição à confiança das vítimas.
O que é que isso implica? No sentido mais amplo, implica acabar com o celibato e dar verdadeira igualdade às mulheres dentro da Igreja. É urgente acabar com este verdadeiro escândalo da discriminação das mulheres. Penso, aliás, que se houvesse mulheres no topo hierárquico da Igreja esta tragédia não teria tido a amplitude que teve. Portanto, que haja uma verdadeira igualdade entre mulheres e homens, porque a actual discriminação é contra os direitos humanos e sabemos, de resto, que ao longo da história da Igreja já houve mulheres a presidir à eucarística.
E quanto à ponderação do fim do segredo de confissão proposto no relatório? O segredo da confissão é, para mim, inviolável.
E quanto aos seminários, o que é preciso mudar, atendendo a que foram palco privilegiado dos abusos? Os seminários são uma criação que vem na continuidade do Concílio de Trento. Eu penso que eles prestaram um serviço, mas que agora têm de ser diferentes. Temos de começar a ordenar homens casados e os candidatos a ministros devem ir à universidade. Repare, o que tem de haver na Igreja não são sacerdotes ordenados, mas ministérios ordenados, que é diferente. Tradicionalmente, as crianças entravam em idades muito precoces no seminário, algumas porque era a maneira de haver uma promoção. E entraram num seminário em que não havia a presença feminina, onde a grande tentação era o sexo. Em muitos casos, isso fez com que houvesse padres com uma sexualidade distorcida, o que foi uma das causas desta tragédia dos abusos. A formação tem de ser diferente e tem de incluir a presença de mulheres, mas, com o tempo, é toda a pastoral que tem de ser revista.
Crê que a Igreja se disponibilizará para apoiar financeiramente pelo menos o tratamento das vítimas? Na medida do possível. Eventualmente, em vez de se pensar na ostentação em relação à Jornada Mundial da Juventude, pense-se nos mais pobres e nos marginalizados, como foram e são as vítimas, e à semelhança do que fez Jesus. Parece-me claro que, em relação às vítimas, é preciso garantir cuidados psiquiátricos e que a Igreja tem de as apoiar financeiramente.
por Natália Faria in Público | 14 de fevereiro de 2023
Quando se recita o “Credo” (nele, encontra-se o núcleo da fé cristã), é necessário estar prevenido contra perigos mortais.
Por exemplo, diz-se: “Creio em Deus Pai, em Jesus Cristo, no Espírito Santo”. Em português, também se diz “Creio na Igreja”, como se esta estivesse ao mesmo nível de Deus. Na realidade, não pode ser nem é assim. Aliás, o latim faz a distinção essencial, pois diz: “Credo in Deum...”; porém, não diz “Credo in Ecclesiam”, mas “Credo Ecclesiam”. A diferença essencial está naquele “in”: Creio “em” Deus, que significa: entrego-me confiadamente a Deus, mas não creio “na” Igreja. A diferença aparece também noutras línguas: por exemplo, em francês, distingue-se entre “Je crois en Dieu” e “Je crois à l´Eglise”, em alemão: “Ich glaube an Gott” e “Ich glaube die Kirche”.
Voltando à diferença na formulação latina — “Credo in Deum...”, mas “Credo Ecclesiam” —, o que lá está não é “Creio na Igreja”, mas: em Igreja, como Igreja, isto é, como membro da Igreja enquanto comunidade de todos os baptizados, creio em Deus Pai, em Jesus Cristo, no Espírito Santo, e espero a ressurreição dos mortos e a vida eterna... Como explica no seu Credo o famoso teólogo Hans Küng, “a Igreja é a ‘assembleia’, a ‘comunidade’ dos que crêem que Jesus é o Cristo, dos que fizeram sua a causa de Jesus e dela dão testemunho como esperança para todos.”
Como habitualmente se coloca tudo no mesmo plano, dizendo “creio na Igreja”, é fácil interiorizar a ideia de que se acredita na Igreja enquanto instituição, e instituição divina, com todas os enganos e desastres que se sucedem. Aliás, quando, na linguagem comum, a Igreja é publicamente referida, dizendo, por exemplo, “a Igreja diz sobre este tema isto e aquilo...”, pensa-se não na Igreja Povo de Deus, mas na hierarquia, no Papa, no Vaticano, nos cardeais, nos bispos, nos padres...
