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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A IMACULADA CONCEIÇÃO, O PECADO ORIGINAL E O SEXO

  


Volto ao tema, pois não sei se a maioria dos portugueses sabe a razão do feriado de 8 de Dezembro.  Os católicos saberão que se trata de uma festa ligada a Nossa Senhora e, se interrogados, talvez respondessem, na quase totalidade, que tem a ver com a virgindade de Maria. Para dizer o quê, celebrando o quê? Volto ao tema, porque pode ser ou tornar-se uma festa com muitos equívocos.       


Logo à partida, que pode significar Imaculada Conceição? De facto, não se refere directamente à virgindade, mas não lhe é completamente alheia. Do que se trata, na realidade, é da afirmação de que Maria, a Mãe de Jesus, foi concebida sem pecado. Mas, aqui, sem hermenêutica, isto é, sem interpretação, pode albergar-se uma série de confusões, profundamente ofensivas sobretudo para as mulheres, minando, desgraçadamente, a mensagem do Evangelho enquanto notícia boa e felicitante também para elas. 


Foi concretamente Santo Agostinho que elaborou a doutrina do pecado original, no sentido de um pecado cometido pelos primeiros pais (Adão e Eva) e transmitido a todos por herança, no acto sexual. Na festa da Imaculada Conceição o que se celebraria é que houve uma excepção: Maria foi concebida sem a mancha do pecado original.


Deste modo, porém, a sexualidade ficou manchada e as mulheres acabavam por sentir-se discriminadas, tanto mais quanto, associando também a concepção de Jesus a uma geração virginal, se lhes propunha o ideal impossível de virgem e mãe.


Subrepticiamente, esta doutrina causou imensos danos ao cristianismo, concretamente à mulher, à visão do sexo e do casamento. Assim, um cristão atento e reflexivo sabe que é necessário e urgente rever o dogma, mostrando o seu verdadeiro sentido. O próprio Papa João Paulo II deu a chave, ao escrever que "o Natal de Jesus revela o sentido profundo de todo o nascimento humano". Afinal, quando percebe que o ser humano não é redutível à biologia, o crente verá em toda a nova geração a presença do Espírito Santo, como aconteceu com Jesus. Por outro lado, nascer é vir à luz e, portanto, dar à luz não constitui uma mancha para a mãe, como supõe a doutrina da virgindade de Maria: virgem “antes, no e depois do parto”. Hoje, o pecado original é inconcebível, concretamente, por causa da evolução: o ser humano aparece no quadro da evolução, o que implica então a seguinte pergunta: quem foram os “primeiros pais”, colocados no mundo sem pecado e que depois pecaram, transmitindo esse pecado a todos, de tal modo que todos nascem em pecado de que só o baptismo os pode libertar?  Ainda conheci mães que viveram verdadeiros dramas interiores porque os seus  bebés tinham morrido sem o baptismo. Mas não. Todo o ser humano é concebido sem pecado; o que se passa é que, entrado no mundo, terá de lutar contra a maldade e o pecado já presentes, na esperança de um mundo melhor, mais digno e mais justo. Uma comparação: alguém que não fuma é de algum modo contaminado pelo fumo ao entrar numa sala com fumadores. E o baptismo? Não é para apagar o pecado original, que não há; os pais baptizam os seus filhos, porque, desejando o melhor para eles, querem que eles entrem na Igreja, comprometendo-se a educá-los na fé como discípulos de Jesus.


Podemos então compreender, como dizia o teólogo Karl Rahner, que, nestes domínios, por exemplo, da virgindade de Maria, não se trata de biologia. Referindo-se à narrativa do Evangelho de São Mateus sobre a geração de Jesus por obra do Espírito Santo, escreveu o exegeta Jean Radermakers: "Tomando imagens das mitologias pagãs, depuradas pela reflexão judaica, Mateus não se situa num plano de fisiologia, medicina, ginecologia ou sexologia, mas no de uma realidade mais profunda. Deveríamos reler a nossa experiência do dar à luz e da responsabilidade parental a partir do nascimento de Jesus. Toda a criatura recém-nascida vem de Deus. Assumir uma maternidade e paternidade humanas é deixar que Deus se revele na criatura nascida. A missão de todo o varão e toda a mulher que se unem é dar lugar a que apareça no mundo a realidade do Emanuel, Deus connosco."


Criticando os mal-entendidos da leitura do Evangelho a partir de pressupostos negativos em relação à sexualidade, o teólogo Juan Masiá põe na boca do anjo estas palavras dirigidas a São José: "Não deixes de levar Maria contigo. Não penses que pelo facto da intervenção do Espírito o teu papel como varão está a mais. Não tens que afastar-te para permitir que Deus faça algo grande com a tua família. Com a tua relação com Maria, não vais entrar em concorrência com o Espírito Santo. O teu papel é compatível com a acção de Deus e com que Jesus seja o Cristo."


Não há dúvida de que a Igreja na sua história foi contaminada por uma verdadeira obsessão pelo sexo, numa relação envenenada com a sexualidade e o prazer. É claro que, no universo sexual, que, como escreveu Miguel Oliveira da Silva, continua a ser “um imenso, incómodo e multifacetado mistério”, não vale tudo e que “a sociedade ocidental vive um profundo e grave vazio ético em matéria de sexualidade, que a múltipla oferta de uma sexualidade por vezes devassada sem pudor na praça pública e passível de excessos não consegue preencher — ao contrário.” E a Igreja? O cardeal alemão R. Marx chamou recentemente a atenção para a urgência da “mudança da moral sexual católica”, superando “uma imagem que tem estado marcada pela culpa  e pelo pecado”.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 2 de dezembro de 2023

A IMACULADA CONCEIÇÃO E A ESPERANÇA

  


Santo Agostinho era um génio. Mas a sua influência foi ambígua,  para o bem e para o mal. Pense-se no seu pessimismo, que o levou à convicção de que o prazer sexual implica sempre algo de pecaminoso, pois a finalidade da relação sexual deveria ser unicamente a procriação.


