Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

IMMANUEL KANT: O HOMEM E DEUS

  


Neste tempo dominado por maquinarias de estupidificação, quando o que mais falta é, por isso mesmo, pensar criticamente, não podia deixar passar o terceiro centenário do seu nascimento sem uma brevíssima referência. Refiro-me a Immanuel Kant, que nasceu no dia 22 de Abril de 1724 em Königsberg, antiga Prússia, actualmente Kaliningrado, um enclave russo  entre a Polónia e a Lituânia, e que morreu nessa mesma cidade no dia 12 de Fevereiro de 1804. É lá, na catedral de Kaliningrado, que se encontra uma lápide com a sua frase célebre : “Duas coisas enchem a mente de uma admiração e um respeito sempre novos e crescentes quanto mais frequentemente e com maior persistência delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim”.


Kant, um dos maiores filósofos de sempre, deixou um legado essencial: uma atitude de pensamento crítico que vá ao essencial. “Sapere aude!” Ousa saber, ousa pensar, atreve-te a saber, atreve-te a pensar!  “Que é Iluminismo? O Iluminismo é a libertação do ser humano da sua incapacidade culpada. A incapacidade significa a impossibilidade de servir-se da sua inteligência sem a guia de outro. Esta incapacidade é culpada porque a sua causa não reside na falta de inteligência mas na falta de decisão e coragem para servir-se por si mesmo dela sem a tutela de outro. Sapere aude! Tem a coragem de servir-te da tua própria razão!”


Em síntese, a obra de Kant vai ao encontro destas três perguntas essenciais: “Que posso saber?”, “Que devo  fazer?”, “O que é que me é permitido esperar?”


Na sequência do sua “revolução copernicana” quanto ao conhecimento, concluiu que, escapando à experiência, Deus e a imortalidade não podem ser conhecidos. Não são demonstráveis.


Como agir bem, moralmente? Há para isso um critério seguro? Este critério não está em seguir os desejos ou inclinações pessoais, os hábitos de acção dos grupos ou países. Esse critério também não se encontra na busca da felicidade. Para Kant, esse critério consiste num “imperativo categórico”. Em que consiste? Se queremos saber se uma acção é moral, deve-se sujeitar a máxima ou regra pela qual nos guiamos a um teste de universalização. Assim, numa das suas formulações: “Age como se a máxima da tua acção devesse ser erigida pela tua vontade em lei universal de natureza”. Quando agimos, se queremos saber se estamos a agir moralmente, perguntemos: o que aconteceria se todos aplicassem a regra ou máxima. Um exemplo: a mentira. É moral mentir? Para sabê-lo, perguntemos: é universalizável?  O que sucederia se todos mentissem? É evidente que a própria mentira se tornaria absurda, pois mentir só vale, isto é, só tem eficácia, no pressuposto de que as pessoas confiam no que alguém lhes diz. Portanto, mentir é imoral. Outro exemplo, este pela positiva: aliviar o sofrimento dos desgraçados. Neste caso, os sofrimentos próprios da condição humana encontrariam sempre um alívio. Aí está, pois, uma acção moral. Kant segue, portanto, na sua apreciação moral, um critério racional em autonomia. Mas, uma vez que nem sempre é fácil este critério da universalização, Kant propõe outra formulação do mesmo imperativo categórico: “Age de tal modo que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros sempre como um fim, nunca como um simples meio”.  Cá está, pois: as coisas têm um preço, porque são meios, o Homem não tem preço, mas dignidade, porque é fim.


Do dever moral enquanto imperativo categórico, seguem-se os chamados postulados da razão prática.


Em primeiro lugar, a liberdade. Diz Kant: “Podes, porque deves”. Se deves, podes; é pela lei moral que sabemos que somos livres; agir moralmente é afirmar a liberdade, que não é arbítrio, e, por isso, educar tem de ser educar para a liberdade. Neste sentido, há um célebre exercício mental na sua Crítica da razão prática, que obriga a pensar. Suponhamos que alguém, sob pena de morte imediata, se vê confrontado com a ordem de levantar um falso testemunho contra uma pessoa que sabe ser inocente. Nessas circunstâncias e por muito grande que seja o seu amor à vida, pensará que é possível resistir. “Talvez não se atreva a assegurar que assim faria, no caso de isso realmente acontecer; mas não terá outro remédio senão aceitar sem hesitações que tem essa possibilidade.” Existem as duas possibilidades: resistir ou não. “Julga, portanto, que é capaz de fazer algo, pois é consciente de que deve moralmente fazê-lo e, desse modo, descobre em si a liberdade que, sem a lei moral, lhe teria passado despercebida.”