Ora, Jesus queria a Igreja enquanto Povo de Deus, não uma Igreja instituição de poder e clerical, com duas classes: de um lado, a hierarquia, o clero, que ensina e que manda em nome de Deus, e, do outro, os leigos, os que obedecem. Veja-se o significado da palavra leigo no linguajar comum: sou um “leigo”, com o sentido de incompetente, um ignorante. Ou a expressão referida aos padres, quando lhes é retirado o ministério: “foi reduzido ao estado laical”, com o sentido implícito de ter perdido o privilégio de clérigo. Na Igreja, segundo Jesus, há ou deveria haver uma igualdade radical e, consequentemente, nela deve reinar a fraternidade, a igualdade e a liberdade. Evidentemente, uma vez que há muitos, terá de haver alguma organização, mas a instituição tem de estar ao serviço da Igreja Povo de Deus, e não hipostasiar-se, sacralizar-se, dando a si mesma atributos divinos. Aliás, Jesus disse: “Eu vim não para ser servido mas para servir”. Na Igreja, há serviços, funções, ministérios.
Questão essencial é sempre o clericalismo, como tantas vezes o Papa Francisco tem sublinhado. Repito: clericalismo vem de clero, que implica a ordenação sacerdotal e com ela o poder sacro e o sacerdote como outro Cristo. Jesus tinha dito: “sois todos irmãos”, mas, com a ordenação sacerdotal apareceu, repito, uma Igreja com essas duas classes: clero e leigos. Segundo o Novo Testamento, sacerdote só Jesus e o povo cristão, que é sacerdotal. Assim, dois eminentes teólogos actuais, jesuítas como Francisco, exigem como urgente a necessidade da dessacerdotalização dos ministérios. Jorge Costoad escreveu: “A versão sacerdotal do cristianismo converteu-se numa expressão patológica do mesmo.” González Faus pede que “desapareça toda a conotação ‘sacerdotal’ no ministério... A rica teologia dos Evangelhos sobre o pastor, o padre (pai), pode dar perspectivas muito mais cristãs do ministério do que essa espécie de ‘divinização’ que o termo sacerdote sugere.”
Portanto, o que se passou e passa é que a hierarquia, padres e bispos, sacralizaram-se, atribuindo-se a si mesmos privilégios sacros ao serviço dos quais estaria o próprio celibato. Eles trazem Cristo à Terra na Eucaristia, só eles perdoam os pecados, e formam uma espécie de casta à parte, como diz a própria palavra clero, são ministros, mas ministros sagrados... O padre foi considerado “alter Christus” (outro Cristo). Isso foi de tal modo interiorizado pelo comum dos católicos que há constantemente o perigo da deriva para o clericalismo, como diz o padre Stéphane Joulain, psicoterapeuta: “Considerar que, porque se foi ordenado, se tem direito a uma forma de reverência é um erro, de que alguns não hesitam em abusar... A cultura de um país, a sua história desempenham um papel nisso: nos Estado Unidos, mas também na África, os leigos encontram-se numa grande submissão aos padres. Alguns fiéis, citados no relatório judicial da Pensilvânia, contam que, quando um padre os visitava, era como se o próprio Deus entrasse em casa...”.
Mais: neste contexto, também se entende que o perigo máximo consista em defender e proteger a instituição, mesmo à custa daqueles que verdadeiramente deveriam ser defendidos e protegidos: as crianças e os mais frágeis, no caso dos abusos. O encobrimento para defender a Igreja-instituição no seu poder e prestígio! E foi a tragédia que se conhece.
Perante uma das piores crises da História da Igreja, importa refundá-la, indo ao encontro do Evangelho. É nisso que trabalha afincadamente o Papa Francisco, que não se cansa de repetir que “a Igreja somos nós todos”.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 18 de fevereiro de 2023
1. A Igreja é, originariamente, a assembleia dos que acreditam em Jesus como o Messias Salvador. De facto, é também uma instituição e hoje, na realidade, a única instituição verdadeiramente global, com um chefe, que é também chefe de Estado. Assim, ergue-se, imensa, uma pergunta, formulada nestes termos por Paulo Rangel no Posfácio ao meu livro O Mundo e a Igreja. Que futuro?: “Que sentido faz que o chefe de uma Igreja seja chefe de Estado? Depois do Vaticano II, com a inauguração duma possível era republicana na cúpula da Igreja Católica, é admissível ou não a natureza político-constitucional e jus-internacional da própria Igreja e do seu vértice? Não seria altura de separar as águas e despir o Papa das últimas vestes de César? Não seria esse o próximo passo da Igreja no caminho do despojamento e do desprendimento?”