Baseado na tradução latina da Carta de São Paulo aos Romanos, 5,12, referente a Adão: "no qual todos pecaram", Santo Agostinho, contra o texto original grego, que diz: "porque todos pecaram", interpretou que o pecado de Adão não é apenas o primeiro da série de todos os pecados cometidos pelas pessoas ao longo da história, mas que esse pecado é um pecado hereditário, de tal modo que é um pecado de todos os homens e mulheres, transmitido por geração pelo acto sexual. Portanto, o recém-nascido não é inocente, nasce em pecado, do qual, para evitar a condenação eterna, só o baptismo o pode libertar. Foi pelo pecado de Adão que veio todo o mal ao mundo, incluindo a morte. Esse pecado tornou a humanidade toda “massa damnata”, massa condenada, ao inferno, do qual só alguns são libertados pela graça imerecida de Deus. Pelo pecado, Adão destruiu um bem que podia ser eterno, tornando-se merecedor, ele e todos os homens nele, de um mal eterno: "Daqui - escreve ele -, a condenação de toda a massa do género humano, pois o primeiro culpado foi castigado com toda a sua posteridade, que estava nele como na sua raiz. Assim ninguém escapa a esse suplício justo e devido, a não ser por uma misericórdia e uma graça indevida. E é tal a disposição dos homens que nalguns aparece o valor de uma graça misericordiosa e nos outros o de uma justa vingança".


Assenta aqui a doutrina da dupla predestinação, que continuaria radicalizada sobretudo em Calvino. Na salvação de alguns, revela-se a misericórdia graciosa de Deus; na condenação eterna da maioria, manifesta-se a justiça do mesmo Deus.


É neste enquadramento que surge a festa que se celebrou no passado dia 8 de Dezembro, com feriado nacional: a Imaculada Conceição de Nossa Senhora: Maria, a mãe de Jesus, seria uma excepção, pois foi concebida sem pecado.


Hoje, o pecado original não é pensável. De facto, como se pode pensar no pecado original, causa de todos os males, incluindo a morte, no contexto da evolução, segundo a qual o ser humano aparece num processo imensamente lento? O pecado original dos primeiros homens — quem foram os primeiros? — implicaria um acto de liberdade plena, que eles, pensando precisamente na evolução, não tinham... E não havia morte, se não houvesse o primeiro pecado de Adão e Eva?  Mais: quem acredita verdadeiramente que uma criança acabada de nascer foi concebida em pecado e nasce com o pecado dentro dela?  


O chamado pecado original só faz sentido, se pensarmos que aquele menino, aquela menina, nascem inocentes, mas para um mundo onde já há pecado e, assim, vão ser contaminados por esse ambiente de pecado, como um não fumador é contaminado ao entrar num ambiente em que se fuma.  Aliás, as pessoas, postas a pensar, acreditam verdadeiramente no pecado original no sentido tradicional? Permita-se-me que conte uma pequena história que se passou comigo. Fui fazer uma palestra em Aveiro. Na altura das perguntas e esclarecimentos, uma senhora, embora eu não tivesse abordado sequer o tema, acusou-me: “Você negou o pecado original”. Eu disse-lhe que na palestra nem tinha abordado a questão, mas voltei-me para ela e perguntei-lhe: “A senhora é mãe?” E ela: “Sim, sou mãe de duas filhas”. Disse-lhe: “Parabéns! Agora diga-me: acredita sinceramente que elas foram geradas em pecado e que a senhora andou com o pecado dentro de si durante dezoito meses?” Ela: “Eu? Eu não.” Observei-lhe: “Está a ver? Afinal, quem nega o pecado original é a senhora, não eu.”


Com a doutrina do pecado original, chegava-se a esta contradição: por um lado, havia a obrigação moral de relações sexuais fecundas, em ordem ao cumprimento da ordem de Deus: crescei e multiplicai-vos; por outro, havia o receio de, precisamente desse modo, contribuir para o aumento de pessoas com o pecado original; havia ainda a agravante de contribuir para as condenações ao inferno, caso os recém-nascidos morressem antes de receber o baptismo: em muitas ocasiões Santo Agostinho afirma a condenação eterna das crianças que não foram baptizadas...  Lentamente, ele próprio apercebeu-se de que era tal o horror dessa doutrina que elaborou a doutrina do limbo para as crianças que morriam sem baptismo: não iam para o inferno, mas também não gozavam da plenitude da vida em Deus...


Portanto, se não há pecado original no sentido tradicional, qual é o sentido da festa da Imaculada Conceição? O que de facto se celebra é Maria como a primeira cristã e a esperança de que no final se realize o Reino de Deus na sua plenitude, pondo termo a todo o calvário do mundo, à ecúmena do sofrimento sem nome, a esse cortejo infindo de ódio, de malvadez, de vingança, de loucura, de pecado, que realizou guerras mundiais,  Auschwitz, o Goulag,  a Ucrânia...,  todo o mal e toda a tragédia e todas as lágrimas que causamos uns aos outros e o número incontável de vítimas inocentes...


Essas vítimas gritam, não por vingança, mas por justiça. E só Deus, força criadora infinita, pode responder, pela ressurreição dos mortos, a esse clamor da história do sofrimento humano. Para que a história do mundo e da humanidade não desemboque pura e simplesmente no absurdo do sem sentido.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 10 de dezembro de 2022