A esperança da felicidade, imortalidade e Deus. Não é critério da moralidade a busca da felicidade. Mas quem cumpre o seu dever moral incondicional torna-se digno de ser feliz. Este merecer ser feliz mostra-se no exemplo acabado de apresentar. Suponhamos que a pessoa preferiu de facto ser morta a levantar um falso testemunho contra o inocente. Casos destes acontecem, há muitos exemplos históricos. Ora, a ligação entre o dever cumprido e a felicidade não se dá neste mundo, pelo contrário, o cumprimento do dever implicou dar a vida. Por isso, postula-se a imortalidade e exige-se moralmente que Deus exista.


Embora nunca tenha saído da sua cidade natal, tinha ideias cosmopolitas e é dele a expressão Völkerbund (Liga de Povos) como organização internacional em ordem à paz mundial, concretizada no  século XX na Sociedade das Nações e na ONU.


PS
. Estimados leitores e leitoras, até Agosto!


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 29 de junho de 2024

SOMOS LIVRES? E ENTÃO?

  


Vem-me à memória aquela estória. Diante do avô morto, o menino perguntou à mãe: “E agora?” A mãe: “O avô morreu e a alma foi para Deus e o corpo vai para a terra; quando a mãe morrer, também é assim: o corpo vai para a terra e a alma vai para Deus; quando tu morreres um dia, também é assim: o teu corpo vai para Deus e a tua alma vai para Deus.” E o miúdo: “E eu?”


Aí está o enigma maior: o enigma do eu. Nestes tempos líquidos, não se pensa, mas é urgente pensar nesse enigma, mistério mesmo, que é o eu. Eu...


E  a esta gigantesca questão está ligada uma outra pergunta decisiva: somos realmente livres? De facto, se não somos livres, o que se chama dignidade humana pode ser uma convenção, mas não tem fundamento real.


Mas quem nunca foi assaltado pela pergunta: a minha vida teria podido ser diferente? Para sabê-lo cientificamente, seria preciso o que não é possível: repetir a vida exactamente nas mesmas circunstâncias. Só assim se verificaria se as "escolhas" se repetiam nos mesmos termos ou não.


Não há dúvida de que a liberdade humana é condicionada. Mas ela existe ou é uma ilusão? Não vêm agora neurocientistas dizer que, mediante dados da tomografia de emissão de positrões e da ressonância magnética nuclear funcional, se mostra que afinal as nossas decisões são dirigidas por processos neuronais inconscientes?


De qualquer modo, já em 2004, destacados neurocientistas também tornaram público um "Manifesto sobre o presente e o futuro da investigação do cérebro" - cito Hans Küng, no seu Der Anfang aller Dinge (O princípio de todas as coisas) -, revelando-se prudentes no que toca às "grandes perguntas": "Como surgem a consciência e a vivência do eu? Como se entrelaçam a acção racional e a acção emocional? Que valor se deve conceder à ideia de 'livre arbítrio'? Colocar já hoje as grandes perguntas das neurociências é legítimo, mas pensar que terão resposta nos próximos anos é muito pouco realista." É preciso continuar as investigações, no sentido de perceber o nexo entre a mente e o cérebro. "Mas nenhum progresso terminará num triunfo do reducionismo neuronal. Mesmo que alguma vez chegássemos a explicar a totalidade dos processos neuronais subjacentes à simpatia que o ser humano pode sentir pelos seus congéneres, ao seu enamoramento e à sua responsabilidade moral, a autonomia da 'perspectiva interna' permaneceria intacta. Pois também uma fuga de Bach não perde nada do seu fascínio, quando se compreende com exactidão como está construída."


A liberdade não é desvinculável da experiência subjectiva, da "perspectiva interna". Essa experiência é transcendental, no sentido de que a liberdade se afirma até na sua negação. De facto, se tudo se movesse no quadro do determinismo total, como surgiria o debate sobre a liberdade? Esse debate não seria possível.


Essa experiência coloca-se concretamente no campo da moral e da responsabilidade. Neste contexto, há um célebre exercício mental de Kant na Crítica da Razão Prática, que é elucidativo e obriga a pensar. Suponhamos que alguém se vê confrontado com a ordem de levantar um falso testemunho contra uma pessoa que sabe ser inocente; se o não fizer, será imediatamente morto. Nessas circunstâncias e por muito grande que seja o seu amor à vida, pensará que é possível resistir. "Talvez não se atreva a assegurar que assim faria, no caso de isso realmente acontecer; mas não terá outro remédio senão aceitar sem hesitações que tem essa possibilidade." Existem as duas possibilidades: resistir ou não. "Julga, portanto, que é capaz de fazer algo, pois é consciente de que deve moralmente fazê-lo e, desse modo, descobre em si a liberdade que, sem a lei moral, lhe teria passado despercebida."