Paulo Rangel reconhece que são muitos os que vão neste sentido de uma “despolitização” do Vaticano e da Igreja, que deveria entregar-se à sua missão puramente espiritual e pastoral. Mas, por outro lado, quando se olha para o contributo do Papa e da rede diplomática do Vaticano para a paz, para a justiça, na defesa da dignidade das pessoas (refugiados e marginalizados), na denúncia do capitalismo selvagem, das perseguições e violências, é preciso perguntar também: “O mundo estaria melhor e os humanos viveriam melhor se a Igreja não dispusesse deste “aparelho” estadual? É evidente que não”. E conclui: A Igreja, não há dúvida, precisa de se reformar e converter, mas essa conversão “não exige nem postula o abandono de um dos grandes ministérios de que dispõe para servir a Humanidade — a sua diplomacia em favor da justiça e da paz, decorrente do reconhecimento internacional da sua natureza de Estado. Pelo contrário, pode mesmo reclamar essa natureza e identidade como forma supina de servir.”
2. Foi neste quadro que o Papa Francisco esteve, entre 31 de Janeiro e 5 de Fevereiro, na República Democrática do Congo e no Sudão do Sul, massacrados pela violência, pela exploração, numa dor sem fim. No Sudão do Sul, esteve acompanhado pelo arcebispo anglicano de Cantuária, J. Welby, e o moderador da Assembleia geral da Igreja da Escócia, I. Greenshieds, irmãos numa peregrinação ecuménica ao serviço da paz. Foi Welby que recordou aquele gesto inesquecível em Roma, em 2019, quando Francisco, num esforço fisicamente tão penoso, se ajoelhou diante dos três líderes do Sudão do Sul e lhes beijou os sapatos, suplicando um esforço para avançarem na paz.
E nestes dias juntaram-se multidões para saudar Francisco, ouvi-lo nas denúncias sem rodeios de tanta exploração económica e bélica mundial, suplicando pontes de entendimento em ordem à paz. O Papa, na sua debilidade física, em cadeira de rodas, mas firme na sua missão profética, foi exemplo evangélico, cristão, de entrega ao cuidado da Humanidade na justiça, na fraternidade e na paz. Também se alegrou quando presidiu àquelas celebrações a que acederam multidões cantando e dançando num ritmo que só os africanos sabem e têm. E comoveu-se tantas vezes, no contacto com mutilados de guerra, e certamente nunca esquecerá aquela menina a oferecer-lhe uma esmola.
3. Também deixou recados para o interior da Igreja, nomeadamente para o clero. Assim: “Se vivermos para ‘nos servirmos’ do povo em vez de ‘servir’ o povo, o sacerdócio e a vida consagrada tornam-se estéreis. Não se trata de um trabalho para ganhar dinheiro ou ter uma posição social nem para resolver a situação da família de origem, trata-se de ser sinais da presença de Cristo, do seu amor incondicional, do perdão com que quer reconciliar-nos.” “Que não suceda que nos julguemos autossuficientes, muito menos que se veja no episcopado a possibilidade de escalar posições sociais e de exercer o poder. O espírito malvado do carreirismo! E, sobretudo, que não entre o espírito mundano, que nos faz interpretar o ministério segundo critérios de benefício pessoal, que nos torna frios e distantes.” “Não somos os chefes de uma tribo, mas pastores compassivos e misericordiosos; não somos os donos do povo, mas servos que se inclinam a lavar os pés dos irmãos e irmãs.”
O essencial da mensagem transmitida nos dois países foi retomado na conferência de imprensa, já no regresso a Roma. Assim:
“Vi no Congo muita vontade de avançar, muita cultura. Têm tantas riquezas naturais que atraem quem vem explorar o Congo, perdão pela palavra. É preciso abandonar a ideia de que África é para explorar. Dá dor: as vítimas dessa guerra, amputados, tanta dor, tudo para levar as riquezas. Não, não pode ser.”
“A violência é um tema quotidiano. É doloroso ver como se provoca a violência. Um dos problemas é a venda de armas. A venda de armas creio que é a maior praga do mundo. O negócio! Alguém me disse que, se não se vendesse armas durante um ano, se acabaria com a fome no mundo. Também é certo que se provoca a luta entre tribos vendendo armas e depois explora-se a guerra entre tribos. Isto é diabólico.”
“O mundo todo está em guerra (Síria, Iémen, Myanmar, na Améria Latina, quantos focos de guerra!). O mundo está em guerra e em autodestruição. Paremos a tempo, porque uma bomba traz outra maior e outra maior e, na escalada, não sabes onde acabarás.”
E a sua saúde? Felizmente, sempre com humor: ”Este joelho chato!, mas, como se sabe, erva ruim nunca morre!”. Continuará, pois, o combate contra “a globalização da indiferença, presente em todo o lado.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 11 de fevereiro de 2023
Passados dez anos sobre um aviso — na prática, para a opinião pública, a condenação de Andrés Torres Queiruga, pelo episcopado espanhol —, vem ele, numa entrevista a “Vida Nueva”, esclarecer que a sua teologia quis ser sempre “um seviço livre ao Evangelho” e que, com o Papa Francisco, aparece, felizmente, cada vez mais como “legítima uma crítica sã e livre na Igreja”.
Retomo o que então escrevi sobre quem considero — e não sou o único — um dos maiores teólogos católicos vivos. Para mim, A. Torres Queiruga foi e é o teólogo que de modo mais profundo e conseguido enfrentou o cristianismo com a modernidade e a modernidade com os cristianismo. Deixo aí três aspectos que considero nucleares do seu pensamento.
1. Tudo aranca da fé, com razões, no Deus que cria por amor. Deus não criou por causa dEle, da sua maior honra e glória, mas apenas por causa das criaturas e da sua felicidade.
Tomada no seu sentido radical, a criação por amor, a partir do nada, implica, por um lado, a presença suma de Deus à sua criação, de tal modo que, se Ele se retirasse, tudo voltava ao donde veio, isto é, ao nada, e, por outro, a autonomia das criaturas. Assim, a ciência, a política, a economia, a própria moral, não vão buscar a sua legitimação à religião, pois devem reger-se pelas suas próprias leis.
Segue-se que, sendo tudo milagre - o que existe podia pura e simplesmente não existir -, não há milagres no sentido da suspensão das leis que regem a natureza. De facto, os milagres supõem o que não é pensável: um Deus "intervencionista", que está fora do mundo e que, de vez em quando e de forma arbitrária, vem dentro. Ora, Deus ao mesmo tempo que é infinitamente transcendente ao mundo é infinitamente presente ao mundo, e é, enquanto Anti-mal, sempre Força infinita criadora e potenciadora das possibilidades das criaturas.
2. Deste modo, torna-se inteligível o conceito fundamental das religiões, a revelação: como sabem os crentes que Deus falou? Tudo o que é autenticamente religioso é resposta humana a perguntas profunda e radicalmente humanas. O que a especifica é o facto de descobrir nela a presença viva de Deus que quer manifestar-nos o seu amor e salvação. Há uma só realidade para crentes e não crentes. O que acontece é que o crente tem a convicção de que a realidade não se esgota na sua imediatidade empírica, e essa convicção não surge porque é crente, mas porque a própria realidade, para a sua compreensão adequada, se apresenta incluindo uma Presença divina, que não se vê em si mesma, mas está implicada no que se vê. Mediante certas características — a contingência radical, a morte e o protesto contra ela, a exigência de sentido último —, a própria realidade se mostra implicando essa Presença divina como seu fundamento e sentido último. Assim, cito, na estrutura íntima do processo religioso, "não se interpreta o mundo de uma determinada maneira porque se é crente ou ateu, mas é-se crente ou ateu porque a fé ou a não crença aparecem ao crente e ao ateu, respectivamente, como a melhor maneira de interpretar o mundo comum".
3. A fé na ressurreição de Jesus é central no cristianismo. Mas ela não é a reanimação do cadáver nem pode ser constatável pelos historiadores. Ela é real, mas não é um facto da história empírica. Se o fosse, seria constatável empiricamente e não era precisa a fé nem seria ressurreição.
Os discípulos que, como Jesus, confessavam cada dia, na Shemoné Eshré, a fé no “Deus que ressuscita os mortos” e que tinham acreditado em Jesus continuaram a crer n'Ele, após a sua morte, uma morte que testemuhava o que foi o centro da sua mensagem por palavras e obras: que Deus é amor. Mais uma vez, reflectindo, aprofundaram a convicção avassaladora de fé de que Jesus não morreu para o nada, mas para o interior da vida de Deus, que é a vida plena e eternal. E disso deram testemunho até à morte.
4. "Ou Deus quer tirar o mal do mundo, mas não pode, ou pode, mas não quer. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, não nos ama; se pode e quer, donde vem o mal real e porque é que não o elimina?”
Quando se considera este famoso dilemma de Epicuro, é preciso ser consequente. De facto, não é legítimo invocar o mistério de modo cego, pois não pode ir contra a razão. Que diríamos de alguém que, podendo aliviar as dores de outra pessoa, o não fizesse? Não seria um sádico?
Assim, ou há alguma falha no dilema ou só resta a alternativa do ateísmo. O que falha é o pressuposto de que é possível um mundo perfeito. Ora, um mundo finito perfeito não é possível, pois é contraditório. Um mundo finito "não pode existir sem que no seu funcionamento e realização apareça também o mal".
Mas então ergue-se a pergunta: como pode Deus dar-nos a salvação plena que esperamos após a morte, se continuaremos finitos e a finitude é que torna inevitável a existência do mal? Este mundo é finito, mas perfectível… O tempo pertence à estrutura do ser finito. O crente é aquele que espera — e o ser humano é constitutivamente esperante —, após o tempo do crescimento e da maturação na história, a salvação plena por dom gratuito do Deus. Então, já para lá dos limites da História, "não se pode afirmar que seja contraditório que, ao intensificar-se a presença criadora fora dos limites do espaço e do tempo, a criatura participe, de algum modo, com tal força na infinitude divina, que resulte livre do mal", conclui Andrés Torres Queiruga.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 04 de fevereiro de 2023
Bento XVI morreu no passado dia 31 de Dezembro. As suas últimas palavras foram: “Senhor, eu amo-te.” Não há dúvida de que o seu grande legado para a História foi a renúncia, sinal de humildade e dessacralizando o papado. Para lá disso, fica também, como sublinhou José Manuel Vidal, “o milagre da coabitação e da transição tranquila”. Francisco punha fim a uma Igreja piramidal, clerical, carreirista, autorreferencial, e, agora, a caminho de uma Igreja sinodal, circular, “hospital de campanha”. E podemos imaginar o sofrimento de BentoXVI ao “ver como a sua obra era derrubada” ao mesmo tempo que era “duro para o Papa Francisco este trabalho de desmontagem perante os olhos de Bento XVI… No entanto, de modo geral, a convivência durante quase dez anos foi delicada e até fraternal”. Seja como for, não se deve de modo nenhum ignorar a diferença entre Bento XVI e Francisco, bem clara ao ler a obra póstuma de Bento XVI, Che cos’è il Cristianesimo (O que é o cristianismo), onde, por exemplo, defende uma ligação, dir-se-ia intrínseca, entre a ordenação sacerdotal e a obrigação do celibato.
Durante o seu funeral houve quem pedisse a canonização rápida — lá apareceu o cartaz do tempo do funeral de João Paulo II com “Santo subito”. Creio que isso não vai acontecer nem seria bom que acontecesse, como se prova ao pensar hoje na precipitação em canonizar João Paulo II. Nesse sentido se pronunciou o cardeal Walter Kasper, antigo prefeito do Dicastério (Ministério) para a unidade dos cristãos, usando até uma nota de humor: “Para o Céu não se vai em comboio de alta velocidade”.
Esta é mais uma iniciativa dos conservadores no sentido de “utilizar” Bento XVI contra Francisco, com a finalidade de precipitar a queda deste. É sabido que enquanto Bento XVI vivesse a renúncia de Francisco seria muito difícil. Por isso, alguns ultraconservadores e opositores de Francisco apressaram-se na luta de ataques contra ele, a começar pelo secretário de Bento XVI, o arcebispo G. Gänswein, que se precipitou a publicar as suas memórias no livro anunciado ainda antes do funeral: Nient’altro che la verità (Só a verdade). O arcebispo de Viena, cardeal Christoph Schönborn, criticou-o: “Uma indiscrição indecorosa. Não me parece bem que se publiquem coisas tão confidenciais, sobretudo por parte do secretário pessoal”. W. Kasper também disse que “seria melhor estar calado”.
De qualquer forma, no livro não há grandes revelações. Uma delas refere a dor de Bento XVI pelo facto de Francisco praticamente ter acabado com a possibilidade da Missa em latim. Pessoalmente, pergunto: porquê lamentar a proibição da Missa em latim? De facto, reclamar a possibilidade da celebração em latim e de costas para o povo é, nem que seja só inconscientemente, uma forma de clericalismo, pois só o clero (bispos, padres) teria a possibilidade de falar directamente com Deus, como se Deus só entendesse latim!
O cardeal Pell, entretanto falecido, apontou o pontificado de Fancisco como “um desastre”. E o cardeal Gerhard Müller, antigo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, no seu novo livro de entrevistas com a vaticanista Franca Giansoldati, publicado ontem, In buona fede (Com boa fé), ataca frontalmente Francisco, também por causa da Constituição Apostólica sobre a reforma da Cúria, Praedicate Evangelium (Pregai o Evangelho). Para Müller, existe uma “tendência para reformar a Igreja no sentido protestante” e que deriva de “uma visão liberal que despreza a tradição”.
E Francisco vai resignar? Já afirmou: “Se vir que não posso continuar ou estou a causar dano ou a ser um estorvo, espero ‘ajuda’ para tomar a decisão de retirar-me e, chegado esse dia, prefiro ser considerado simples Bispo emério de Roma em vez de Papa emérito”. Note-se que, de facto, teologicamente, não é aceitável o título “Papa emérito”. E também disse a que gostaria de se dedicar: “Se sobreviver à renúncia, gostaria de fazer coisas deste tipo: ouvir as pessoas em confissão e ver doentes.”
No entanto, a resignação não está para breve. Ele próprio acaba de declarar em entrevista à Associated Press que está “bem de saúde” e que a dor no joelho praticamente tinha desaparecido. De qualquer modo, “governa-se com a cabeça e não com as pernas.” Repetiu que, no caso de renúncia, seria “Bispo emérito de Roma” e viveria na residência para padres reformados da diocese.
Para já, continua com os seus compromissos: na semana próxima, visitará a República Democrática do Congo e o Sudão do Sul; em Agosto, está em Portugal para a Jornada Mundial da Juventude e já advertiu que a JMJ não pode ficar reduzida a turismo religioso e espectáculo, e eu, pessoalmente, estou convencido de que não gostará que a celebração da Eucaristia final seja num altar-palco com o custo de mais de 4 milhões de euros.
Dedicar-se-á intensamente à continuação da preparação e celebração do Sínodo dos Bispos sobre a sinodalidade em Outubro próximo, continuando no ano de 2024. De facto, a Igreja atravessa uma das suas mais dramáticas crises e precisa de uma mudança estrutural. Para ele, é bom haver críticas, “porque isso quer dizer que há liberdade para falar. A única coisa que peço é que mas digam na cara, porque assim crescemos todos, não é verdade?”
O legado de Francisco será precismente uma Igreja sinodal, caminhando todos em conjunto, sem “imperador” e “uma ditadura da distância”.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 28 de janeiro de 2023
Na presente crise gigantesca da Igreja, impõe-se continuar com a reforma que o Papa Francisco pôs em marcha. Para ela, há que contar também com contributos e reflexões de Bento XVI, apesar das duras críticas que justamente se levantam contra ele. Não se pode esquecer que a primeira herança a ter em conta é justamente Francisco. Repare-se em algumas dessas reflexões, que mostram não ser possível contrapor pura e simplesmente Francisco e Bento XVI. Ficam aí alguns exemplos.
1. Ainda recentemente Francisco lembrou o seu antecessor, que dizia: “A Igreja não faz proselitismo, cresce muito mais por atracção.” Neste sentido, em 1969 o então professor de Teologia J. Ratzinger avançou com uma profecia: “Da actual crise surgirá uma Igreja que terá perdido muito. Será mais pequena e terá que recomeçar mais ou menos do início. Já não será capaz de habitar os edifícios que construiu em tempos de prosperidade. Recomeçará com pequenos grupos. Será uma Igreja mais espiritual, Igreja dos pobres.” Acrescentou: mas então as pessoas descobrirão que vivem num mundo de “indescritível solidão” e elas, que tinham perdido Deus de vista, verão “esse pequeno rebanho de crentes como algo completamente novo: descobri-lo-ão como uma esperança para eles próprios, a resposta que secretamente sempre tinham procurado.” Voltou à ideia em 1970 e 1971: A Igreja “tornar-se-á pequena. Com o número dos seus membros, perderá muitos dos seus privilégios… Conhecerá também certamente novas formas de ministério e ordenará como padres cristãos que deram provas, que têm a sua profissão”. Sobre o celibato: por um lado, a sua defesa; por outro, a ordenação dos chamados viri probati (homens de fé provada, casados ou não) parecia-lhe “ser o caminho para, com sentido e sem quebra da tradição, criar novas possibilidades.” Nessa altura admitiu também, no quadro de certas condições, a possibilidade da comunhão para divorciados recasados.
2. Ele que carregou com o que terá constituído o seu maior pecado — a condenação de dezenas e dezenas de teólogos — também deixou escrito: “Acima do Papa encontra-se a própria consciência, à qual é preciso obedecer em primeiro lugar; se fosse necessário, até contra o que disser a autoridade ecclesiástica. O que faz falta na Igreja não são panegiristas da ordem estabelecida, mas homens cuja humildade e obediência não sejam menores do que a sua paixão pela verdade, e que amem a Igreja mais do que a sua comodidade da sua própria carreira.”
3. Contra uma Igreja centrada na Europa, confessou, já depois de ter abdicado e pensando na eleição de Bergoglio: “Papa é o Papa, não importa quem seja”. A eleição de um cardeal latino-americano “significa que a Igreja está em movimento, é dinâmica, aberta, tendo diante de si perspectivas de novos desenvolvimentos. É completamente claro que a Europa já não é o centro da Igreja mundial” e é evidente que ela “está a abandonar cada vez mais as velhas estruturas tradicionais da vida europeia e, portanto, muda de aspecto e nela vivem novas formas . É claro sobretudo que a descristianização da Europa progride, que o elemento cristão desaparece cada vez mais do tecido da sociedade. Portanto, a Igreia deve encontrar uma nova forma de presença. Estão em curso reviravoltas epocais.” A teologia precisa de renovar-se e admoestou os cardeais para “renunciarem ao estilo mundanao de poder e glória”.
4. E não tinha razão quando, nas Últimas Conversas, depois de confessar que “acreditar não é senão, na noite do mundo, tocar a mão de Deus e assim — no silêncio — ouvir a Palavra, ver o Amor”, perguntou: Qual é “o verdadeiro problema deste nosso momento da História? Deus desaparece do horizonte das pessoas e, com a extinção da luz que vem de Deus”, a Humanidade é apanhada pela falta de orientação, “cujos efeitos se manifestam cada vez mais”.
Pergunto: não consiste o desastre da presente situação de consumismo hedonista e de vazio no facto de já nem sequer se colocar a pergunta essencial, a pergunta pelo Fundamento, pelo Sentido último? Sem essa pergunta, onde fundamentar a dignidade do ser humano, “fim em si mesmo e não simples meio”, como teorizou I. Kant? De facto, só o Infinito é fim em si mesmo: para lá não existe mais nada. O que tem o ser humano de infinito senão precisamente a pergunta ao Infinito pelo Infinito, em última análise, a pergunta por Deus, independenetemente da resposta que lhe dê, pois, com honestidade, pode haver crentes, agnósticos e ateus?
5. Enfrentou a doutrina da “satisfação”: Deus mandou o seu Filho Jesus ao mundo para, com a morte na cruz como vítima expiatória, reparar a ofensa infinita feita a Deus pela Humanidade. Rejeitou a noção de um Deus colérico, sádico, “cuja justiça inexorável teria exigido um sacrifício humano, o sacrifício do seu próprio Filho. Esta imagem, apesar de tão espalhada, não deixa de ser falsa”, contradiz o Deus-Amor, revelado em Jesus.
6. Percebeu a necessidade, no contexto da interdependência de tudo e de todos, de uma Governança global: “Urge a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial, que deverá ser reconhecida por todos, gozar de poder efectivo para garantir a cada um a segurança, a observância da justiça, o respeito dos direitos”.
7. Ficam para a História a denúncia da Cúria, um verdadeiro cancro da Igreja, e a resignação, que permitiu a eleição de Francisco, uma bênção para a Igreja e para o mundo.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 21 de janeiro de 2023