O que confunde frequentemente o debate é a falta de esclarecimento quanto ao que é realmente a liberdade. Ela é a não submissão à necessidade coactiva, externa e interna, mas não pode, por outro lado, ser confundida com a arbitrariedade e a pura espontaneidade - não implica a espontaneidade a necessidade?


A liberdade radica na experiência originária da pessoa como dom para si mesma. Cada um é dono de si mesmo. E, paradoxalmente, é na abertura a tudo, portanto, no horizonte da totalidade do ser, que ele vem a si mesmo como eu único e senhor de si. Então, agir livremente é a capacidade de erguer-se acima dos próprios interesses, para se pôr no lugar do outro e agir racionalmente.


É preciso distinguir entre causas e razões. Quando se age sob uma causalidade constringente, não há liberdade. Ser livre é propor-se ideais, deliberar e agir segundo razões e argumentos, impondo limites aos impulsos, inclinações e desejos, o que mostra que o ser humano pode ser senhor dos seus actos e, assim, é responsável, isto é, responde por eles e por si próprio. E aí está, na presente situação degradada do país em muitas frentes — Educação, Justiça, Economia, Forças Armadas... —, a inevitável pergunta: Alguém se declara responsável, co-responsável, pela dramática situação?


Aqui chegados, um outro exercício mental. Suponhamos que, na guerra, um soldado é obrigado, sob pena de ser fuzilado, a matar um inocente. Ele, por exigência moral, não o faz e, por isso, é morto. A pergunta, gigantesca, é: a sua vida acaba ali, na morte? Não se impõe moralmente que seja recompensado para lá da morte? E quem o pode fazer senão Deus?


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 1 de abril de 2023

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

43. PAZ PERPÉTUA UNIVERSAL

 

“Não deve considerar-se como válido nenhum tratado de paz que se tenha feito com a reserva secreta de elementos para uma guerra futura”

 

“Os exércitos permanentes (miles perpetuus) devem, com o tempo, desaparecer totalmente”

 

O Projeto de Paz Perpétua, de Kant, tem como imperativo categórico que os Estados se associem numa organização de fins pacíficos, regida por uma lei universal que colocasse a guerra fora do Direito, declarando-a inimigo público número um de toda a humanidade.

 

Propunha como solução, para garantir a paz perpétua, a constituição de uma federação de Estados livres, uma República universal de um congresso permanente de Estados com competência para resolução de conflitos internacionais.

 

Sabemos, pela experiência vivida, que foi em nome dessa cooperação fundada em imperativos morais e jurídicos limitativos dos poderes estaduais que se norteou a Sociedade das Nações, o que não impediu, após a primeira grande guerra, que os ressentimentos se agudizassem e se chegasse à segunda guerra mundial.

 

Tudo para concluir que embora em termos estratégicos, mediatos e de longo prazo, não seja de excluir a utopia de uma organização internacional e universal que alcance um estádio similar àquele que, nos nossos dias, já foi atingido no interior dos Estados com o Direito a superar a vingança privada, só daqui por muitas gerações vindouras poderemos, eventualmente, banir a guerra e estabelecer uma paz justa.

 

Do mesmo modo, enquanto não tivermos um Direito Universal com a mesma eficácia e modelo do Direito que existe dentro de cada Estado, não haverá um Direito Internacional Público Universal.

 

Pura utopia falar em paz perpétua?

 

Guerra e paz sempre existiram, sendo nossa obrigação, com espírito de tolerância e uma educação permanente, reintroduzir nas relações internacionais a nobre tarefa de alcançar um consenso global a respeito da noção de guerra justa, paz e justiça.

 

Proclama a Unesco que Nascendo a guerra no espírito dos homens, é no espírito dos homens que devem ser construídas as defesas da Paz, sendo esta, na sua essência, a tectónica da paz, o que se pode adaptar à justa causa para fazer a guerra e a justiça, mesmo que se demorem séculos para excluir a guerra e consolidar a paz, ou mesmo que o imperativo categórico da paz perpétua não seja mais que uma magna promessa.

 

20.03.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício